CONFLITOS DIGITAIS: CIDADANIA E RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DAS LIDES CIBERNÉTICAS

Dirceu Pereira Siqueira

Coordenador e Professor Permanente do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu (Mestrado) em Direito no Centro Universitário de Maringá - PR (UniCesumar); Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra. Doutor (2013) e Mestre (2008) em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino - ITE/​Bauru; Especialista (2006) Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP); Graduado em Direito (2002) pelo Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP); Professor nos cursos de Graduação em Direito do Centro Universitário de Bebedouro (UNIFAFIBE), Centro Universitário Unifeb (UNIFEB) e da Universidade de Araraquara (UNIARA).

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Danilo Henrique Nunes

Mestrando em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Docente do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Unifeb. Advogado.

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RESUMO: A Internet é hoje a mais poderosa ferramenta de comunicação, pesquisa e entretenimento utilizada pela humanidade em uma escala global. Entretanto, o comportamento individual e coletivo das pessoas na internet em muito se diferente da conduta social comum de tais pessoas, o que não significa necessariamente que a internet é tida como “terra de ninguém”, isentando as pessoas de uma conduta adequada nos espaços digitais. Dentro desse contexto emerge o conceito da Cidadania Digital, correspondente ao uso das inovações tecnológicas de modo adequado, estabelecendo uma série de quesitos condizentes com o comportamento dos usuários e o uso em caráter geral da internet e de outras plataformas digitais. O presente artigo científico busca aprofundar conhecimentos acerca da Cidadania Digital, passando por questões jurídicas como os Direitos e Deveres, as lides decorrentes da via digital e as questões envolvendo a responsabilidade civil dos usuários, correlacionando o ordenamento jurídico pátrio e o conceito da cidadania digital.

PALAVRAS-CHAVE: Cidadania Digital. Direitos e Deveres. Lides Cibernéticas. Responsabilidade Civil. Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Digital conflicts: citizenship and civil liability in the field of cyber breach

ABSTRACT: The Internet is today the most powerful communication, research and entertainment tool used by mankind on a global scale. However, the individual and collective behavior of people on the Internet is very different from the common social conduct of such people, which does not necessarily mean that the internet is considered as "no man's land", exempting people from proper conduct in digital spaces . Within this context emerges the concept of Digital Citizenship, corresponding to the use of technological innovations in an appropriate way, establishing a series of requirements that are consistent with the behavior of users and the general use of the Internet and other digital platforms. The present scientific article seeks to deepen knowledge about Digital Citizenship, passing through legal issues such as Rights and Duties, disputes arising from the digital path and issues involving civil liability of users, correlating the legal order of the country and the concept of digital citizenship.

KEYWORDS: Digital Citizenship. Rights and duties. Cybernetic Lids. Civil liability. Brazilian Legal Order.

Introdução

Inegavelmente, a tecnologia transformou de maneira significativa a percepção humana acerca das principais áreas de conhecimento da humanidade na atualidade. Alteraram-se preceitos fundamentais da economia, da política, da educação e até mesmo o modo como as pessoas se comunicam e obtém e disseminam informações. Com o desenvolvimento tecnológico acelerado, a tecnologia passou a integrar no cotidiano humano de forma ímpar e notável, norteando inclusive os processos de compra e venda na contemporaneidade.

Essa integração tecnológica que se tornou emblemática através da popularização dos smartphones, do advento das redes sociais e do uso das mais variadas tecnologias no âmbito cotidiano da pessoa. A internet transformou-se em um mundo digital, que conta com um imenso fluxo de pessoas e informações. A possibilidade de anonimato decorrente do direito à privacidade e à liberdade e outros aspectos correlatos, entretanto, trazem à tona uma série de desafios.

A concepção de que a internet é uma “terra-de-ninguém”, onde não precisam ser respeitadas as leis, direitos e deveres que permeiam o dito ‘mundo real’ vem sendo aos poucos derrubadas. Mesmo com o anonimato, há diversas formas de identificar as pessoas e obriga-las a reparar um determinado dano que fora inferido no meio digital. Os comportamentos inadequados, assim, vêm sendo coibidos na internet, a exemplo do que acontece na vida que ocorre fora dela.

