Mestranda do Programa de Mestrado em Direito do UniBrasil.
Doutora em Direito das Relações Sociais junto ao
PPGD da UFPR. Professora de Direito Civil da UFPR. Professora do Programa de
Mestrado em Direito do UniBrasil.
RESUMO: Com base na
Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a Lei 13.146/2015 operou uma
ruptura na teoria das incapacidades do Código Civil, tornando a pessoa com
deficiência plenamente capaz para prática de atos da vida civil. Verificou-se,
então, uma reviravolta do direito protetivo, ensejando um a nova curatela que adquire
caráter excepcional e restrito aos atos patrimoniais do curatelado. Para os
direitos existenciais, a regra passa a ser a capacidade de exercício.
Indaga-se, entretanto, se esta característica também se aplica à pessoa que não
possui qualquer discernimento. Com fundamento no marco teórico de Pietro
Perlingieri, conclui-se que a Lei 13.146/2015 permite ao juiz fixar poderes
mais amplos ao curador, abrangendo atos existenciais. Trata-se da
funcionalização da curatela ao livre desenvolvimento da personalidade do
curatelado. Para tanto, o trabalho utiliza-se do método dedutivo e do procedimento
de pesquisa bibliográfico, dividindo-se em duas partes: a primeira identifica
uma ruptura da teoria das incapacidades pela Lei nº 13.146/2015, e a segunda
delineia a funcionalização da curatela em face da pessoa com deficiência.
PALAVRA-CHAVE: Pessoa com
deficiência; Direitos fundamentais; Curatela; Funcionalização.
ABSTRACT: Based
on the Convention on the Rights of Persons with Disabilities, Law 13,146 / 2015
operated a break in the theory of disability of the Civil Code, making the
person fully capable disabilities to practice acts of civil life. There was
then a twist of protective law, urging a new trusteeship acquiring exceptional
character and restricted to property of guardianship
acts. For the existential rights, the rule becomes the exercise capacity. Asks
is, however, whether this feature also applies to the person who has no discernment.
Based on the theoretical framework of Pietro Perlingieri, it is concluded that
the Law 13,146 / 2015 allows the judge set wider powers to the curator,
covering existential acts. This is the functionalization of trusteeship the
free development of the personality guardianship.
Therefore, the work is used the deductive method and bibliographic research
procedure, divided into two parts: the first identifies a break from the theory
of disabilities by Law No. 13,146 / 2015 and the second outlines the functionalization
of trusteeship in face of the disabled person.
KEYWORDS:
Disabled Person; Fundamental Rights;
Guardianship; Functionalization.
Recentemente, um
juiz do Estado de Santa Catarina negou a interdição de um jovem com Síndrome de
Down, que houvera sido pleiteada liminarmente pelos seus genitores sob a
justificativa de garantir-lhe sua proteção patrimonial (WISBECK et al., 2015). O magistrado justificou sua decisão,
afirmando que “deficiência não é incapacidade”, justificando que os “[…]
detentores da Síndrome de Down tem tido grande progressão na capacidade
cognitiva, podendo concluírem seus estudos,
trabalharem e até casar” (BRASIL, 2016). Trata-se, ainda, de romper
compreensões estigmatizadas acerca das pessoas com deficiência, exigindo-se que
a sociedade entenda que “diferença não é sinônimo de incapacidade” (BRASIL,
2016).
Essa decisão
coloca-se em um conjunto de alterações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com
Deficiência, recentemente promulgado pela Lei 13.146/2015, promovendo uma
ruptura no regime das incapacidades estabelecido nos artigos 3º e 4º do Código
Civil. A pessoa com deficiência psíquica ou intelectual passou a ter assegurado
o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais
pessoas, promovendo “uma reviravolta no regime das incapacidades e no sistema
de direito protetivo pautado na substituição de vontades” (MENEZES, 2015, p.
4).
Na esteira da
Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a Lei 13.146/2015 rompe com o
paradigma paternalista de proteção em favor do paradigma da “autonomia do
sujeito com deficiência” (MENEZES, 2015, p. 13). Por conseguinte, este não está
mais sujeito à interdição, apenas a mecanismos de apoio que lhe garantam o
direito de decidir, sob os contornos da “tomada de decisão apoiada”. A
curatela, por sua vez, é relegada a um caráter excepcional, ensejando uma
releitura de sua disciplina jurídica presente no Código Civil e no Código de
Processo Civil. Trata-se de uma nova curatela, que se restringe aos atos patrimoniais,
não podendo afetar os atos existenciais da pessoa com deficiência.
Diante dessas
alterações, questiona-se como proteger a pessoa com deficiência que não tenha
discernimento para decidir acerca de seus atos existenciais. A indagação sobre
a efetiva aplicação de um regime de curatela diferenciado em prol destes
indivíduos bem como, quanto à necessária ruptura com a norteadora concepção
patrimonialista deste instituto problematizarão o presente estudo, delineando
sua funcionalização. Para tanto, seguir-se-á, notadamente, o marco teórico de
Pietro Perlingieri, que atenta para a impossibilidade de reduzir a curatela à
mera administração dos bens do curatelado, depositando na “realização do pleno
desenvolvimento da pessoa” a chave de sua leitura (2008, p. 781). Também foi
consultada a doutrina nacional mais recente sobre o tema, destacando-se Ana
Carolina Brochado Teixeira, Joyceane Bezerra de Menezes, Judtith Martins-Costa,
Nelson Rosenvald e Rafael Garcia Rodrigues.
