Centro Universitário 7 de Setembro – UNI7, Ceará
Centro Universitário 7 de Setembro – UNI7, Ceará
RESUMO: Este artigo
tem como objetivo analisar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos
usuários de serviços públicos, especialmente em relação às concessionárias de
energia elétrica. A aplicabilidade do
CDC aos serviços públicos insere-se no fenômeno da convergência entre o direito
público e o direito privado, ou seja, da privatização do direito público e da
publicização do direito privado. Assim, a problemática é objeto de uma análise
interdisciplinar da legislação, da doutrina e da jurisprudência norteadoras do
direito administrativo e do direito do consumidor. A metodologia
utilizada é teórica, bibliográfica, descritiva e exploratória, de natureza
qualitativa, com predomínio do método dedutivo. Conclui-se que a relação de consumo existente entre a concessionária e o
usuário de serviço público prestado uti
singuli, remunerado por tarifa, atrai a incidência do CDC, naquilo em que
não conflitar com a legislação administrativa específica, com as consequências
daí decorrentes (possibilidade de inversão do ônus da prova, restituição em
dobro de valores cobrados de má-fé pela concessionária, etc.). No atinente à
suspensão do serviço de energia elétrica por inadimplemento do usuário, conclui-se
que a aplicação das normas específicas da legislação administrativa vem sendo mitigada
pela jurisprudência do STJ e do STF, levando em consideração, precipuamente, o
grau de essencialidade do serviço para o consumidor e para a coletividade, a
atualidade da dívida e o porte econômico do consumidor.
PALAVRAS-CHAVE:
Código de Defesa do Consumidor. Serviços
públicos. Energia elétrica.
ABSTRACT: This article aims to analyze the application of the Consumer Defense Code
(CDC) to users of public services, especially in relation to electric power
concessionaires. The CDC's applicability to public services is part of the
convergence between public law and private law, that is, the privatization of
public law and the publicization of private law. Thus, the problem is the
subject of an interdisciplinary analysis of legislation, doctrine and
jurisprudence guiding administrative law and consumer law. The methodology used
is theoretical, bibliographic, descriptive and exploratory, of a qualitative
nature, with predominance of the deductive method. It is concluded that the
relationship between the concessionary company and the public service user
provided uti singuli, remunerated by tariff, attracts the incidence of CDC,
insofar as it does not conflict with the specific administrative legislation,
with the necessary consequences thereof (possibility of reversal of the burden
of proof, double refund of amounts charged in bad faith by the concessionaire,
etc.). Regarding the suspension of the electric power service due to the user's
default, it is concluded that the application of the specific rules of the
administrative legislation has been mitigated by the STJ and STF jurisprudence,
taking into account, in essence, the degree of essentiality of the service for
the consumer and for the collectivity, the debt recentity and the economic size
of the consumer.
KEYWORDS: Code of Consumer Protection. Public services. Electric energy.
A aplicabilidade das normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às relações entre usuários e concessionárias de energia elétrica, especialmente no que concerne à suspensão do fornecimento de energia em razão de inadimplemento do usuário, é alvo de intensa polêmica há vários anos.
Concorre para tanto o fato de ainda não haver uma disciplina normativa clara acerca da possibilidade e da forma de aplicação do CDC aos usuários dos serviços públicos.
A aplicabilidade do CDC (Lei 8.078/90) cobra relevo com a entrada em vigor da Lei 13.460/2017 (cognominada de “Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos”), cujo art. 1º, § 2º, II, determina a aplicação do CDC “quando caracterizada relação de consumo”, sem, no entanto, defini-la.
Ademais, quadra realçar a interdisciplinaridade do tema, a envolver tanto o direito administrativo, como o direito do consumidor. Essa interação entre o direito público e o direito privado suscita renovados debates, uma vez que é crescente a influência do direito privado em ramos do direito público, tanto que comumente se fala em “privatização do direito administrativo”, bem como o fenômeno inverso da “publicização do direito privado”.
Dessa maneira, questiona-se se é possível aplicar as normas previstas no Código de Defesa do Consumidor aos usuários de serviços públicos. E em sendo possível, como e em que medida o CDC poderá ser manejado pelos usuários, especialmente quando se tratar dos contratos que envolvem as empresas concessionárias de distribuição de energia elétrica, água, gás, etc.
Dito doutra forma: a aplicabilidade do CDC a tais serviços públicos concedidos é integral ou meramente parcial? A existência de norma específica na legislação administrativa afasta completamente a aplicação do CDC, com esteio no critério da especialidade, ou é possível algum diálogo entre as fontes legais administrativas e consumeristas, mediante uma aplicação coordenada?
Para tanto, inicialmente
serão apresentados alguns conceitos a fim de verificar a viabilidade da subsunção
do conceito de usuário de serviços públicos ao conceito de consumidor, bem como
dos demais elementos que compõem a relação de consumo.
Na sequência, após
considerações sobre a natureza híbrida do regime jurídico dos serviços
públicos, serão explicitados alguns limites à incidência do CDC na prestação do
serviço público de energia elétrica, exemplificando algumas normas do CDC que
podem ser aplicadas e outras que não poderiam sê-lo, ao menos irrestritamente.
Em seguida, debate-se um
dos temas mais controvertidos envolvendo a aplicação do CDC aos serviços
públicos, qual seja, a legitimidade ou não da interrupção do fornecimento de
energia elétrica em virtude de inadimplemento do usuário. A este respeito, há
normas específicas na legislação administrativa a possibilitar a suspensão do
serviço (Lei 8.987/95, art. 6.º § 3.º, II, e Lei 9.427/96, art. 17), hábil em
tese a derrogar o CDC neste particular (notadamente os arts. 6º, X, e 22 do
CDC).
Após a análise de alguns
casos excepcionais em que a jurisprudência do STJ relativizou a aplicação dessa
autorização legal de cessação do fornecimento, será examinada a possibilidade
de um “diálogo entre as fontes” legais (legislação administrativa e
consumerista) e constitucionais para a solução dessa antinomia.
A metodologia empregada é
teórica, bibliográfica, descritiva e exploratória, de natureza qualitativa, com
preponderância do método dedutivo.
A relação de
consumo é formada, basicamente, por três elementos: consumidor, fornecedor e o
objeto, que pode ser produto ou serviço. A legislação consumerista não define o
que seja “relação de consumo”. O Código de Defesa do Consumidor optou por
definir os conceitos dos elementos da relação de consumo.
Consoante Bruno Miragem
(2013, p. 135-136), os conceitos dos elementos da relação de consumo são relacionais
e interdependentes, de tal modo que somente existirá um consumidor se houver
também um fornecedor (como sujeitos da relação), bem como um produto ou serviço
(como objeto da relação).
Assim, serão
conceituados os elementos da relação de consumo e também os serviços públicos.
A definição de
consumidor é encontrada nos artigos 2º[1], 17[2] e 29[3] do Código de Defesa do Consumidor.
Nos termos do caput do artigo 2º do CDC, será
considerada como consumidora a pessoa física ou jurídica que compra produto ou
faz uso de algum serviço como destinatário final.[4]
Há três teorias
acerca do conceito de consumidor: a maximalista, a finalista e a finalista “aprofundada”
ou “mitigada”. Para a teoria maximalista, para ser considerado consumidor,
basta que a pessoa que adquire ou utiliza produto ou serviço seja a sua
destinatária final fática, não sendo necessário que seja também a destinatária
final econômica do bem, retirando-o
do mercado e não o reutilizando como insumo na sua atividade econômica. A
teoria finalista é mais restritiva, porque exige também a destinação final
econômica, excluindo a possibilidade de emprego do bem como insumo ou
incremento da atividade negocial do adquirente ou usuário. Assim, a empresa que
adquire um bem para ser usado como matéria-prima na sua atividade negocial não
é considerada consumidora à luz da teoria finalista.
Por sua vez,
segundo o finalismo “aprofundado” ou mitigado, teoria intermediária em relação
às anteriores, a pessoa jurídica que adquire produto ou utiliza serviço como
insumo na sua atividade-fim pode ser enquadrada como consumidora se comprovada
sua vulnerabilidade in concreto.
Assim, “a vulnerabilidade da pessoa física (consumidora) é presumida, ao passo
que a vulnerabilidade da pessoa jurídica (consumidora) deverá ser demonstrada
no caso concreto.” (BRAGA NETTO, 2019, p. 66). Caso não provada sua
vulnerabilidade in concreto, será
tida como “consumidora intermediária”, insuficiente para configurar a relação
de consumo e atrair a incidência do CDC. Esta é a tese que tem prevalecido no
STJ.[5]
À luz da teoria
finalista aprofundada, tanto a pessoa jurídica privada, como a de direito
público também podem ser consideradas como consumidoras, desde que comprovada a
sua vulnerabilidade in concreto.[6] À guisa de exemplo, o STJ tem reconhecido a
possibilidade de enquadrar como consumidoras empresas e pessoas jurídicas de
direito público em relação a concessionárias de energia elétrica, caso
demonstrada a vulnerabilidade na situação concreta.[7]
O art. 17 da Lei
9.427/96 corrobora essa visão ao empregar o termo “consumidor” também em
relação ao “Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual”[8], embora se tenha de reconhecer que a
legislação de regência não adota uma técnica uniforme e coerente a este
respeito, frequentemente usando os termos consumidor e usuário como sinônimos
ou sem um critério técnico para distingui-los.[9]
O parágrafo único
do art. 2º do CDC equipara aos consumidores a coletividade de pessoas, ainda
que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Assim, uma
coletividade, ainda que não configure uma pessoa jurídica, pode ser considerada
como consumidora, desde que haja intervindo numa relação de consumo, como
ocorre, v.g., quando um condomínio
edilício contrata serviços ou adquire produtos. (NUNES, 2012, p. 133).