Dentro desse contexto, surge o instituto da cidadania digital, que visa a concretização e o exercício da cidadania nas sociedades digitais, contemplando uma série de normas que norteiam a conduta e o comportamento adequados para os utilizadores dos meios digitais, sobretudo da internet. Essa cidadania digital é um conceito relativamente recente e é abordada seguindo uma série de elementos que a caracterizam como um todo.

O presente artigo científico busca a realização de uma análise acerca da cidadania digital como um todo sob as perspectivas e óticas jurídicas. Para tanto, o artigo em questão será desenvolvido em quatro capítulos distintos, que contribuem para a produção de resultados e conclusões correlacionados a tal fenômeno: o capítulo dois busca a realização de uma apresentação conceitual acerca da cidadania e do cidadão digital, identificando e analisando os nove elementos norteadores idealizados por Ribble (2010); já o capítulo três abrange a cidadania digital sob a perspectiva dos direitos e deveres, contemplando que inevitavelmente, um indivíduo que contraí direitos, irá contrair responsabilidades e deveres, sobretudo no mundo digital; o quarto capítulo parte de questões envolvendo os crimes cibernéticos para aprofundar as lides cibernéticas sob a ótica da cidadania digital; o quinto capítulo abrange a responsabilidade civil (ou seja, a obrigação de reparar dano causado a outrem) como um método de assegurar que a cidadania digital e a cidadania como um todo sejam exercidas de maneira plena.

Para não se ater tão somente a aspectos teóricos, são elaborados ao longo do presente estudo exemplos práticos fictícios que contemplam um melhor entendimento das questões aqui expostas. Esses exemplos são fundamentos a partir da interpretação e da compreensão dos conhecimentos aqui exibidos.

1. Cidadania digital e o cidadão digital: caracterização

Uma vez que há um crescimento em ritmo estrondoso acerca do uso da Internet e de outras tecnologias como os smartphones e tablets, surgiram uma série de novos conceitos: o marketing digital, o ciberespaço, os crimes virtuais, dentre outros. Um tema que vem ganhando grande destaque na atualidade, entretanto, é o conceito de cidadania digital, o qual será aprofundado no presente capítulo.

Neves (2010) aponta que devido à globalização da internet e das tecnologias, uma das tendências sociais da sociedade contemporânea se encontra no individualismo em rede (comunidades dispersas na via digital que ligam os indivíduos, sem atender às limitações físicas do espaço), estabelecendo um novo sistema de relações sociais cujo centro é o indivíduo, que escolhe as redes das quais almeja participar o que pretende com essa escolha. Cidadão digital é um conceito atrelado ao individualismo, segundo a autora, e corresponde vulgarmente a qualquer pessoa que utilize a internet, entretanto, há uma série de outras nuances a serem aprofundadas quando tratamos do cidadão digital.

Nos estudos de Patrocínio (2003) o cidadão digital é trabalhado como não tão somente um indivíduo que detém acesso à internet, mas sim como um ser que participa ativamente, agindo como um sujeito político dentro do ciberespaço. Isso implica que o ‘netcidadão’ é uma figura que forma um novo tipo de relação política, buscando soluções construtivas para os problemas e desafios que emergem e fazendo uso da internet para figurar como um indivíduo que atua em prol de questões importantes.

De acordo com essas concepções, o cidadão digital seria aquele que ‘produz’. Um exemplo claro de cidadão digital é o criador de conteúdo da Wikipedia: o mesmo se torna um colaborador diante da comunidade digital, concedendo informações precisas e conhecimentos necessários para outros indivíduos. Em contrapartida, há uma série de informações falsas e imprecisas na mesma Wikipedia, inseridas nesse portal com o intuito de promover a desinformação, o que não é feito por um cidadão digital.

Segundo Sebastião, Pacheco e Santos (2012) também conceituam a cidadania digital a partir da utilização de ferramentas digitais enquanto que potencializam a participação política na medida de sua valorização por parte dos cidadãos digitais. O exemplo trabalhado pelos autores questiona se, de fato, as ferramentas digitais podem ser dotadas de caráter político: trata-se da petição digital, que busca a assinatura digital dos cidadãos em prol de uma determinada causa ou evento. Para os autores, é indispensável considerar que a petição em caráter geral possui um caráter meramente simbólico, mas que a petição digital assume o mesmo caráter das petições tradicionais fazendo uso tão somente do acesso à internet. Com a atuação política dos usuários, os mesmos se tornam cidadãos digitais no sentido amplo do termo e contribuem para a produção da cidadania digital.