O trabalho segue
o método dedutivo e o procedimento de pesquisa bibliográfico, uma vez que parte
da construção e crítica da teoria das incapacidades para associá-la à
funcionalização da curatela na Lei nº 13.146/2015. O plano de trabalho foi
divido em duas partes: a primeira trata da teoria das incapacidades, delineando
sua construção teórica e crítica, para identificar, posteriormente, sua ruptura
no Código Civil. A segunda parte relaciona a funcionalização da curatela à
pessoa com deficiência, concluindo por sua utilização para a prática de atos
existenciais, quando há completa falta de discernimento do curatelado.
A capacidade é
uma construção teórica que remonta à concepção abstrata de sujeito de direito
da Modernidade. Trata-se, ainda, do elemento comum, identificado por Jean
Domat, no século XVII, que tornou possível considerar o homem como uma
categoria universal, em oposição aos elementos de especificação que designavam
o status do indivíduo no
particularismo jurídico do Medievo (MARTINS-COSTA, 2009, p. 310). Posteriormente,
essa concepção de pessoa foi arrematada por Savigny, no século XIX, ao
considerá-la como mero elemento da relação jurídica, distinguindo capacidade de
direito e capacidade de fato. Por outras palavras, não passaria de mero
conceito técnico; a aptidão para ser titular de relações jurídicas,
identificando personalidade e capacidade.
No fundamento
desta concepção de capacidade está uma racionalidade abstrata, necessária ao
tráfego de bens do capitalismo industrial nascente, conferindo contornos de
impessoalidade e massificação às relações negociais. É
o que afirma Judith Martins-Costa (2009, p. 313):
O que se requeria era um instrumental apto a conferir segurança às transações,
afastando dos riscos do mercado, da assunção de dívidas e da disposição sobre
patrimônios às pessoas inaptas para assumir responsabilidade patrimonial: os
loucos, as crianças e os adolescentes, os surdos-mudos incapazes de exprimir
vontade. Uma noção formalizada e abstrata de pessoa aliada à distinção entre
uma capacidade geral (ser sujeito de direitos) e uma específica (agir na ordem
civil, basicamente na ordem econômica juridicamente regrada, como o mercado)
era, então, ideologicamente inevitável.
Eis o significado
da concepção de capacidade acolhida pelas codificações modernas, das quais o
Código Civil brasileiro de 1916 se fez depositário: a possibilidade de
exercício da liberdade econômica. Se por um lado, conceituar as pessoas deste
modo tecnicista garantiria a possibilidade de todos serem proprietários e
contratantes, inserindo-os no tráfego econômico, por outro, implicaria na
desconsideração sobre as particularidades que poderiam acometer de modo
específico cada indivíduo no desempenho dos seus atos volitivos. Se a
capacidade civil está compreendida apenas como “requisito de relações jurídicas
abstratamente consideradas”, logo, a definição e consideração sobre
incapacidade civil passou a ser descrita pelo legislador de forma abstrata e
distante do sujeito real (MEIRELLES, 2008. p. 600).
Acompanhando o
típico caráter generalizador que as codificações do século XIX, o Código Civil
Brasileiro de 1916 obedeceu fielmente este critério ao preceituar dentre o rol
dos absolutamente incapazes qualquer um que pudesse se enquadrar na expressão
“loucos de todo o gênero”. Ora, como estabelecer um parâmetro suficientemente preciso para identificar determinado indivíduo como
absolutamente incapaz dentro de tamanha amplitude que referida terminologia
pudesse alcançar?
Com o intuito de
proteção ao patrimônio e não ao próprio indivíduo incapaz (por questões
patológicas ou de qualquer outra ordem), delineia-se o regime das incapacidades
no Código Civil de 1916. Por esta, o não enquadramento de um sujeito aos
padrões legais que pudessem conferir-lhe o papel de boa gerência de seus
interesses patrimoniais seria o bastante para buscar sua interdição com o
propósito de proteger seu patrimônio (MEIRELLES, 2008. p. 602). A identificação
social que se obtêm a partir da codificação em comento, resume-se ao reflexo de
uma “sociedade intolerante com as fraquezas pessoais” (MEIRELLES, 2008. p.
602). Para Jussara Meirelles (2008. p. 603), sempre que houvesse
[…] sentimentos, emoções, transtornos afetivos, alterações de
comportamentos que demonstrassem a vida diversificada pulsante em cada
indivíduo, mas que não se adequassem ao modelo típico do pressuposto agente comado ao requisito capaz, deveriam
tomar rumo diverso, via interdição, para que a subjetividade categorizada fosse
mantida.
O regime das
incapacidades torna-se objeto de crítica, fundamentando-se no fato que a
proteção conferida ao sujeito incapacitado se perpetuou apenas e tão somente em
prol daquelas “situações providas de conteúdo patrimonial” (RODRIGUES, 2002, p.
23). Considerando o lugar de centralidade ocupado pelo patrimônio nesses
ordenamentos jurídicos, a liberdade expressa pela autonomia privada era
essencialmente econômica, e as restrições representadas pelo regime das
incapacidades a esta liberdade colocavam em jogo tão somente os interesses
patrimoniais. É o que afirma Ana Carolina Brochado Teixeira (2008, p. 10):
A incapacidade de agir está circunscrita ao elemento patrimonial,
concepção esta que é fruto de uma tradição em que advertem os influxos de uma
elaboração científica de séculos, que não aproxima a capacidade de agir dos
direitos do homem, mas sim, da realização de negócios e para a tutela da
relação contratual. Numa antiga concepção, os atos de autonomia privada, para o
qual era necessário ser capaz, eram tidos como expressão do direito de
propriedade e do tráfego comercial. Todavia, hoje, a tutela da pessoa não pode
se exaurir apenas na esfera patrimonial.