Além das definições de consumidor previstas no artigo 2º, há também os consumidores por equiparação (bystanders), que são aqueles que não estão diretamente ligados ao produto ou ao serviço, mas são as “vítimas do evento” referidas no artigo 17 do CDC.
Segundo Paulo Roberto Roque Antônio Khouri (2005, p. 53)
“no art. 17, o legislador deixa muito clara a sua intenção de levar a proteção
aos que estão fora da relação de consumo.”. Assim, percebe-se que o Código de
Defesa do Consumidor tem aplicação ampla, podendo ser mobilizado até mesmo por
aqueles que não compõem a relação de consumo original.[10]
A possibilidade de equiparação das vítimas do evento aos consumidores é bem aceita tanto pela doutrina, como pela jurisprudência pátria, não havendo dissenso relevante sobre o tema.[11]
Demais, o art. 29 do CDC equipara aos consumidores todas as pessoas, ainda que indetermináveis, expostas às práticas comerciais previstas no CDC, ainda que não sofram dano concreto, individual. Portanto, não é necessário que a pessoa integre a relação de consumo, ou seja, que ela adquira um bem ou faça uso de um serviço, para que possa invocar o CDC em prol de si e da coletividade. Tal se dá, por exemplo, quando determinada pessoa verifica uma prática abusiva vedada pelo CDC e a denuncia a algum órgão de proteção ao consumidor a fim de que seja cessada.
Em suma, não há nenhum óbice legal à subsunção do conceito de usuário de serviço público no conceito de consumidor. Desta feita, passa-se ao estudo dos demais componentes da relação de consumo.
O art. 3º do CDC enuncia que é fornecedor toda pessoa física ou jurídica, “pública ou privada”, nacional ou estrangeira que desenvolva atividade de prestação de serviços ou de comercialização de produtos.[12]
O uso da expressão “que desenvolvem atividade” implica a habitualidade da atividade. Dessarte, não se reputa fornecedora a pessoa jurídica que, fora da sua atividade-fim, vende um bem de sua propriedade. Se ela não é fornecedora, tampouco pode ser considerado consumidor o adquirente do bem, dada a interdependência desses conceitos, não se configurando relação de consumo.
Como se vê, o conceito legal de fornecedor é bastante amplo e abrange até mesmo as pessoas jurídicas públicas e as privadas prestadoras de serviços públicos como atividade-fim, a possibilitar a aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos. Nesse sentido, Newton de Lucca (2008, p. 215) ressalta:
Uma das mais
importantes novidades trazidas pelo CDC terá sido, sem dúvida, a inclusão das
pessoas jurídicas de direito público – enquanto prestadoras dos serviços
públicos a elas pertinentes, quer pelo regime da concessão, quer pelo da
permissão – no conceito jurídico de fornecedor, conforme já estudado.
Não existem, na doutrina brasileira, grandes discussões acerca da definição jurídica de fornecedor. Desse modo, cumpre analisar os conceitos de produto e serviço.
Os conceitos de produto e de serviço[13] também estão previstos no Código de Defesa do Consumidor. De acordo com o art. 3º, § 1º e 2º, do CDC, produto é qualquer bem, material ou imaterial, e serviço é qualquer atividade produzida no mercado, mediante remuneração, excluídas as relações trabalhistas. Assim, somente os serviços prestados “mediante remuneração” são regidos pelo CDC, o que exclui os serviços realmente gratuitos e aqueles prestados a toda a coletividade (uti universi), custeados pelo pagamento de impostos em geral sem nenhuma contraprestação específica e individualizada pelo usuário, o qual não se caracteriza como consumidor, mas como potencial contribuinte (relação tributária, e não de consumo).
Deve-se ressaltar, no entanto, que, caso o prestador de serviços obtenha vantagens indiretas de um serviço aparentemente gratuito, poderá configurar-se relação de consumo.
É o caso dos provedores de busca (buscadores) da internet[14], bem como dos programas de milhagens de companhias aéreas, em que o consumidor adquire passagens aéreas por meio do acúmulo de pontos, e dos estacionamentos aparentemente gratuitos fornecidos por supermercados, lojas, bancos, etc., que visam a atrair potenciais consumidores, razão pela qual as empresas respondem por eventuais danos ou furtos aos veículos neles estacionados, conforme entendimento já cristalizado na súmula 130 do STJ (“A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento”).[15] Aliás, na aplicação da súmula 130, o STJ não distingue entre consumidores efetivos ou potenciais, de modo que mesmo aqueles que não adquiriram nenhum produto podem acionar a empresa. Nesses casos, também há relação de consumo e consequente aplicação do CDC.
Percebe-se, portanto, que o conceito de serviço, assim como os demais, é bastante amplo. Impende, pois, verificar se o conceito de serviço público é compatível com o conceito de serviço consumerista.
A conceituação de serviço público é relevante para determinar se a relação entre o prestador de determinado serviço público e o usuário pode ser caracterizada como de consumo.
No ordenamento jurídico brasileiro não há, diferentemente dos demais conceitos apresentados anteriormente, uma definição geral do que seja serviço público. O art. 175 da Constituição Federal de 1988 não o define, prevendo apenas que incumbe ao poder público a sua prestação, direta ou indiretamente, mediante licitação.[16]
O art. 2º, II, da Lei
13.460/2017 (“Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos”) não fornece
uma definição geral de serviço público, mas apenas para os fins da referida
lei.[17]
De qualquer sorte, essa definição legal é criticável, porquanto restringe o serviço público à atividade “exercida” por órgão ou entidade da Administração Pública, o que excluiria os serviços delegados à iniciativa privada (empresas concessionárias, permissionárias, etc.). No entanto, ao que parece, cuida-se de mera imprecisão conceitual, uma vez que o caput do art. 1º determina a aplicação da Lei 13.460/2017 em favor do usuário dos serviços públicos “prestados direta ou indiretamente pela administração pública”[18] e o § 3º do mesmo art. 1º prescreve a aplicação subsidiária do disposto na referida lei aos serviços públicos “prestados por particular”.[19]
Portanto, uma interpretação sistemática da Lei 13.460/2017 conduz à conclusão de que também
constituem serviços públicos aqueles delegados a concessionários e
permissionários, bem como aqueles exercidos por particulares, independentemente
de delegação, como sucede, v.g., nos serviços
de saúde e de educação.
Sobreleva notar ainda que a definição dada na Lei 13.460/2017 não indica qual o regime jurídico aplicável ao serviço público, isto é, se o serviço público pode ser regido apenas pelo direito público ou também pelo direito privado.
A definição de serviços públicos variou bastante ao longo do tempo. Desde a “Escola do Serviço Público”, liderada por Duguit e Jèze, que adotava um conceito sobremodo amplo de serviço público, abrangendo todas as funções do Estado, passando pelas duas “crises” da noção de serviço público, até os dias de hoje, o conceito evoluiu significativamente, mas remanesce controverso.
Celso Antônio
Bandeira de Mello, em posição minoritária da doutrina, sustém que o serviço
público deve sempre estar sujeito a regime de direito público, elemento formal
indissociável do próprio conceito de serviço público.[20]
Diferentemente, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2017, p. 139), define serviço público como “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público” reconhecendo, dessarte, a incidência de normas de direito privado, suscetíveis de derrogação em parte pelo direito público, em determinadas hipóteses:
Quando, porém, se trata de serviços comerciais e industriais, o seu regime jurídico é o de direito comum (civil e comercial), derrogado, ora mais ora menos, pelo direito público. Em regra, o pessoal se submete ao direito do trabalho, com equiparação aos servidores públicos para determinados fins; os contratos com terceiros submetem-se, em regra, ao direito comum; os bens não afetados à realização do serviço público submetem-se ao direito privado, enquanto os vinculados ao serviço têm regime semelhante ao dos bens públicos de uso especial; a responsabilidade, que até recentemente era subjetiva, passou a ser objetiva com a norma do artigo 37, § 6º, da Constituição de 1988. Aplica-se também o direito público no que diz respeito às relações entre a entidade prestadora do serviço e a pessoa jurídica política que a instituiu. Vale dizer, o regime jurídico, nesse caso, é híbrido, podendo prevalecer o direito público ou o direito privado, dependendo do que dispuser a lei em cada caso; nunca se aplicará, em sua inteireza, o direito comum tal qual aplicado às empresas privadas. (DI PIETRO, 2017, p. 140, grifos da autora).