Assim, os usuários da internet e de outras tecnologias podem fazer o uso adequado ou inadequado desta. O conceito de cidadania digital está relacionado justamente ao modo de uso da internet e de ferramentas digitais por parte dos seus usuários, de modo que o conceito diz respeito justamente às normas de comportamento adequado e responsável em face do uso de tecnologias.

1.1. Os nove elementos da cidadania digital

Para melhor compreensão acerca do conceito de cidadania digital e no que a existência dela implica, se faz de fundamental importância conhecer os ditos nove elementos da mesma. Esses nove elementos foram extraídos a partir do documento elaborado por Ribble (2010) e são a base fundamental para a devida compreensão acerca da cidadania digital em sentido estrito. Aprofundando o documento elaborador pelo autor, os nove elementos da cidadania digital serão aprofundados de modo sintetizado no presente subcapítulo, abaixo:

O primeiro elemento (Etiqueta Digital) está relacionado aos padrões (ou procedimentos) de conduta na via eletrônica e é, de acordo com o autor, um dos problemas mais evidentes da Cidadania Digital. Os comportamentos inadequados em tal meio são percebidos quando observados, mas as pessoas ao entrarem no mundo digital não sabem no que consiste a etiqueta digital, que nada mais é do que o conjunto de normas e procedimentos de condutas adequados a tal meio. Trata-se de uma concepção que envolve o uso adequado e responsável dos usuários digitais e do ato de ensinar todos os que estão em tal meio em tornarem-se cidadãos digitais responsáveis na sociedade digital;

A revolução digital propiciou um contexto no qual as pessoas estão aptas a exercer uma comunicação muito mais dinâmica e célere com as outras pessoas (segundo elemento - Comunicação Digital), o que não ocorria em épocas anteriores, com a comunicação por cartas ou mesmo com a comunicação pelos telefones fixos, por exemplo. As novas opções de comunicação digital alteraram significativamente o modo como as pessoas se comunicam na atualidade. Uma vez que todos contemplam oportunidades de se comunicar e colaborar com qualquer pessoa, em qualquer momento e em qualquer lugar, é necessário versar sobre as decisões apropriadas para cada momento e opção advinda da comunicação digital;

O terceiro elemento - literacia digital, basicamente consiste no processo de ensinar e aprender sobre a tecnologia e sobre seu uso. As novas tecnologias, segundo o autor do documento não vem sendo ensinadas de modo adequado na escola (como vídeo conferências ou comunidades digitais como as wikis), mas passam a ocupar um lugar importante no mundo do trabalho. A necessidade de obtenção de informação just-in-time (informação imediata) requer capacidades sofisticadas de pesquisa e do modo de processar a informação (literacia). Assim, os alunos devem ser ensinados a aprender dentro da sociedade digital. Sempre que surge uma nova tecnologia é necessário pensar sobre ela e sobre seu uso e a cidadania digital envolve ensinar as pessoas de uma nova maneira, dominando a literacia da informação;

O quarto elemento - acesso digital, está relacionado à participação eletrônica plena em nossa sociedade. Quem faz uso da tecnologia deve estar consciente e apoiar o acesso eletrônico para todos promovendo a amplitude da Cidadania Digital, isto pelo motivo de que a exclusão digital é um conceito não abarcado pela Cidadania Digital dentro da sociedade eletrônica. Todos os indivíduos devem ter o acesso pleno e equitativo à tecnologia, de modo que os locais que contam com conectividade limitada também precisam ser contemplados por esse elemento, visando igualar as oportunidades de acesso digital em um novo patamar;

