O REGIME SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL SEGUNDO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Jônatas Michels Ilha

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Rio Grande do Sul.

[email protected]

Jorge Renato dos Reis

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Rio Grande do Sul.

[email protected]

RESUMO: Trata-se da análise da decisão pelo Supremo Tribunal Federal em equiparar a sucessão da união estável e do casamento, em harmonia com os princípios da isonomia e vedação do retrocesso, sob a ótica da dignidade humana e solidariedade. O problema consiste em saber se é ou não legítimo e compatível com a Constituição brasileira de 1988 desequiparar e hierarquizar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros. Pretende-se analisar os tipos de família formados pelo casamento e por união estável, para ver, à luz da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, se é legítima a desequiparação e hierarquização da sucessão entre elas; os objetivos específicos são conhecer os aspectos históricos e filosóficos da família e do direito sucessório tradicional e sua evolução, a sucessão dos companheiros na Constituição de 1988, o histórico de leis e do Código Civil, e por fim, fazer uma leitura constitucional do regime sucessório entre cônjuges e companheiros. O método de abordagem utilizado é dedutivo, adotando-se o procedimento monográfico e a técnica de pesquisa da documentação indireta.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade humana. Direito civil-constitucional. Isonomia. Jurisdição constitucional. Solidariedade.

The successory regime in the stable union under the
constitutional view according to the Supreme Federal Court

ABSTRACT: It is the review of the decision by the Federal Supreme Court to equate the succession of the stable union and marriage, in harmony with the principles of isonomy and sealing of regress, from the viewpoint of human dignity and solidarity. The problem consists in to know if it is or not legitimate and compatible with the Brazilian Constitution of 1988 to desequate and rank spouses and partners for succession purposes. It is intended to analyze the types of family formed by marriage and by stable union, to see, in the light of the dignity of the human person and solidarity, if it is legitimate the desequation and hierarchy of the succession between them; the specific objectives are to know the historical and philosophical aspects of the family and traditional succession law and its evolution, the succession of partners in the 1988 Constitution, the historic of laws and the Civil Code, and finally, to make a constitutional reading of the succession between spouses and partners.

KEYWORDS: Human dignity. Civil-constitutional Law. Isonomy. Constitutional jurisdiction. Solidarity.

Introdução

O presente artigo busca analisar as formas de família constituídas pelo casamento e por união estável, para identificar, principalmente, a luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, baseado na Constituição Federal, na doutrina e na recente decisão do Supremo Tribunal Federal, se é, ou não, legítimo e compatível com a Constituição brasileira de 1988 desequiparar e hierarquizar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável.

Inicialmente, no primeiro capítulo da pesquisa, se abordará o modelo tradicional de família, analisando onde se alicerçam as distinções entre casamento e união estável, identificando breves aspectos históricos e filosóficos da família e do direito sucessório tradicional e sua evolução. Já no segundo capítulo, será analisada a sucessão dos companheiros e dos cônjuges, sua equiparação e desequiparação, percorrendo o caminho cronológico da Constituição, de leis esparsas e do Código Civil de 2002 a respeito da temática. Por fim, no último capítulo pretende-se trazer uma abordagem acerca da constitucionalização do direito de família e seus efeitos no regime sucessório de cônjuges e de companheiros, pela aplicação dos princípios constitucionais da isonomia, vedação ao retrocesso, a luz da dignidade humana e solidariedade.

O presente estudo se justifica pelo fato de que as relações afetivas são o que há de mais antigo e também de mais novo no contexto social. Praticamente todas as pessoas, pelo menos em algum dado momento, encaram uma relação afetiva a dois. A família é o cerne da sociedade, e por isto merece constante análise, ainda mais pela recente decisão do STF sobre a sucessão na União Estável e no Casamento. No tocante à metodologia, se adotou o método de abordagem dedutivo.

O procedimento utilizado será o monográfico, e na técnica de pesquisa, será utilizada documentação indireta, através da pesquisa bibliográfica, buscando-se elementos para a investigação do tema em bibliografia de fontes, notadamente em livros, revistas especializadas e na legislação atinente à matéria.

1. Da evolução do conceito de família no sistema jurídico brasileiro

São profundas as alterações do conceito de família no sistema jurídico brasileiro, num longo caminho percorrido, e ainda em percurso, desde a tradicional influência do sistema do Direito Romano até o giro conceitual dado pela Constituição de 1988, e mais especificamente no processo de constitucionalização do direito. Mas isto ainda depende de percorrer um breve caminho conceitual e de momentos da história, para melhor entender a atual discussão acerca da sucessão do casamento e da união estável. Importante frisar que não é objeto do presente estudo analisar as várias formas de união estável reconhecidas no direito brasileiro, notadamente a união de pessoas do mesmo sexo, nem adentrar nas especificações de requisitos de configuração de tal instituto, senão em breves pinceladas, pois o aqui pretendido é analisar os aspectos sucessórios.