Similarmente,
José dos Santos Carvalho Filho (2017, p. 337 e 338) entende que serviço público é “toda atividade prestada pelo
Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades
essenciais e secundárias da
coletividade”. Admite, porém, a incidência de normas de direito privado e que em
alguns casos o regime será híbrido, prevalecendo, contudo, o regime de direito
público quando colidir com o de direito privado.
Odete Medauar (2018, p. 317) também reconhece a aplicabilidade parcial de normas de direito privado aos serviços públicos:
Quanto ao regime jurídico, a atividade de prestação é submetida total ou parcialmente ao direito administrativo; mesmo que seja realizada por particulares, em tese sujeita a regras do direito privado, se a atividade for qualificada como serviço público, tem notas de diferenciação: não há serviços públicos submetidos exclusivamente ao direito privado. Conforme Demichel (Le droit administratif – Essai de réflexion théorique, 1978), o serviço público não acarreta necessariamente a aplicação exclusiva do direito público, mas é condição suficiente da aplicação de certo quantum de direito administrativo.
Alexandre Santos de Aragão (2008, p. 157), por seu turno, considera como serviços públicos aquelas atividades de prestação de utilidades econômicas, impostas pelo Estado, por meio de lei, podendo ser desenvolvidas direta ou indiretamente pelo governo, tendo em vista o bem-estar da coletividade.
De acordo com Hely Lopes Meirelles (2016, p. 418), serviço público é
[…] todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado.
Portanto, à luz da doutrina dominante, o conceito de serviço público não exige um regime de direito exclusivamente público, sendo compossível com a aplicação, ainda que parcial, de normas de direito privado. De outra parte, também se entremostra compatível com o conceito de serviço subministrado pelo CDC. No caso dos serviços públicos prestados por concessionárias e remunerados por tarifa, a subsunção é mais evidente.
A possibilidade
de aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários de serviços
públicos é encarada por alguns segmentos doutrinários e jurisprudenciais como
uma interferência indevida do direito privado, regido pela lógica do lucro, na
esfera pública, regida pelo interesse público.
Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (1989, p. 71) aponta as contradições do direito administrativo:
O direito
administrativo nasceu e desenvolveu-se baseado em duas ideias opostas: de um
lado, a de proteção aos direitos individuais diante do Estado, que serve de
fundamento ao princípio da legalidade, um dos esteios do Estado de Direito; de
outro lado, a da necessidade de satisfação de interesses coletivos, que conduz
à outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública, quer
para limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do bem-estar
coletivo (poder de polícia), quer para prestação de serviços públicos.
Consoante
Alexandre Santos de Aragão (2008b, online),
A aplicação do
Direito dos Consumidores aos serviços públicos é uma decorrência fundamental do
movimento de liberalização econômica da década de oitenta e seguintes. Apenas o
serviço público liberalizado, sujeito à lógica econômica da concorrência,
haver-se-ia, de cogitar a aplicação, em maior ou menor escala, do direito comum
de proteção aos consumidores.
Malgrado as
divergências doutrinárias e jurisprudenciais, o art. 1º, § 2º, II, da Lei
13.460/2017 (alcunhada de “Código de Defesa dos Usuários de Serviços
Públicos”) é taxativo ao prescrever que “a aplicação desta Lei não afasta a
necessidade de cumprimento do disposto […] na Lei nº 8.078, de 11 de setembro
de 1990, quando caracterizada relação de consumo”.
Portanto, apesar
de a interação entre o direito público e o direito privado não ser recente na
doutrina, a aplicação do CDC aos serviços públicos é um assunto extremamente
atual e repleto de implicações práticas. Assim, releva analisar como o Código
de Defesa do Consumidor trata os serviços públicos.
O Código de Defesa do Consumidor em diversas passagens alude aos serviços públicos, como, por exemplo, nos arts. 4º[21] e 6º[22].
Outrossim, o art. 22[23] prevê que os prestadores de serviços públicos são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e seguros. Em relação aos serviços essenciais, a lei deixou claro que devem ser fornecidos de forma contínua.
Em relação ao tema, Rizzatto Nunes (2014, p. 150) explana:
No art. 22, a lei consumerista regrou especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência, por si só, foi de fundamental importância para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir “teorias” para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC.
A aplicação de
normas consumeristas à prestação de serviço público também é encontrável em
outros ordenamentos jurídicos. A título exemplificativo, o Código de consumo
francês em vigor (Code de la consommation),
profundamente alterado em 2016, também prevê explicitamente a aplicação de
algumas de suas normas aos serviços públicos, assinaladamente aqueles prestados
mercê de delegação do poder público, conforme se vê nos arts. L112-2, L121-11 e
L121-19.[24]
A seu turno, o Codice del consumo italiano, sobre garantir
a prestação de serviços públicos conforme padrões de qualidade e eficiência aos respectivos usuários, na condição de
direitos fundamentais (art. 2.2, g)[25], assegura
ainda no seu art. 101 direitos instrumentais de participação nos procedimentos
de definição e avaliação dos padrões de qualidade do serviço, assim como compele
o prestador à divulgação de carta de serviços.[26]
No entanto, a
discussão sobre a aplicação do CDC aos serviços públicos não se mostra simples,
uma vez que para parte da doutrina e da jurisprudência é preciso diferenciar o
tipo de serviço público para saber se o CDC será aplicado ou não.
Nesse sentido,
João Batista de Almeida (2000, p. 99-100) assevera que há doutrinadores como Denaris
e Marins que aceitam a aplicação do CDC em qualquer tipo de serviço público, já
outros autores, como Pasqualotto, entendem que somente os serviços impróprios (uti singuli) poderão ser tutelados pelo
CDC. Para Cláudia Lima Marques (2019, p. 787-788), são regidos pelo CDC os
serviços prestados “em virtude de um vínculo contratual, e não meramente
cívico, entre o consumidor e o órgão público ou seu concessionário”, ficando
extra-alcance do CDC os serviços uti
universi, como os serviços públicos gratuitos (de que são exemplo os
fornecidos por escolas ou universidades públicas).
De acordo com
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2017, p. 148), serviços públicos uti universi são “aqueles prestados à
coletividade, mas usufruídos apenas indiretamente pelos indivíduos. É o caso
dos serviços de defesa do país contra o inimigo externo, serviços públicos
diplomáticos, dos trabalhos de pesquisa científica, de iluminação pública, de
saneamento.”. São serviços gerais, indivisíveis e custeados pelo pagamento de
impostos.
Consoante Maria
Sylvia Zanella Di Pietro (2017, p. 148), os serviços públicos uti singuli são “aqueles que têm por
finalidade a satisfação individual e direta das necessidades dos cidadãos”,
enquadrando-se nessa categoria alguns dos serviços públicos comerciais e
industriais do mercado, como energia elétrica, água, transporte e também os
serviços públicos sociais, como saúde e educação. São serviços específicos, mensuráveis,
divisíveis, custeados mediante taxa ou tarifa.
A jurisprudência
pátria também faz essa diferenciação.[27] Em consonância com o entendimento
jurisprudencial prevalecente no STJ, a aplicação do CDC somente poderá ocorrer em
relação aos serviços uti singuli,
remunerados por preço público (tarifa), como é o caso do serviço de
fornecimento de energia elétrica.
O princípio da continuidade dos serviços públicos, como do próprio nome se extrai, assegura que estes sejam prestados de maneira ininterrupta. Todavia, há serviços que, por natureza, são prestados em determinados horários e em outros não, como o serviço de iluminação pública (que não costuma ser fornecido de dia, mas apenas à noite), sem que isso acarrete vulneração ao princípio da continuidade, conforme leciona Luis José Béjar Rivera (2016, p. 64). Limitações de horário compatíveis com a natureza dos serviços também são admissíveis, como, por exemplo, no serviço público de metrô, que costuma não ser prestado em determinados períodos noturnos em que o fluxo de passageiros diminui sensivelmente.
O art. 22 do CDC, como visto, prescreve que os serviços públicos essenciais sejam contínuos, sem, contudo, abrir exceções. O art. 4º da Lei 13.460/2017 (“Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos”) consagra o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos, sem restringi-lo aos serviços essenciais e sem fazer ressalva alguma.[28] A seu turno, a Lei 8.987/95, no § 3º do artigo 6º[29], prevê duas hipóteses em que poderá haver a interrupção dos serviços públicos sem ofensa ao princípio da continuidade: por imperativos de ordem técnica (e.g., necessidade de reparo na rede elétrica) ou por inadimplemento.[30]
Desse modo, questiona-se: ante o inadimplemento do consumidor, o fornecimento de energia elétrica poderá ser interrompido em qualquer situação? É o que será visto a seguir.