Em relação ao quinto elemento, “comércio digital”, representado pela economia de mercado se concretiza de modo eletrônico, de modo que é indispensável abordar a compra e troca eletrônica de bens na via digital. Deve-se aceitar que compras e trocas legítimas e legais estão ocorrendo na internet, mas tanto o vendedor quanto o consumidor devem ter ciência acerca dos problemas associados às transações. No mesmo sentido há uma série de serviços e bens ilegais ou imorais presentes na internet, como a pornografia e os jogos de azar. Esse elemento diz respeito à utilização adequada do comércio digital dentro da economia digital;

O sexto elemento, representado pela “lei digital”, trata da ética da tecnologia na sociedade, ou seja, da responsabilidade eletrônica sobre as obras e ações por parte do usuário. O uso não-ético das tecnologias se manifesta sob formas de roubo ou do cometimento de crimes, enquanto o uso ético se manifesta respeitando as leis da sociedade. Os usuários das tecnologias devem compreender que roubar ou causar danos ao trabalho, à identidade ou à propriedade online é um crime. As regras da sociedade devem estar inseridas dentro de um contexto ético, de modo que as leis se aplicam a qualquer pessoa que está na internet. Fazer uso de informações de terceiros de modo ilegítimo, usurpar informações de terceiros, transferir ilegalmente músicas, plagiar, criar vírus e enviar spams são exemplos de condutas que vão contra a lei digital;

Os “direitos e responsabilidade digital” representam o sétimo elemento e parte da prerrogativa de que, assim como nas constituições, existe uma Declaração de Direitos Básicos que são estendidos a todos os cidadãos digitais, os quais tem direito à privacidade e à liberdade de expressão, por exemplo. Os direitos digitais básicos devem ser abordados, discutidos e compreendidos no mundo digital, sobretudo diante das responsabilidades advindas da concessão de tais direitos. Os utilizadores devem contribuir para definir como a tecnologia pode ser utilizada de forma adequada;

O oitavo elemento, representado pela “saúde e bem-estar digital”, trata do bem-estar físico e psicológico dos indivíduos dentro do contexto da sociedade tecnológica. A segurança da visão, de lesões por esforço repetitivo e de boas práticas ergonômicas devem ser abordadas de modo congruente em um novo mundo tecnológica. Além dos problemas físicos, outros problemas psicológicos (como a dependência ao uso da internet, ou o 'vício' em seu uso) devem ser abordados. Basicamente, esse elemento está condicionado ao ensino de que há perigos inerentes à tecnologia e a cidadania digital deve incluir uma cultura na qual os utilizadores devem ser ensinados a se protegerem através da educação e da formação;

O nono elemento, “segurança digital (ou autoproteção)”, trata das precauções para garantir a segurança em um mundo eletrônico. Em qualquer sociedade há indivíduos que cometem delitos e perturbam as pessoas e essa mesma prerrogativa é válida para a comunidade digital. Se em nossas casas fazemos uso de fechaduras e alarmes de incêndio para obter um certo nível de proteção, o mesmo deve ser feito para a segurança digital, não bastando tão somente confiar nos outros utilizadores para assegurá-la. Trata-se das proteções contra vírus, das cópias de segurança de nossos dados e dos mecanismos de controle de nossos equipamentos. Como cidadãos digitais responsáveis, devemos proteger a nossa informação de terceiros que almejem provocar danos ou perturbações;

Esses são os nove elementos que norteiam a cidadania digital. Conforme exposto, a cidadania digital não é nada mais do que a consolidação da cidadania que detemos no mundo real dentro do contexto das novas tecnologias e da concretização e consolidação de um novo mundo tecnológico.

2. Cidadania digital: direitos e deveres

Uma vez que já foram apresentados os principais pressupostos e fundamentos da cidadania digital, torna-se possível aprofundar questões envolvendo os direitos e deveres dos utilizadores no âmbito digital.

De acordo com Gentilli (2002) sempre que se fala em cidadania, é indispensável falar sobre o exercício de direitos por parte dos indivíduos. Em contrapartida, esses direitos culminam no fato de que são contraídos também deveres a serem cumpridos por parte dos mesmos indivíduos. Todo indivíduo que detém direitos em uma sociedade, deve também deter deveres.

