A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A CONDIÇÃO FEMININA: UMA ANÁLISE DO ACÓRDÃO DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.675.874 – MS

Rosalice Fidalgo Pinheiro

Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil), Paraná.

[email protected]

Gabriela Wollertt Tesserolli

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná.

[email protected]

RESUMO: O presente tem por objetivo comentar o acórdão do Recurso Especial nº 1.675.874 – MS, do Superior Tribunal de Justiça, que caracterizou o dano moral in re ipsa, com fundamento na condição feminina. Esta decisão mostra-se paradigmática, pois ao aproximar as esferas civil e penal, presume o dano moral em casos de violência doméstica contra a mulher. Na tentativa de combater ao patriarcalismo enraizado na sociedade brasileira, o julgado apresenta a possibilidade de que o Judiciário entenda a violência doméstica como forma de manutenção das desigualdades de gênero e, portanto, uma situação indenizável por perpetuar a condição da mulher brasileira. Ao se examinar o quantum mínimo indenizatório fixado no acórdão e a influência do “ser mulher” na sua aferição, conclui-se que os danos não foram suficientemente valorados para romper o ciclo da violência doméstica, o que sugere certa permanência da desigualdade de gêneros.

PALAVRAS-CHAVE: Violência doméstica. Condição Feminina. Dano moral in re ipsa.

Domestic violence and female condition:
an analysis of the judgment of special appeal no. 1,675,874 – MS

ABSTRACT: This article is intended to comment on the judgment of Special Appeal No. 1,675,874 – MS, of the Superior Court of Justice, which characterized the moral damage in re ipsa, based on the condition of women. This decision proves to be paradigmatic, because when it brings together the civil and the criminal spheres, it presumes moral damage in cases of domestic violence against women. In an attempt to combat patriarchy rooted in the Brazilian society, the court presents the possibility that the Judiciary understands domestic violence as a way of maintaining gender inequalities and, therefore, an indemnifiable situation for perpetuating the condition of Brazilian women. When examining the minimum quantum of damages fixed in the judgment and the influence of “being a woman” in its measurement, it is possible to conclude that the damages were not sufficiently valued to break the cycle of domestic violence, which suggests a certain permanence of gender inequality.

KEYWORDS: Domestic violence. Feminine Condition. Moral damage in re ipsa.

Introdução

No ano de 2017, mais de 221.000 mulheres acionaram a polícia para solução de casos de violência doméstica (BRASIL, 2019). Em especial, as mulheres são vítimas em sua maioria de agressões físicas, seguidas por violência psicológica e moral e, ainda, sexual (BRASIL, 2017). Das agressões sofridas por mulheres, 60% foram perpetradas por pessoas do sexo masculino e, destes, 35% possuíam relação de conjugalidade/afetividade com a vítima e 11,7% relação de amizade. A desigualdade de gênero é a força motriz desses números. Assim, entende-se que cabe ao Estado promover políticas públicas para o combate à violência doméstica, enquanto, no âmbito do Judiciário e do Legislativo, a tutela de mulheres vítimas deste tipo de violência deve ser ampliada.

Valendo-se desta atitude combativa, o Superior Tribunal de Justiça promoveu a afetação do Recurso Especial nº 1.675.874 – MS, em sede de recurso repetitivo, no qual se julgou caso de violência doméstica perpetrada contra mulher pelo seu ex-cônjuge. Em tal caso, a consideração dos danos morais in re ipsa foi o ponto de destaque da tese construída, por envolver a condição feminina, conferindo-lhe um caráter paradigmático.

Na perspectiva metodológica, a análise, ora pretendida, aproxima-se do “Le commentaire d`ârret” (BONNARD, 2011, p. 118). Trata-se de uma análise indutiva, que parte do caso concreto, mas que tem por objetivo delinear uma “apreciação crítica de seu valor e escopo”[1] (BONNARD, 2011, p. 118). Pretende-se retirar do acórdão mencionado não apenas uma lição de aplicação do Direito, isto é, caracterizar uma nova modalidade de dano, presente na violação da condição feminina, mas, ainda, colocar em discussão aspectos não enfrentados pelo Superior Tribunal de Justiça e que estão implícitos na decisão judicial, como a que se refere à quantificação do quantum indenizatório.

Para tanto, o presente comentário de acórdão desdobra-se na (i) análise dos fatos que levaram à tese fixada no Recurso Especial nº 1.675.874 – MS; (ii) mitigação da separação entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal, no caso apresentado; (iii) discussão da tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça em contraposição à condição das mulheres brasileiras, idealizada pela seguinte reflexão: qual o papel do feminino na tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça? [2] Nesta parte, procede-se ainda aos seguintes questionamentos: a condição feminina foi determinante caracterização do dano moral como in re ipsa? A condição feminina foi decisiva para arbitrar o valor de indenização mínima em primeiro grau? (iv) uma reflexão sobre se o valor fixado a título de indenização mínima é potencialmente eficaz para afastar a violência doméstica, ou, antes, sinaliza uma perpetuação do dano moral, por não ter sido suficientemente reparado.

1. A tese fixada pelo recurso especial nº 1.675.874 – MS: o dano moral in re ipsa na violência doméstica contra a mulher

A demanda, que chegou às instâncias do Superior Tribunal de Justiça, teve origem na data de 22 de março de 2015, quando a apelante foi vítima de injúria e agressões físicas por parte de seu ex-cônjuge, que, após agredi-la com um tapa que a derrubou no chão, atropelou-a com seu automóvel, causando-lhe diversos ferimentos corporais.

Em sede de denúncia, o Ministério Público requereu o prosseguimento da ação penal “até final decisão e condenação, inclusive, sendo o caso, fixando-se valor mínimo para a reparação de danos, moral e material, conforme previsão estabelecida pelo artigo 387, IV, do CPP, também com redação da Lei nº 11.791/2008.” (BRASIL, 2018, p. 10). Citado, o ofensor apresentou defesa requerendo a absolvição sumária em vista do princípio da insignificância. Sentenciando o caso a si apresentado, o magistrado de primeira instância condenou o agressor a quatro meses de detenção, em regime aberto, e ao pagamento de indenização mínima à vítima, no valor de R$ 3.000,00, a título de danos morais. Eis que a prática de violência doméstica atenta contra a vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade, honra e imagem da ofendida, por si só configurando dano à mulher vítima da ação, prescindindo de qualquer dilação probatória.