O serviço público
de fornecimento de energia elétrica é tido como serviço uti singuli, de tal maneira que, conforme exposto anteriormente, é
plenamente possível a aplicação do CDC aos seus usuários, ao menos naquilo em
que não colidir com a legislação específica de regência.
A incidência do
CDC franqueia a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII), a
restituição em dobro de valores cobrados de má-fé pela concessionária (art. 42,
parágrafo único), impede a exposição do consumidor inadimplente a ridículo ou a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça (art. 42, caput), etc.
Todavia, a aplicação
do CDC não é integral, visto que há limites inerentes à própria natureza do
serviço público e ao regime jurídico público, como, v.g., a forma de composição da tarifa, em que há possibilidade de
cobrança de valores diferenciados de tarifas em função do tipo de consumidores,
da renda por eles auferida, etc. Há consumidores de baixa renda que pagam
tarifas mais reduzidas de energia elétrica (tarifa social), subsidiadas por
meio de tarifas mais elevadas cobradas de outros consumidores (subsídio cruzado
ou interno).
A falta de
correspondência exata entre os valores cobrados e o valor da utilidade
individualmente fruída pelo consumidor seria inadmissível à luz da
principiologia e dos arts. 39, I e V, e 51, IV, do CDC, mas plenamente
justificável em razão da solidariedade social que preside a prestação de
serviços públicos.[31] É difícil imaginar, por exemplo, ao menos
no atual estádio evolutivo do direito do consumidor, que uma loja fixasse uma
tabela de valores diferenciados para venda do mesmo produto em função da renda
do comprador.
Portanto, os arts.
39, I e V, e 51, IV, do CDC teriam de passar por uma interpretação restritiva
do seu âmbito de proteção para serem conciliados com as normas de direito
público que regem a prestação de serviços públicos e com a natureza mesma do
preço público (tarifa). Assim fez o STJ ao editar as súmulas 356 e 407,
legitimando a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia e a
cobrança da tarifa de água, fixada de acordo com as categorias de usuários e as
faixas de consumo.
No caso da tarifa
básica de assinatura de telefonia, por exemplo, um dos fundamentos invocados em
alguns julgados que ensejaram a súmula 356 foi o de que o art. 39, I, do CDC não
estaria sendo vulnerado, porquanto o condicionamento a um limite quantitativo
mínimo só seria vedado se fosse “sem justa causa”, conforme referido no art.
39, I, do CDC (“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre
outras práticas abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de
serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa,
a limites quantitativos.”) Não há negar, porém, que a interpretação dada pelo
STJ ao conceito de “justa causa” foi extraída não dos princípios inspiradores
do direito consumerista, mas sim a partir de normas de direito público (em
especial, o art. 13 da Lei 8.987/95), pautadas pela lógica da primazia do
interesse público sobre o particular.
Segundo Cláudia
Lima Marques (2019, p. 787-788), embora o CDC seja aplicável aos serviços
públicos prestados por concessionárias, o regime dos contratos com a
administração é especial:
Mesmo se regidos por
leis civis, a relação não perde seu caráter dito de verticalidade, reservando-se à administração faculdades que quebram
o equilíbrio do contrato. Se as normas do Código de Defesa do Consumidor
poderão reequilibrar, na prática, esta relação, é uma pergunta difícil de
responder.
O ponto mais
controvertido a propósito da aplicação do CDC aos usuários de energia elétrica diz
com a possibilidade de interrupção do fornecimento do serviço por falta de
pagamento. Revela-se oportuno verificar como o STF e o STJ têm buscado
harmonizar, na prática, a aplicação de normas do CDC com as normas de direito
público nessa ambiência.
Em meio à crise
energética, ocorrida no início dos anos 2000, foi editada a Medida Provisória
de nº 2.152-2, a qual tinha como objetivos criar a Câmara de Gestão da Crise de
Energia Elétrica-GCE, como também apresentar e implantar medidas para
compatibilizar a crise hidrológica e o fornecimento de energia elétrica[32]. Desse modo, foram estabelecidas diversas
medidas de racionamento de energia elétrica, como, por exemplo, o
estabelecimento de metas de consumo de energia para os consumidores e
possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica, caso o limite
fixado fosse ultrapassado.
Assim, o então
Presidente da República, por meio do Advogado Geral da União, ajuizou a Ação
Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 9 em ordem a evitar controvérsias
judiciais acerca da constitucionalidade dos arts. 14 a 18 da MP nº 2.152-2.
O Relator,
Ministro Néri da Silveira, votou pela inconstitucionalidade da Medida
Provisória.[33] No entanto, seu voto ficou vencido,
julgando-se procedente o pedido da ADC 9 para declarar a constitucionalidade
dos artigos 14, 15, 16, 17 e 18 da MP nº 2.152-2.[34]
Dessa maneira,
decidiu o STF pela constitucionalidade da suspensão do fornecimento de energia
elétrica, desde que precedida de notificação prévia e que não se curasse de um
caso excepcional.
Ademais, no
julgamento da ADI 5.961 (Relator para o acórdão: Min. Marco Aurélio), em
19.12.2018, o Plenário do STF declarou a constitucionalidade de lei do Paraná
que obstava à interrupção do fornecimento residencial de energia elétrica e
água por inadimplemento “às sextas-feiras, sábados, domingos, feriados e no
último dia útil anterior a feriado”, reconhecendo que a matéria concerne a
direito do consumidor, sujeitando-se, portanto, à competência legislativa comum
concorrente (CF/88, art. 24, V e VIII). A lei paranaense ampliou a proteção
conferida ao consumidor na Resolução Normativa n. 414/2010 da ANEEL, que
permitia o corte em qualquer dia útil.[35]
Por sua vez, nos
termos da jurisprudência dominante no STJ, a interrupção do fornecimento de
energia elétrica poderá ocorrer, desde que observados alguns requisitos.
O primeiro deles
é a prévia notificação de corte do fornecimento de energia elétrica em virtude
de inadimplemento, exigida no art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987/95.[36] Esse requisito legal é amplamente
corroborado pela jurisprudência do STJ.
O segundo
requisito é a essencialidade do serviço de energia elétrica. Esse é um tópico
sensível, uma vez que muitos estimam que a energia elétrica é essencial para a
vida de qualquer pessoa. A PEC n.º 44/2017, em tramitação no Congresso, visa a
incluir o acesso à energia elétrica no rol de direitos sociais contemplados no
art. 6º da CF/88.
De acordo com
Mário Aguiar Moura (1992, p. 17), os “serviços públicos essenciais são todos os
que se tornam indispensáveis para a conservação, preservação da vida, saúde,
higiene, educação e trabalho das pessoas”. O autor assinala ainda que serviços
como o fornecimento de água e de eletricidade são essenciais para a vida
moderna. De fato, a própria noção de mínimo existencial condigno e de dignidade
da pessoa humana tem-se alargado na pós-modernidade.[37]
Contudo, a noção
de essencialidade empregada pelo STJ para efeito de interrupção do serviço em
caso de inadimplência é mais restrita. Assim, se a interrupção for capaz de
prejudicar a saúde ou a integridade física do consumidor inadimplente, não será
legítima.[38] É o caso dos eletrodependentes.[39] Ausentes tais situações excepcionais, o
corte é juridicamente autorizado.[40]-[41].
No que respeita
aos consumidores de energia elétrica que prestam “serviço público ou essencial
à população”, o art. 17 da Lei 9.427/96 não interdita o corte, exigindo apenas
uma comunicação prévia ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual,
que deverão envidar “providências administrativas para preservar a população
dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia elétrica”, sem embargo das
“ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida”.[42]
No entanto,
reconhecendo embora a possibilidade de corte quando se trata de inadimplência
de pessoa de direito público (ou de pessoa jurídica privada prestadora de
serviço público), a jurisprudência do STJ não abona o corte de energia elétrica
de maneira irrestrita, impedindo-o em unidades mais sensíveis. Assim, não
chancela a interrupção em desfavor de hospitais, escolas, mercados municipais,
delegacias, etc., em vista do interesse da coletividade atingida pela medida.[43] Destarte, a abrangência do corte deve ser
circunscrita para não embaraçar a atividade desenvolvida em unidades
consumidoras havidas como críticas.[44]
De outra parte,
outro requisito imprescindível para o corte é a recentidade da dívida. Conforme
decidiu a Primeira Seção do STJ em recurso representativo de controvérsia (Tema
699), débitos pretéritos, assim considerados aqueles vencidos há mais de 90
(noventa) dias, não justificam a interrupção do fornecimento de energia
elétrica, cabendo à concessionária cobrar tais débitos pelas vias ordinárias.