Essa perspectiva é trabalhada por Ribble (2010) ao estruturar o sétimo elemento da cidadania digital (Direitos e Responsabilidades), prerrogativa que assimila a participação dos cidadãos que contraem direitos e deveres na sociedade dentro do mundo digital. Isso significa que o cidadão digital tem, por exemplo, Direito à Privacidade, mas o que o utilizador faz com sua privacidade é de sua responsabilidade, tendo o dever de cumprir às normas que vigoram na sociedade digital.

O mesmo exemplo pode ser abordado dentro do contexto da liberdade de expressão. O utilizador tem direito a manifestar suas ideias e pensamentos de maneira livre. Entretanto, o utópico sentimento de ‘anonimato’ que as pessoas têm na internet, não assegura que os utilizadores possam, por exemplo, destilar discursos de ódio na internet.

Os Direitos e Deveres presentes nas sociedades digitais não deixam de existir fora dela. Uma pessoa que ataca a outra com dizeres racistas na internet, por exemplo, pode responder civil e criminalmente por suas ações. O mesmo vale para transações fraudulentas na internet, como ao comercializar um produto falso ou a criar golpes com o intuito de obter lucros dentro do mundo digital.

3. As lides cibernéticas e a cidadania digital: uma análise com ênfase nos crimes cibernéticos e exemplos práticos

A resolução de conflitos é outro aspecto intimamente atrelado à cidadania digital. Para que possamos abordar as lides cibernéticas, tomaremos como exemplo as prerrogativas dos crimes cibernéticos. Evidentemente, com o surgimento e expansão da internet, a plataforma virtual passou a se tornar cada vez mais abrangente, dinâmica e atrativa não tão somente aos usuários comuns, mas também para diversas empresas que encontraram na internet um meio de acumular e disseminar informações de maneira ágil e, em tese, mais segura.

A criminalidade, entretanto, também age dentro da grande rede de computadores. Vargas (1995) leciona que sempre que incide atividade criminosa dentro da informática, estamos tratando de um crime cibernético, isto é, um crime que ocorre dentro do universo cibernético. Tais crimes passam a ser cometidos em ampla escala na contemporaneidade. Cassanti (2014) leciona que os crimes cibernéticos são praticados de maneira intencional por indivíduos que fazem uso da plataforma virtual para obterem indevidamente informações e dados por parte de terceiros sem contarem com o devido acesso a tais informações. O autor contempla o roubo de tais dados ou informações como a característica fundamental para que seja estabelecido e caracterizado o crime cibernético, dando ênfase para a utilização indevida de tais dados, violando os preceitos que norteiam a utilização da internet e obtendo vantagens indevidas ou causando prejuízo a terceiro mediante à exploração de tais informações.

O senso comum, aponta os hackers como as principais figuras criminosas dentro da internet, todavia, tal afirmação é incorreta, visto que ainda que segundo Lemos (2007) os hackers são figuras que possuem um grande domínio e conhecimento notável em relação ao trabalho virtual, empregando seus esforços e tal conhecimento notável para objetivarem melhorias nos sistemas de segurança e em softwares em caráter geral. De modo geral, os hackers utilizam técnicas especiais para procurarem por falhas e romperem barreiras de segurança dentro de um determinado sistema.

Cassanti (2014), entretanto, associa os crimes cibernéticos de maneira mais ampla com os crackers do que com os hackers, lecionando inclusive que ambas as figuras atuam no ambiente cibernético de maneira segregada. O autor leciona que, ao contrário da atuação dos hackers, a atuação dos crackers       se dá no sentido de romper códigos e barreiras de segurança para que sejam alcançados objetivos criminosos, nos termos já apresentados no presente estudo.

Castells (2003), no mesmo sentido, leciona que o termo Cracker foi desenvolvido pelos próprios hackers na década de 1980, visto que os mesmos eram tidos como os criminosos cibernéticos, realizando a distinção entre os termos hacker e cracker. Partindo dessa premissa, colocam-se hackers e crackers em duas condições distintas: Os primeiros não visam causar danos e prejuízos a terceiros, enquanto os crackers voltam suas atividades para tais fins. De tal modo, os crackers são as principais figuras dentro do meio cibernético que fazem uso da internet para realizarem golpes e fraudes em todo o mundo, inclusive no Brasil. A popularização da internet, imediatamente trouxe para o meio virtual usuários e empresas que antes não faziam uso do mesmo e doravante passam a utilizá-lo com mais afinco. Os crackers, conhecendo tais sistemas de maneira abrangente, fazem uso de seus conhecimentos para realizarem atividades criminosas.