Em grau de recurso interposto pelo ofensor, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manteve, na íntegra, a sentença prolatada. Todavia, tal entendimento foi modificado em sede de Embargos Infringentes opostos pelo apelante, no qual foi afastada a indenização mínima por danos morais, fixada pelo Juízo de primeira instância. Diante desta decisão, a vítima interpôs Recurso Especial na tentativa de restabelecer a indenização mínima que lhe foi fixada. Ao ser recebida pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, foram fixados os pontos a serem decididos:

(a) da necessidade ou não de indicação de um montante mínimo [de indenização] indicada pelo postulante e (b) da necessidade ou não da produção de prova, durante a instrução criminal, para a fixação, em sentença condenatória, da indenização por danos morais sofridos pela vítima de violência doméstica. (BRASIL, 2018, p. 11)

Neste ensejo, o Ministro Relator Rogério Schietti Cruz, em análise atenta e combativa do caso fático, proferiu voto julgador, que foi confirmado integralmente confirmado pelos demais Ministros. Sua análise centrou-se na vulnerabilidade da mulher nas relações domésticas, consequência do caráter ainda patriarcal da sociedade brasileira. Admitiu o Ministro, de forma assertiva, que a inserção da mulher em uma situação de violência doméstica decorre, de maneira inexorável, de sua condição de “ser mulher”, sendo necessário valorizar e fortalecer a vítima, em especial a mulher, no processo criminal. Para tanto, defendeu a otimização de instrumentos normativos voltados à ampliação do raio da proteção jurídica da mulher, notadamnte quanto à aplicabilidade prática do art. 387, IV do Código de Processo Penal, com o objetivo de compensar ou minimizar a consequência da violência perpetrada. Asseverou ainda a impossibilidade de que o Brasil, em todos os seus poderes, se esquive dos seus deveres, assumidos por ocasião da assinatura das Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (BRASIL, 2018, p. 11-13).

O Ministro Schietti Cruz finalizou seu voto deduzindo (i) a necessidade de que seja formulado pedido específico, pela acusação, de arbitramento de indenização mínima com fins de reparação civil à vítima; (ii) a dispensabilidade de que seja indicado, pela acusação, valor para referida reparação, a qual deverá ser arbitrada de forma prudente pelo Juízo Penal; e, por fim, (iii) a desnecessidade de exigência de provas quanto ao “dano psíquico, grau de humilhação, da diminuição da auto estima, etc.” (BRASIL, 2018, p. 22), sofrido pela mulher violentada, uma vez que “a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo ao valor da mulher como pessoa, à sua própria dignidade” (BRASIL, 2018, p. 22), sendo o dano in re ipsa. Como consequência de seu raciocínio resultou a tese segundo a qual:

Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória (BRASIL, 2018, p. 25).

Referidos aspectos, estampados pelos Ministros julgadores, serão a seguir analisados, sob o recorte da ampliação da tutela da condição feminina em casos de violência doméstica ao se aproximar a responsabilidade civil e a responsabildiade penal e ao se caracterizar o dano moral in re ipsa. Paradoxalmente, questiona-se um aspecto não cogitado pelo Recurso Especial em comento: uma possível perpetuação do dano moral em caso de violência doméstica, dedutível do baixo quantum indenizatório atribuído à vítima.

2. Da separação à aproximação entre as esferas de responsabilidades civil e penal no recurso no especial nº 1.675.874 – MS

No Recurso Especial no 1.675.874 – MS é inegável a aproximação entre esferas civil e penal, ao se possibilitar a presunção do dano moral sofrido pela vítima em casos de condenação penal por violência doméstica anterior, como ao definir a possibilidade que o Juízo Penal aferisse valor mínimo por danos na sentença penal condenatória quando houvesse pedido formulado pela acusação. Permite-se, assim, que o mesmo fato jurídico – no caso, a violência doméstica contra a mulher - possua consequências simétricas em ambas as esferas, deslocando-se as fronteiras entre a responsabilidade civil e penal.

De acordo com Fernando Noronha, foi apenas a partir da edificação do Estado Moderno que a divisão entre Direito Penal e Direito Civil, consubstanciada nas suas formas de responsabilidade, foi estabelecida (NORONHA, 2013, p. 508). Enquanto a responsabilidade penal ocorria em face do Estado, que administrava penas individuais a ilícitos graves com a finalidade pura de repressão, a responsabilidade civil tratava de reparar danos que não possuíam a mesma gravidade dos crimes reprimidos pela atividade estatal (AMARAL, 2002, p. 67). Referida divisão, não de forma integral, foi assegurada pelas demais codificações editadas, aparecendo inclusive como pressuposto dos estudos das dogmáticas civil e penal – que muito raramente é questionada.

Contudo, nos termos já relatados, mesmo em vista da ambicionada separação total entre as esferas, existem pontos no ordenamento brasileiro atual em que os âmbitos penal e civil se tocam (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 28). Exemplo desta aproximação é o acórdão ora comentado, no qual a condenação penal teve significativa influência na responsabilidade civil[3]. Cabe destacar a disposição constante no artigo 935 do Código Civil, a qual prevê que, embora a responsabilidade civil seja independente da criminal, materialidade e autoria não mais poderiam ser questionadas quando já decididas no âmbito penal.

Demais efeitos produzidos pela sentença penal condenatória no Juízo Civil encontram previsão tanto no artigo 91, I do Código Penal, quanto no artigo 387, IV do Código de Processo Penal: porquanto o Código Penal estabelece que a sentença penal condenatória transitada em julgado torna certa a obrigação de indenizar o dano causado, o Código de Processo Penal, posteriormente à reforma ocorrida em 2008, passou a prever que o Juízo Penal “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Assim, a sentença penal condenatória caracteriza-se para os fins cíveis como título executivo judicial (consoante expressa previsão do artigo 515, VI do Código de Processo Civil), sendo certo que o réu da ação penal (autor da ofensa) não mais poderá rediscutir os aspectos do crime previstos no artigo 935 do Código Civil (DELMANTO, 2002, p. 171). Eis que conferir executividade à sentença penal condenatória possibilita maior celeridade na tutela de todos os interesses da vítima, na medida em que não há necessidade de instauração de novo processo de conhecimento, havendo a faculdade de, desde logo, propor-se a liquidação ou execução do título obtido.

Não obstante, a qualidade de título executivo judicial apenas se aperfeiçoa com o trânsito em julgado (DIDIER JR., 2018, p. 281) da sentença condenatória, podendo a vítima, em seguida, propor Ação de Execução de Título Judicial, alternativa que encontra respaldo também nos artigos 63 e subsequentes do Código de Processo Penal, para executar, desde logo, o mínimo indenizatório fixado. De outra forma, pode ser proposta ação de liquidação da sentença penal, a fim de (i) liquidar a indenização por danos não aferidos pelo Juízo Penal, ou então majorar a indenização já fixada por este Juízo; ou, em caso de impossibilidade de fixação da indenização mínima (ii) liquidar, de forma integral, a sentença, aferindo-se todos os danos advindos do crime praticado. Note-se, assim, que em que pese a fixação de indenização mínima na sentença penal condenatória seja poder-dever do Magistrado, depende tanto de pedido expresso da acusação (consoante tese fixada pelo STJ no REsp nº 1.675.874 – MS), quanto da existência de provas nos autos penais que possibilitem ao Magistrado a análise do quantum devido (CABRAL, 2010, p. 86).

Na ausência de quaisquer desses pressupostos, o Juízo Penal não deve fixar valor mínimo de indenização, sob pena de afrontar os direitos básicos do Réu no processo penal e civil brasileiros: ampla defesa, contraditório e direito ao devido processo legal. Nestes casos, a aferição dos danos sofridos pela vítima em virtude do crime cometido será realizada de forma integral no Juízo Civil, momento em que se fixará, quando devida, a indenização a título de danos morais, extrapatrimoniais e materiais. Uma vez preenchidos os pressupostos, todas as garantias do réu terão sido respeitadas, não havendo que se falar em ofensa ao devido processo legal.