Embora tenha lá sua importância histórica quanto às civilizações mais antigas, como a egípcia e a hebraica, o presente trabalho principia a versar sobre a família romana, origem do nosso direito de família brasileiro. O pater romano exercia a chefia da família, e esta se caracterizava mais notadamente no culto a religião comum. A mulher deixava a religião da casa de seus pais, se juntando ao marido, passando a cultuar a religião deste. De acordo com Venosa (2010) a descendência era fixada pela linha masculina, sendo que a mulher era subordinada ao pai até o casamento, depois ao marido.

No cenário romano a solenidade do matrimônio religioso e cerimonial era o casamento por excelência, chamado de confarreatio. Também existia a modalidade de casamento conhecido como coemptio, numa espécie de negócio jurídico formal, que consistia na ‘venda da mulher’ por quem detinha o pátrio poder. Esta modalidade, como ensina o grande civilista, Venosa (2010), se tornou a mais usual, restando a confarreatio a um número limitado de aspirantes a altos cargos sacerdotais, que deveriam provir dessa modalidade de casamento. Neste período, o casamento romano se aproxima muito do concubinato, somente se transformando em sacramento com o advento do Cristianismo.

A influência do casamento religioso no ordenamento jurídico brasileiro advém desde o seu descobrimento. À época do descobrimento do Brasil, consoante assevera Azevedo (2002), a Europa estava sendo praticamente tomada pela onda do movimento protestante, e com isto, ocorreu na Itália o Concílio de Trento, entre 1545 e 1563, para declarar a exclusividade do casamento como um sacramento, com excomunhão de quem o negasse. Esta disposição dogmática adentrou no ordenamento jurídico português, e também no brasileiro, tamanha a influência da Igreja Católica Apostólica Romana nestes países.

No ordenamento jurídico brasileiro o Direito de Família está ligado historicamente pelo matrimônio, casamento formal, entre homem e mulher. Entretanto, disso não se segue que a lei deva desconhecer as relações livres entre pessoas, com fins idênticos ao do matrimônio, ainda mais da união que resultam da procriação natural (GOMES, 2002). Porém, sabe-se que o conceito histórico de família sempre esteve atrelado ao casamento, depois a filiação e a adoção: mas tudo oriundo do matrimônio.

Tamanha era a diferença de tratamento prestado ao casamento e a união estável, à época concubinato, que um era tratado como Direito de Família, e o outro como Direito das Obrigações, conforme leciona Madaleno (2012, p. 27). Senão, vejamos:

Ao tempo do Código Civil de 1916 até o advento da Carta Política de 1988, a família brasileira era eminentemente matrimonializada, só existindo legal e socialmente quando oriunda do casamento válido e eficaz, sendo que qualquer outro arranjo familiar existente era socialmente marginalizado e quando um homem e uma mulher constituíssem um concubinato, equivalente à atual união estável, seus eventuais e escassos efeitos jurídicos teriam de ser examinados no âmbito do Direito das obrigações, pois eram entidades comparadas às sociedade de fato.

O legislador civil brasileiro de 1916 ignorou a família informal, chamada de ilegítima, não a tutelando, mas tão somente a mencionando, raras vezes, com a denominação de concubinato. A proteção era total a família legítima, não reconhecendo direitos à união de fato (VENOSA, 2010).

Por conta da influência religiosa, como já mencionado, o conceito de família esteve sempre fortemente ligado ao casamento, com objetivo principal da paz doméstica e preservação do patrimônio. Antes de 1988, todas as Constituições designavam apenas o casamento como família, consoante assinala o Ministro Roberto Barroso, relator do RE 878694/MG, que tratou dos regimes sucessórios do casamento e da união estável (BRASIL, 2016).

Por outro lado, é inegável que a evolução do direito família se dá pelas aproximações legais entre os sistemas europeus, mais diretamente pela lei de herança (VILLAR, 2017).

Adentrando no assunto de sucessões, cabe trazer que no direito brasileiro existe a sucessão legítima e testamentária. No presente trabalho o que interessa é a sucessão legítima, decorrente da necessária relação parental, familiar. Conforme ensina Venosa (2010), os romanos e os gregos também admitiam ambas as formas de sucessão, com uma diferença, de que os gregos só admitiam testamento na falta de filhos.

Dividiram-se as duas formas de sucessão brasileira em dois graus distintos de intensidade. Como é tratado por Barroso (BRASIL, 2016) o grau fraco se refere a parte disponível da herança, na liberdade de disposição, e o grau forte, que aplica-se à parte indisponível da herança, chamada de legítima, que corresponde aquela parte (a metade) que a lei impõe seja transferida a determinados membros da família, chamados de herdeiros necessários. Isto se justifica pela necessidade de garantir aos familiares mais próximos um patamar de recursos que lhes permita preservar, dentro do possível, o padrão existencial desfrutado.

O vocábulo sucessão vem de substituição, tomar o lugar de outrem no campo jurídico. O ser humano tem como uma das suas maiores aspirações a transcendência da sua existência, e mesmo com o término da personalidade com a morte, as relações jurídicas permanecem (VENOSA, 2010). Ao morrer o titular de bens, direitos, e etc., é substituído por aqueles familiares próximos a si, que detém o poder, e o dever, de continuidade e sucessão dos seus bens jurídicos.

