A PROPRIEDADE PRIVADA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988: UMA ANÁLISE A PARTIR DA MORALIDADE TRIBUTÁRIA

Hugo Thamir Rodrigues

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Rio Grande do Sul.

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Vivian Paludo

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Rio Grande do Sul.

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RESUMO: Este artigo trata da análise da propriedade privada na perspectiva da moralidade tributária. O tema da propriedade privada tem proteção constitucional, relacionando-se com questões sociais, fiscais e financeiras, tanto a nível privado quanto público. Em especial no contexto fiscal a análise da propriedade relacionada à moralidade tributária é muito sensível, pois ao mesmo tempo em que há as possibilidades de tributação e de gastos há os limites morais e legais. O problema de pesquisa que norteia este estudo é: qual a relação que se pode estabelecer entre os preceitos constitucionais brasileiros atuais sobre da propriedade privada e as diretrizes da moralidade tributária? Pretende-se com o presente estudo compreender quais as relações e influências entre a proteção da propriedade privada – partindo-se das normas constitucionais - e a necessidade fiscal – a partir das bases da moralidade tributária. Para isso estudam-se aspectos peculiares da propriedade privada, compreende-se as diretrizes direcionadoras da moralidade tributária e, ao fim, busca-se analisar a propriedade privada em um contexto de moralidade fiscal. O método de pesquisa é o bibliográfico, o método de abordagem é o dedutivo e a técnica de pesquisa é a documentação indireta. Os resultados alcançados indicam que, primeiramente, a relação entre os seres humanos e a propriedade foi de unicidade. Com a mudança dessa relação é que se pôde trazer aspectos de solidariedade, em especial, em matéria tributária, com a utilização da capacidade contributiva como critério da moralidade tributária balizador da relação com a propriedade.

PALAVRAS-CHAVES: Capacidade contributiva. Moralidade tributária. Propriedade privada. Solidariedade fiscal.

The private property in the 1988 Brazilian Constitution: an analysis based on tax morality

ABSTRACT: This paper deals with the analysis of private property from the perspective of tax morality. The issue of private property has constitutional protection, relating to social, fiscal and financial issues, both privately and publicly. Particularly in the fiscal context, the analysis of property related to tax morality is very sensitive, since at the same time that there are possibilities for taxation and expenditure, there are moral and legal limits. The research problem that guides this study is: what is the relationship that can be established between the current Brazilian constitutional precepts on private property and the guidelines of tax morality? The aim of this study is to understand the relationships and influences between the protection of private property - based on constitutional norms - and fiscal necessity - based on tax morality. For this, peculiar aspects of private property are studied, the guiding guidelines of tax morality are understood, and, finally, an attempt is made to analyze private property in a context of fiscal morality. The research method is bibliographic, the approach method is deductive and the research technique is indirect documentation. The results achieved indicate that, first, the relationship between human beings and property was one of uniqueness. With the change in this relationship, it was possible to bring aspects of solidarity, especially in tax matters, with the use of contributory capacity as a criterion of tax morality to guide the relationship with property

KEYWORDS: Ability to pay. Tax morality. Private property. Fiscal solidarity.

Introdução

A propriedade privada se apresenta como umas das bases sobre as quais se alicerça a República Federativa do Brasil. Em adição a isso, sua relação próxima com a necessidade de se observarem os ditames da moralidade tributária aponta a relevância do presente estudo. Veja-se que o patrimônio possui expressão monetária e é objeto de grande interesse tributário e de necessária proteção, ao mesmo tempo em que pode ser objeto de redistribuição de riquezas em uma sociedade. Isso não se pode afastar da análise sob o olhar da ética e da moralidade sobre a tributação. Analisar-se-á, assim, a propriedade privada conforme os ditames constitucionais brasileiros e a moralidade tributária.

Diante disso, buscar-se-á responder ao seguinte problema de pesquisa: qual a relação que se pode estabelecer entre os preceitos constitucionais brasileiros atuais sobre da propriedade privada e as diretrizes da moralidade tributária? Então, o objetivo geral do estudo é compreender quais as relações e influências entre a proteção da propriedade privada – partindo-se das normas constitucionais - e a necessidade fiscal – a partir das bases da moralidade tributária.

Com essa compreensão da relação entre a propriedade privada e a moralidade tributária são eleitos como possíveis e relevantes tanto os aspectos imprescindíveis da propriedade e que assim devem ser porque assim a constituição define, ao mesmo tempo em que os aspectos sociais, éticos e morais não precisam ser anulados, nem sequer afastado, também porque assim a constituição determina.

Para que se possa ao questionamento norteador do estudo, far-se-á a análise das disposições constitucionais relativas à propriedade privada. Em seguida, estudar-se-ão os aspectos mais relevantes da moralidade tributária e, ao fim, inter-relacionar-se-ão e averiguar-se-ão as proximidades entre a propriedade privada e a moralidade tributária. Serão utilizados o método de pesquisa bibliográfico e o método de abordagem dedutivo, através da técnica de pesquisa em documentação indireta, de forma analítica. A base bibliográfica é composta por autores que são referência, com obras que mantém sua atualidade no tempo e na pesquisa e por contribuições recentes sobre os temas.

