Professor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Ceará e da Faculdade 7
de Setembro. Pós-Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. Doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Público pela Faculdade de
Direito do Recife da Universidade de Pernambuco. Juiz Federal.
Mestrando em Direito Civil pela Universidade de São
Paulo (USP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
RESUMO: O presente
trabalho tem, como objetivo, esclarecer em quais hipóteses é possível, na
sociedade limitada, a exclusão de sócios em função de incapacidade
superveniente, o que se faz necessário principalmente diante das divergências
doutrinárias em relação a possibilidade de exclusão
por esse motivo e seus requisitos de aplicação. Para isso, realiza-se um breve
apanhado histórico das noções de função social, delineando sua evolução
histórica, e se apresentando, em seguida, uma definição do princípio da função
social da empresa. Por fim, faz-se uma análise crítica dos principais entendimentos
acerca desta questão, buscando-se, em face deles, chegar a um melhor critério
de aplicação do instituto, utilizando-se como paradigma teórico o princípio da
função social da empresa.
PALAVRAS-CHAVE: Exclusão de
sócio; Incapacidade civil; Função social da empresa; Sociedade limitada; Código
Civil de 2002
ABSTRACT: This paper has, as objective, making clear in
which hypothesis it is possible, in the Brazilian limited liability company,
the exclusion of the shareholders in consequence of an incidental incapacity,
which is needed mainly in the face of doctrinal divergences about the
possibility of exclusion for this reason and its application requirements. In
order to do this, a brief historical overview of the notions of social function
is carried out, outlining its historical evolution, and presenting, after this,
a definition of the principle of the social function of the company. Lastly, a
critical analysis of the main understandings concerning to this question is
made, seeking to, in face of them, reach a better application criteria to the
institute, using as a theoretical paradigm the principle of the social function
of the company.
KEYWORDS: Shareholder exclusion; Civil incapacity; Social
function of the company; Limited liability company;
2002 Brazilian Civil Code.
A possibilidade
de exclusão de sócios incapazes é matéria que apresenta grandes divergências
doutrinárias, sobretudo quando estudada nas sociedades limitadas, modelo
societário utilizado por empresas de pequeno e de grande porte, e que apresenta
desafios de sistematização em face dessa versatilidade.
Recai a discussão
na possibilidade ou não de se excluir da sociedade limitada um sócio por conta
de sua incapacidade superveniente, questionando-se quais seriam os critérios
para que o sócio incapaz seja excluído da sociedade limitada.
Pretende o
presente estudo contribuir para esclarecer as hipóteses em que pode haver, nas
sociedades limitadas, exclusão de sócio por conta de incapacidade
superveniente, construindo-se, para isso, análise calcada no princípio da
função social da empresa.
Para responder ao
questionamento, far-se-á, por meio de uma metodologia exploratória, consistente
principalmente em análise bibliográfica, uma breve narrativa histórica da ideia
de função social, demonstrando-se, sobretudo, sua evolução histórica,
passando-se, em seguida, a uma caracterização e definição em específico do princípio
da função social da empresa.
Por fim, analisa-se de forma crítica as principais teses doutrinárias
acerca do instituto da exclusão de sócio, perquirindo-se a justificativa para
sua existência e qual seria a sua finalidade, realizando igualmente uma análise
dos mais relevantes posicionamentos relativos à exclusão de sócio incapaz nas
sociedades limitadas, procurando-se, logo em seguida, estabelecer critérios
para a aplicação desse instituto à luz do princípio da função social da
empresa.
Cumpre
esclarecer, de antemão, a distinção entre a estrutura de um instituto e a
função por ele desempenhada. Consoante lição de Francisco Loureiro (2003, p.
109), o estudo estrutural de uma norma ou instituto seria realizado por meio de
abordagem técnico-jurídica, preocupada em descrever as características
jurídicas do objeto de estudo, ao passo que uma investigação funcional teria
origem sociológica, orientada pela finalidade concreta assumida pelo fenômeno
jurídica na realidade social.