Somente com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o “novo humanismo” que ela
inaugura, sob a influência do Segundo Pós-Guerra, faz-se uma releitura destes
códigos a partir de princípios constitucionais que delineiam um conceito
axiológico de pessoa. O reconhecimento a partir de então, passa a ser do homem
de carne e osso e não mais do sujeito de direito abstrato, permitindo-se ater
sobre as diferenças entre as pessoas e, por consequência sobre as
incapacidades. Surge assim a necessidade de se chegar à resposta sobre quem é o
sujeito incapaz.
Altera-se o
diploma civilista pelo Código Civil de 2002 e a expressão “loucos de todo
gênero” é desconsiderada em favor da “cláusula genérica da falta de
discernimento” (MEIRELLES, 2008. p. 603). Neste sentido, a falta ou redução do
necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil passa a ser
permissivo à interdição do indivíduo, mas agora devendo estar fundamentada em
provas periciais que atestam sua falta de capacidade para defender seus
próprios interesses e que legitimam a concessão de um curador.
Há uma superação
parcial da racionalidade abstrata moderna em favor de uma racionalidade
concreta capaz de albergar “formas intermediárias de capacidades”, amparadas na
ausência ou redução do discernimento (MARTINS-COSTA, 2009, p. 319). Segundo
Judith Martins-Costa (2009, p. 319), torna-se possível uma reconstrução
conceitual da teoria das incapacidades, resultante de uma exigência
interpretativa de atualização dos valores pressupostos à lei, que se refletem
na investigação de sua finalidade. Em atenção a essa ideia, a Lei nº
13.146/2015 operou uma intervenção “qualitativamente diversa” na teoria das
incapacidades (ROSENVALD, 2016, p. 25), pelo abandono de um conceito médico e
fechado de pessoa com deficiência em favor de um conceito social e aberto. Por
outras palavras, o conceito de incapacidade é deslocado de uma perspectiva
individualista, que reside na insuficiência psíquica ou intelectual da pessoa,
para uma perspectiva solidarista, que reside nas barreiras sociais que impedem
a pessoa de expressar sua vontade. É o que adiante se expõe.
Não obstante, a
Constituição da República de 1988 tenha estabelecido algumas normas[1] sobre a pessoa com deficiência, não a definiu.
Isto favoreceu o acolhimento dos paradigmas médicos em sede de legislação
infraconstitucional, por meio do Decreto nº 3.298/99 e Decreto nº 5.296/2004,
para defini-la[2].
O modelo médico
enquadrava a pessoa com deficiência a partir de sua correspondência aos termos
legislativos do Dec. 3.298/99. Assim, esta conceituação se limitava a
conferência sobre as alterações de saúde (física ou mental) do indivíduo o que,
por um lado traria maior segurança ao aplicador da norma jurídica, mas, por
outro, criaria um elevado risco de não se tutelar sujeito diverso que, embora
necessitado, não preenchesse os preceitos formais.
A falta de uma
definição ampla, que permitisse a inclusão de todos os que fizessem jus à proteção legal, foi suprida pela
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas
promulgada pelo Decreto Legislativo 186 de 09.07.2008, e ratificada pelo
Decreto 6.949 de 25.08.2009[3]. Com caráter inovador e de força de emenda
à Constituição (art. 5, § 3º, Constituição da República de 1988) ela
estabeleceu o conceito de pessoa com deficiência em seu artigo 1º:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações
com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Lilia Pinto
Martins (2008, p. 28) assevera que esta compreensão que “traduz a noção de que
a pessoa, antes de sua deficiência é o principal foco a ser observado
e valorizado, assim como sua real capacidade de ser o agente ativo de suas
escolhas, decisões e determinações sobre sua própria vida”. Assim, esta
nova compreensão introduz no Direito brasileiro a identificação da pessoa com
deficiência pelo acolhimento de um critério social que permite ao interprete
contextualizar as situações reais submetidas à apreciação (ARAÚJO; MAIA, 2014,
p. 169). Trata-se de dizer: o reconhecimento de uma pessoa com deficiência
ultrapassa o olhar sobre suas próprias condições limitativas e exige que se
enxergue se esta limitação é impeditiva de ultrapassar as barreiras existentes
na sociedade em que convive.
A obediência a
esse conceito inovador e, constitucional, de pessoa com deficiência exposto
pela Convenção, passa a ser exigida de todos os poderes estatais. Eis que esta
obrigatoriedade está apoiada no reconhecimento da supremacia da Constituição, e
da função tipicamente conferida ao Poder Legislativo na criação do Estatuto da
Pessoa com Deficiência dentro destes ditames constitucionais. A Lei 13.146 de
06 de julho de 2015, baseada na Convenção, igualmente define a pessoa com
deficiência em seu artigo 2º:
Considera-se pessoa com deficiência aquela
que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas.
Esta postura, que
agora resta legislada, obriga que a hermenêutica jurídica, que tradicionalmente
se pautava em criar situações abstratas nas quais a realidade deveria se
encaixar, dê espaço para o reconhecimento de um novo contexto no qual está
inserida a pessoa com deficiência. Isso é o que se extrai das exigências do
parágrafo 1º do artigo 2º do Estatuto:
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será
biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e
considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação[4].
O ponto de
partida do interprete será a norma acima descrita, mas sua função não se
limitará em descrever os significados e, sim, ir além reconstruindo seus
sentidos. Logo, não se pode falar em interpretação desvencilhada da observação
dos significados incorporados ao uso linguístico e construídos na comunidade do
discurso e do mesmo modo, no que diz respeito à necessidade de análise do próprio
contexto social preexistente (ÁVILA, 2008, p. 31-32). Por conseguinte, a
concretização das normas instituídas no estatuto da pessoa com deficiência,
como força de transformação da realidade, está condicionada à sua interpretação
como um dos seus elementos mais importantes. A interpretação realizada deve ir
além, não podendo se conceber o processo, bem como a “tarefa da realização do
direito normativamente vinculado como uma mera reelaboração de algo já
efetuado” (MÜLLER, 2005, p. 47).