A sucessão do casamento sempre foi uma preocupação de garantias pelo direito sucessório, enquanto a da união estável era tratada no campo das obrigações, ou até mesmo trabalhista. O cônjuge supérstite foi beneficiado no Código Civil de 2002, tornando-se herdeiro necessário, enquanto a companheira sobreviva, além de não ser reconhecida como herdeira necessária, também ficou hierarquicamente inferior ao cônjuge, retrocedendo os diplomas legais outrora conquistados (WALD, 2002), conforme se verá mais para frente.

Entretanto, são grandes as transformações no conceito de família ao longo do tempo. Iniciando pela divisão do poder de família entre os cônjuges, destituindo-se o tradicional pátrio poder. Interessante comentário trazido por Orlando Gomes (2002, p. 18), onde diz que “o ambiente familiar descontrai-se e as relações entre marido e mulher e entre pais e filhos tratavam-se numa atmosfera bem diferente, cada qual destes membros do grupo movendo-se com liberdade [...]”.

Conforme observa Fachin (1999), podem-se construir três patamares das uniões: casamento/matrimônio civil válido, a união estável como véspera do acesso ao casamento, e a união livre, distante do matrimônio oficial, da formalidade, e por isto não se pode mais falar em concubinato. Após a Constituição de 1988 o Estado brasileiro abandona a dimensão contemplativa destes novos modelos de família, e passa a operar na dimensão protetora, reconhecendo e emergindo efeitos jurídicos, mesmo que seja da tradição do padrão familiar latino a concepção matrimonializada, hierarquizada e patriarcal da família.

A Constituição Federal de 1988 inaugurou novos tempos no Direito de Família, pelo fato de constitucionalizar outras modalidades de família, como a União Estável, como entidade familiar. Terminou-se com a ideia de família patriarcal, edificada no casamento oficial. Consoante Madaleno (2011) confirma-se o casamento, como relação formal, solenizada pelo Estado, mas também, dentre outros tipos, reconheceu a família informal, trocando o termo concubinato por união estável, resgatando a dignidade de tal instituto, de caráter afetivo e livre de preconceitos.

Não cabe mais no Direito de Família espaço para os ranços do passado. A vida contemporânea é deveras complexa e exige uma atitude solidária e igualitária da vida, principalmente da vida em comum, a dois, a três, quatro, enfim, numerosa de filhos. Sobre este novo fenômeno, assentou Gomes (2002, p. 19):

O papel da família nos dias correntes expande-se pela execução de relevantes atividades à medida que o objetivo do bem-estar se generaliza numa sociedade de abundância, porquanto tornou-se obrigatório o esforço para mandar os filhos à escola, assegurar-lhes condições higiênicas, proporcionar-lhes, na doença, cuidados médicos e assistência hospitalar, oferecendo-lhes conforto e condições para ascensão social, numa atmosfera igualitária.

Volta-se a ideia anterior ao Decreto nº 181, de 1890, que instituiu no direito brasileiro o casamento civil, onde o casamento de fato era reconhecido, sem as formalidades do casamento civil, ainda que religioso, presumindo-se o casamento. Inclusive, como acentua Azevedo (2002), as Ordenações Filipinas entre nós, e várias legislações comparadas reconheciam o casamento de fato, e a união estável sempre foi casamento de fato.

Nas palavras de Fachin (1999, p. 2) “o “direito e o avesso” se reconhecem como partícipes de uma mesma caminhada”. A virada do modo de ver a família se impôs, senão vejamos o que traz o autor:

O descompasso do tempo contemporâneo com a imagem clássica se revela, presentes as novas tendências que já batem às portas. Quando o sistema clássico originário, espelhado no Código Civil brasileiro, vai sofrendo transformações, até mesmo superações operadas no papel construtivo da jurisprudência, tal desconformidade se demonstra. Demais disso, aquele Código clássico é surpreendido pela engenharia genética, e a concepção sociológica plural fragmenta o discurso jurídico monolítico da unidade conceitual da família (FACHIN, 1999, 11-12).

A tutela da família atual se dá no espaço das afetividades e não mais na positivação de uma regra específica de relacionamento. Conforme Cavalcanti (2014), em tese de Doutorado na Universidade de Coimbra, a concepção de família tradicional como única forma de comunidade familiar até o século XX, se modificou por conta da passagem da era moderna para a pós-moderna, momento ainda em transição, caracterizado pelas rupturas de velhos conceitos do passado, e maior aceitabilidade e flexibilidade da pluralidade do presente.

2. Da equiparação e desequiparação entre cônjuge e companheiro na sucessão

As obrigações e os direitos do de cujus se transferem para terceiros, ditos sucessores, a título de sucessão hereditária ou testamentária, onde são estabelecidas no direito das sucessões normas referentes à transmissão dos bens pertencentes à pessoa falecida, estando regulado no Livro V do novo Código Civil e constitui-se, em síntese, na transmissão de bens causa mortis.