1. Análise das disposições constitucionais sobre a propriedade privada

De plano, merece esclarecimento o que é a propriedade. De modo simples, a propriedade é uma característica que qualifica corpos, sendo uma das peculiaridades que fazem parte da formação daquele corpo. Porém, sendo esse entendimento puramente fenomenológico, conclui-se que, para o Direito, a propriedade é uma criação (TAVARES, 2012, p. 695). Ademais, é uma convenção jurídica o simples “ter em propriedade”. Isso requer uma profunda reflexão, visto que a sua proteção é estabelecida pelo próprio ordenamento jurídico (MENDES; BRANCO, 2012, p. 367). Outrossim, ela traz consigo o poder de usar, gozar e dispor da coisa[1] (BULOS, 2012, p. 610). A propriedade se apresenta como uma modalidade de direito real, disciplinada também pela legislação civil, que define os limites e o regime jurídico (LEAL, 2012, p. 57).

Em função de somente o relacionamento entre pessoas ser passível de formar uma relação jurídica, passou-se a entender a relação jurídica acerca da propriedade como um vínculo entre o proprietário – sujeito ativo – e os demais membros da sociedade – sujeitos passivos –, sendo que estes deveriam respeitar o direito de propriedade individualmente tutelado. Justamente, a relação passa a ser entre pessoas: é um direito subjetivo de exploração de uma coisa. Disso extrai-se -corroborando o acima exposto - a face civilista do direito de propriedade (TAVARES, 2012, p. 701-702). Porém, ao mesmo tempo o direito fundamental à propriedade se apresenta como garantia institucional e como direito subjetivo, devendo, então, haver uma regulação, e não uma restrição. São as normas de concretização desses direitos que devem ser editadas: elas dependem de regulação, ao mesmo tempo em que vinculam o Estado (MENDES; BRANCO, 2012, p. 367).

Apesar disso, não existe um conceito constitucional fixo de propriedade, em razão do que tal conceito deve ser dinâmico. Ocorre que a garantia que se encontra na Constituição assegura a proteção das condições já ajustadas e das que se constituirão, havendo assim a garantia da propriedade como instituto jurídico. Por isso, a garantia constitucional está submetida a um constante processo de relativização, sem que se afete o seu aspecto de garantia institucional (MENDES; BRANCO, 2012, p. 282-283).

Assim sendo, pode-se concluir que a propriedade é uma criação jurídica e, como tal, segue as definições, amplitudes e limites que são dados pelo ordenamento jurídico. Interessante é a percepção de que a propriedade é, na verdade, uma relação que ocorre entre os sujeitos, e não entre a coisa e o objeto; esta representa tão somente o “que” sobre o qual se estabelece a relação jurídica, a qual obriga o proprietário, os demais e o Estado. Como todas as relações entre sujeitos, tem a característica do dinamismo.

Outrossim, o tratamento que cada constituição dá à propriedade revela a anatomia do próprio Estado, e os princípios que o orientam demonstram os detalhes jurídicos, econômicos, políticos e sociais. Disso pode-se extrair - corroborando a impossibilidade de a definir apenas como um direito subjetivo - que é um direito que modula o próprio Estado, e sua base jurídica é uma instituição jurídica (BULOS, 2012, p. 610). Diversamente, Grau (2018, p. 234) considera que a propriedade não é uma instituição, mas um conjunto de institutos jurídicos relacionados a diferentes tipos de bens.

Porém, não se considera apenas o caráter subjetivo da propriedade; ela pode ser tida também como um instituto ou, como outra parte da doutrina leciona, como um conjunto de institutos. Em comum a ambas as concepções, a propriedade como instituto ou conjunto deles ganha uma certa autonomia e relevância que ultrapassa a relação entre sujeito, passando a ter reflexos e proeminência próprios.

Não é uma questão contemporânea a regulamentação da propriedade. Segundo Tavares (2012, p. 695-697), no Código de Hamurabi já houve a normatização, abordando a compra e venda tanto de bens móveis quanto de imóveis. Esse normativo protegia de modo robusto a propriedade. Os hebreus também cuidaram da propriedade em suas normas, tendo o zelo de a proteger. Mesmo os gregos e romanos - os quais, inicialmente, organizavam-se em sociedades gentílicas, tendo nesse contexto cultivada a ideia de propriedade comum -, quando passaram a entender a propriedade como privada das famílias, a noção e a proteção dela passaram a ser estabelecidas. Por sua vez, no período medieval, houve mudanças quanto a quem poderia ser titular da propriedade, como um reflexo da própria estrutura da sociedade, que passou a ter forte distinção quanto às classes. As classes que possuíam a propriedade eram os patronos, os quais tinham as terras cultivadas pelos que não a possuíam, os clientes. Estes eram dependentes e ficavam subjugados a essa relação. Porém, no período seguinte, a Idade Moderna, houve grande expansão das propriedades dos reis da Espanha e de Portugal, através das navegações. Nesse mesmo período houve, ainda, a acentuação da propriedade com o enrobustecimento do capitalismo através da Revolução Industrial.