Trata-se de um
conceito aberto. A pessoa com deficiência não pode mais ser reconhecida por um
olhar prévio e limitado às suas restrições físicas ou mentais, mas pelo
confronto do entorno em que habita, de tal modo a responder se aquela limitação
pessoal é impeditiva de ultrapassar as barreiras externas existentes na
sociedade onde convive. As barreiras externas em comento referem-se a todo e
qualquer impedimento que acarrete o agravamento para a pessoa com deficiência
exercer “sua participação social, bem como o gozo, a fruição e o exercício de
seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à
comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança,
entre outros” (MENEZES, 2015, p. 10). Por isso, a observância legal que passa a
ser aplicada, traz por força obrigatória a superação
daquele conceito fechado que até então caracterizava a deficiência como doença
pela qual, limitava-se tão apenas a um aspecto intrínseco da pessoa que a
intitularia como sujeito incapaz em maior ou menor grau.
Como reflexo
dessa concepção, assiste-se a uma ruptura na teoria das incapacidades. O
Estatuto da Pessoa com Deficiência retira a pessoa com deficiência da condição
de incapaz, ao revogar os incisos I, II e III do art. 3º, e os incisos I e IV
do art. 4º do Código Civil. Na identificação do sujeito absolutamente incapaz
ela não mais se inclui, restringindo-se as hipóteses de representação para os
menores de 16 (dezesseis anos). Por conseguinte, a deficiência não é mais
critério da incapacidade absoluta, emancipando-se a pessoa com deficiência. A
identificação dos relativamente incapazes, por sua vez, também sofreu alteração
incidindo a necessidade de assistência para os menores entre 16 e 18 anos;
ébrios habituais e os viciados em tóxico; ao que por causa transitória ou
permanente, não puderem exprimir sua vontade, restando o pródigo que se
perpetuou neste rol.
Em lugar de uma
racionalidade abstrata na apreensão do sujeito de direito, o Estatuto rende-se
a uma racionalidade concreta, que deixa de atribuir a incapacidade a situações
previamente estabelecidas em favor da condição concreta do sujeito de direito.
Trata-se de um “raciocínio atento às singularidades da pessoa” em interação com
o seu contexto social que propicia sua “capacidade para consentir” (MARTINS-COSTA,
2009, p. 324).
Torna-se
insustentável a ideia sobre a capacidade jurídica como condição atrelada
primordialmente ao desempenho do direito patrimonial, pois “…é
inadmissível que o menor, o deficiente mental, o enfermo, tenham desprezadas
suas manifestações de vontade acerca de questões que tocam ao seu
desenvolvimento humano.” (RODRIGUES, 2003, p. 25) Considerando que a delegação
de todo poder de escolha a um representante, poderia se configurar em violação
ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o ordenamento
jurídico resultaria em excesso de proteção, capaz de “…redundar na verdadeira
supressão da subjetividade deste, na medida em que decisões sobre o
desenvolvimento de sua própria personalidade fiquem a cargo de terceiros.”
(RODRIGUES, 2003, p. 26)
A doutrina mais
recente aponta o erro de um regime que resguarda o incapaz somente da prática
de atos de natureza patrimonial (TEIXEIRA, 2008, p. 3-36; RODRIGUES, 2003, p.
24). Proclama-se a releitura do regime das incapacidades quando estiverem em
jogo interesses existenciais, em razão de seu perfil funcional (TEIXEIRA, 2008,
p. 3-36; RODRIGUES, 2003, p. 24). Neste sentido, afirma Rafael Garcia Rodrigues
(2003, p. 24):
A presunção da falta de discernimento ou compreensão, que justifica o
tratamento como incapaz, é impreciso e imperfeito ao
tratamento de atos patrimoniais, uma vez que desloca a realização de tais atos
à vontade de um representante ou assistente, assim como assemelha em categorias
genéricas como a de deficiente mental, o paranoico, o portador de síndrome de
Down ou de Alzheimer entre outros, desconsiderando a diferença existente entre
tais indivíduos. Muito mais angustiante é, no entanto, quando se tratam de
situações de cunho existencial, como o tratamento sanitário, a disposição
corporal, o método educacional…, que ocupam preocupação central em um
ordenamento jurídico voltado à realização da pessoa, como o nosso; por certo
que não se pode desprezar ou desqualificar o valor jurídico da vontade dos
incapazes em tais casos.
Judith
Martins-Costa (2009, p. 321), por sua vez, ressalta a insuficiência da
capacidade negocial tradicionalmente construída para as situações patrimoniais
para atos existenciais. Ao consagrar expressamente que “a deficiência não afeta
a plena capacidade civil da pessoa”, em seu artigo 6º, o Estatuto reconhece a
incidência da capacidade plena de consentir às pessoas sujeitas à sua proteção
e que estejam aptas a declarar sua vontade. Eis que garante expressamente à
pessoa com deficiência o direito de se casar e constituir união estável,
exercer seus direitos sexuais e reprodutivos, decidir sobre o número de filhos,
ter acesso às informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar,
conservar sua fertilidade, exercer o direito à convivência familiar e
comunitária, o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção. Para tanto,
dissipa-se a distinção entre titularidade e possibilidade de exercício de
direitos, em conformidade com a crítica delineada por Pietro Perlingieri (2002,
p. 118):
Para os interesses patrimoniais é ainda justificável isolar o momento da
titularidade do direito (isto é, fruição) daquele da sua atuação (isto é,
exercício); o mesmo não ocorre para os interesses existenciais. Se tais
direitos, mais que outros, são concebidos aos fins de desenvolvimento da pessoa
humana (2º e 3º Const.), não tem sentido reconhecer (abstratamente) um destes
sem conceder também a possibilidade de exercê-lo. A observação diz respeito,
não tanto às situações definidas como direitos personalíssimos [III, 1 sgs.], mas ainda atos ou negócios que não representam o
exercício [IV, 67 sgs.], e os numerosos direitos e liberdades fundamentais
consagrados pela Constituição.