Tradicionalmente, como se viu na primeira parte deste trabalho, a família estava atrelada ao matrimônio formal, sem proteção jurídica a união estável. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 3º, elevou a união estável ao status de entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, onde o legislador ordinário deveria avançar na disposição de direitos neste sentido, fundado na concepção constitucional.

Da mesma forma, deveras a importância que se atribui a sucessão hereditária, que goza de caráter fundamental, prevista expressamente no texto constitucional como direito fundamental, não podendo a legislação civil dispor de forma destoante da Constituição. O direito de herança está consagrado na Constituição brasileira de 1988, no art. 5º, XXX, como corolário do direito de propriedade (LENZA, 2012), tamanha é a importância da continuidade dos bens e direitos da pessoa falecida. Nesta esteira, Nevares (2004, p. 33) traz que:

A sucessão hereditária, portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, constitui uma garantia fundamental dos cidadãos, conforme opção levada a cabo pelo legislador constituinte brasileiro, no inciso XXX, do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Sua Abolição não pode ser objeto de emenda constitucional, consoante o disposto no art. 60 par. 4º, inciso IV da Carta Magna, cumprindo à legislação ordinária disciplinar o fenômeno sucessório de acordo com os valores constitucionais.

Sob o condão da Constituição de 1988, os direitos fundamentais dão o norte do arcabouço jurídico e de interpretação das normas, sentindo-se a mudança plena na concepção de família, que passa a ser considerada como um espaço meio de realizações mil. A família não é contrato, mas instituição. E como instituição que é, interessa a todos, e não só aos indivíduos particularmente, numa mudança de postura do clássico direito privado a uma publicização do direito de família (FACHIN, 1999).

Como se viu, a Constituição de 1988 constitui o marco de uma importante mudança de paradigma em relação ao conceito social e constitucional de família. Esta passa a ser protegida não como um “bem por si própria”, mas como meio para que as pessoas possam realizar-se, o que, em tese, independe da configuração de família adotada, pois a união estável agora também é protegida constitucionalmente.

Na legislação civil a previsão da união estável e o seu tratamento vem contido nos artigos 1.723 e 1.727 do Código Civil brasileiro. Além destes, aparece também no artigo 1.694, na parte que trata dos alimentos, e nos artigos 1.790, 1.797, 1.821 e 1.844, que disciplinam sobre a sucessão hereditária. Uma questão das mais conflitantes acerca de regulação do Código Civil de 2002 em se tratando de união estável, diz respeito à revogação ou não das Leis 8.971/94 e 9.278/96. No caso, a lei posterior tratou especificamente da mesma matéria, logo revogou a anterior, permanecendo em vigor tão somente o parágrafo único do artigo 7º da Lei n. 9.278/96, quanto ao direito real de habitação do supérstite sobre o único imóvel residencial dos conviventes ao tempo da morte, matéria esta que não foi mencionada pelo legislador no Código Civil.

Com isto, se aplicam as disposições do Código Civil brasileiro de 2002, e, por conseguinte, pela leitura dos seus artigos 1.790 e 1.845, o companheiro sobrevivo, ao contrário do cônjuge supérstite, não figura como herdeiro necessário, o que implica na possibilidade do autor da herança dispor, em testamento, da integralidade de seu patrimônio, ressalvando somente o direito de meação do companheiro quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.

Impende destacar, como menciona Almeida (2003) que os direitos sucessórios dos companheiros já estavam regulamentados desde 1994, com a entrada em vigor da Lei nº 8.971, tendo sido tais direitos hereditários complementados pela Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, onde foram garantidos vários direitos de equiparação dos conviventes com os cônjuges, direitos estes que o Código de 2002 sucumbiu, estabelecendo o direito hereditário ao companheiro apenas quanto aos bens adquiridos a título oneroso na vigência da união estável, num sistema de concorrência e não de exclusividade. “Como visto, o direito à sucessão hereditária era assegurado de forma ampla ao companheiro sobrevivente, em prática equiparação ao direito do cônjuge viúvo” (OLIVEIRA; AMORIM, 2004, p. 164).

Igualmente ao cônjuge supérstite, o companheiro sobrevivente, pela Lei nº 8.971/94, detinha o direito à totalidade da herança na ausência de descendentes (NEVARES, 2004). E como se demonstrou, o Código Civil atual muda substancialmente a posição do companheiro no direito sucessório, que a partir de agora não terá qualquer participação na herança relativa a bens adquiridos antes ou havidos gratuitamente, de forma unilateral (herança ou doação), pelo autor da herança.

O Código Civil de 2002, desta forma, inovou na matéria de direitos de sucessões entre companheiros, desequiparando-o com a regra de sucessão entre cônjuges, revogando, implicitamente, direitos antes conquistados pelos companheiros. Segundo Venosa (2002, p.88):

O patamar de Direitos relativos a convivência sem casamento foi totalmente modificado com os dois diplomas legais aqui referidos. No que tange a sucessão, a Lei 8. 971 94 inseriu o companheiro a ordem de vocação hereditária.