Eis o teor da tese firmada:
Na hipótese de débito estrito de recuperação de consumo efetivo por fraude no aparelho medidor atribuída ao consumidor, desde que apurado em observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, é possível o corte administrativo do fornecimento do serviço de energia elétrica, mediante prévio aviso ao consumidor, pelo inadimplemento do consumo recuperado correspondente ao período de 90 (noventa) dias anterior à constatação da fraude, contanto que executado o corte em até 90 (noventa) dias após o vencimento do débito, sem prejuízo do direito de a concessionária utilizar os meios judiciais ordinários de cobrança da dívida, inclusive antecedente aos mencionados 90 (noventa) dias de retroação. (REsp 1412433/RS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 28/09/2018).
Conquanto aluda
especificamente à hipótese de débito apurado após comprovação de fraude
no aparelho medidor atribuída ao consumidor, a mesma rationale se estende
a débitos pretéritos decorrentes de simples mora do usuário-consumidor,
consoante se infere do próprio julgado representativo.
É bem de ver,
outrossim, que a jurisprudência do STJ proíbe o corte quando a fraude no
medidor for aferida unilateralmente pela concessionária, sem possibilitar o
exercício do contraditório e da ampla defesa ao consumidor.
O prazo de 90
(noventa) dias foi fixado com esteio no princípio da razoabilidade e à
consideração de que “incumbe às concessionárias o dever não só de fornecer o serviço,
mas também de fiscalizar adequada e periodicamente o sistema de controle de
consumo”, somente se justificando a suspensão do fornecimento como “instrumento
de coação extrajudicial” quanto a débitos recentes, inseridos nesse limite
temporal.[45]
Para além disso,
há acórdãos que emprestam valor ao porte econômico do consumidor e à natureza
da atividade por ele desenvolvida. No REsp 684.442, invocou-se o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana para dispensar tratamento
diferenciado a pessoa natural que padecia de miserabilidade em comparação com
empresas portentosas inadimplentes.[46]
No REsp 771.853,
enfatizou-se o intuito de lucro do consumidor. No caso, um grande hospital
privado ajuizara ação requerendo o pagamento de danos morais, em virtude do
corte de energia elétrica. O pedido foi julgado improcedente, uma vez que a
interrupção do fornecimento de energia elétrica fora regular e que o hospital particular
funcionava “como empresa, com a finalidade de auferir lucros, embutindo nos
preços cobrados o valor de seus custos, inclusive de energia elétrica”, detendo
uma dívida de elevada monta.[47]
Assim, à sombra
da jurisprudência do STJ, a solução dependerá de cada caso concreto, tendo como
requisitos imprescindíveis a notificação prévia ao consumidor-usuário e a
recentidade da dívida, e ponderando-se, principalmente, o grau de
essencialidade do serviço público e o porte econômico do consumidor.
A análise desses
julgados evidencia que, mesmo diante de uma norma específica na legislação
administrativa de regência a possibilitar a interrupção do fornecimento de
energia elétrica em caso de inadimplemento, a jurisprudência do STJ e do STF
tem imposto algumas mitigações quando de sua aplicação concreta.
Há um
reconhecimento, ainda que implícito, da insuficiência dos critérios
tradicionais de solução de antinomias em alguns casos-limite (hard cases), a exigir um “diálogo entre
as fontes” legais (legislação administrativa e consumerista) e constitucionais,
na linha proposta por Erik Jayme e Cláudia Lima Marques.[48]
Assim, por
exemplo, a norma legal autorizativa do corte de energia elétrica por
inadimplemento (Lei 8.987/95, art. 6.º § 3.º, II), após submetida a uma
filtragem constitucional em face dos princípios da dignidade da pessoa humana,
da proporcionalidade e da razoabilidade, e levando em consideração a
necessidade de proteção aos mais vulneráveis, não é efetivamente aplicada no
caso dos eletrodependentes, a fim de preservar a integridade física e a saúde
dessa espécie de consumidores-usuários especialmente vulneráveis.
Portanto, embora
sem mencionar explicitamente a teoria do diálogo das fontes, a jurisprudência
do STJ e do STF alusiva ao corte de energia por inadimplemento do usuário vem,
em alguma medida, adotando-a na prática.
A aplicabilidade
do CDC aos serviços públicos insere-se no fenômeno da aproximação do direito público
com o direito privado, ou seja, da privatização do direito público e da
publicização do direito privado.
Em que pesem os
dissensos doutrinários e jurisprudenciais, o art. 1º, § 2º, II, da Lei 13.460/2017
(alcunhada de “Código de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos”), ao
prescrever que “a aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento
do disposto […] na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada
relação de consumo”, veio a chancelar a aplicabilidade do CDC aos usuários de
serviços públicos quando configurada relação de consumo.
À luz dos
conceitos subministrados pelo CDC, é perfeitamente possível a aplicação deste aos
serviços públicos uti singuli, remunerados
por tarifa (preço público), caracterizados pela divisibilidade e possibilidade
de identificação do consumidor, dentre os quais figura o serviço de
fornecimento de energia elétrica prestado por concessionárias.
Portanto, em face
da relação de consumo entre a concessionária e o usuário, revela-se aplicável o
CDC, no em que não conflitar com a legislação administrativa específica, com as
consequências daí derivantes (possibilidade de inversão do ônus da prova,
restituição em dobro de valores cobrados de má-fé pela concessionária, etc.)
No que respeita à
interrupção do serviço de energia elétrica por inadimplemento do usuário, há
normas específicas na legislação administrativa de regência (Lei 8.987/95, art.
6.º § 3.º, II, e Lei 9.427/96, art. 17) a permitir o corte, cuja aplicação,
todavia, vem sendo temperada pela jurisprudência do STJ e do STF, levando em
consideração, precipuamente, a indispensabilidade do aviso prévio, o grau de
essencialidade do serviço para o consumidor e para a coletividade, a atualidade
da dívida e o porte econômico do consumidor.
O emprego desses
critérios mitigadores evidencia que a jurisprudência, ainda que sem aludir
expressamente à teoria do diálogo das fontes, tem promovido uma filtragem
constitucional da legislação aplicável ao corte por inadimplemento do
usuário-consumidor, empreendendo, na prática, um diálogo entre as fontes legais
administrativas e consumeristas à luz da Constituição, especialmente em atenção
à dignidade da pessoa humana e à proteção dos mais vulneráveis.
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Serviços públicos e Direito do
Consumidor: possibilidades e limites da aplicação do CDC. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE),
Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 15, Agosto/Setembro/Outubro,
2008b. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae. Acesso em: 26
mar. 2019.
BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Cláudia Lima. A teoria do diálogo das fontes e seu impacto no Brasil: uma homenagem a Erik Jayme. Revista de Direito do Consumidor, v. 115, p. 21-40, jan/fev 2018.
BRAGA NETTO, Felipe. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1027692/SP. Rel. Min.
Luis Felipe Salomão. Órgão julgador: Quarta turma. Data do julgamento: 04/05/2017. Data da publicação: DJe 09/05/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1497585/ES. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 04/12/2018. Data da publicação: DJe 12/12/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 543.404/RJ, Relator: Min. Og Fernandes. Órgão
julgador: Segunda turma. Data do julgamento: 12/02/2015. Data da publicação:
DJe 27/02/2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EREsp 1.354.348/RS. Rel. Min.
Moura Ribeiro. Órgão julgador: Segunda
Seção. Data do julgamento: 25/11/2015.
Data da publicação: DJe 27/11/2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.245.812/RS. Relator: Ministro Herman Benjamin. Órgão
julgador: Segunda turma. Data do julgamento: 21/06/2011. Data da publicação:
DJe 01/09/2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 771.853/MT. Relator: Eliana Calmon. Órgão Julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 02/02/2010. Data da publicação: DJe 10/02/2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 840.864/SP. Relator: Ministra Eliana Calmon. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 17/04/2007, Data da publicação: DJ 30/04/2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.412.433/RS. Relator: Min. Herman Benjamin. Órgão
julgador: Primeira Seção. Data
do julgamento: 25/04/2018. Data
da publicação: DJe 28/09/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1316921/RJ. Rel Relatora: Min.
Nancy Andrighi. Órgão julgador:
Terceira turma. Data do julgamento: 26/06/2012. Data da publicação:
DJe 29/06/2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1599042/SP. Rel. Min. Luis
Felipe Salomão. Órgão julgador:
Quarta turma. Data do julgamento:
14/03/2017, Data da publicação: DJe 09/05/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1678429/SP. Relatora: Min. Nancy
Andrighi. Órgão julgador: Terceira
turma. Data do julgamento: 28/08/2018. Data da publicação: DJe 17/09/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 684.442/RS. Rel. p/ Acórdão: Min. Luiz Fux.
Órgão julgador: Primeira turma. Data
do julgamento: 03/02/2005. Data
da publicação: DJ 05/09/2005.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 913.711/SP. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 19/08/2008. Data da publicação: DJe 16/09/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade 9. Relatora para o acórdão: Min. Ellen Gracie. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do julgamento: 13/12/2001. Data da publicação: 23/04/2004.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
DE LUCCA, Newton. Direito
do consumidor: teoria geral da relação jurídica de consumo. 2. ed. São
Paulo: Quartier Latin, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Do direito privado na administração pública. São Paulo: Atlas, 1989.
FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro: possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: JusPodivm, 2018.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. São Paulo: Atlas, 2010.
FRANÇA. Code de la consommation. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr. Acesso em: 25 fev. 2019.
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de defesa do consumidor comentado. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.
HACHEM, Daniel Wunder; FARIA, Luzardo. A proteção jurídica do usuário de serviço público entre o Direito Administrativo e o Código de Defesa do Consumidor: a necessidade de uma filtragem constitucional. Revista de Direito Brasileira. São Paulo, v. 15, n. 6, p. 311 - 336 , set./dez. 2016, p. 313.
ITÁLIA. Codice del consumo. Disponível em: https://www.altalex.com/documents/codici-altalex/2014/03/19/codice-del-consumo. Acesso em: 25 fev. 2019.
KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
LAZARI, Rafael José Nadim de; RAZABONI JUNIOR, Ricardo Bispo. Revisitando a interrupção dos serviços públicos face ao inadimplemento do usufruidor e o princípio da continuidade na prestação dos serviços públicos. BDA – Boletim de Direito Administrativo, São Paulo: NDJ, ano 33, n. 8, p. 712-721, ago. 2017.
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: RT, 2019.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço público e concessão de serviço público. São Paulo: Malheiros, 2017.
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2013.
MOURA, Mário Aguiar. O poder público como fornecedor perante o Código de Defesa do Consumidor. Repertório de Jurisprudência IOB. São Paulo. 2ª quinzena de abril, 1992.
NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Método, 2019.
RIVERA, Luis José Béjar. Uma aproximação à teoria dos serviços públicos. São Paulo: Editora Contracorrente, 2016.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Método, 2013.
Recebido em: 29 mar. 2019.
Aceito em: 7 jun. 2019.
[1] “Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou
utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único.
Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis,
que haja intervindo nas relações de consumo.”
[2] “Art. 17. Para
os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do
evento.”
[3] “Art. 29. Para
os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as
pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.”
[4] “O consumidor, abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão
somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-se basicamente na
acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou
coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem,
a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços.” (FILOMENO,
2010, p. 27).
[5] “CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. NÃO APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. 1. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Sociedade
empresária que não ostenta condição de destinatária final (critério finalista),
inexistindo, outrossim, elementos nos autos que possibilitem a análise de sua
vulnerabilidade in concreto (finalismo aprofundado). Precedentes. Incidência da
Súmula 83/STJ.” (AgInt no AREsp 1027692/SP, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 04/05/2017, DJe 09/05/2017) “Logo, a relação de
consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo
(consumidor intermediário). Inaplicabilidade das regras protetivas do Código de
Defesa do Consumidor. 4. Em caso de empréstimo bancário feito por empresário ou
pessoa jurídica com a finalidade de financiar ações e estratégias empresariais,
o empréstimo possui natureza de insumo, não sendo destinatário final e,
portanto, não se configurando a relação de consumo.” (REsp 1599042/SP, Rel.
Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 14/03/2017, DJe
09/05/2017)
[6] Nessa linha, considerando que até mesmo a União Federal pode ser havida
como vulnerável na relação jurídica, a justificar a incidência do CDC: GARCIA,
2019, p. 40.
[7] “ENERGIA ELÉTRICA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE ENQUADRAMENTO DE
INDÚSTRIAS COMO CONSUMIDORES. DETERMINAÇÃO DE CONTINUIDADE DE JULGAMENTO DA
APELAÇÃO NA ORIGEM. 1. O presente recurso decorre de ação coletiva proposta
pela Associação Brasileira de Consumidores de Água e Energia Elétrica -
ASSOBRAEE em face da ESCELSA - Espírito Santo Centrais Elétricas S.A.,
objetivando a declaração de nulidade das Portarias DNAEE 38/1986 e 45/1986,
bem assim a restituição dos valores pagos em decorrência da majoração da tarifa
de energia no período do congelamento de preços, considerada ilegal. [...] 3.
Merece reparos o acórdão recorrido, pois, conforme decidiu a Primeira Turma em caso
análogo envolvendo a mesma associação, "as pessoas jurídicas industriais,
únicas afetadas pelas portarias impugnadas, podem ser enquadradas como
consumidores e que, como bem assentou a instância de origem, é 'inequívoca a
vulnerabilidade dos usuários industriais de energia elétrica do Estado do
Sergipe' frente às concessionárias de tal serviço (fls. 600), não há que se
falar em ilegitimidade da Associação dos Consumidores para representá-los em
juízo" (Resp 1321501/SE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe de
23/04/2014). 4. Assim, devem os autos retornar ao TJ/ES para que seja dado
prosseguimento ao julgamento da apelação, ressalvando-se novo exame da
legitimidade ativa da associação no que importa à vulnerabilidade das pessoas
jurídicas industriais em relação ao fornecedor do serviço de energia elétrica
demandado.” (AgInt no REsp 1497585/ES. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Órgão
julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 04/12/2018. Data da publicação: DJe 12/12/2018.) “ENERGIA
ELÉTRICA. AÇÃO REVISIONAL AJUIZADA POR MUNICÍPIO PERANTE COMARCA QUE O
JURISDICIONA. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CARACTERIZADA. 1. Para se enquadrar o
Município no art. 2º do CDC, deve-se mitigar o conceito finalista de consumidor
nos casos de vulnerabilidade, tal como ocorre com as pessoas jurídicas de
direito privado. 2. Pretende-se revisar o critério de quantificação da energia
fornecida a título de iluminação pública à cidade. Aqui, o Município não é,
propriamente, o destinatário final do serviço, bem como não se extrai do
acórdão recorrido uma situação de vulnerabilidade por parte do ente público.”
(REsp 913.711/SP. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Órgão julgador: Segunda
Turma. Data do julgamento: 19/08/2008.
Data da publicação: DJe 16/09/2008)
[8] “Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de
energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à
população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de
quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.”
[9] Censurando essas inconsistências, cf. MIRAGEM, 2013, p. 174-175.
[10] “Essa
maior abrangência do conceito jurídico é plenamente justificável. A legislação
consumerista não se destina, como é óbvio, a proteger apenas quem praticou
diretamente o ato de consumo, mas sim a preservar os interesses de todos
aqueles que, de alguma forma, hajam intervindo na relação de consumo.” (DE LUCCA, 2008, p. 124).
[11] À guisa de exemplo, confira-se: “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CONTAMINAÇÃO DE
SOLO E ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 17 DO CDC. BYSTANDER. [...] 1. Ação de indenização
movida contra empresa concessionária de energia elétrica que contaminou solo e
águas subterrâneas na região onde o autor reside, em razão dos elementos
químicos utilizados no tratamento de madeira para construção de postes. 2.
Autor que se enquadra na modalidade de consumidor por equiparação ou ‘bystander’, nos termos do art. 17 do
CDC. 3. Prazo prescricional de cinco anos consoante disposto no art. 27 do CDC.
4. O acórdão embargado se encontra em harmonia com a jurisprudência desta Corte
[...].” (AgRg nos EREsp 1354348/RS, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, SEGUNDA SEÇÃO,
julgado em 25/11/2015, DJe 27/11/2015) Na mesma linha: “[...] 7. Na
hipótese, o terceiro na superfície, que suporta o prejuízo causado diretamente
por aeronave em voo ou manobra, ou por coisa ou pessoa dela caída ou projetada,
equipara-se a consumidor (bystander),
na medida em que, embora não tenha utilizado o serviço como destinatário final,
foi vítima do evento danoso. 8. Assim caracterizada a relação de consumo, o
prazo prescricional a ser observado é o previsto no art. 27 do CDC: 5 anos.”
(REsp 1678429/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
28/08/2018, DJe 17/09/2018).
[12] “Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de
produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”
[13] “Art. 3º [...] §1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou
imaterial. §2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,
mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito
e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”
[14] “CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC.
GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE PESQUISA. FILTRAGEM PRÉVIA DAS
BUSCAS. DESNECESSIDADE. RESTRIÇÃO DOS RESULTADOS. NÃO-CABIMENTO. CONTEÚDO
PÚBLICO. DIREITO À INFORMAÇÃO. 1. A exploração comercial da Internet sujeita as
relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço
prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a
relação de consumo, pois o termo ‘mediante remuneração’, contido no art. 3º, §
2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho
indireto do fornecedor. 3. O provedor de pesquisa é uma espécie do gênero
provedor de conteúdo, pois não inclui, hospeda, organiza ou de qualquer outra
forma gerencia as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados,
se limitando a indicar links onde podem ser encontrados os termos ou expressões
de busca fornecidos pelo próprio usuário. [...]” (REsp 1316921/RJ, Rel. Min.
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012).