Esse repensar da
teoria das incapacidades (RODRIGUES, 2003, p. 24) proíbe a discriminação e
garante a igualdade quanto ao exercício de seus direitos patrimoniais como
extrapatrimoniais (artigo 4º). Trata-se da substituição de um paradigma
paternalista de proteção da pessoa com deficiência, para delinear sua
autonomia, reconhecendo-lhe a condição de “sujeito de sua própria história”
(MENEZES, 2015, p. 11). Esta autonomia fundamenta-se no respeito à capacidade
de agir, permitindo a pessoa conduzir sua existência de modo íntegro e
autêntico, de acordo com sua percepção individual (MENEZES, 2015, p. 11), em
atenção ao livre desenvolvimento de sua personalidade. Por conseguinte, a
intervenção na autonomia da pessoa com deficiência somente é possível de acordo
com o seu grau de discernimento e o devido processo legal. Para tanto, o
Estatuto prevê a “tomada de decisão apoiada” e a curatela como medida
excepcional.
A Convenção dos
Direitos da Pessoa com Deficiência estabelece em seu artigo 12, item 4, que “Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas
relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em
conformidade com o direito internacional dos direitos humanos…”. Esta
prerrogativa resume-se na autorização que cada Estado recebe para criação de
ferramentas capazes de melhor tutelar a pessoa com deficiência no exercício de
sua capacidade civil (MENEZES, 2014, p. 5).
Na esteira da
Convenção, a Lei nº 13.146/2015 rompe a exclusividade da curatela para ceder
espaço a outro mecanismo de direito assistencial: a “tomada de decisão
apoiada”. Trata-se de um mecanismo de aconselhamento, que ocorre por meio de
procedimento de jurisdição voluntária: a pessoa com deficiência poderá indicar 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais possua aproximação e
sejam de sua confiança, para orientá-la acerca daquilo que seja o melhor a ser
resguardado para si sobre os atos patrimoniais e extrapatrimoniais de sua vida
civil. Referida medida promove a autonomia da pessoa com deficiência e passa a
enaltecer o respeito e concretização de suas vontades sempre que puderem ser
exprimidas.
Por esta razão o
Estatuto desenha um novo modelo jurídico de curatela que deixa de ser a regra
das medidas assistenciais e passa à aplicação residual, sendo possível
identificar, segundo Nelson Rosenvald (2016, p. 12), a “deficiência sem
curatela e a deficiência qualificada pela curatela”. A primeira ocorre nos
casos em que a pessoa consegue se autodeterminar, por meio da “tomada de
decisão apoiada”, a segunda exigindo do ordenamento jurídico uma proteção mais
densa, por meio do devido processo legal da curatela (ROSENVALD, 2016, p. 18).
Nos termos da
redação originária do artigo 1.772 do Código Civil, a curatela determinaria a
substituição da vontade do curatelado pela vontade do curador, em casos de
incapacidade absoluta, e teria seus limites definidos pela sentença judicial
apenas em casos de incapacidade relativa. Eugênia Augusta Gonzaga lança suas
críticas a esse binômio que está na base da curatela codificada, asseverando
que o processo de interdição sempre incidiu sobre a pessoa com deficiência de
forma absoluta, resultando na desconsideração plena da pessoa do interditando
cuja vontade seria substituída pela do seu curador. E nem mesmo os casos de
interdição parcial assegurariam a autonomia da vontade da pessoa com deficiência,
pois ela permaneceria condicionada à intervenção assistencial de seu curador
como instrumento de validação de seus atos (GONZAGA, 2014, p.88).
A curatela é,
então, mitigada como mecanismo de substituição da vontade do curatelado em
favor de sua autodeterminação, delineando-se um novo desenho conformado ao
princípio da proporcionalidade, como expressa a Convenção:
[…] as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os
direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam
isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais
e apropriadas às circunstancias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto
possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão
judiciário competente, independente e imparcial….[5]
Nelson Rosenvald
(2016, p. 16) deposita na trilogia “necessidade, subsidiariedade e
proporcionalidade” o fundamento da curatela estatutária. Delineia-lhe como
características a “a) a necessidade da curatela respeitar os direitos, as
vontades e preferências da pessoa humana, sendo proporcional e apropriada às
suas circunstâncias; b) a restrição à capacidade deve se dar pelo período mais curto
possível; c) a necessidade de submissão da curatela a uma revisão regular,
independente e imparcial”.
Nos termos do
artigo 84 da Lei 13.146/15, exclui-se a hipótese de interdição ampla e total
sobre os atos da vida civil do curatelado para passar como regra à medida
assistencial comedidamente aplicável as circunstâncias de cada caso durante o
menor tempo possível. O § 3º deste artigo ainda confere ao magistrado o dever
de traçar os limites proporcionais às necessidades e às circunstâncias de cada
caso que melhor atendam ao curatelado por meio da imposição de deveres ao
curador, que preferencialmente deverá ser sujeito que possua vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado. O Estatuto
introduziu o artigo 1.775-A ao Código Civil, conferindo, ainda, ao magistrado a
possibilidade de estabelecer a atribuição de curador da pessoa com deficiência
para mais de uma pessoa, estabelecendo uma curatela compartilhada.