Enquanto o mínimo indenizatório será fixado no Juízo Penal, caberá ao Juízo Civil realizar a liquidação da plena indenização devida, considerando danos que, por vezes, podem não ter sido analisados na sentença penal condenatória. Referida liquidação não sofrerá quaisquer restrições de provas, devendo ser realizada pelo procedimento comum – momento em que poderá ser realizada a produção de prova acerca de fatos novos (entendido como aquele que não foi objeto de cognição durante a formação do título judicial) (DIDIER JR., 2018, p. 245), a fim de se aferir a extensão do dano e prejuízo da vítima.

Atentando-se ao caso analisado no Recurso Especial nº 1.675.874 – MS, no qual houve a fixação de mínimo indenizatório pelo Juízo Penal, a vítima poderia liquidar de forma integral os danos por ela sofridos em decorrência da violência doméstica (possibilitando a majoração da indenização fixada pelo Juízo Penal) e a correspondente indenização. Para tanto, bastaria ser proposto processo de liquidação autônomo, ocasião em que o réu será citado para integrar a lide civil e contestar a liquidação proposta com base no título judicial. Nesta nova ação, a prestação jurisdicional seria entregue as partes por meio de sentença, que não poderia decidir pela inexistência do dever de indenizar, limitando-se a aferir o valor da indenização com vistas à compensação dos danos sofridos pela vítima.

Diante dos entendimentos expostos e do caso analisado, é possível visualizar que existem dois momentos principais de aproximação entre as esferas penal e civil. O primeiro, quando o ordenamento determina que a cognição ocorrida durante o processo criminal quanto à materialidade e autoria do crime forme coisa julgada também no Juízo Civil. O segundo, no que se refere à transformação da sentença penal condenatória em título executivo judicial. Atinge-se, desta maneira, a harmonização das decisões proferidas no âmbito penal e cível, determinando que aspectos da coisa julgada penal tenham consequências no Juízo Civil, quando um mesmo fato se subsumir a ambas as tutelas a partir de uma única cognição, que atenderá ambas as esferas.

Note-se, assim, que a facilitação da tutela civil da vítima (que se dá por meio da responsabilidade civil) por intermédio dos efeitos advindos da condenação penal denota a, já percebida por Maria Celina Bodin de Moraes (2017, p. 182), unidade do ordenamento jurídico, fundamentada na defesa da dignidade da pessoa humana em sua totalidade. Igualmente acolhe uma valorização das reações ao dano injusto, refletindo “as escolhas ético-políticas que estão a se estruturar na sociedade em que incide” (MORAES, 2006, p. 176). Na medida em que se reconhece a responsabilidade civil do agressor, passa-se a reconhecer, consequentemente, a violência doméstica como verdadeiro ilícito e a mulher vitimada como merecedora de tutela especial, embora a amplitude deste reconhecimento pelo Judiciário possa ser adiante questionada.

Por fim, a aproximação entre as esferas penal e civil evidenciada pelo Recurso Especial nº 1.675.874 – MS conduz à tutela integral da vítima, que se vê protegida, de forma eficiente, por todas as esferas jurídicas competentes e em todos os aspectos de sua dignidade.

3. A condição feminina e violência doméstica: o dano moral in re ipsa

A questão central do Recurso Especial no 1.675.874 – MS versa sobre a caracterização, ou não, do dano decorrente da violência doméstica contra a mulher como in re ipsa. A tese apresentada observa o raciocínio de parte da doutrina brasileira quanto ao tema, no sentido de que a prática de condutas graves, violadoras de dever jurídico e que provocam lesão a quaisquer dos princípios que conformam a dignidade humana por si só seria conduta geradora de dano moral, sendo justificativa bastante para se entender pela necessidade de satisfação do dano sofrido[4].

Tal tese encontrou desenvolvimento em julgados do Superior Tribunal de Justiça, que datam da década de noventa (CARRÁ; CARRÁ, 2019, p. 122), sendo possível identificá-la quando: (i) o plano de saúde recusa-se a prover tratamento necessário para a saúde do segurado (BRASIL, STJ, AgInt no AREsp 1420342, 2019, p. 1); (ii) a concessionária de serviço público interrompe o abastecimento de água para impelir o consumidor ao pagamento (BRASIL, STJ, AgRg no AREsp 239.749, 2014, p. 2); (iii) é realizado o protesto indevido de um título de crédito (BRASIL, STJ, AgInt no AREsp 1281519, 2018, p. 4) dentre outras situações. Em tais casos, entende-se que o dano é decorrente diretamente do fato ofensivo, de maneira que, provado o fato, presume-se a ocorrência de dano à vítima[5]. Tal presunção deve ser analisada sob o escopo da experiência e do senso comum (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 125), pois pelo qual se sabe, ou ao menos se imagina, a prática de determinado ato, em vista da sua gravidade, geraria danos ao sujeito atingido.

Em contraponto, pondera-se que o dano in re ipsa não seria realmente presumível ou identificado à conduta ilícita (CARRÁ; CARRÁ, 2019, p. 123). Representativa desse entendimento, a Súmula 385 do Superior Tribunal de Justiça dispõe que “da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”. Em tal hipótese, cogita-se da impropriedade da figura, uma vez que seria possível aplicá-la, ainda que inexistente o dano. Bruno Leonardo Câmra Carrá e Denise Sá Vieira Carrá (2019, p. 123) alinham-se a este pensamento, afirmando que o dano presumido não passa de uma lesão a interesse juridicamente protegido, restando a

expressão in re ipsa tão somente como um recurso linguístico para permitir a fuga desse quase que irracional temor de declarar que os danos morais são apenas lesões a interesses jurídicos qualificados (e não os abalos e dores psicológicos como ainda é dito aqui ou ali). Em que pese sua fragilidade teórica, contudo, ela termina por fazê-lo de modo pragmático ao tornar desnecessárias sondagens de viés subjetivo pelo Poder Judiciário para a constatação de tais danos.

Recolhendo dessa afirmação o viés pragmático sob o qual se ergue a referida figura, questiona-se: se a força dos próprios fatos é suficiente para caracterizar o dano moral, a violência doméstica caracteriza-se como dano in re ipsa?

Em que pese os julgadores tenham se utilizado dos sentimentos da mulher vítima como fundamento para justificar a tese fixada, pode-se afirmar que a presunção dos danos morais em situações de violência doméstica pelo tribunal foi assertiva e necessária, uma vez que se mostra combativa em relação à perpetuação deste tipo de violência contra a mulher na sociedade brasileira.

Em outras épocas, a experiência comum diria que a prática de violência doméstica contra a mulher não produziria danos injustos, tampouco seria uma violação a um dever jurídico de respeito da humanidade da mulher. Antes, tal violência decorreria de direito subjetivo do homem que, devido ao patriarcalismo e sua consequente posição de superioridade em relação aos demais, poderia subjugar sua mulher e puni-la por não representar, de maneira como se esperava até então, o papel de “ser mulher”, ou por qualquer razão que entendesse desviante.