Num período mais próximo, além de se manter a propriedade como individual, acresceu-se a ela uma conotação social (TAVARES, 2012, p. 697). Na Constituição de Weimar, em 1919, houve a ampliação do direito de propriedade, passando a abranger não somente a propriedade sobre móveis ou imóveis, mas também outros valores patrimoniais, de direito privado ou não. O conceito de propriedade nas constituições brasileiras, por exemplo, abrange as relações de índole patrimonial, como, por exemplo, depósitos bancários e direitos de patentes (MENDES; BRANCO, 2012, p. 368-370).

As disposições constitucionais referentes à propriedade tratam dela como direito privado, ao mesmo tempo em que cuidam da sua função social. Essas disposições geram algumas controvérsias na doutrina. Veja-se que ela é tratada no Título II da Constituição Federal, que cuida dos direitos e garantias individuais, e em seu Capítulo I, o qual se debruça sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida e à propriedade no mesmo enunciado[2]. Além disso, como não poderia deixar de ser, também está inserida nos princípios referentes à atividade econômica. Diante dessa diversidade de tratamentos que são dados pela Constituição à propriedade, sua compreensão requer que se compatibilizem todas essas facetas, de modo que não cabe mais somente sua consideração como algo individual, sem levar em conta os demais aspectos. Outrossim, essa mesma pluralidade de significações - mesmo sendo a propriedade (genericamente considerada) garantida e tendo a sua supressão não permitida - requer que ela seja delimitada, como, por exemplo, a necessidade de que haja a garantia de uma existência digna nos preceitos da justiça social (TAVARES, 2012, p. 702-703). No art. 5º da Constituição Federal, há o tratamento da propriedade em sentido amplo, englobando o direito de sucessão, o direito autoral e o direito de propriedade imaterial, além de outros (MENDES; BRANCO, 2012, p. 366).

Bercovici (2003, p. 74) pondera que há mudanças quanto à concepção clássica da propriedade, pois mesmo que inserida na parte da constituição que cuida dos direitos individuais e ter sempre estado relacionada à sobrevivência, com a industrialização surgiram outros meios de conseguir recursos para a subsistência, porém, mantém sua função individual e tem proteção constitucional enquanto assim estiver sendo.

Além disso, a propriedade é trazida no texto constitucional pátrio pelo Título VI, o qual trata da tributação e do orçamento, e pelo Capítulo I, concernente ao sistema tributário nacional, especificamente na seção III, a qual cuida dos impostos da União[3], quando atribui à União a competência de instituir o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR). Segundo Coêlho (2006, p. 334-336), o ITR se apresenta como um instrumento de realização da política fundiária, através da progressividade. Isso se deve à intenção de que se alcance o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico, por meio da obtenção da produtividade da propriedade rural. Ainda, busca o desestímulo às propriedades que não se mostrem produtivas, através dos critérios para a definição quantitativa do ITR, a alíquota e a base de cálculo (BALEEIRO, 2002, p. 234-235). Outra menção à propriedade ocorre no mesmo capítulo da Constituição, nas seções IV e V, as quais tratam de impostos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Ademais, ela também é mencionada na Seção VI, a qual trata da repartição das receitas tributárias.

Também há menção à propriedade no art. 170 da Constituição[4], o qual está contido no Título VII - da ordem econômica e financeira – do Capítulo I - dos princípios gerais da atividade econômica. No mesmo sentido, há disposição no art. 182[5], tratando da sua função social em solo urbano. Do mesmo modo, nos arts. 185 e 186[6], cuida-se do tema das propriedades rurais. Há outras referências constitucionais à propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão, bem como sobre a propriedade rural e a de comunidades quilombolas, dentre outras.

Questão fundamental na análise da propriedade privada e de sua função social é a distinção entre as medidas de índole conformativa ou restritiva e as de índole expropriatória. Aquelas possuem a especialidade de abstração e generalidade, além de imporem restrições no plano individual, enquanto as últimas têm caráter concreto e individual, gerando a retirada total ou parcial da coisa do âmbito privado (MENDES; BRANCO, 2012, p. 385).

Como pode ser percebido, a propriedade, em decorrência das disposições constitucionais, deve atentar para a necessidade de que se cumpra sua função social. Ocorre que essa nuance introduzida na noção de propriedade pode colidir com os interesses de seu proprietário, porém, nem por isso pode ser afastada, tendo em vista que a própria Constituição a determina. Isso gera a necessidade de que se chegue a uma concepção que não exclua o direito subjetivo nem a função social, em razão de a propriedade se manter assegurada como um direito subjetivo no qual se baseia o capitalismo e inafastável num regime democrático. Mas isso não significa o distanciamento da necessidade de cumprimento da função social; logo, há que se compatibilizarem ambos (TAVARES, 2012, p. 704-705).

Ao lado da consagração do direito de propriedade, garante-se sua vinculação social como uma limitação ao direito. Porém, reconhece-se que são muitas as dificuldades na interpretação e aplicação do conceito de função social (MENDES; BRANCO, 2012, p. 366). Bulos (2012, p. 611) leciona, de modo direto, que a função social da propriedade está relacionada à serventia de cunho econômico e útil da propriedade, em razão do interesse público. Sob esta ótica, ela deve servir à otimização do seu uso, tendo em vista o progresso e a satisfação da coletividade. Siqueira e Siqueira (2020, p. 118) informam que a propriedade privada, em especial no direito brasileiro, é “limitada pelos princípios da função social e econômica da propriedade e da função social da cidade.