Dentro do contexto do cometimento de crimes cibernéticos (que vão contra a cidadania digital) é indispensável versar acerca do surgimento de conflitos que surgem a partir de tais ações criminosas.

Em um exemplo prático: supomos que um cracker faz uso de programas indevidos para roubar as informações de terceiros. Em posse dos dados do cartão de crédito da sua vítima, o mesmo efetua uma série de compras online. Esse criminoso pode ser identificado, por exemplo, ao solicitar que a entrega dos produtos adquiridos seja realizada em seu domicílio. Diante disso, surge a Lide, pois, uma vez que o criminoso é identificado, a vítima almeja que tal conflito seja sanado, com uma determinada pretensão, desejando que o criminoso seja punido e que os valores adquiridos de maneira indevida sejam ressarcidos.

Sob as perspectivas dos crimes cibernéticos, entretanto, não nos atemos tão somente aos crimes que envolvem prejuízos financeiros. Vamos trabalhar o mesmo exemplo supramencionado, entretanto, nesse caso, a pessoa não identificou objetivamente o criminoso e deduziu que algum desafeto seria o responsável pelo roubo de suas informações de cartão de crédito.

Mesmo sem a confirmação do autor do crime, a vítima vai às redes sociais e expõe o ocorrido, acusando seu desafeto de se apropriar de modo ilegal de suas informações, proferindo xingamentos a um terceiro que não teve participação na atividade criminosa e, portanto, é inocente. Nesse caso, a pessoa que fora vítima do crime de roubo digital, passa a se tornar a autora do crime de injúria e difamação.

Surge, nesse momento, uma nova Lide. A pessoa que fora acusada e difamada injusta e publicamente pode almejar que o conflito seja resolvido judicialmente, tendo a pretensão, digamos, de uma retratação pública por parte da autora do crime ou do pagamento de uma indenização por danos morais. Destaca-se ainda que mesmo que a pessoa vá a público para exaltar ou elogiar o criminoso devidamente identificado ou o ato criminoso publicamente se configura o crime de apologia de crime ou de criminoso na internet, conforme enunciado por Santos, Martins e Tybush (2017).

Nesse sentido:

A existência do Direito está associado a jurisdição, e que sua função jurisdicional de resolução de conflitos entre pessoas e comunidades no espaço virtual, e de tutela jurisdicional do Poder público ou seja esteja conexa ao Estado. Ao que se trata dos crimes virtuais são os delitos praticados por meio da Internet que podem ser enquadrados no Código Penal brasileiro, e os infratores estão sujeitos às penas previstas na lei. O Brasil é um país que não tem uma legislação definida e que abranja, de forma objetiva e geral, os diversos tipos de crimes cibernéticos que ocorrem no dia a dia e que aparecem nos jornais, na televisão, no rádio e nas revistas. Na ausência de uma legislação específica, aquele que praticou algum crime informático deverá ser julgado dentro do próprio Código Penal, mantendo-se as devidas diferenças. Se, por exemplo, um determinado indivíduo danificou ou foi pego em flagrante danificando dados, dados estes que estavam salvos em CDs de sua empresa, o indivíduo deverá responder por ter infringido o artigo 163 do Código Penal, que é "destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: pena – detenção, de um a seis meses, ou multa" (SANTOS; MARTINS; TYBUSCH, 2017, p. 7).

Ora, as lides existentes no mundo digital podem e devem ser sanadas, fazendo uso da justiça. Atrelando tal tópico à cidadania digital, conclui-se que as práticas imorais e delituosas acabam tendo o escopo legal para a resolução de conflitos com base no ordenamento jurídico pátrio.