No entanto, a violência doméstica é produto direto da desigualdade de gênero, que, por sua vez, é reproduzida e fomentada pela ideia patriarcal de sociedade. O patriarcalismo denota a existência de um sistema político e social que impõe ao homem o domínio sobre o social: o masculino detém o poder sobre o feminino. Este sistema “impregna e comanda o conjunto das atividades humanas, coletivas e individuais” (HIRATA, 2009, p. 173). Na prática, funciona (SOLNIT, 2017, p. 27) como um mecanismo que, ao subjugar e, com isso, reduzir o espaço ocupado por mulheres, lhes nega direitos, trabalho, independência, desenvolvimento, cultura, política e liberdade.

Não é de se surpreender que a violência doméstica seja fruto desse sistema, uma vez que a situação evidencia o sentimento do masculino de possuir direito subjetivo em explorar e subjugar a existência feminina – há o verdadeiro sentimento de pertença, de posse: o que seria da mulher que não uma mera figura subalterna? Este tipo de pensamento é germinado não nas diferenças biológicas entre os gêneros, mas em construções sociais (HIRATA, 2009, p. 67) que são repassadas, reproduzidas e ensinadas (LOPES, 2013, p. 133), por vezes, pelas próprias mulheres, na medida em que (não raras vezes) não se dispõe de instrumentos (BOURDIEU, 2002, p. 51) que possam reconhecer, modificar e, enfim, cessar a perpetuação da dominação do masculino sobre o feminino. Tais construções sociais podem ser facilmente exemplificadas na divisão do trabalho (HIRATA, 2009, p. 67): enquanto aos homens é destinado o trabalho produtivo, às mulheres o trabalho doméstico e reprodutivo; novamente, delimita-se como espaço circunscrito ao feminino a casa, a família, os filhos e o espaço privado.

Dados do IBGE (atualizados até o mês de junho de 2018) indicam que, enquanto os homens tendem a possuir trabalhos formais de 44h semanais, as jornadas de 30h semanais são ocupadas majoritariamente por mulheres. As hipóteses levantadas pelo Instituto sugerem que tal fato se deve à jornada invisível da mulher, materializada nos cuidados com pessoas e afazeres domésticos: as mulheres dedicam 73% mais horas a tais tarefas do que os homens (ESTATÍSTICA, 2018, p. 3). Igualmente demonstra-se que as mulheres, independente de raça, representam a maior parte da população que atende ao ensino médio[6] e que, aos 25 anos, possui ensino superior completo[7].

Todavia, mesmo diante destes dados, os salários mensais dos homens são substancialmente superiores do que os destinados às mulheres: porquanto o rendimento mensal habitual dos homens encontra-se na casa dos R$ 2.300,00, o das mulheres em R$ 1.700,00 mensais. A necessidade de destinar grande parte de seu tempo aos afazeres domésticos, imposta pela percepção do papel social desempenhado por cada gênero, influi em muito na sua perspectiva de salário mensal, muito embora as mulheres possuam maior nível educacional do que homens. É patente a conclusão a que se chega: a hierarquização entre homens e mulheres influi na valoração do trabalho. O trabalho exercido por homens, mesmo que menos instruídos, é remunerado de forma muito superior ao das mulheres, havendo clara e indubitável discriminação salarial entre os gêneros, ocasionada pela menor importância dada ao trabalho feminino. Neste sentido:

Compreendemos que esses dados são indicativos de uma sociedade que trata homens e mulheres a partir de uma lógica na qual a diferença se converte em desigualdade. Essa desigualdade, que é econômica e de capacidade de tomada de decisões, mostra a diferença de posições de poder que homens e mulheres ocupam, a despeito do preparo para assumir um cargo e receber o mesmo salário por ele. (THINK OLGA, 2014)

A condição feminina é pautada na construção social que tem raiz na concepção da família e possui clara relação com a divisão sexual do trabalho: enquanto o homem é provedor, a mulher possui a obrigação automática e natural de cuidar e administrar a casa, além de criar e educar os filhos, negando sua participação econômica no âmbito doméstico (seja tanto por meio do trabalho externo, quanto pela substancial execução do trabalho doméstico). Tais posições atribuídas aos gêneros pela vivência social, confirmadas inclusive pelo sistema jurídico (LOPES, 2013, p. 135), e que se perpetuam à medida que não são combatidas, entregam ao homem não somente o papel de provedor do lar, mas, consequentemente, de responsável pelas decisões e detentor da autoridade dentro do ambiente doméstico. Há patente assimetria entre as relações de poder (BANDEIRA, 2009, p. 404) entre homens e mulheres, em especial na relação familiar e no lar.

Quando esses paradigmas são rompidos e as mulheres não mais correspondem aos padrões de comportamento, vivência, aparência a elas impostos, a opressão masculina se torna mais forte e poderosa, na intenção de não permitir a quebra da conduta até então esperada. A violência doméstica, portanto, tem como causa fundamental a quebra de expectativa destes papeis de gênero perpetuados (THINK OLGA, 2014). Em vista da naturalização da dominação masculina sobre as mulheres, como também das manobras para manutenção desta situação, a violência doméstica demorou a ser reconhecida como um problema que foge ao âmbito privado: somente em 2006 foi criada uma lei de tutela específica de mulheres vítimas de violência doméstica (Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha).

A prática da violência doméstica não somente nega à mulher a sua integridade psicofísica, uma vez que atinge tanto o corpo físico da mulher, como também a sua psiqué, causando-lhe sintomas de depressão, ansiedade, baixa estima, como também sua liberdade, sua dignidade. Há uma clara negação de direitos. Nessa esteira, a assimetria de poder existente entre os sexos ocasiona a compreensão do feminino como propriedade do masculino, em especial quando se tratam de relações conjugais: “[as mulheres] deixam de ser tidas como autônomas cidadãs, perdem ainda a liberdade de escolha e muitas não têm o explícito direito de existir fora de sua pertença contratual, a um dono-marido-patrão-masculino” (BANDEIRA, 2009, p. 408).

Destarte, é evidente que a ofensa à mulher pela violência doméstica desempenha função de sustentáculo da posição desigual do feminino no social, uma vez que atinge a dignidade humana da vítima ao transformá-la em mero objeto passível de ser subjugado. Eis que todo o substrato material (MORAES, 2017, p. 85) da dignidade da mulher é atingido, deixando-lhe órfã de seus direitos mais básicos e que fundamentam a sua humanidade. São substancialmente lesionados os princípios que compõe, de forma básica, a dignidade da pessoa humana: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade.

A lesão à igualdade é evidente, uma vez que a violência doméstica é fruto de diferenças existentes, não entre os sexos, mas entre a construção social realizada sobre eles pautada na desigualdade e assimetria de poder. Assim sendo, é possível afirmar que a igualdade, no sentido de igualdade material, uma vez que a formal já foi garantida constitucionalmente, apenas será deveras atingida no momento em que a percepção social acerca do papel da mulher seja alterada, de forma que o feminino passe a ser visto como sujeito de direitos em sua totalidade.