De modo mais distintivo, Grau (2018, p. 234-236) particulariza a incidência da função social contida na Constituição entre a propriedade de bens de consumo e a propriedade de bens de produção. O mandamento constitucional abrangeria a segunda e quanto à propriedade individual, no que concerne ao excedente à função individual. Disso resulta a separação entre a propriedade dotada de função individual (necessária à subsistência do indivíduo e sua família) e a propriedade dotada de função social.

Pode-se considerar que a função social da propriedade passou a integrar a própria propriedade, inclusive, transmutando-a. Logo, para que se possa tratar como existente um direito fundamental à propriedade, há que se considerar o necessário atendimento à função social. (PESSOA, 2010, p. 73). No entanto, Dantas (2017, p. 785) se posiciona de modo crítico quanto a essa consideração da função social como parte da propriedade, pondera que se assim fosse, em não havendo o cumprimento da função social pela propriedade ela desapareceria, porém, a Constituição Federal prevê o direito à indenização no caso de desapropriação, demonstrando que a constituição consideraria o direito à propriedade “completo”, mesmo sem o cumprimento da função social.

Ocorre que a Constituição distingue o cumprimento da função social conforme a propriedade for urbana ou rural, do que resulta a necessidade de que se distingam, inicialmente, esses dois tipos de propriedade. É reconhecido que nos conceitos que podem ser dados aos espaços rurais e urbanos, porém, considera-se que o elemento definidor e qualificador é a existência de meios que forneçam condições de habitação, trabalho, educação, lazer, saúde, segurança ou circulação. Outros ainda entendem que a distinção se dá pela localização ou não do imóvel em zona urbana ou rural (TAVARES, 2012, p. 706-707).

Diante disso, cabe a análise da função social da propriedade urbana e da propriedade rural, de modo individualizado. Quanto à urbana, a ideia central está relacionada ao seu adequado aproveitamento, tendo em vista que a Constituição passou a exigir a racionalização do solo urbano, logo, deve estar incluída na área do plano diretor, e que não seja edificado ou seja subutilizado ou não utilizado (mesmo estando edificado), segundo Tavares (2012, p. 707).

No que concerne à propriedade rural, requer-se, para o cumprimento da sua função, que cumule satisfatoriamente o aproveitamento e a utilização adequada dos recursos naturais sem deixar de lado a preservação do meio ambiente, o cumprimento das disposições legais quanto às relações de trabalho e o favorecimento do bem-estar do proprietário e dos trabalhadores (TAVARES, 2012, p. 708-709).

Com tudo isso, conclui-se que a propriedade no viés de análise constitucional não busca reduzir os poderes dos proprietários, mas traduz uma relação jurídica da propriedade em relação ao proprietário e em relação aos terceiros, assumindo, assim, o papel de “instrumento para a realização do projeto constitucional”. A propriedade constitucional busca a compatibilidade entre os proprietários e os não-proprietários, passando a ter seu conteúdo determinado pela situação concreta. (TEPEDINO, 2008, p. 286).

“[...]O texto constitucional só garante a propriedade como direito fundamental no limite de direito garantidor da dignidade da pessoa humana. Nas demais situações a propriedade deve cumprir sua função social [...]” (BERCOVICI, 2003, p. 76).

Tendo sido analisados os aspectos mais pertinentes e relevantes quanto à propriedade contidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, torna-se necessária a compreensão da moralidade tributária e seus aspectos que contribuirão para a compreensão do tema do presente estudo.

2. A complexa compreensão da moralidade tributária

De plano, cabe ser delimitado que tanto se pode chamar o instituto de moral tributária quanto de ética tributária ou ética-moral de natureza fiscal, sendo considerado, para fins de estudo da moralidade tributária, como o agir moral-imperativo para toda a Administração Pública, englobando todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como os contribuintes. Ou seja, trata das exigências de cunho ético que estão relacionados a esses entes citados e à imposição. Ela está também relacionada a princípios e valores que devem estar presentes para que a tributação seja caracterizada como justa (TIPKE, 2012, p. 7-8). “Faz-se imprescindível, bem menos por temor e muito mais por sadia persuasão, interiorizar padrões ético-jurídicos superiores se se quiser timbrar a jornada democrática dos que lidam com a coisa pública” (FREITAS, 2008, p. 110).

De extrema relevância é a consideração de que a Constituição Federal de 1988 tem no seu conteúdo algumas expressões que revelam valores considerados fundamentais na sociedade pátria; como exemplo, e ocupando lugar de proeminência, tem-se a moralidade. A moralidade se apresenta com caráter multifacetado, podendo se desvelar como um princípio geral da Administração Pública, bem assim como um postulado que serve de guia para a aplicação e a ponderação de outras normas. Ainda, pode-se expor como diretriz ética que deve entranhar a aplicação do Direito, por meio de uma teoria da argumentação que se funde em valores. Ou seja, a moralidade absorve os valores e os transpassa para o mundo do dever-ser. Da moralidade, ainda, pode-se exortar a necessidade de proteção da confiança e da boa-fé. Especificamente no ramo tributário, a moralidade representa a condução da atuação estatal conforme padrões éticos, o que, inclusive, representa condição de validade dos atos da administração fazendária (PORTO, 2009, p. 79-80).