Quanto aos bens comuns, como já se mencionou, trata-se de outro instituto, que é o da meação, pelo regime legal da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito, conforme se depreende do Código. Mas, quase a totalidade dos casos de união estável, se dá informalmente, sem contrato escrito. Caso haja contrato formal, seguirá as o regramento geral dos regimes de bens, da mesma forma que o é no casamento.

Ainda, as disposições dos incisos I e II do art. 1.790, preveem que ao companheiro caberia cota equivalente à dos filhos comuns e que fosse, ao mesmo tempo, de metade do que coubesse aos filhos não-comuns. Comparando-se à situação do cônjuge supérstite, percebe-se que, além deste ter passado a figurar como herdeiro necessário, também passou a concorrer com as duas primeiras classes preferenciais, ou seja, com os descendentes e os ascendentes, nesta ordem, pois conforme o Código caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorre. Por esta regra, exemplifica-se, se houver mais de quatro descendentes concorrendo por cabeça, não haverá igualdade de quinhões.

O correto seria que o Código Civil posterior às leis dos anos 90 que regularam a matéria referente a união estável, avançasse como fez em relação ao casamento, aos filhos, e muitos outros aspectos (GAMA, 2007). Mas não foi o que se viu, pois retrocedeu em direitos aos companheiros na sucessão hereditária. Senão vejamos Nevares (2004, p. 171):

Sem dúvida alguma, restringir a incidência do direito sucessório do companheiro sobrevivente nos bens adquiridos onerosamente pelo falecido na vigência da união estável pode causar graves injustiças. Basta pensar numa pessoa que só tenha bens adquiridos antes da união, ou somente tenha adquirido bens a título gratuito, como herança ou doação, e viva durante muitos anos em união estável. Quando essa pessoa falecer, sua companheiro nada receberá. A herança caberá por inteiro aos demais parentes sucessíveis e, o pior, não os havendo, esta será vacante e pertencerá por inteiro ao Estado (CC/02, art. 1.844).

Isto tem causado muito debate no mundo jurídico atual. Tal debate chegou ao Supremo Tribunal Federal que teve de enfrentar a presente questão, polêmica que é, e dona de pelo menos dois modos de vê-la. Isto será retratado a seguir.

3. Da leitura constitucional do regime sucessório de cônjuges e de companheiros

O processo de constitucionalização do direito privado é fenômeno que representa a superação da tradicional divisão do direito em público e privado. A mais marcada dicotomia na teoria do direito sempre foi a do direito como ramo privado e de outro lado como ramo público. Conforme Bobbio (2007), qualquer norma de direito devia estar entabulada dentre algum desses dois grandes ramos do direito. De acordo com o autor, tal distinção, inclusive, por ser tão acentuada, rebaixou outras diversas grandes dicotomias clássicas, se tornando a mais destacada dicotomia do direito. Tradicionalmente o direito público está atrelado ao regulamento dos interesses do Estado, como sua organização, como tributação, direito penal, dentre outros. Já o direito privado possui o condão de regular as relações entre os indivíduos, pelo contrato, propriedade privada, sob o signo da liberdade total.

O direito civil, nascido à margem do Estado, representou baluarte da liberdade burguesa, no Estado Liberal, onde de acordo com Facchini Neto (2003) era permitido aos particulares dispor entre si, num espaço próprio que lhes era devido, sem intromissões do Estado. Como se depreende de Fachin (2003), aqui impera a separação entre duas espacialidades bem definidas: público e o privado.

Neste diapasão, os direitos fundamentais de primeira geração eram exercidos frente ao Estado, como liberdades negativas, implicando deveres de omissão por parte do Estado, de não intervenção. Neste momento as Constituições regiam o Direito Público, enquanto o Código Civil regia o direito privado, chamado de “Constituição do homem privado”. As Constituições destinavam-se ao respeito aos direitos fundamentais na perspectiva do Estado e sua relação com os indivíduos. Noutra ponta estavam os códigos civis, que regulavam as relações entre os indivíduos.

Os direitos humanos surgiram para garantir e equilibrar a relação entre os sujeitos e o Estado, trazendo maior equilíbrio entre eles. É um movimento de garantia dos direitos e garantias fundamentais do cidadão frente ao Estado (FERNANDES 2019).

O processo de constitucionalização do direito civil representa uma nova caminhada frente a isto tudo que se buscou demonstrar aqui como raiz do direito privado. Com isto se quer dizer, nas palavras de Finger (2000, p. 95) que “o direito civil constitucionalizado parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, na regulação patrimonial que sempre pretendeu ser”, e por isto deve possuir preeminência sobre as normas internas de um Estado.