O direito à liberdade, por sua vez, é impossibilitado à mulher de forma drástica, embora silenciosa: ela é obrigada a renunciar às suas opções e escolhas pessoais para se manter no papel social dela expectado, sob pena de ser violentada de diversas formas. Assim, diante da impossibilidade de exercer suas escolhas individuais dentro dos limites estabelecidos pela ordem constitucional e infraconstitucional, a mulher tem sua liberdade completamente lesionada. Mesmo nos casos em que a vítima consegue se desvencilhar da situação de violência doméstica, a mulher permanece sentindo os efeitos da limitação ao seu direito na medida em que passa a não mais se reconhecer como indivíduo que era, sofrendo as consequências psíquicas, quiçá físicas (como a própria Maria da Penha, que deu ensejo à edição da Lei nº 11.340/2006) da violência a qual foi submetida.

A ofensa ao princípio da solidariedade social decorre da inobservância da reciprocidade do grupo de cidadãos, no sentido de que a prática de um ato de violência, praticado em razão de gênero, implica o não reconhecimento do outro como seu igual, sujeito também de direitos. Eis que a prática da violência contra a mulher não afeta apenas a vítima de maneira individual, produzindo consequências que serão sentidas por toda coletividade.

Neste sentido, a ONU (BRASIL, 2017, on-line) divulgou que, ao ano, a violência doméstica contra a mulher custa ao mundo o valor aproximado de US$ 1.500.000.000.000,00 relativo ao montante destinado ao atendimento das vítimas[8], a aplicação de leis e as consequências das agressões na vida da ofendida. Ainda na perspectiva solidarista, as consequências da violência também podem ser observadas na produtividade da mulher e na manutenção do seu emprego. Pesquisa formulada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento no Canadá e Estados Unidos indicou que 30% das mulheres que foram vítimas da violência doméstica perderam seus empregos como resultado da agressão sofrida, sendo que 94% de todas as mulheres faltaram pelo menos um dia de trabalho por ano em razão da situação apresentada (FERRACINI NETO, 2018, p. 256).

Por fim, a lesão à integridade psicofísica da mulher é a mais acessível à compreensão, embora não menos profunda e significativa. Inicialmente, pois pode ter consequências visíveis, na forma de agressões físicas. Nestas ocasiões, o local onde a maior parte das agressões ocorrem é no rosto/face, seguido pelos membros superiores e órgãos genitais, sendo exemplificadas como danos corporais (BRASIL, 2017, p. 50). Embora este tipo de violência seja mais palpável, esta não é a única lesão que pode ser provocada à integridade da mulher. Deve-se atentar ao fato de que a violência doméstica produz consequências devastadoras ao psicológico das mulheres vitimadas, na medida em que é causadora de doenças psicossomáticas, depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, disfunção sexual, entre outras (GOMES, 2014, p. 139).

Ademais, os direitos da personalidade da mulher são atingidos na medida em que se fere a sua honra e imagem em razão da humilhação a qual é submetida, resultando na construção de crenças depreciativas que influem de maneira direta na autoestima da vítima, levando-a a se enxergar de forma desvalorizada (GUIMARÃES, 2017, p. 1992). É inegável, portanto, que o direito fundamental à dignidade da mulher é lesado quando da prática da violência doméstica contra esta última, derivando deste ato dano moral reparável.

A contrariedade aos substratos do princípio da dignidade da pessoa humana, acima delineados, compõe o fundamento do dano moral in re ipsa por violência doméstica, que podem ser deduzidos do Recurso Especial nº 1.675.874-MS do Superior Tribunal de Justiça. Todavia, um questionamento subsiste: a violência doméstica contra a mulher pode ser considerada precursora de um novo tipo de dano, em razão da perpetuação da discriminação e subjugamento feminino?[9]

Para responder a esta questão, deve-se considerar que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial, ora comentado, expôs as razões pelas quais a tutela da mulher nos casos de violência doméstica é devida: trata-se de observar os ditames constitucionais. Busca-se preservar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal), a igualdade (art. 5º, I da CF) e optimizar o princípio da vedação de discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI da CF), além de assegurar assistência a qualquer integrante que compõe a família (art. 226, §8º da CF). É um meio também de defesa da liberdade e do fortalecimento jurídico (realizado por meio da optimização e maximização da tutela jurídica e dos instrumentos normativos disponíveis para auxiliar no sofrimento e malefícios da violência), bem como uma forma de salvaguardar o valor da mulher como pessoa humana, observando seu direito à vida, à liberdade, à igualdade, segurança, propriedade, honra e imagem. Com efeito, a lesão da dignidade e da personalidade da mulher por meio da violência doméstica é um interesse a ser tutelado, pois atinge o núcleo fundamental (AMARAL, 2002, p. 244), o marco jurídico inicial do ordenamento jurídico brasileiro: a pessoa humana, concretizada na sua dignidade.

Por outro lado, não há sequer um argumento justificador para concessão de tutela ao interesse lesivo: seja pelo sentimento de posse do homem, seja pela tentativa de manutenção do status quo masculino, seja pela não aceitação do fim de um relacionamento, a agressão praticada a outrem é ato ilícito proibido pelo ordenamento jurídico. Não se apresentam aqui quaisquer hipóteses que pudessem elidir a ilegalidade do ato praticado: “em situações como estas [proibidas pelo ordenamento], por prévia determinação legislativa, o interesse lesado prevalece incondicionalmente sobre a conduta lesiva proibida” (SCHREIBER, 2007, p. 157).

Todavia, não se acredita que apenas os danos indicados pelo Superior Tribunal de Justiça sejam os causados a uma mulher vítima de violência doméstica. Em realidade, conforme se demonstrou, a violência doméstica funciona como um ciclo de perpetuação da dominação masculina sobre o feminino, sustentando a desigualdade existente entre homens e mulheres e ensejando novos danos. Eis que os danos psicológicos causados em mulheres vítimas de violência doméstica são perenes, provocando, por consequência, lesão à estima da mulher, dificuldade na manutenção e na capacidade produtiva do trabalho, na conquista da independência financeira, de se posicionar como detentora de opinião em espaços privados e públicos e, inclusive, dificuldade em romper com o ciclo da violência.

Neste sentido, veja-se que 36,6% das mulheres que denunciam a agressão doméstica alegam não ter sido a primeira vez que foram agredidas, levando o Ministério da Saúde a concluir que o “elevado percentual de violência de repetição entre mulheres adultas demonstra o caráter crônico da violência, especialmente da violência doméstica contra as mulheres, e a dificuldade encontrada em romper o ciclo da violência” (BRASIL, 2017, p. 158).

Não há dúvida, portanto, que a violência doméstica funciona como sustentáculo da posição feminina concebida pela parcela machista e patriarcal da sociedade, que entende ser a mulher inferior ao homem em todos os âmbitos da vida pessoal e social: a violência doméstica oprime e impede, por muitas vezes, o desenvolvimento regular da mulher como ser social, mantendo-a em uma posição de subalternidade.

Percebe-se a perpetuação de um ciclo de violência infligido ao feminino, que não se restringe ao aspecto físico ou psicológico. Aprisiona-se a mulher a concepções retrógradas de comportamento no âmbito doméstico e público, restringindo sua forma de pensar, suas manifestações, sua forma de vestir e agir, os lugares frequentados e até mesmo as profissões que pode almejar. Não obstante, permanece-se a desigualdade salarial percebida em relação ao feminino, que possui o condão de fortificar o ciclo de violência apresentado. Os efeitos desta perpetuação são evidentes: mantem-se o abismo existente entre a concepção do “ser mulher” e do “ser homem”, fortalecendo a desigualdade de gênero que é causa e também consequência da violência doméstica.