Da necessidade de se estabelecer um critério unitário para que a renda seja tributada, de modo a ser mantida a unidade do ordenamento, Tipke (2012, p. 18-21) elege o princípio da capacidade contributiva como o adequado. Desse princípio extrai-se que o pagamento de impostos que cabe a cada cidadão deve ser conforme à sua renda; porém, há o pressuposto de que a renda – considerada para pagamento do tributo – seja superior ao mínimo existencial e, assim sendo, deve-se excluir da sua consideração o necessário para as obrigações privadas inevitáveis. Ou seja, a renda tributável não deve atingir o montante necessário para a existência nem o quanto se faz necessário às obrigações privadas inevitáveis. Saliente-se que se deve preservar a renda que garanta o pagamento das obrigações tributárias e não a esgotar, isso até mesmo como medida de “sobrevivência” da própria fonte de impostos. Para as empresas, a capacidade contributiva seria medida pelo lucro (TIPKE, 2012, p.33).

A capacidade contributiva está centrada na igualdade de tratamento àqueles que se encontram em iguais condições; isso quer dizer que a capacidade contributiva se verifica na realidade dos contribuintes, e não como potencial. Disso resulta a eleição do imposto de renda como o ideal para se cumprirem as exigências do princípio da capacidade contributiva (TIPKE, 2012, p. 22-24). Com a igualdade de tratamento – o que abrange a cobrança de todos aqueles que devem pagar - e a imposição uniforme, busca-se a redução para todos dos tributos (TIPKE, 2012, p, 82).

Além da igualdade, o princípio da capacidade contributiva se relaciona de modo próximo com a solidariedade. Através dela é possível ter “e maior validade à identificação das desigualdades, originando um parâmetro constitucionalmente aceitável para a exigência do princípio da igualdade”. Nesse contexto, a capacidade contributiva pode se fazer valer em duas frentes: é o limite e é o critério para graduação da tributação. Assim, considerando as condições individuais ela permite uma análise subjetiva ou relativa e levando em conta as situações tributáveis ou não ela permite uma análise objetiva ou absoluta. (ALVES, 2020, p. 56-57).

No tocante à moral tributária em relação ao Poder Legislativo, parte-se da premissa de que cabe a tal poder a função de ser protetor dos cidadãos em relação aos tributos elevados ou descomedidos. Porém, muitas vezes há atitudes de legisladores que elevam a necessidade de recursos públicos em face de promessas de prestações em troca de votos futuros, o que fere a moral tributária. Logo, a moral deve pôr limites a isso. Do mesmo modo, quanto à elevação de gastos decorrentes de prestações excessivas do Estado Social, também deve haver limitações (TIPKE, 2012, p. 46-47). A moralidade tributária requer que os legisladores se orientem por princípios de justiça (TIPKE, 2012, p. 87). Como exemplo de baixa moralidade tributária dos legisladores, pode-se citar a criação e aprovação de leis que não estão em conformidade com a moral, o que gera uma reduzida confiança por parte dos contribuintes, o que acaba por diminuir a confiança em relação ao próprio Estado e a outras autoridades. Os cidadãos não cumprem fielmente leis que considerem imorais (DE AMBROSIS, 2014, p. 269).

Quanto à autoridade fazendária, espera-se que fixe e arrecade os tributos de modo uniforme e em consonância com as determinações contidas nas leis. Isso se justifica em relação ao próprio Estado e sua necessidade, mas também se considera uma obrigação para com os próprios contribuintes, haja vista que se tem, como contribuinte, o direito de que os demais também contribuam e paguem seus tributos. O que deve nortear a atividade fazendária deve ser a lei, e não a ânsia desenfreada de arrecadação a qualquer preço (TIPKE, 2012, p. 70-71).

Não se pode afastar da análise da moralidade tributária o Poder Judiciário, em razão de sua função de guardião dela. Quando o Poder Legislativo não se guia pelos princípios de justiça, o Poder Judiciário deve corrigir esse desvio, sempre que for chamado a se pronunciar. Ademais, os tribunais constitucionais devem proteger os direitos fundamentais e guardar o Estado de Direito, através da preservação dos princípios de justiça, nos casos concretos. Logo, devem os tribunais superiores cuidar para que os legisladores, por meio da igualdade, se utilizem da capacidade contributiva (TIPKE, 2012, p. 87-90).

O fim a que se destina o ato administrativo tributário representa condição de moralidade; logo, se o ato for praticado almejando fins diversos, estar-se-á diante de uma imoralidade (PORTO, 2009, p. 81).