Segue o autor a dizer que as normas de direito civil não podem ser analisadas em apartado da Constituição, vez que todas as normas infraconstitucionais, incluídas as civis, devem ser interpretadas conforme a Constituição (FINGER, 2000), pois os valores de uma sociedade, os quais devem nortear todo o ordenamento jurídico estão previstos na Constituição (FACCHINI NETO, 2003). Há um passo dado em busca da valoração e dignificação da pessoa humana, onde as Constituições passam a operar em terrenos outrora desconhecidos por ela, onde não se intrometia, e agora “vários institutos que tipicamente eram tratados apenas nos códigos privados (família, propriedade, etc.) passaram a serem disciplinados também nas constituições contemporâneas” (FACCHINI NETO, 2003, 35).

Neste processo de constitucionalização também se inaugura a ideia de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, que outrora servia tão somente para vincular o Estado, em proteção dos indivíduos. Conforme assenta Leal (2007), o caso embrionário desta concepção surge no chamado Caso Luth, decisão histórica da Corte alemã, em janeiro de 1958, onde o presidente do Clube de Imprensa na cidade de Hamburgo, Erich Luth, tentou excluir da grade de programação dos cinemas locais, através de um boicote, a um filme considerado anti-semita, de produção de um cineasta que havia colaborado com o regime nazista. Ele foi processado pelos produtores por perdas e danos, e colocou em confronto até que ponto as leis civis devem se ater aos direitos fundamentais. Na primeira instância houve decisão favorável aos produtores do filme, sob a motivação de violação a moral e os bons costumes tratados pelo Código Civil alemão, por conta do boicote. Porém, ao subir para a instância superior, a Corte alemã reverteu o julgamento entendendo que houve violação do direito fundamental à liberdade de expressão, aplicando os direitos fundamentais não meramente como direitos de defesa contra o Estado, mas exigíveis e aplicados entre os particulares. De acordo com este entendimento, toda a legislação deve ser interpretada e limitada pelos direitos fundamentais.

De modo que a Ciência Jurídica muda o foco, outrora da lei positiva, para atentar-se aos valores emanados do texto constitucional, consoante traz Britto (2010, p.114):

Essa oficial e cristalizada compreensão de ser a Constituição de 1988 um tipo de Direito que atua diretamente no centro do poder político-administrativo é tudo de que a Ciência Jurídica precisa para se assumir como pós-positivista; quer dizer, modelo de Ciência do Direito que tem nos princípios jurídicos uma força normativa ainda maior que a das regras, de par com o entendimento de que os valores nesses princípios transfundidos são os que mais conferem unidade material à Constituição e promovem a espontânea adaptabilidade dela às mutações do mundo circundante (grifos do autor).

Destarte, a constitucionalização do direito civil não deixa outra forma hermenêutica senão a de interpretar o direito como um todo, sob os olhares da Constituição, alicerçada na dignidade humana e solidariedade, que serão mais no final tratadas em específico. Já na sequência pretende-se discorrer especificamente acerca da jurisdição do STF sobre os regimes sucessórios do casamento e união estável, numa análise das duas principais correntes formadas no julgamento.

No emblemático caso que versou sobre a equiparação de regimes sucessórios entre cônjuges e entre companheiros, onde em 10/05/2017 o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 646721 e 878694, ambos com repercussão geral reconhecida, declarou-se inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens. O primeiro deles foi RE 878.694/MG (Tema 809), que teve como relator o ministro Luís Roberto Barroso. Tal julgamento teve início em agosto de 2016, já havendo desde então sete votos pela inconstitucionalidade da norma, na linha proposta pela relatoria. Depois de pedido de vistas do ministro Dias Toffoli, o processo retomou seu destino no ano de 2017, tendo esse último julgador concluído pela constitucionalidade da norma, pois haveria justificativa constitucional para o tratamento diferenciado entre o casamento e a união estável. O ministro Marco Aurélio pediu novas vistas, unindo também o julgamento do recurso extraordinário 646.721/RS, que tratava da sucessão de companheiro homoafetivo, do qual era relator (Tema 498).

Cumpre dar maior destaque ao voto que prevaleceu, qual seja, o do Ministro Luis Roberto Barroso, onde surgiu, e também se definiu a tese do julgado, bem como insta analisar o eminente voto proferido pelo Ministro Dias Toffoli. Aqui se deve atentar aos dois eminentes votos, pois neles se retratam as posições dos juristas e tribunais pelo país a fora, demonstrando os dois principais argumentos dos dois modos de enxergar o problema. Tal caso é daqueles onde os dois lados têm ‘razões’, e pode ser considerado como um caso difícil de resolução, por isso devem se sopesar e ponderar os direitos e princípios fundamentais envolvidos.

Importante trazer a baila os fundamentos da opção por manter-se a diferenciação do tratamento dado à sucessão dos cônjuges e a sucessão dos companheiros. O Ministro Dias Toffoli no RE 87.8694/MG (BRASIL, 2017) considera que o legislador brindou a liberdade da pessoa em decidir se deseja casar-se, e para tanto incorporar seus patrimônios, e viver como casados, ou tão somente viver em união afetiva, união estável, sem o desejo de união patrimonial, a não ser aquela adquirida em conjunto, na constância da união. Ele traz a explicação de que as várias formas de entidade familiar, dentre elas a união estável, não são propriamente um casamento, que possui significado diferenciado. Assenta sobre a autonomia da vontade e o devido respeito à opção de decisão pelo regime que o indivíduo deseja se submeter. O Ministro Toffoli revisitou a discussão da matéria no projeto legislativo do Código Civil de 2002, onde fora debatida a questão da diferenciação da sucessão entre os cônjuges e entre os companheiros, optando expressa e conscientemente o legislador em tal desequiparação, considerando a união estável como instituição-meio e o casamento enquanto instituição-fim.