Assim, parece óbvia e patente a necessidade de que o dano causado pela perpetuação da violência doméstica também seja tutelado pelo Judiciário, uma vez que o ordenamento jurídico, em especial a Constituição da República, apresenta a igualdade como interesse a ser defendido. A República brasileira tem como a promoção do bem de todos, sem discriminação de sexo, dispondo quanto a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade de todos os cidadãos, não admitindo tratamentos discriminatórios que atentem contra direitos fundamentais ou liberdade.

Neste sentido, é de se concluir que, em vista da inexistência de taxatividade (MORAES, 2017, p. 121) de situações que por violarem os direitos da personalidade possam ser tuteladas pelo direito, a perpetuação da desigualdade de gênero por meio da violência doméstica, tem como condão impedir o desenvolvimento pessoal e social da mulher. Considerando uma forma de violentá-la em diversos aspectos de sua existência, o dano decorrente da violação da condição feminina deve ser considerado um novo dano ressarcível e, nesta medida, combatível.

Da leitura dos argumentos expostos pelos julgadores, fica evidente que a tese fixada foi diretamente influenciada pela condição feminina anteriormente apresentada, funcionando como verdadeira forma de combate à naturalização da violência doméstica. À exemplo, recorrentemente em seu voto, o Relator do referido Recurso Especial trata da vulnerabilidade da mulher nas relações domésticas, pugnando por um verdadeiro processo de humanização das vítimas deste tipo de violência na medida em que se baseia em estatísticas que demonstram a realidade da violência doméstica:

...necessária a mais desinibida intervenção estatal (...) ante os alarmantes dados estatísticos, os quais indicam que, na maioria dos casos, a vítima acaba por não representar contra o agressor, ou por afastar a representação anteriormente formalizada, enquanto o agente, por sua vez, passa a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva, aprofundando, assim, o problema e acirrando sua inviabilidade social (BRASIL, STJ, REsp 1675874, 2018, p. 16).

A racionalização por trás da tese fixada se baseia ainda na desnecessidade de revitimização da mulher, que já se encontra em posição de vulnerabilidade e fragilidade e seria obrigada a reviver e comprovar a extensão da afetação da violência em sua vida, muitas vezes de difícil constatação. Eis que como foi demonstrado são diversas as marcas deixadas na mulher vítima de violência doméstica, posto que em vários dos casos as consequências não são tão obvias, tampouco aparentes. As pesquisas realizadas sobre a temática demonstram de maneira inequívoca que a prática de violência doméstica contra a mulher já seria, por si só, danosa e, consequentemente, merecedora de tutela jurisdicional:

[...] [não se mostra razoável] a exigência de instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de humilhação, da diminuição da autoestima, etc., se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa (BRASIL, STJ, REsp 1675874, 2018, p. 2).

Neste contexto, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça denota notável e fundamental guinada contra o machismo estrutural, embasada tanto na normativa constitucional e infraconstitucional quanto no contexto social experimentado pelas mulheres brasileiras, buscando-se efetivar a tutela jurisdicional quando se trata da violência doméstica contra a mulher.

4. Problematizando o quantum indenizatório no recurso especial nº 1.675.874 – MS: o dano moral pela sua perpetuação?

No caso ora analisado, em vista da inacessibilidade à sentença penal condenatória na qual foi fixado o valor mínimo de reparação por danos morais da vítima e como o Superior Tribunal de Justiça limitou-se a restabelecer o valor outrora fixado, não é possível analisar os fundamentos que motivaram o convencimento do magistrado pela indenização mínima de R$ 3.000,00.

Todavia, enquanto defendia a possibilidade de que um valor mínimo fosse fixado em sentença penal condenatória para posterior execução no Cível, aduziu o STJ que referida indenização deveria ser aferida a partir dos seguintes critérios: (i) ponderação das situações concretas apresentadas; (ii) gravidade do ilícito; (iii) intensidade do sofrimento; (iv) condição socioeconômica da vítima e do ofensor; (v) grau de culpa.

Diante de tais parâmetros, cabe investigar a influência do “ser mulher” e da condição feminina no valor mínimo fixado de R$ 3.000,00 a título de danos morais.

A possibilidade de reparação dos danos morais apenas foi positivada e, portanto, plenamente aceita no âmbito jurídico quando da promulgação da Constituição Federal, que em seu artigo 5º, V e X assim estabelece:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V - É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Quando há dano material, busca-se restituir o lesado ao seu status quo ante a partir da ideia de equivalência, sub-rogando a coisa ou o valor no prejuízo. Na hipótese de danos morais, diante da impossibilidade de que o sujeito retorne ao seu status inicial e se veja livre do dano a si infligido, fala-se apenas na possibilidade de compensação por meio do pagamento de indenização. Em se tratando de danos morais, o livre arbitramento pelo juiz foi a maneira mais justa encontrada para quantificar o quantum indenizatório, uma vez que possibilita ao magistrado o conhecimento das peculiaridades do caso concreto e a sua efetiva ponderação, a fim de encontrar um montante razoável e adequado.

Neste sentido, as decisões proferidas devem ser sempre motivadas e explicitados os motivos do convencimento, sob pena de transformar o livre arbitramento em arbitrariedade.[10] Deve, portanto, possibilitar que a racionalidade da decisão seja compreendida pelos jurisdicionados, a fim de que seja observado o direito destes a um processo justo e livre de discricionariedades (MORAES, 2017, p. 275).

Ainda que o livre arbítrio do magistrado seja a técnica defendida para a aferição do valor da indenização por danos morais, certos critérios se apresentam na jurisprudência como sendo os mais utilizados para este fim, como, por exemplo, o enriquecimento sem causa, a extensão do dano, a posição social da vítima, a simples violação do direito, a razoabilidade, dentre outros (PÜSCHEL, 2011, p. 25).

Inicialmente, compreende-se que referido valor, caso não seja levado à execução no Juízo Cível, sequer atende a quaisquer dos parâmetros brevemente mencionados pelo Superior Tribunal de Justiça: o caso apresentado no Recurso Especial nº 1.675.874 – MS trata de violação à norma penal, não havendo ponderação a ser realizada, à medida que o direito da mulher à sua vida, liberdade, integridade, honra e tantos outros foram sumariamente dela retirados.

A intensidade do sofrimento no momento de fixação de uma indenização mínima tampouco pode ser analisada, desta vez, por limitações jurídico-processuais. Porquanto se trata de dano moral in re ipsa, os danos concretos ocasionados não são debatidos, tampouco o é a intensidade do sofrimento imposto à vítima[11].

Por sua vez, a condição socioeconômica da vítima e o grau de culpa do ofensor tratam de parâmetros a serem utilizados e consubstanciados na análise do quantum indenizatório quando se impõe a aplicação dos punitive damages – fato que não se verifica no caso em comento, em especial pela possível caracterização de bis in idem decorrente da condenação já na esfera penal.