4. A responsabilidade civil e a cidadania digital

No presente capítulo será abordada a responsabilidade civil com enfoque na cidadania digital. Para tanto, se faz indispensável apresentar o instituto da responsabilidade civil, contextualizando-o com a cidadania. De acordo com Guerra (2010) nos tempos iniciais da raça humana, os danos não eram contemplados pelo direito, de modo que não se cogitava a culpa e o agredido se voltava diretamente contra a agressão de modo selvagem e impreciso, sem qualquer possibilidade de que a vítima reagisse contra o agente causador do prejuízo com qualquer formalidade, de modo que o dano provocava uma reação imediata, instintiva e brutal do indivíduo. Tal processo é denominado vingança privada.

De fato, o dano provoca naturalmente uma vontade de vê-lo ser reparado por parte da vítima. Entretanto, antes do advento ao Direito, não havia qualquer meio de reparação do dano sem que fosse instaurada a vingança privada. O autor supramencionado aponta que a reparação do mal através do mal por meio de pura vingança da vítima contra o ofensor pelo prejuízo ocasionado não cogita qualquer noção sobre culpa ou ressarcimento. A 'vingança', que antes era desregrada, passou ao domínio jurídico, sendo permitida ou proibida e executada de acordo com as condições estabelecidas por decisão proferida a partir de representantes do poder público.

E é justamente através de tal concepção que pode ser caracterizada a responsabilidade civil. De acordo com Sampaio (2003) a responsabilidade civil pode ser conceituada na reparação de dano que uma pessoa causa a outra, determinando em quais condições uma pessoa pode ser considerada responsável pelo dano que foi causado a outra pessoa e quais os termos e medidas que retratam a obrigação de reparação do dano, a qual, no âmbito civil, é quase sempre pecuniária (pagamento em dinheiro), independente do dano ser de ordem física, à honra ou ao patrimônio de um indivíduo. Ora, trata-se de um tema amplamente relacionado ao exercício da cidadania e ao fato de que os indivíduos contraem direitos e deveres perante seus atos e ações na sociedade moderna.

De acordo com Mattos (2012) a cidadania é o pressuposto para que seja imputada a responsabilidade civil e o sustentáculo dos direitos humanos, decorrente do processo de relação entre indivíduos dentro da sociedade, buscando legitimar a satisfação de exigências ou prescrições a partir de efeitos legais. A autora apresenta alguns pontos que atrelam a responsabilidade civil à cidadania:

     Uma vez que é ampliada a responsabilidade civil para as lesões morais, há o correspondente aumento da tutela de personalidade, fortalecendo a noção de cidadania como um bem juridicamente protegido;

     O respeito à pessoa humana (não levando em conta o seu patrimônio) é reconhecer a sua legitimidade e o valor possuído pela própria pessoa, ou seja, como um fundamento da cidadania. A responsabilidade civil, de tal forma, permite reconhecer a pessoa humana como cidadã;

     A possibilidade de reparação às violações da cidadania inaugurou um novo direito redimensionado pelos direitos fundamentais (direitos humanos que supera o ponto de vista meramente contratual das relações humanas), uma vez que o respeito à pessoa humana é um efeito decorrente dos valores que a pessoa humana possui simplesmente por existir;

     Há uma importante conexão entre direitos humanos e responsabilidade civil, por meio do reconhecimento da cidadania para a atribuição de culpa ou dolo ao responsável, atuando como um instrumento de eficácia dos direitos fundamentais e um compromisso ético que reconfigura os clássicos institutos jurídicos que a acompanham;

Para contextualizar as questões envolvendo a cidadania e a responsabilidade civil sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro, será utilizado o exemplo do dano moral. Gagliano e Pamplona Filho (2006, p. 36) caracterizam o dano ou prejuízo como a “lesão a um interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não – causado por ação ou omissão do sujeito infrator”, de modo que o dano pode ser estendido aos direitos personalíssimos, como é o caso do dano moral.

Por dano moral, compreendemos os danos ocasionados por fato violador subjetivo, atingindo os aspectos mais íntimos da personalidade humana, não sendo confundidos com meros dissabores da vida cotidiana e sim da própria valoração do indivíduo humano no ambiente sob o qual o mesmo está inserido (BITTAR, 1998). Quando o dano moral é comprovado, incide a compensação pecuniária em face da conduta ilícita do violador do direito personalíssimo.