[15] “Apesar de a lei mencionar expressamente a remuneração, dando um caráter
oneroso ao negócio, admite-se que o prestador tenha vantagens indiretas, sem
que isso prejudique a qualificação da relação consumerista. Como primeiro
exemplo, invoca-se o caso do estacionamento gratuito em lojas, shopping centers, supermercados e afins,
respondendo a empresa que é beneficiada pelo serviço, que serve como atrativo
aos consumidores.” (TARTUCE, NEVES, 2013, p. 56).
[16] CF/88, art. 175: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos.”. Nessa senda, Daniel Wunder
Hachem e Luzardo Faria (2016, p. 313) expõem: “O Direito positivo brasileiro
não define textualmente o que significa serviço público. A explicação sobre o
significado dessa atividade desenvolvida pelo Estado é elaborada pela doutrina,
e pode ser realizada a partir da conjugação de seus aspectos materiais (traços
intrínsecos à própria atividade) e jurídicos (regime de princípios e regras
sobre ela incidentes).”
[17] “Art. 2º Para os fins desta Lei, consideram-se: [...] II - serviço
público - atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou
serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública”.
[18] “Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas para participação, proteção
e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos prestados direta ou
indiretamente pela administração pública.”
[19] “Art. 1º. [...] § 3º Aplica-se subsidiariamente o disposto nesta Lei aos
serviços públicos prestados por particular.”
[20] “Serviço público é a atividade material que o Estado assume como
pertinente a seus deveres em face da coletividade para satisfação de
necessidades ou utilidades públicas singularmente fruíveis pelos administrados
cujo desempenho entende que deva se efetuar sob a égide de um regime jurídico
outorgador de prerrogativas capazes de assegurar a preponderância do interesse
residente no serviço e de imposições necessárias para protegê-lo contra
condutas comissivas ou omissivas de terceiros ou dele próprio gravosas a
direitos ou interesses dos administrados em geral e dos usuários do serviço em
particular”. (MELLO, 2017, p. 81).
[21] “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o
atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade,
saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios: [...] VII - racionalização e melhoria dos
serviços públicos;”
[22] “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] X - a adequada e
eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”
[23] “Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a
fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais,
contínuos.”
[24] Confira-se, v.g., o disposto
no art. 121-11: « Article L121-11. Est interdit le fait de refuser à un consommateur la vente d'un produit ou
la prestation d'un service, sauf motif légitime ; Est également interdit le
fait de subordonner la vente d'un produit à l'achat d'une quantité imposée ou à
l'achat concomitant d'un autre produit ou d'un autre service ainsi que de
subordonner la prestation d'un service à celle d'un autre service ou à l'achat
d'un produit dès lors que cette subordination constitue une pratique
commerciale déloyale au sens de l'article L. 121-1. Est également interdit le
fait de subordonner la vente d'un bien ou la fourniture d'un service à la
conclusion d'un contrat d'assurance accessoire au bien ou au service vendu,
sans permettre au consommateur d'acheter le bien ou d'obtenir la fourniture du
service séparément. [...] Les
dispositions du présent article s'appliquent à toutes les activités de
production, de distribution et de services, y compris celles qui sont le fait
de personnes publiques, notamment dans le cadre de conventions de délégation de
service public. » (Grifou-se.)
Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr. Acesso em: 25 fev. 2019.
[25] “Art. 2. [...] 2. Ai consumatori ed agli utenti sono riconosciuti come
fondamentali i diritti: [...] g) all'erogazione di servizi pubblici secondo
standard di qualità e di efficienza.” Disponível em:
https://www.altalex.com/documents/codici-altalex/2014/03/19/codice-del-consumo.
Acesso em: 25 fev. 2019.
[26] “Art. 101. 1. Lo Stato e le regioni, nell'ambito delle rispettive
competenze, garantiscono i diritti degli utenti dei servizi pubblici attraverso
la concreta e corretta attuazione dei principi e dei criteri previsti della
normativa vigente in materia. 2. Il rapporto di utenza deve svolgersi nel
rispetto di standard di qualità predeterminati e adeguatamente resi pubblici.
3. Agli utenti è garantita, attraverso forme rappresentative, la partecipazione
alle procedure di definizione e di valutazione degli standard di qualità
previsti dalle leggi. 4. La legge stabilisce per determinati enti erogatori di
servizi pubblici l’obbligo di adottare, attraverso specifici meccanismi di
attuazione diversificati in relazione ai settori, apposite carte dei servizi.”
[27] “ADMINISTRATIVO – SERVIÇO PÚBLICO – CONCEDIDO – ENERGIA ELÉTRICA –
INADIMPLÊNCIA. 1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem
possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos
tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde,
educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados
ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os
serviços de telefone, água e energia elétrica. 2. Os serviços públicos
impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou,
modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela
Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços públicos.
3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo
facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da
taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 4. Os serviços públicos
essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do
serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no
art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95. Exige-se, entretanto, que a interrupção
seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/97, que criou a ANEEL,
idêntica previsão. 5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento,
quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem
causa, repudiado pelo Direito (arts. 42 e 71 do CDC, em interpretação
conjunta).” (REsp 840.864/SP, Rel. Min. ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado
em 17/04/2007, DJ 30/04/2007).
[28] “Art. 4º Os serviços públicos e o atendimento
do usuário serão realizados de forma adequada, observados os princípios da
regularidade, continuidade, efetividade, segurança, atualidade, generalidade,
transparência e cortesia.”
[29] “Art. 6º. [...] § 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço
a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I -
motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, II -
por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”
[30] “Os
usuários, atendidas as condições relativas à prestação do serviço e dentro das
possibilidades normais dele, têm direito ao serviço e ao que foi
legalmente caracterizado como serviço adequado, no referido art. 6º, § 1º. O
concessionário não lhes poderá negar ou interromper a prestação, salvo, é
claro, nas hipóteses previstas nas próprias cláusulas regulamentares. Cumpridas
pelo usuário as exigências estatuídas, o concessionário está constituído na
obrigação de oferecer o serviço de modo contínuo e regular.” (MELLO, 2015, p. 769).
[31] Nesse sentido: OLIVEIRA, 2019, p. 265; ARAGÃO, 2013.
[32] “Art. 1º Fica criada e instalada a Câmara de Gestão da Crise de Energia
Elétrica - GCE com o objetivo de propor e implementar medidas de natureza
emergencial decorrentes da atual situação hidrológica crítica para
compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica, de forma a evitar
interrupções intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia elétrica.”
[33] Vale destacar parte do voto do relator: “Não há, destarte, espaço para
invocar-se, no sistema do art. 5º, XXXII, combinado com o art. 170, V, bem
assim com o art. 175, II e IV, todos da Constituição, legitimidade
constitucional para a suspensão do fornecimento de serviço essencial concedido,
como o de energia elétrica, àqueles usuários, consumidores finais, e, no caso
concreto, tão-só porque, em seu consumo mensal de energia elétrica,
ultrapassaram o número de kwh, pré-estabelecido, com base em plano de
contingenciamento de gasto, em medida provisória que, assim, se entremostra sem
amparo na Constituição e revela evidente caráter punitivo”.
[34] “AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA nº 2.152-2,
DE 1º DE JUNHO DE 2001, E POSTERIORES REEDIÇÕES. ARTIGOS 14 A 18. GESTÃO DA
CRISE DE ENERGIA ELÉTRICA. FIXAÇÃO DE METAS DE CONSUMO E DE UM REGIME ESPECIAL
DE TARIFAÇÃO. 1. O valor arrecadado como tarifa especial ou sobretarifa imposta
ao consumo de energia elétrica acima das metas estabelecidas pela Medida
Provisória em exame será utilizado para custear despesas adicionais, decorrentes
da implementação do próprio plano de racionamento, além de beneficiar os
consumidores mais poupadores, que serão merecedores de bônus. Este acréscimo
não descaracteriza a tarifa como tal, tratando-se de um mecanismo que permite a
continuidade da prestação do serviço, com a captação de recursos que têm como
destinatários os fornecedores/concessionários do serviço. Implementação, em
momento de escassez da oferta de serviço, de política tarifária, por meio de
regras com força de lei, conforme previsto no artigo 175, III da Constituição
Federal. 2. Atendimento aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade,
tendo em vista a preocupação com os direitos dos consumidores em geral, na
adoção de medidas que permitam que todos continuem a utilizar-se,
moderadamente, de uma energia que se apresenta incontestavelmente escassa. 3.
Reconhecimento da necessidade de imposição de medidas como a suspensão do
fornecimento de energia elétrica aos consumidores que se mostrarem insensíveis
à necessidade do exercício da solidariedade social mínima, assegurada a
notificação prévia (art. 14, § 4º, II) e a apreciação de casos excepcionais
(art. 15, § 5º). 4. Ação declaratória de constitucionalidade cujo pedido se
julga procedente.” (Ação Declaratória de Constitucionalidade 9. Rel. p/
acórdão Min. Ellen Gracie. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do julgamento:
13/12/2001. Data da publicação: 23/04/2004.)
[35] “Art. 172. [...] §5º A distribuidora deve adotar o horário de 8h às 18h,
em dias úteis, para a execução da suspensão do fornecimento da unidade
consumidora.”