Quanto à gravidade do ilícito, a discussão a se travar novamente tem fundamento na condição da mulher na sociedade: qual o valor dado à mulher como ser humano, detentora de direitos? A violência contra a mulher é tão naturalizada que sequer permite que os julgadores percebam a gravidade do ilícito que se coloca à sua frente, de maneira que se admite esta situação como corriqueira, simples e facilmente resolvível.

Ainda que exista a possibilidade de que a sentença penal condenatória seja levada à execução no Juízo Civil, é de se imaginar que apenas a extensão dos danos seja analisada neste momento processual, porquanto o critério de gravidade do ilícito se denota da mera análise do caso concreto. Neste sentido, o valor mínimo fixado em R$ 3.000,00 demonstra que, embora o Judiciário acerte em conceder maior proteção à mulher ao enunciar a presunção do dano sofrido, falha ao naturalizar a violência doméstica no momento em que a considera pouco, ou nada grave.

Com vistas a determinar o lugar do acórdão em comento na linha jurisprudencial traçada pelo Superior Tribunal de Justiça, procede-se a uma comparação com outros casos, nos quais aquela corte se manifestou em relação ao quantum indenizatório por danos morais. O primeiro caso versa sobre atropelamento culposo de pessoa do sexo masculino, que resultou em lesão ao fêmur da vítima: a indenização por dano moral, concedida em primeira e segunda instâncias, foi mantida no valor de R$ 50.000,00. Eis que o Superior Tribunal de Justiça entendeu que tal quantia não foi ínfima ou desproporcional (BRASIL, STJ, AgInt no AREsp 1435566, 2017, p. 4). Em outra oportunidade, uma consumidora caiu no chão de um supermercado, tendo sido vítima de lesões leves devido à queda. Entendendo pela responsabilidade objetiva do fornecedor, o Juízo de primeiro grau determinou a indenização da consumidora na quantia de R$ 10.000,00 pelos danos morais sofridos. Tal montante foi mantido pelo Superior Tribunal de Justiça, por não se tratar de quantia irrisória ou excessiva (BRASIL, STJ, AgRg no AREsp 768.585, 2015, p. 5).

Note-se que, em ambos os casos, foram fixadas indenizações muito superiores às do Recurso Especial nº 1.675.874-MS. Contudo, o que se pretende aqui pontuar não é a inexatidão do Superior Tribunal de Justiça ou das instâncias inferiores no exame do caso analisado, tampouco afirmar a irrelevância dos fatos apresentados nas demais decisões trazidas ao exame. Questiona-se, em realidade, a importância que o Judiciário confere à violência doméstica contra a mulher.

No caso que se analisa, rememore-se: a vítima foi agredida com forte tapa pelo seu ex-companheiro, tendo sido derrubada ao chão. Insatisfeito, seu algoz entrou no carro e a atropelou. Embora seja facilmente perceptível a gravidade desta situação, o tribunal de primeiro grau entendeu que bastava fixar como indenização mínima por danos morais o valor de R$ 3.000,00, o qual corresponde a apenas 6% do valor de indenização por danos morais em um dos casos apresentados, que não apresenta relação com a violência doméstica[12].

Bem se sabe que a liquidação no Juízo Cível pode amenizar tal discrepância, mas novamente se questiona: a gravidade do ilícito não deveria, por si só, ser influente na majoração desta indenização? Os ideais, machista e patriarcal, enraizados na sociedade brasileira, foram ideologias determinantes nesta análise, que demonstrou certa irrelevância pela violência doméstica contra a mulher? A não compreensão da responsabilidade civil como forma de proteção aos direitos fundamentais lesionados influiu na aferição de indenização tão baixa quanto à aplicada no Recurso Especial comentado?

Compreende-se que sim. Não fosse a tendência ainda hoje existente de conceber a mulher como mero objeto, subjugado ao masculino, de forma que a violência doméstica se torna situação natural e esperada quando do rompimento dos papeis sociais de cada um, o Judiciário entenderia a profundidade do ilícito, determinando indenização mínima superior ao ora vislumbrado.

Ademais, note-se que talvez os maiores danos que possam ser percebidos na mulher vitimizada pela violência doméstica são aqueles que, de forma substancial, atingem a sua dignidade, em todo seu substrato: desde sua integridade psicofísica à sua liberdade, como também seu direito ao tratamento e pertencimento igualitário na sociedade (nas dimensões da solidariedade social, inclusive), igualmente em razão do caráter perpétuo da violência doméstica quando em relação ao papel imposto muitas vezes à mulher.

Consigne-se, assim, que, em vista de tantos direitos que são sumariamente ceifados da mulher por meio de um episódio de violência, a indenização por danos morais a qual ela faz jus deveria ser substancialmente maior à que foi avalizada na situação do Recurso Especial no 1.675.874-MS, do Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, torna-se possível afirmar que o Judiciário também carrega sua parcela de culpa na diminuição da condição feminina: mesmo nos casos em que se admite a existência e a ocorrência da violência doméstica contra a mulher, a punição do agressor é leve, por vezes sendo aplicado apenas o mínimo de pena disponível. Ainda, a compensação pelo dano moral sofrido sequer atinge patamares aceitáveis. No caso do Recurso Especial nº 1.675.874-MS, apenas R$ 3.000,00 de indenização por danos morais foram deferidos à mulher vitimada pelo seu companheiro, que além de agredi-la, atropelou-a com seu próprio carro. Some-se a este fato que na esfera penal o algoz foi condenado apenas a quatro meses de detenção em regime aberto, sendo que o Código Penal estabelece como pena mínima a detenção de três meses.

Muito embora a caracterização do dano moral à mulher vitimada pela violência doméstica como in re ipsa avance na tutela de mulheres em situação de violência doméstica, não se compreende que tal caracterização limite a análise das lesões a direitos e princípios provocadas pela violência perpetrada. Apesar de a presunção do dano ser empecilho para análise aprofundada das consequências fáticas ocasionadas à lesionada, a lesão à dignidade humana da mulher vitimada é evidente em qualquer situação de violência doméstica, embora sua gradação não possa ser efetuada nestes casos[13].

Note-se que, novamente, se retorna ao ponto de início da discussão: não fosse a mentalidade patriarcal do Judiciário, que tende a naturalizar situações de violência contra a mulher, a prática de violência doméstica seria detentora de tamanha gravidade que, mesmo que impossibilitado de realizar a gradação do ilícito praticado, as indenizações por danos morais não seriam tão irrisórias quanto a vislumbrada no Recurso Especial comentado.

Nada obstante, acredita-se que a majoração no porte das indenizações concedidas como compensação por danos morais sofridos por mulheres vitimadas por seus cônjuges, companheiros, amigos é uma questão de justiça (MORAES, 2006, p. 176), pois se trata de conceder proteção aos direitos fundamentais de sujeitos de direito marginalizados pelo Direito em si. Para tanto, chama-se a atenção ao já proclamado por Stefano Rodotà: a responsabilidade civil não deve ser tratada apenas como uma resposta assertiva da civilística ao ato ilícito (o que de fato o é), mas também como uma forma de conceder proteção a direitos fundamentais lesados (Apud MORAES, 2006, p. 176). Veja-se, então, que a somatória destas duas concepções não teria outro resultado que não a majoração da indenização mínima mantida pelo Superior Tribunal de Justiça em caso tão grave quanto o ora comentado.