De modo paralelo, tem-se a necessidade de análise das questões éticas de outra figura integrante das relações tributárias: o contribuinte. Parte-se da incontestável premissa de que os contribuintes devem cumprir as leis. Destarte, cumprir a lei igualmente configura uma obrigação moral. Comportamentos imorais dos contribuintes podem se configurar como ações que “iludem” a lei, da qual se tem como consequência um débito tributário (TIPKE, 2012, p. 99-101). Ocorre que a percepção do contribuinte acerca da justiça das leis tributárias e sua moralidade seria o passo inicial para a restauração da moralidade do próprio contribuinte (TIPKE, 2012, p. 114). Uma verdadeira renovação moral do sistema tributário poderia ser iniciada por meio de um trabalho profundo e incisivo de construção da opinião pública (DE AMBROSIS, 2014, p. 269).

A partir de uma percepção da necessidade de solidariedade imposta pela vida em sociedade, ela se faz presente também na questão tributária, por certo. Com isso, requer-se a compreensão das questões tributárias de modo amplo o que inclui a análise das justificações, motivações e consequências, passando-se à dimensão de cidadania específica, a cidadania fiscal. Passa-se à compreensão do fenômeno fiscal a partir dos deveres e dos direitos. (RODRIGUES; PALUDO, 2020, p. 691).

3. A propriedade privada analisada em relação à moralidade privada

Nesta seção, partir-se-á da análise da relação entre a propriedade e as pessoas. Anteriormente ao século XIX, predominava a teoria segundo a qual as pessoas se identificavam com seus direitos patrimoniais, e o patrimônio tinha uma própria e natural legitimação moral; o tributo assumia a característica de contraprestação devida pelo serviço público (GALLO, 2011, p. 37-48). Nos anos de 1900, passa-se a revalorizar o papel social do Estado e de suas funções redistributivas. Neste período, o Estado se apresentou como garante das situações jurídicas subjetivas, e tinha como uma de suas funções mais importantes a proteção da propriedade. Posteriormente, passou a proteger de modo robusto os direitos de liberdade (GALLO, 2011, p. 51-56).

Ocorre que a não identificação dos direitos patrimoniais e a pessoa oferece uma sólida legitimação moral ao uso do tributo para a consecução de políticas de solidariedade e redistributivas (GALLO, 2011, p. 111). Aqueles que consideram a identificação do indivíduo com seus direitos patrimoniais entendem o sistema tributário como estando e devendo estar formado por tributos que tenham como pressuposto um conteúdo puramente econômico, e que os contribuintes se identificam somente como titulares de direito subjetivos de cunho patrimonial e comercializáveis no mercado. No entanto, ao considerar-se que há uma separação entre a pessoa do contribuinte e sua propriedade, a capacidade contributiva passa a ser também um critério de divisão das obrigações públicas para a satisfação do interesse geral, com base na opção social realizada pelo legislador, o que define a função fiscal como autêntica e própria função de repartição das cargas públicas entre as pessoas (GALLO, 2011, p. 114-115). A Constituição brasileira consagra que a ordem econômica deve assegurar a todos uma existência digna, através da justiça social. Ocorre que o social não designa um tipo de justiça, mas um substantivo integrante da própria justiça (GRAU, 2018, p. 221-222).

Veja-se que o próprio Estado, fundado na propriedade privada, tem como função suprir suas necessidades de recursos mediante impostos, de modo principal; logo, não se pode falar em Estado sem que se trate de impostos, nem sequer se pode falar em Estado de Direito sem que se fale dos impostos necessários à sua manutenção (TIPKE, 2012, p. 13). “O tributo é um pressuposto ético-civilizatório” pois é um instrumento fundamental na construção de uma sociedade igualitária e um elemento fundante dos direitos fundamentais, dentre eles a propriedade (OLIVEIRA; HOLMES, 2021, p. 686).

Se a Constituição trate do direito de propriedade, a legislação infraconstitucional explicita seu conteúdo, devendo ser interpretada conforme a Constituição, ou seja, a compreensão do seu conteúdo não pode se afastar das disposições constitucionais, entre elas a da função social da propriedade (TAVARES, 2012, p. 704).

Uma das proteções que são trazidas pela Constituição é o princípio da legalidade, afinal, não se efetivaria uma proteção se pudesse ser alterado o direito de propriedade, por exemplo, pelo Poder Executivo (CARRAZZA, 2002, p. 213-214). Outra consideração acerca da tributação e da propriedade privada é que a tributação se apresenta como uma exceção ao princípio constitucional que protege a propriedade privada (CARRAZZA, 2002, p. 343).

A presença da solidariedade social justifica a necessária arrecadação tributária brasileira, bem antes da Constituição Federal de 1988. Desde a Constituição de 1934 há, por exemplo, os impostos progressivos, continuando a existir na Constituição de 1946 (MARTINS, 2011, p. 106-107).

Logo, não há que se atribuir à propriedade um caráter absoluto, mesmo que tenha a qualificação de direito fundamental na Constituição Federal de 1988. Ela está submetida a diversas restrições e condições que podem ser decorrentes de outros direitos e princípios igualmente tutelados pela Constituição. Disso, não há que se concluir, de modo oposto, que a propriedade possa ser restringida ao ponto de se inviabilizar seu exercício, afinal, há garantias contra violações, como, por exemplo, a reserva legal e o dever de indenização nos casos de privação (LEAL, 2012, p. 63). “É certo que seria grave equívoco mistificar a propriedade a ponto de considerá-la como algo sagrado ou mesmo como um direito natural inerente à essência do ser humano” (MARTINS, 2011, p. 159).