Alterações
materiais e processuais foram implementadas para unir fundamento e
procedimentos que garantam acima de tudo a proteção da pessoa com deficiência
como titular de direitos fundamentais: amplia-se o rol dos legitimados para
propositura do processo que definirá os termos da curatela (incluindo a própria
pessoa incapacitada, artigo 1.768 do Código Civil, o companheiro, qualquer
parente e o representante da entidade em que se encontra abrigado o
‘interditando’, artigo 747 do Código de Processo Civil); a pessoa com
deficiência será citada para que compareça em juízo não mais para ser
interrogada, mas para ser entrevistada acerca de sua vida,
negócios, bens, vontades, preferências, laços familiares e afetivos,
artigo 1.181 do Código de Processo Civil; deverá haver uma avaliação sobre a
capacidade da pessoa com deficiência que poderá ser realizada por equipe
multidisciplinar que indicará especificadamente os atos sobre os quais a
curatela deverá incidir, artigo 753 do Código de Processo Civil, bem como
poderá ulteriormente ser nomeada para proceder a exame em prol de pedido de levantamento
da curatela que poderá inclusive, ser realizado pelo próprio “interdito”,
artigo 756, § 1º do Código de Processo Civil.
Os preceitos da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, especialmente, no
artigo 12, passaram a exigir não só novas disposições normativas, mas a
releitura das já existentes. Por esta razão, a aplicação da curatela é medida
submetida também aos ditames recentemente alterados do Código Civil, do novo
Código de Processo Civil e do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/2015), cuja interpretação deverá se dar em conformidade com a Convenção,
dada sua força normativa hierarquicamente superior. O novo Código de Processo
Civil buscou um “formato de curatela mais humanizado” (MENEZES, 2015, p. 15),
mas passível de crítica, porque ainda se reporta aos conceitos de interdição,
interdito e interditando quando, não mais se aplicam (artigo 747 e seguintes)
(LÔBO, 2015, p.3). Diversamente, a regulamentação estatutária guardou maior
fidelidade à Convenção, pois delineia a curatela como um cuidado especial, que
não necessariamente resultará em interdição (MENEZES, 2015, p. 15). Resta
avaliar se tais mudanças repercutem na funcionalização da curatela.
A curatela codificada
é uma figura que foi prevista com finalidade patrimonial, nomeando-se um
curador para gerir o patrimônio de um incapaz. Contudo, proclama Ana Carolina
Brochado Teixeira, que “esse fim perdeu sua primazia, voltando-se tal instituto
para os cuidados com o interdito, sua recuperação e sua inserção social” (2008,
p. 36). Trata-se da funcionalização da curatela, que à luz de uma leitura
constitucional, transcende um modelo “fechado e hermético” (TEIXEIRA, 2008, p.
35) de incapacidades. Nesta perspectiva, duas indagações são propostas: (i) se
o modelo de curatela da Lei nº 13.146/2015 atende a esta funcionalização e (ii) se a curatela estatutária pode cumprir com uma
finalidade existencial, notadamente, em casos de completa ausência de
discernimento da pessoa.
A Lei nº
13.146/2015 estabelece em seu artigo 85, que “a curatela afetará tão somente os
atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial” da pessoa
com deficiência, não afetando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao
matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, como
preceituado em seu parágrafo primeiro. Trata-se de uma curatela limitada à
prática de atos patrimoniais, em face da emancipação da pessoa com deficiência,
que lhe garante o exercício de direitos da personalidade, em conformidade com o
artigo 6º. A este respeito, Joyceane Bezerra de Menezes (2015, p. 15) pondera
que:
Consolida-se aquele perfil funcional que determina o respeito às
‘escolhas de vida que o deficiente psíquico for capaz, concretamente, de
exprimir, ou em relação às quais manifesta notável propensão. Pois em razão do status personae, todo ser humano é
titular de situações existenciais como o direito à vida, à saúde, à integridade
corporal, ao nome, à manifestação de pensamento, cujo exercício prescinde das
suas capacidades intelectuais e é fundamental para o desenvolvimento de sua
personalidade.
A restrição da
curatela aos atos patrimoniais revela o acolhimento da teoria da identidade
“entre titularidade do direito e capacidade de exercício quando aborda as
situações subjetivas existências” (MENEZES, 2014, p. 68-69). Pelas próprias
características definidoras dos direitos da personalidade o referendar como
intransmissível, irrenunciável e indisponível não se concebe que haja o exercício
destes direitos, senão, por seu próprio titular. Nesta senda já se manifestava
Paulo Lôbo (2009, p. 118), para quem o exercício de direitos relacionados ao
estado da pessoa, tais quais o direito à identidade
pessoal e ao nome, não dependeriam da capacidade de fato do titular, restando
imunes à incapacidade absoluta ou relativa.
Entretanto, a
afirmação da autonomia da pessoa com deficiência em relação aos seus direitos
existenciais não poderá significar ausência de sua proteção. Se a pessoa não
tiver qualquer discernimento, como ela poderá exprimir sua vontade?
Considere-se, por exemplo, uma pessoa que se encontre em estado de coma
necessitando de uma grave intervenção médica ou que por razões genéticas não
consiga ao longo de sua vida realizar qualquer ato com discernimento. Nestas
hipóteses, cingir a curatela aos estritos limites dos direitos de natureza
patrimonial e negocial poderia deixar estes indivíduos desprotegidos.