Nesse sentido, Francisco
Amaral (2008, p. 345) aponta que a função de uma norma ou instituto seria o
papel por ela desempenhado no interior de sua estrutura, isto é, a finalidade
social cuja consecução é almejada por meio de suas características jurídicas
particulares.
Esta posição é
também adotada por Francisco Loureiro (2003, p. 109-110), o qual sustenta que
“o termo função, contraposto ao termo estrutura, serve, de fato, para definir o
concreto modo de operar de um instituto ou de um direito de características
morfológicas particulares e manifestas”.
Segundo Tepedino
(2012, p. 1), a função social, antes mesmo de se concretizar como princípio
jurídico, surgiu, no auge do liberalismo individualista do século XIX, como
postulado metajurídico que atribuiria a proteção jurídica de certos institutos
à função econômica que desempenhavam na sociedade. Isto é, servia a função
social para justificar a tutela jurídica de certo instituto, dada a sua
relevância econômico-social (GOMES, 2002, p. 20).
Assumia o
direito, à época, caráter unicamente estruturalista, havendo maiores
preocupações em como estava ele estruturalmente posto no ordenamento jurídico,
do que propriamente com sua função na sociedade e em que medida ele a alcançava
(BOBBIO, 2007, p. 53).
Com a ascensão do
Estado Social, no início do século XX, natural foi a
redefinição do conceito de função social. Tratando pioneiramente desta
temática, cita-se a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição Alemã de
1919, notando Didier Jr. (2008, p. 7) que, nesta última, celebrizou-se a
previsão de que “a propriedade obriga”.
É nessa época,
também, que há pela primeira vez uma adoção expressa da noção de função social
pelos ordenamentos jurídicos, afastando-se o conceito de função social daquele
pretérito, característico do Estado Liberal, e que a reduzia, sob uma
perspectiva individualista, à função econômica, passando a função social a ter
verdadeiro caráter de valorização da coletividade, como aponta Polido (2016, p.
14):
Com relação à função social da propriedade, o artigo 153 da Constituição
de Weimar primeiro estabelece a garantia e os efeitos vinculativos (Bindungseffekte) da propriedade privada,
especialmente decorrentes da expressão “a propriedade obriga” (das Eigentum verpflicht). O modelo ali
adotado prevê que a propriedade possa ser objeto de desapropriação por meio de
lei, sem eventualmente incluir direito de indenização. Na concepção de Weimar,
a propriedade não admite uma abordagem individualista, inviolável ou sacralizada,
pois submete o exercício pelo titular ao interesse da coletividade.
É
apenas nesse momento que vem a se reconhecer que o direito, para além da sua
perspectiva estruturalista, que analisa como ele é elaborado para se concluir
qual sua estrutura, tem também um caráter promocional, cuja análise é funcional,
indagando-se para que o direito serve a fim de se determinar quais devem ser as
atitudes a serem incentivadas (BOBBIO, 2007, p. 53).
Neste
azo, atestam Farias e Rosenvald
(2014, p. 139) que em toda relação jurídica é
possível se encontrar uma estrutura e uma função, consistindo esta na promoção
de atos socialmente desejáveis.
É
em tal época, igualmente, que se passa a conceber uma isonomia material, e não
apenas formal, diferenciando-se
as duas na medida em que esta prevê simplesmente o tratamento idêntico de todos
os indivíduos, ao passo que aquela, a fim de efetivar a igualdade, propõe
tratamento distinto àqueles que são diferentes, na medida em que assim o são
(ROCHA, 1990, p. 39).
Nada obstante,
era, até então, a função social mera proposição ética, norma programática que
devia conduzir a sociedade aos fins propostos, sem ter, contudo, aplicação
imediata ou mesmo reconhecimento dos aplicadores do direito, que permaneciam
aplicando o paradigma liberal, privando de eficácia as normas constitucionais
referentes à função social (AUAD, 2009, p. 339-340).
Foi nesse
contexto que a noção de função social foi incorporada ao ordenamento jurídico
brasileiro, tendo efetivamente constado no texto constitucional do Brasil pela
primeira vez na Constituição Federal de 1946, por meio da previsão da função
social da propriedade (CORREIA, 2009, p. 68).