Em não sendo a propriedade um direito natural, mas uma definição do regime jurídico, não há uma propriedade pré-tributada. “Neste cenário, o cidadão assume protagonismo, podendo exercer seu direito sobre suas conquistas na economia de mercado mediante uma contribuição com a justiça redistributiva e diminuição da desigualdade vertical pós-tributária”. Isso afasta o caráter unicamente de sacrifício que muitos atribuem à tributação. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021, p. 55-56).

O que garante ao legislador o poder de requerer de alguns uma maior participação do que de outros nos gastos públicos, por estarem em uma melhor posição econômica – sem que essa melhor posição econômica se traduza em termos absolutos em enriquecimento patrimonial e material –, é a elasticidade do princípio da capacidade contributiva concebido em termos de relação entre a pessoas e de modo proporcional (GALLO, 2011, p. 122). Assim, afasta-se o princípio do benefício – a pretensão de prestações estatais proporcionais ao tamanho do tributo – e corrobora-se para a subsunção da propriedade privada à justiça redistributiva (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021, p. 56).

No Brasil, houve a opção pela capacidade contributiva averiguável através da capacidade econômica real, ou seja, subjetiva do contribuinte. Outra modalidade - não a que o Brasil optou – é a capacidade contributiva definida pelas manifestações objetivas da pessoa, como possuir patrimônio. Ainda, é vedado aos poderes públicos desigualarem contribuintes que se encontram em situações equivalentes, não podendo existir diferenciação gratuita (BASTOS, 2002, p. 191-192). Em um Estado Democrático de Direito, exige-se que os iguais sejam tratados de forma igual e os desiguais como desiguais, mas mais do que isso, requer-se que sejam combatidas as desigualdades sociais e econômicas que foram causa das desigualdades entre os cidadãos. Logo, o tratamento desigual deve objetivar a diminuição das desigualdades fáticas ou materiais, do que resulta uma nova ideia de justiça, a qual passa pela concepção de igualdade (BUFFON, 2009, p. 113).

Assim, com a necessária consideração da capacidade contributiva, o ser humano é considerado em si mesmo, não como um mero meio a ser utilizado para o alcance de resultados. Há o compromisso com a dignidade da pessoa, a busca da efetivação dos direitos fundamentais e das finalidades constitucionais como a busca de uma sociedade livre, justa e solidária. A partir disso, pode-se trazer a necessidade de que a tributação não supra os indivíduos dos bens que são necessários a sua sobrevivência. (JANUZZI; SOUSA, 2021, p. 179).

Coelho e Borba (2020, p. 77) propõe que a justificação da tributação se dê a partir da consideração de um patrimônio comum, tendo em vista a problemática de aceitação por parte das pessoas em pagar tributos. “A razão para legitimar a exigência dos tributos não parece residir em um sentimento interno e espontâneo do ser humano de ceder parcelas de sua propriedade, isto é, de restringir sua liberdade de ser proprietário”. Esse patrimônio comum seria “um conjunto de bens pertencentes aos âmbitos público e privado juridicamente estabelecidos, em correlação com a propriedade efetivamente privada”.

Porém, pode-se considerar que ao invés desta justificação excluir a solidariedade, deveria complementar, assim, o dever de pagar tributos é decorrente da solidariedade e para efetivar essa solidariedade há um patrimônio comum.

Eis que a tributação numa perspectiva moral resolve esta outra face da relação entre tributação e propriedade: através da observância da moralidade tributária protege-se a propriedade essencial à sobrevivência. Então, ao mesmo tempo em que a tributação precisa avançar sobre a propriedade ela há que proteger a propriedade, como no caso da limitação imposta quanto à propriedade necessária à sobrevivência. Esses são os desafios: a medida é dada pela capacidade contributiva e pela proteção da dignidade da pessoa humana. Os limites e possibilidades da relação tributação e propriedade privada estão na constituição.

De modo categórico, Tipke (2012, p. 47), ao fazer uma “análise especial dos limites da imposição fiscal”, trata da proibição do confisco, fundamentando-a na impossibilidade, em um Estado fundado na propriedade privada e na economia de livre mercado, de permitir que se prive o Estado de um de seus fundamentos. Disso resulta a impossibilidade de que a tributação aniquile a fonte de seus recursos; sendo assim, deve, ao contrário, o Estado Social Tributário manter no melhor nível as fontes de recursos.

Em consonância com o pensamento liberal solidário, a repartição das cargas públicas pode ser realizada também mediante o instrumento tributário incidindo e alterando com a lei o equilíbrio natural do mercado, ainda que isso ocorra superando os interesses particulares, com razoável redimensionamento dos direitos patrimoniais à medida dos direitos sociais e tomando por base o princípio da capacidade contributiva, compreendido como projeção do princípio da igualdade (GALLO, 2011, p. 38). Por seu turno também há que se cuidar da limitação ao poder de tributar, ou seja, a constituição requer que se instaure uma democracia fiscal, inafastável, de modo a também respeitar a liberdade, inclusive, de propriedade (MARTINS, 2011, p. 170).