Extrai-se desta posição o entendimento de que o legislador optou não por inferiorizar ou hierarquizar os regimes e sucessão aberta, mas de diferencia-los, prestigiando a dita opção do indivíduo em manter-se em união estável e não em casamento. O Ministro Toffoli (BRASIL, 2017) ainda ressalta, em seu voto, que o movimento da década de 60, encabeçado principalmente pelos jovens, passou a entender que deveria haver maior liberdade das relações familiares sem intromissão do Estado. Sua proposta final é da aplicação da máxima jurídica in dúbio pro legislatore, ou seja, em caso de penumbra, presume-se adequado o que foi estabelecido pelo legislador, indicando o espaço democrático do Congresso Nacional para eventual alteração legislativa em igualar os regimes sucessórios.

Os dois Recursos Extraordinários aqui mencionados foram analisados em conjunto. Pela manutenção da norma jurídica do art. 1790 do Código Civil brasileiro, que diferenciou a sucessão entre cônjuges e entre companheiros, votaram os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Importa registra que o papel da Corte Suprema, na teoria constitucional, não se confunde com a teoria da supremacia das maiorias, pois os direitos e garantias, particularmente, destinam-se a proteger os cidadãos contra certas decisões de uma maioria (DWORKIN, 2002).

Os principais argumentos da tese vencedora do Relator Roberto Barroso foram da isonomia entre cônjuges e companheiros, e a proibição ao retrocesso legislativo. Acompanharam a tese proposta por Roberto Barroso os ministros Teori Zavascki, Edson Fachin, Luiz Fux, Rosa Weber, Celso de Mello e Carmem Lúcia. O princípio da igualdade que se constituiu no Estado Liberal pela isonomia formalista, na lei escrita, onde todos eram considerados iguais em direitos perante as leis, era o que se chama de igualdade formal (LEAL, 2007), se transforma substancialmente no Estado Social de Direito, e hoje é premissa que se dê materialmente, onde fica impedido o tratamento diferenciado a pessoas que se encontram em idênticas situações, mas que também busca igualar aqueles em situação descompassada (MORAES, A., 1998).

O Poder Legislativo representa a sociedade brasileira, e pelo princípio democrático pode rever ou estabelecer mudanças legislativas em determinados momentos históricos, no entanto não pode retroceder tanto a ponto de aniquilar algum direito fundamental antes conquistado. Entende-se que no momento em que a Constituição de 1988 igualou e previu as diversas formas de famílias, e depois como se viu no segundo capítulo, o legislador ordinário em 1994 e em 1996 editou normas corroborando com os mandamentos constitucionais, equiparando em direitos a união estável ao casamento, pelo não retrocesso, não se concebe devida mudança de postura e total desfazimento do que já se havia garantido, em termos de direito sucessório, até porque implicam direitos fundamentais.

A família é o epicentro das relações humanas, sendo conforme Azevedo (2002, p. 235) “quando um homem e uma mulher se unem sob o mesmo teto, com o fruto de seu amor, aí se instala a família”, devendo haver a igualdade entre todos os formatos de família legítimos e com ânimo de sentimento, de permanência, de fidelidade, de criação, e, por fim, de sucessão. O olhar a ser a dirigido ao direito de família e ao regime sucessório é o olhar constitucional, de valores integrativos, de visão solidarista e dignificante, e não mais de frieza da lei desigualadora e por assim ser, atentadora da ordem constitucional. O dever de agir pela dignidade humana é dever natural do próprio homem, que conforme se depreende das inspiradas palavras de Ayres Britto, nada tem a fazer a não ser declará-los:

[...] toda essa histórica e formal proclamação de ser a pessoa humana portadora de uma dignidade “inata” é o próprio Direto a reconhecer o seguinte:a humanidade que mora em cada um de nós é em si mesma o fundamento lógico ou o título de legitimação de tal dignidade. Não cabendo a ele, Direito, outro papel que não seja o de declará-la. Não propriamente o de constituí-la, porque a constitutividade em si já está no humano em nós (BRITTO, 2010, p. 25).

Ao reconhecer digno todo ser humano, o Estado e também a Sociedade, cumprem o papel de igualar materialmente todas as pessoas. Marcas do Estado Social onde se rompe com o aspecto de neutralidade, passando a se compreender uma vinculação necessária entre moral e política, numa perspectiva solidária, sendo que sua condição de sujeito vai bem além da mera esfera privada. Neste sentido, se evidencia a condição não apenas individual, mas social da pessoa humana, numa noção de sociedade solidária, não enquanto ser isolado, mas como integrante do meio coletivo (LEAL, 2007).