Trentin e Trentin (2012) buscaram correlacionar a responsabilidade civil sob as perspectivas da cidadania digital e do dano moral. O estudo em questão deu-se em uma análise sobre publicações ofensivas nas redes sociais e o direito à indenização por danos morais. Os autores apontam que diante dos abusos praticados na internet, o usuário responsável por dizer, publicar ou compartilhar mensagens indevidas deve ser responsabilizado civilmente pelos danos causados. O mesmo vale para os casos que envolvem a criação de perfis falsos e pela veiculação de informações e imagens ofensivas nas redes sociais, objetivando além de demandas relacionadas à retirada de perfis e fotografias nos sites, indenizações por danos morais.

Nesse sentido:

No que tange a responsabilidade do usuário infrator, pode se observar, diante dos casos apresentados, que este sofrerá a responsabilização pelas informações ilícitas vinculadas no ambiente virtual, e o provedor do site de relacionamento será responsabilizado somente se deixar de excluir ou bloquear as imagens ou informações ofensivas, após transcorrido certo prazo desde a notificação feita pela vítima (TRENTIN; TRENTIN: 2012, p. 92).

Ora, as questões envolvendo a cidadania digital e a construção de um novo mundo digital não representam, de forma alguma, possibilidades de extinção da responsabilidade civil. Esse instituto considerado de demasiada importância para o pleno exercício da cidadania está presente na internet como um todo, de modo que sempre que um infrator promover danos em detrimento de outrem, esse infrator pode ser enquadrado nos dispositivos legais atacados e, assim, ser obrigado ao ressarcimento do dano causado.

É uma tendência cada vez mais observável que o Direito passe a acompanhar as sociedades digitais. A concepção de que a internet é uma “terra de ninguém” não tão somente é ultrapassada, como também é equivocada. O Direito sempre atua de modo a legitimar a cidadania dos indivíduos (pessoa humana) e essa prerrogativa também é válida para o exercício da cidadania digital. Assim, assegurando a responsabilidade civil para a pessoa humana também na via digital, o Direito contribui para o pleno exercício da cidadania digital e para o desenvolvimento desta.

Considerações finais

Conforme apresentado, a concepção de que a internet e o mundo propiciado pelas ferramentas tecnológicas é um mundo paralelo sob o qual não recaem as leis e normas que vigoram na sociedade vem sendo cada vez mais derrubada. O Direito vem sendo aprofundado, praticado e aplicado no mundo digital, buscando coibir que as pessoas façam uso de tais ferramentas para o cometimento de crimes e, nos casos em que os crimes acontecem, passa a punir aqueles que realizam condutas ilícitas na internet.

Não é mais possível pensar no mundo digital como um mundo alheio ao que conhecemos como a ‘vida real’. De fato, estamos tão imersos no mundo digital que ele passou a fazer parte de nosso cotidiano, o que reforça a importância do conceito de cidadania digital, que aborda as normas e procedimentos para que o exercício pleno da cidadania também ocorra na via digital.

O presente estudo buscou correlacionar a cidadania digital sob as perspectivas da doutrina jurídica e do ordenamento jurídico brasileiro, permitindo uma análise concisa acerca de elementos que legitimam as pessoas humanas enquanto cidadãos dentro do mundo digital. Conforme apontado, diversas questões passam pela cidadania digital, como as possibilidades de resolução de conflitos (lides) e as questões envolvendo a responsabilidade civil, que também se estende ao mundo digital.

Embora seja um tópico consolidado na atualidade, a cidadania digital é um tópico relativamente recente e o qual vem sendo abordado de modo congruente por pesquisadores de diferentes campos do conhecimento, possibilitando a criação de normas e leis que vigoram na internet sob a tutela e jurisdição do Direito.

Conforme descrito no capítulo 2 do presente estudo, a cidadania digital envolve o esforço de diferentes pessoas com o intuito de possibilitá-la e legitimá-las através de comportamentos e ações que buscam educar as pessoas quanto aos comportamentos e normas adequadas para o mundo digital. Diante disso, o presente estudo cumpre um papel importante para a concretização da cidadania digital, produzindo resultados que fomentam possibilidades de que mais pessoas tomem conhecimentos acerca dos mesmos.

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Recebido em: 25 jun. 2018.

Aceito em: 5 out. 2018.