O patrimônio individual, a propriedade privada, fruto da atuação no mercado deve ser legitimamente tributado, afinal ele não existe sem o Estado e sem a legislação estatal. Passa-se, assim, a compreender a relação de complementariedade entre mercado e Estado: “Estado se mantém com parcela das receitas produzidas pelo mercado, que só existe por mecanismos legais criados pelo Estado, dentre eles o sistema tributário, garantidor da existência da propriedade.”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2021, p. 57).

Considerações finais

A propriedade é uma relação que se estabelece entre sujeitos quanto a uma coisa, possuindo a característica de dinamismo e de garantia constitucional, além de ter cunho civilista. De modo diverso, parte da doutrina compreende a propriedade em função de sua relevância como uma instituição, ou ainda como um conjunto de institutos. Veja-se que a propriedade pode ser compreendida tanto sob o aspecto da relação entre os sujeitos diante de uma coisa quanto como uma instituição (ou um conjunto de institutos) com suas definições e alcances próprios. Inegável, porém, é a relevância que a propriedade apresenta, até mesmo como definidora de características da constituição e das relações econômicas e pessoais dentro de determinado país.

Na Constituição Federal de 1988, a propriedade é tratada como um direito individual, cuja proteção se dá no mesmo dispositivo em que a vida é protegida. Além desse relevante tratamento, ela se encontra citada em aspectos tributários, quanto aos impostos que podem ser instituídos pela União, Estados e Municípios. Outra referência pode ser encontrada no tocante aos princípios da ordem econômica e financeira. Não somente aí podem-se encontrar disposições referentes à propriedade, mas também quando é estabelecido que tanto a rural quanto a urbana devem cumprir suas funções sociais.

A função social da propriedade está relacionada ao aproveitamento econômico e à utilidade que se lhe dá, com foco no interesse público. Abrange a propriedade privada com função social, excetuando-se a propriedade privada com função individual.

Por seu turno, a moralidade tributária está relacionada ao agir da Administração Pública, de todos os poderes e dos próprios contribuintes, dentro de padrões éticos e moralmente corretos. Ou seja, consideram-se aspectos valorativos da tributação. Está relacionada à ideia de justiça na tributação. A capacidade contributiva se apresenta como o critério de estabelecimento da tributação em parâmetros de igualdade, sendo que essa igualdade deve ser aferida na realidade, e não como algo potencial.

Em relação ao Poder Legislativo, no tocante à moralidade tributária, cabe a proteção dos contribuintes contra o excesso de tributação, bem como a aprovação de leis dentro de medidas morais e consideradas justas. Quanto ao Poder Executivo, espera-se que aja de modo uniforme, buscando cumprir as leis e cobrando de todos os que devem pagar, já que os contribuintes que pagam têm o direito de que os demais também contribuam para a manutenção do Estado. O Poder Judiciário deve ter o papel de guardião da moralidade tributária, cabendo-lhe a correção da ação dos demais poderes, quando agirem de forma a afastá-la. Por fim, aos contribuintes cabe atuar dentro das disposições legais, o que também é um agir moralmente correto.

Para a análise da relação entre a propriedade e a moralidade tributária, parte-se da análise da relação que se estabeleceu entre a pessoa e a propriedade no decurso do tempo. De início, tinha-se essa relação como uma relação de unicidade: a pessoa e seu patrimônio se confundiam (o tributo era tido como mera contraprestação de serviços estatais). Superada essa fase, passou-se a não mais considerar a referida unicidade, o que abriu espaço para a busca de políticas de solidariedade e redistribuição, funções essas que passaram a ser assumidas também como sendo dos tributos. Além disso, passou-se a considerar a capacidade contributiva como critério de divisão da carga tributária.

Conclui-se que a imposição tributária está presente na formação do próprio Estado, sendo que não se pode falar em Estado de Direito sem que se trate de seu financiamento através dos recursos oriundos dos tributos. E, para a arrecadação deles, há que estar presente a moralidade.

Nesse contexto, a propriedade privada - enquanto coisa distinta de seu proprietário, dentro do contexto constitucional - pode sofrer limitações em prol de outros bens protegidos pela Constituição, sendo que a tributação é um dos meios que podem contribuir para que se efetivem essas limitações e se busque a justiça tributária e social através da aplicação de critérios de igualdade que, por sua vez, alcançam a capacidade contributiva que é critério de moralidade tributária: eis a cadeia relacional entre propriedade privada e moralidade tributária.

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Submetido em: 2 set. 2020.

Aceito em: 16 dez. 2021.



[1]    “Art. 1.228 do Código Civil: O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha [...]” (BRASIL, 2002).

[2]    “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

XXX - é garantido o direito de herança; [..]” (BRASIL, 1988).

[3]    “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...]

VI - propriedade territorial rural; [...]

§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput

I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas;

II - não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel;

III - será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal [...]” (BRASIL, 1988).

[4]    “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade; [...]” (BRASIL, 1988).

[5]    “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; [...]” (BRASIL, 1988)

[6]    “Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (BRASIL, 1988).