No projeto constitucional não há mais espaço para a exclusão, nem lugar para omissão passiva, de aceitação de uma situação de exclusão, pois “de acordo com o que estabelece o texto da Lei Maior, a configuração de nosso Estado Democrático de Direito tem por fundamentos a dignidade humana, a igualdade substancial e a solidariedade social” (MORAES, 2001, p. 168).

Zeno Veloso (2003), tabelião, grande conhecedor prático das questões de direito sucessório no Brasil, relata que num país em dimensões continentais, nos subúrbios das metrópoles e nos interiores, é expressivo o número de famílias constituídas à margem do casamento. Em muitos desses lugares a população nunca viu um padre, nem nunca conheceu um juiz. O divórcio que havia era o entre a lei e os fatos. Os códigos estavam a léguas de distância da realidade social brasileira.

Conforme um pouco se viu no início deste trabalho, somente com a Constituição brasileira de 1988 que as uniões informais saíram verdadeiramente do limbo jurídico, para merecer a devida atenção, tradicionalmente não despendida. Soma-se ao fato de que várias uniões estáveis normalmente são oriundas da camada mais pobre da sociedade, como imposição tácita pela dureza da vida (FACHIN, 1999), e estão à mercê do aparato de proteção familiar, e mesmo que se possa alegar que não será nenhum pouco fácil em determinar se se trata verdadeiramente de união estável ou não, e que dependerá de aventura jurídica, não obstante, não pode se ter desculpas para excluir um instituto jurídico (VELOSO, 2003). Neste diapasão, as relações familiares começam a renascer dando origem a um berço de afeto, solidariedade e recíproca constituição de vida em comum (FACHIN, 1999), seguindo o autor dizendo que “no espaço da pluralidade familiar tem assento a família não matrimonializada” (FACHIN, 1999, p.60).

Por fim, cumpre ressaltar a ilegitimidade da hierarquização e desequiparação dos cônjuges e companheiros, para fins sucessórios, isto é, deve ser equiparada a sucessão da família formada pelo casamento e da formada por união estável, sendo este o entendimento do Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral, que deve ser atendido por todos aplicadores e intérpretes do direito.

Considerações finais

Em resposta ao problema de pesquisa abordou-se os aspectos históricos e conceituais do direito de família e sucessões na sua concepção tradicional. Nesta fase a família era constituída tão somente pelo casamento formal, entre homem e mulher, excludente de outras formas de família, consideradas ilegítimas e não merecedoras de proteção jurídica.

Após, se abordou a equiparação e a desequiparação entre os regimes sucessórios dos cônjuges e dos companheiros, numa abordagem cronológica, iniciando pelo avanço em relação ao Código de 16, com as legislações dos anos 90 equiparando a união estável com o casamento em quase todos seus aspectos, notadamente no regime sucessório, legislações estas concretizadoras da vontade constitucional, estabelecida pela Constituição de 1988, que contemplou as diferentes formas de família e elegeu o direito a sucessão como direito fundamental. Seguindo a ordem cronológica no tempo, em 2002 advém o novel Código Civil brasileiro, que avançou em muitos aspectos, porém retrocedeu no que se refere à sucessão entre companheiros, revogando anteriores aquisições de direitos.

Por fim, no último capítulo, analisou-se o processo de constitucionalização do direito de família e sucessório, tendo como timoneiros os princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana que não concebem a ideia de desigualdade e hierarquia entre os modelos de família e seus respectivos regimes sucessórios. Procurou-se abordar a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que norteado pelo princípio da isonomia e o princípio da vedação ao retrocesso, em análise ao art. 1.790 do Código Civil, em controle de constitucionalidade, equiparou os regimes sucessórios entre cônjuges e entre companheiros, declarando não haver nenhuma diferença na sucessão entre estas duas formas de constituição de família, devendo se aplicar a mesma regra a ambos.

Se antes a união estável sequer era considerada família, nem sua tutela se dava no direito de família, mas, no campo das obrigações ou trabalhista, após avanços e também retrocessos na legislação ordinária civil, a Constituição de 1988 prevaleceu, desmantelando qualquer tentativa de hierarquização e diferenciação entre regimes sucessórios do casamento e união estável. Mesmo que se considere o casamento formal e convencional menos complexo de se reconhecê-lo, pela mera expedição de uma certidão, com isto não se pode afastar da proteção jurídica àqueles cujas vidas se somaram em busca da felicidade da família de maneira informal, à margem do matrimônio, que não merecem findar sem proteção patrimonial e direito sucessório.

O princípio da solidariedade, objetivo fundamental da República, aplicado ao direito de família e sucessões, impõe olhar as famílias constituídas pelo casamento e as que não são constituídas pelo casamento como abertas ao mesmo propósito, pois a solidariedade significa multiplicar a dignidade da pessoa humana, que pelos mesmos anseios e legitimidade merecem a proteção total.

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Submetido em: 30 abr. 2019.

Aceito em: 15 mar. 2022.