Determinadas
questões existenciais, de fato, não poderão autorizar a intervenção do curador
(como o caso do próprio exercício do direito ao voto do curatelado ou sua
anuência para o casamento), porém para as hipóteses cujas incongruências legais
comprometam a proteção do indivíduo incapacitado em sua seara existencial (como
para determinada situação que exija uma intervenção médica), não poderá o
magistrado afastar-se da incidência da curatela respeitando “as salvaguardas
importantes à efetivação dos direitos humanos.” (MENEZES, 2015, p. 18)
Cristiano Chaves
de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 313) claramente discorrem sobre o
equilíbrio necessário que deverá embasar tal medida protetiva:
[…] é preciso compatibilizar a interdição com a tábua axiológica
constitucional, razão pela qual a retirada da plena capacidade jurídica de uma
pessoa somente se justifica na proteção de sua própria dignidade, devendo o
juiz, em cada caso, averiguar o grau de incapacidade pelos efeitos
existenciais, e não pelas consequências econômicas da interdição.
Segundo Pietro
Perlingieri (2008, p. 782), deve-se superar a tendência segundo a qual “não
seria necessário interditar o doente mental que não possua bens” ou, ainda, de
“reduzir o instituto da curatela do inabilitato
à assistência do sujeito na administração dos bens”. Em outro lugar, ainda
pondera o autor:
O estado pessoal patológico ainda que permanente da pessoa, que não seja
absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em uma série esterotipada
de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em
consideração o grau e a qualidade do déficit
psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força
totalmente desproporcionadas e, principalmente, contrastantes com a realização
do pleno desenvolvimento da pessoa (PERLINGIERI, 1997, p. 164).
A resposta a esta
crítica parece ecoar no artigo 84, § 3º[6] do Estatuto, que permite ao juiz confiar
poderes mais amplos ao curador, de acordo com as necessidades e as
circunstâncias do caso concreto. Trata-se, segundo Joyceane Bezerra de Menezes,
de uma “curatela aberta à demanda do curatelado”, cujos poderes atuam como se
fossem de representação, mas que não portam tal denominação por uma questão
formal (2015, p. 17). A curatela não poderá ser mera medida excepcional,
adstrita tão somente aos atos patrimoniais, havendo
[…] a possibilidade de intervenção do curador, mas sempre com a intenção
de realizar o interesse fundamental do curatelado, assim entendido como as suas
preferências genuínas, sua percepção do mundo, suas convicções pessoais acerca
da própria identidade. Caso o curatelado houver nascido sem qualquer
competência volitiva e, por isso, não houver registrado por seu modo de viver,
quais seriam esses interesses fundamentais, a autuação do curador deverá se
guiar pelo princípio da beneficência, seguindo os padrões respeitáveis à
dignidade da pessoa humana e os direitos do curatelado, na tentativa de
atender, sempre que possível às suas inclinações e relações afetivas (MENEZES,
2015, p. 18).
Desta feita,
quando se verificar completa ausência de discernimento do curatelado, o juiz
fixará os limites da curatela em conformidade com o desenvolvimento mental e
intelectual do curatelado[7], resultando em “um terno talhado e cosido sob medida, de sorte a considerar as características pessoas
do interdito, suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências”
(MENEZES, 2015, p. 21). E isso ocorre, segundo Joyceane Bezerra de Menezes
(2015, p. 23), porque a curatela não será exercida por meio de representação,
uma vez que a conduta do curador não poderá ser guiada por sua vontade pessoal,
mas pelos interesses fundamentais da pessoa com deficiência.
Agora se sobrepõe
o “reconhecimento da autonomia e da capacidade das pessoas com deficiência” fator
determinante que traçará os limites de qualquer atuação interventiva sobre a
vida destes indivíduos. Ainda que se trate de indivíduos desprovidos de
qualquer discernimento, sua autonomia não deixará de ser resguardada, mas aqui,
“como um aspecto nominal da personalidade” posto que, referida pessoa não deixa
de ser titular dos direitos da personalidade e por eles ter assegurada sua
dignidade (MENEZES, 2014, p. 63).
Delineia-se,
deste modo, a funcionalização da curatela que se revela como um instituto de
proteção do indivíduo que não está apenas em condições de cuidar de seus bens,
mas de si mesmo. Trata-se de voltar os olhos para a pessoa, de tal modo que se
existirem faculdades intelectuais, ainda que residuais, elas são realizadas
para o livre desenvolvimento de sua personalidade (TEIXEIRA, 2008, p. 35), uma
vez que lhe são garantidas a titularidade e o exercício de seus direitos, sejam
eles patrimoniais ou existenciais.
A teoria das
incapacidades é construção moderna, que se assentou na concepção abstrata de
sujeito de direito, restringindo a pessoa a um conceito tão somente técnico.
Demonstrou-se o quanto esta concepção esteve afeta à liberdade econômica, por
ocasião da afirmação de um capitalismo industrial nascente, que elevou a
propriedade e o contrato à condição de categorias jurídicas basilares do
Direito Privado. As especificidades que determinaram o particularismo jurídico
do Medievo foram substituídas por uma concepção genérica de incapacidade,
expressa no Código Civil brasileiro de 1916 na expressão “loucos de todo
gênero”. A finalidade desta disciplina foi a de conferir segurança jurídica às
negociações, afastando aqueles que por razões patológicas não pudessem assumir
a responsabilidade patrimonial. Somente com o advento de uma concepção
axiológica de pessoa, no Segundo Pós-Guerra, o teor patrimonialista da teoria
das incapacidades é revelado, passando-se a relativizar o
binômio incapacidade absoluta ou relativa, por meio do termo
“discernimento”.
A Lei nº
13.146/2015 operou uma ruptura na identificação da pessoa com deficiência e na
teoria das incapacidades do Código Civil. Na esteira da Convenção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência, desvencilhou a pessoa com deficiência do julgamento
precoce que a qualificava como sujeito civilmente incapacitado a partir de uma
compreensão médica e fechada. Passou a reconhecê-la a partir de um conceito
social, o qual implica em uma análise confrontadora entre as suas
características individuais e os percalços oferecidos pelo meio ambiente social
onde habite. Igualmente, alterou os artigos 3º e 4º do Código Civil, passando a
considerá-la como plenamente capaz para exercer pessoalmente os atos da vida
civil. Deste modo, dissociou titularidade da capacidade de direitos, delineando
sua autonomia em lugar do paternalismo de sua proteção.