[36] “Art. 6º. [...] §3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a
sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I -
motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, II -
por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”
[37] “O próprio mínimo existencial deve ser definido ao abrigo da
proporcionalidade e da razoabilidade, devendo ser examinado à luz do respectivo
contexto histórico, cultural e socioeconômico. Com efeito, a própria noção de
dignidade da pessoa humana tem variado ao longo do tempo. Saneamento básico,
fornecimento de energia elétrica e de gás, televisão, celulares, metrô,
remédios e tratamentos médicos essenciais acessíveis às camadas consideradas
pobres na atualidade fazem com que estas tenham um nível de conforto e uma
expectativa de vida superiores aos de muitos reis da antiguidade e de alguns
séculos atrás. Seria razoável afirmar que os reis de antanho não tinham
qualidade de vida, não tinham uma vida digna? À sombra do contexto
histórico-cultural em que inseridos, viviam com toda dignidade possível, pois
desfrutavam de tudo aquilo que estava ao alcance daquela sociedade.”
(FERNANDES, 2018, p. 192).
[38] “FORNECIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA. INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO DE
ANTIGO PROPRIETÁRIO. PORTADORA DO VÍRUS HIV. NECESSIDADE DE REFRIGERAÇÃO DOS
MEDICAMENTOS. DIREITO À SAÚDE. [...] 2. A interrupção da prestação, ainda que decorrente
de inadimplemento, só é legítima se não afetar o direito à saúde e à
integridade física do usuário. Seria inversão da ordem constitucional conferir
maior proteção ao direito de crédito da concessionária que aos direitos
fundamentais à saúde e à integridade física do consumidor. Precedente do STJ.”
(REsp 1245812/RS. Relator: Min. Herman Benjamin. Órgão julgador: Segunda
turma. Data do julgamento: 21/06/2011. Data da publicação: DJe 01/09/2011).
[39] A Resolução Normativa n.
414/2010 da ANEEL, contudo, permite a descontinuação do serviço de
energia elétrica ainda que haja eletrodependentes na unidade consumidora,
exigindo apenas que a notificação prévia seja escrita, específica e com entrega
comprovada: “Art. 173. Para a notificação de suspensão do fornecimento à
unidade consumidora, prevista na seção III deste Capítulo, a distribuidora deve
observar as seguintes condições: [...] § 2º A notificação a consumidor titular
de unidade consumidora, devidamente cadastrada junto à distribuidora, onde
existam pessoas usuárias de equipamentos de autonomia limitada, vitais à
preservação da vida humana e dependentes de energia elétrica, deve ser feita de
forma escrita, específica e com entrega comprovada”.
[40] “6. Com relação a débitos de consumo regular de energia elétrica, em que
ocorre simples mora do consumidor, a jurisprudência do STJ está sedimentada no
sentido de que é lícito o corte administrativo do serviço, se houver aviso
prévio da suspensão.” (REsp 1412433/RS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA
SEÇÃO, julgado em 25/04/2018, DJe 28/09/2018).
[41] Na mesma linha: “Em havendo o
caráter de não essencialidade do serviço singular, e desde que haja prévio
aviso (visa-se eliminar a surpresa bem como eventuais constrangimentos daquele
que se viu sem o serviço, além de possibilitá-lo um momento derradeiro para quitar
suas obrigações), não há por que deslegitimar a adoção de medidas
interruptivas.” (LAZARI; RAZABONI JUNIOR, 2017, p. 716).
[42] “Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de
energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à
população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de
quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual. § 1º O Poder
Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para
preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia
elétrica, inclusive dando publicidade à contingência, sem prejuízo das ações de
responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida. (Redação dada
pela Lei nº 10.438, de 2002)”.
[43] “SUSPENSÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. PESSOA JURÍDICA DE
DIREITO PÚBLICO. INTERESSE DA COLETIVIDADE. PRESERVAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS.
[...] 3. ‘A suspensão do serviço de energia elétrica, por empresa
concessionária, em razão de inadimplemento de unidades públicas essenciais -
hospitais; pronto-socorros; escolas; creches; fontes de abastecimento d'água e
iluminação pública; e serviços de segurança pública -, como forma de compelir o
usuário ao pagamento de tarifa ou multa, despreza o interesse da coletividade’
(EREsp 845.982/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em
24/6/2009, DJe 3/8/2009). [...]” (AgRg no AREsp 543.404/RJ, Rel. Min. OG
FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/02/2015, DJe 27/02/2015).
[44] O art. 11 da Resolução Normativa n. 414/2010 da ANEEL enumera os
serviços ou atividades essenciais “cuja interrupção coloque em perigo iminente
a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
[45] A Resolução Normativa n. 414/2010 da ANEEL já dispunha: “Art. 172. [...]
§2º É vedada a suspensão do fornecimento após o decurso do prazo de 90
(noventa) dias, contado da data da fatura vencida e não paga, salvo comprovado
impedimento da sua execução por determinação judicial ou outro motivo
justificável, ficando suspensa a contagem pelo período do impedimento”.
[46] “5.
Hodiernamente, inviabiliza-se a aplicação da legislação infraconstitucional
impermeável aos princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da
dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, por isso que
inaugura o texto constitucional, que revela o nosso ideário como nação. 6. In
casu, o litígio não gravita em torno de uma empresa que necessita da energia
para insumo, tampouco de pessoas jurídicas portentosas, mas de uma pessoa física
miserável e desempregada, de sorte que a ótica tem que ser outra. Como afirmou
o Ministro Francisco Peçanha Martins noutra ocasião, temos que enunciar o
direito aplicável ao caso concreto, não o direito em tese. Forçoso, distinguir,
em primeiro lugar, o inadimplemento perpetrado por uma pessoa jurídica
portentosa e aquele inerente a uma pessoa física que está vivendo no limite da
sobrevivência biológica. 7. Em segundo lugar, a Lei de Concessões estabelece
que é possível o corte considerado o interesse da coletividade, que significa
interditar o corte de energia de um hospital ou de uma universidade, bem como o
de uma pessoa que não possui condições financeiras para pagar conta de luz de
valor módico, máxime quando a concessionária tem os meios jurídicos legais da
ação de cobrança. A responsabilidade patrimonial no direito brasileiro incide
sobre o patrimônio do devedor e, neste caso, está incidindo sobre a própria
pessoa. 8. Outrossim, é voz corrente que o 'interesse da coletividade'
refere-se aos municípios, às universidades, hospitais, onde se atingem
interesses plurissubjetivos. 9. Destarte, mister analisar que as empresas
concessionárias ressalvam evidentemente um percentual de inadimplemento na sua
avaliação de perdas, e os fatos notórios não dependem de prova (notoria nom egent probationem), por isso
que a empresa recebe mais do que experimenta inadimplementos. 10. Esses fatos
conduzem a conclusão contrária à possibilidade de corte do fornecimento de
serviços essenciais de pessoa física em situação de miserabilidade, em
contrapartida ao corte de pessoa jurídica portentosa, que pode pagar e protela
a prestação da sua obrigação, aproveitando-se dos meios judiciais cabíveis. 10.
Recurso Especial provido, ante a função uniformizadora desta Corte.” (REsp 684.442/RS,
Rel. p/ Acórdão Min. LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/02/2005, DJ
05/09/2005, p. 260).
[47] “ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. HOSPITAL
PARTICULAR INADIMPLENTE. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. POSSIBILIDADE.
DANO MORAL INEXISTENTE. 1. De acordo com a jurisprudência da Primeira Seção não
se admite a suspensão do fornecimento de energia elétrica em hospitais
inadimplentes, diante da supremacia do interesse da coletividade (EREsp
845.982/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 24/06/2009, DJe
03/08/2009). 2. Hipótese diversa nestes autos em que se cuida de
inadimplência de hospital particular, o qual funciona como empresa, com a
finalidade de auferir lucros, embutindo nos preços cobrados o valor de seus
custos, inclusive de energia elétrica. 3. Indenização por dano moral indevida
porque o corte no fornecimento do serviço foi precedido de todas as cautelas
legais, restabelecendo-se o fornecimento após, mesmo com a inadimplência de
elevado valor.” (Recurso Especial 771.853/MT. Relator: Eliana Calmon. Órgão
Julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 02/02/2010. Data da publicação:
DJe 10/02/2010).
[48] “O diálogo das fontes é uma teoria sofisticada para ajudar a decidir –
de forma mais refletida e ponderada, segundo os valores constitucionais – os
casos de conflitos de leis, resolver esses casos usando um novo paradigma, o da
aplicação conjunta e coerente das normas em diálogo, orientada pelos valores da
Constituição Federal, especialmente o de direitos humanos e de proteção dos
vulneráveis. Trata-se de nova concepção da teoria geral, que é muito bem-vinda
e útil, pelo que agradecemos ao mestre Erik Jayme.” (BENJAMIN, MARQUES, 2018,
p. 39).