Considerações finais

Intencionar a reflexão acerca das influências da condição feminina, tanto no que tange a ampliação de sua tutela, quanto à ampliação do abismo existente na sociedade patriarcal atual, não é tarefa fácil no âmbito jurídico. Porquanto o mundo jurídico é a expressão da realidade e ânsia social, também é o sustentáculo de uma sociedade, podendo atuar na manutenção de certos paradigmas ou na destruição e construção de novos.

Neste sentido, o anseio por aperfeiçoar a tutela da mulher se justifica pela tentativa de reduzir a desigualdade de gênero que tanto maltrata mulheres e homens, colocando-os em posições sociais que nem sempre correspondem à sua vontade e, talvez, façam com que estes personagens sequer saibam quais são suas vontades.

Com efeito, o presente comentário tem a pretensão de demonstrar que o combate a violência doméstica também se traduz no combate à desigualdade de gênero, a qual dá causa e ao mesmo tempo é perpetuada por essa forma de violência contra a mulher, especialmente por ser um momento em que tantos direitos fundamentais são ceifados das mulheres vitimadas. Ainda, que se impõe um combate expressivo contra esta realidade[14] por todos os setores sociais, especialmente pelo Judiciário, garantidor de direitos e deveres de cada componente da sociedade.

Neste contexto, buscou-se explorar a tese fixada pelo Recurso Especial nº 1.675.874 – MS, que tratou de forma incisiva da condição hoje vivida pela mulher brasileira, ao mesmo tempo em que demonstrou a naturalização não apenas da violência doméstica, mas também de seus efeitos, especialmente quando se analisa o valor de indenização mínima fixado para o dano moral presumido pela alta corte do país.

Ao passo em que a decisão do Superior Tribunal de Justiça analisada por este comentário pode ser julgada promissora no que atine ao entendimento de que o dano moral sofrido por mulher vítimas de violência doméstica é in re ipsa, é imperativo que se reconheça a existência de um silenciamento do mesmo Tribunal quanto a gravidade do ilícito cometido por quem é algoz da violência doméstica.

Nesta medida, embora o entendimento do Superior Tribunal de Justiça pela presunção do dano moral quando comprovada a existência de violência doméstica possa auxiliar a romper paradigmas e humanizar a mulher vítima, a jornada pela conscientização do Judiciário ainda se mostra longa: não é de se admitir que a vida, sanidade e qualidade de vida de uma mulher seja tão pouco valorosa que se entenda por indenização tão irrisória quanto a proposta no Recurso Especial nº 1.675.874 – MS.

Por tal razão, o presente comentário ambicionou apontar a existência de possível novo dano moral, o qual possui seu fato gerador na perpetuação da desigualdade de gênero perpetuada pela prática da violência doméstica e que possui como consequência a manutenção do sistema patriarcal em que ainda se vive.

Nesta medida, ainda que se reconheça a necessidade de que o Judiciário possua papel ativo no rompimento do ciclo da violência contra a mulher, observado no âmbito doméstico, não se pode apenas espelhar tal função aos operadores da lei. Em realidade, todos os atores sociais devem estar comprometidos com uma evolução de paradigmas, para que mulheres e homens não mais sejam estigmatizados em papeis construídos.

É apenas diante deste combate generalizado que as desigualdades de gênero poderão, enfim, ser superadas, tendo como consequência direta a substancial diminuição nos casos de violência doméstica praticada contra a mulher.

Referências

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Submetido em: 11 maio 2020.

Aceito em: 15 mar. 2022.

 



[1]    Tradução livre de “...appréciation critique de sa valeur et de as portée.

[2]    Embora não se desconheça que a violência doméstica não é apenas praticada por homens – podendo ser praticada por mulheres contra outras mulheres – e embora se reconheça que os homens também são vítimas de violência, o presente artigo tem enfoque na violência doméstica praticada contra mulheres, em especial por seus cônjuges ou ex-companheiros, como se apresentou no caso examinado pelo Recurso Especial nº 1.675.874 – MS, o qual da base para o estudo proposto.

[3]    Outros exemplos de aproximação entre as esferas penal e civil podem ser encontradas no ordenamento jurídico, nas previsões dos artigos 608, 939 e 940 do Código Civil, os quais impõe penas civis ao sujeito no caso de prática de atos defesos em lei.

[4]    Neste sentido encontram-se Moraes (2017, p. 132) e Cavalieri Filho (2019, p. 125).

[5]    Ficou expressamente disposto na ementa do REsp no 1.675.874 – MS, que a prova da prática do crime é imprescindível.

[6]    73,5% da população feminina, enquanto apenas 63,2% da população masculina frequentou o ensino médio.

[7]    23,5% das mulheres brancas e 10,4% das mulheres pretas ou pardas possuem ensino superior completo. Por sua vez, apenas 20,7% dos homens brancos e 7,0% dos homens pretos e pardos estão na mesma situação.

[8]    Em 17/09/2019 foi aprovada a Lei nº 13.871/2019, que altera a Lei Maria da Penha e insere três parágrafos ao art. 9º da Lei nº 11.340/2006, os quais tratam da necessidade de que o agressor (i) ressarça todos os danos causados a mulher; (ii) ressarça ao Sistema Único de Saúde (SUS) os custos para prestação dos serviços de saúde necessitados em razão da violência doméstica praticada à vítima e também; (iii) seja responsável pelos custos advindos dos dispositivos de segurança utilizados para o monitoramento das vítimas amparadas por medidas protetivas, resultando em diminuição de gastos ao Estado advindos da violência doméstica.

[9]    Para que tal análise seja feita, utilizar-se-á a metodologia apresentada por Anderson Schreiber, exposta na obra “Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos” (SCHREIBER, 2007, p. 137-177).

[10]  Veja-se, inclusive, que tal entendimento encontra respaldo também na legislação processual: artigo 489 do Código de Processo Civil.

[11]  Este critério, no entanto, deverá ser aplicado em caso de liquidação da sentença penal no Juízo Cível, utilizando-se do instituto de liquidação.

[12]  Necessário pontuar que, embora esteja-se ciente quanto às discussões doutrinárias existentes no que tange a indenização por dano moral em relações familiares, entende-se que a indenização por dano moral em virtude da prática de violência doméstica não deve ser questionada, uma vez que se trata de ato ilícito rechaçado pelo ordenamento brasileiro. Neste sentido: MORAES, 2006, p. 188.

 

[13]  Em que pese saiba-se que a caracterização do dano moral como in re ipsa tenha como consequência a impossibilidade da análise dos danos sofridos de maneira mais aprofundada no Juízo Penal, entende-se que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto à presunção do dano continua sendo mais benéfico à realidade fática vivida por mulheres vítimas da violência doméstica, uma vez que a comprovação do dano é penosa à vítima, seja pela dificuldade na produção probatória, seja pela probabilidade de revitimização da mulher caso tal prova fosse exigida.

[14]  De acordo com dados registrados pelo sistema Ligue 180, da Secretaria de Políticas para Mulher (SPM/R), em 2015 foram realizados 76.651 atendimentos relacionados a casos de violência doméstica contra mulheres (BRASIL, SENADO FEDERAL, 2018, p. 11).