Tais mudanças
determinaram uma revisão das medidas de direito assistencial pela Lei nº
13.146/2015, que atuou na esteira da Convenção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, ao delinear uma nova curatela que se aproxima dos direitos
humanos. Entre suas características: (i) a curatela deixa de ser medida
assistencial exclusiva, em face da criação da figura da “tomada apoiada de
decisão”; (ii) a curatela é mitigada como mecanismo de
substituição da vontade do curatelado em favor do curador; (iii) a curatela é
medida excepcional, que durará o menor tempo possível; (iv) os poderes do
curador deverão ser fixados pelo juiz, de acordo com o princípio da
proporcionalidade, em ruptura ao binômio incapacidade absoluta ou relativa; (v)
a disciplina jurídica da curatela passa a ser delineada conjuntamente pelo
Código Civil, Código de Processo Civil e Lei nº 13.146/2015, sendo que todos
deverão ser lidos à luz da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência;
(vi) amplia-se o rol de legitimados a curador e se institui a possibilidade da
curatela compartilhada.
A Lei nº
13.146/2015 estabelece no artigo 85 que a curatela da pessoa com deficiência
deverá se restringir aos atos patrimoniais. O presente trabalho buscou
problematizar esta característica, indagando-se por uma funcionalização da
curatela diante dos atos existenciais. Suscitando que em face desta restrição,
a completa falta de discernimento à pessoa com deficiência poderia deixá-la
desprotegida, ponderou-se diante das críticas à curatela codificada a
necessidade de promover-lhe uma leitura à luz do princípio do livre
desenvolvimento da personalidade. Considerando que o Estatuto permite ao juiz
fixar poderes mais amplos ao curador, conferindo-lhe a possibilidade de decidir
de acordo com os interesses do curatelado, sem necessariamente representá-lo,
concluiu-se que a curatela pode em determinadas situações envolver atos
existenciais. Eis que esta seria uma forma de funcionalizá-la como um instituto
de proteção ao indivíduo que não apresenta qualquer discernimento, não apenas
para cuidar dos seus bens, mas de si mesmo.
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Acesso em: 13 mar. 2016.
. Recebido em: 5 out.
2016. Avaliado em: 15 e 16 nov. 2016.
[1] Pode
ser citado da Constituição da República de 1988 o art. 7º, XXXI (vedando-se a
discriminação no mercado de trabalho), art. 37, VIII (reserva de percentual de
cargos e empregos públicos), art. 40, §4º, I e 201, §1º (adoção de critérios
diferenciados para concessão de aposentadoria), art. 203, IV (prestação de
assistência social em prol de habilitação e reabilitação), entre outros.
[2] O
art. 5 do Decreto n. 5.296/2004 considerava nestes termos a pessoa como
portadora de deficiência: § 1o Considera-se, para
os efeitos deste Decreto: I - pessoa portadora de deficiência, além
daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de
2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e
se enquadra nas seguintes categorias:
a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou
mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física,
apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia,
monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia,
hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral,
nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades
estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de
quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por
audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou
menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que
significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os
olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de
quaisquer das condições anteriores; d) deficiência
mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com
manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais
áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação;
2. cuidado pessoal; 3. habilidades
sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades
acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho;
e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais
deficiências; e II - pessoa com mobilidade reduzida, aquela que, não
se enquadrando no conceito de pessoa portadora de deficiência, tenha, por
qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente,
gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e
percepção. (BRASIL. Dec. nº 5.296, de 02 dez. 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048,
de 8 de novembro de 2000 e 10.098, de 19 de dezembro
de 2000 e dá outras providências).
[3] Referida
convenção veio a ser aprovada no direito brasileiro pelo Decreto nº 186/2008, e
após ter sido votado pelo quórum qualificado de três quintos, nas duas casas do
Congresso Nacional e em dois turnos, recebeu status hierárquico de emenda
constitucional nos termos do art.5º, §3º da CF/88, sendo na sequência
ratificada e promulgada por meio do Decreto nº 6949/2009, pelo então Presidente
da Republica Luiz Inácio Lula da Silva.
[4] Lei
nº 13.146/2015. Art. 2o: Considera-se pessoa com deficiência
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas. § 1o A
avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada
por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I
- os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II
- os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III
- a limitação no desempenho de atividades; e IV - a
restrição de participação. § 2o O Poder Executivo criará
instrumentos para avaliação da deficiência. (BRASIL.
Lei nº 13.146, de 06 jul. 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
[5] Convenção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU. ART. 12, Item 4:
“Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da
capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir
abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas
salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade
legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam
isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais
e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto
possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão
judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão
proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da
pessoa”.
[6] Artigo
84. ”A
pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade
legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1o
Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme
a lei. […] § 3o A definição de curatela de pessoa com
deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às
necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.”
[7] Em
conformidade com o afirmado por Joyceane Bezerra de Menezes (2015. p. 23): “Uma
vez que a curatela não se exercerá por meio de representação, quando o
curatelado for absolutamente faltoso de entendimento, o juiz deverá delinear
detalhadamente os poderes do curador de modo a atender efetivamente as
necessidades do curatelado. Ainda que, na prática, tais poderes se assemelhem
ao que se faria no caso da representação. Observa-se, porém, que a conduta do
curador não pode ser motivada nos termos da sua vontade pessoal, mas sempre no
intuito de atender os interesses fundamentais do curatelado”.