Explica Cambi
(2007, p. 4-6)que, passada a Segunda Guerra Mundial e
verificadas as imperfeições do positivismo jurídico e do constitucionalismo
clássicos, passa-se a procurar um referencial jurídico hábil a resguardar
valores importantes à sociedade, isto é, tenta-se ir além da mera legalidade —
observância das leis ordinárias —, o que leva até o desenvolvimento das
doutrinas pós-positivista e neoconstitucionalista, em que há uma valorização da
Constituição como diploma ideal para a proteção dos direitos fundamentais, sobretudo
em seus princípios, concedendo-se a estes aplicabilidade imediata.
Segundo Pimenta
(1999, p. 188), é a Constituição Federal de 1988, no Brasil, o marco da adoção
desses ideais, sendo garantida a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais em seu Art. 5º, § 1º. Didier Jr.
(2008, p. 9) explica, ainda, que é a partir deste momento que o princípio da
função social passa de norma de caráter meramente programático a norma de
assegurada aplicabilidade.
Esses
acontecimentos muito influenciaram o direito privado, principalmente em face da
concepção de que há a necessidade de se adequar a interpretação da legislação
ordinária do Código Civil às normas constitucionais, e não vice-versa
(TEPEDINO, 2006, p. 21).
É
neste horizonte que se dá o processo de reinterpretação dos institutos
clássicos sob a nova ordem constitucional (BARROSO, 2007, p. 20), afirmando
Perlingieri (2007, p. 12-13), sobre esta temática, que a norma constitucional
passa, de mera auxiliar na interpretação das regras, a razão justificadora,
ainda que não única, da relevância da tutela das relações jurídicas,
redefinindo, por isso, os fundamentos e a extensão dos institutos jurídicos.
Percebe-se,
portanto, a evolução histórica que a ideia de função social experimentou,
passando, em verdade, de mera justificação da proteção jurídica de certos
institutos, sem positivação, quem dirá aplicabilidade, no contexto do Estado
Liberal, a norma jurídica que visava a submissão da
propriedade — aqui inclusa a empresa, como irá se expor a seguir — a interesses
da coletividade, mas ainda sem aplicabilidade imediata, no contexto do Estado
Social, até o paradigma atual de reconhecimento da eficácia jurídica do princípio
da função social, sendo dotada de aplicabilidade imediata.
No
que pese inexistir previsão expressa do princípio da função social da empresa,
é imperioso se admitir que é também a propriedade empresarial
adstrita à observância de uma função social, em função sobretudo da dimensão
que assumem as empresas na organização socioeconômica moderna (MARTINS-COSTA,
2005, p. 41).
Em
verdade, o que se verifica é que o princípio da função social da empresa
decorre diretamente do princípio da função social da propriedade, sendo
constitucionalmente assegurado, por conseguinte, e repercutindo no exercício da
atividade empresarial e conformando o exercício da propriedade empresarial, por
parte dos sócios, também ao interesse da coletividade (MATIAS, 2009, p. 76-79).
Com
o reconhecimento de um princípio da função social da propriedade, de agora
inegável aplicabilidade, aponta Correia (2009, p. 22) que o que se observa é
uma funcionalização do direito de empresa, afastando-se o conteúdo deste dos
contornos individualistas de outrora.
Em
sentido semelhante, cita-se lição de Matias (2009, p. 87): “A nova concepção de
propriedade se irradia sobre o direito empresarial, não sendo facultado ao
proprietário de empresas, sócios ou acionistas exercerem abusivamente o direito
que lhes é assegurado constitucionalmente”.
Necessário,
por conseguinte, delimitar-se o conteúdo jurídico do princípio da função social
da propriedade a fim de se alcançar compreensão mais exata acerca de suas
repercussões na funcionalização da propriedade empresarial.
Retomando
a distinção entre a análise estrutural e funcional do fenômeno jurídico,
Francisco Loureiro (2003, p. 110) afirma que o princípio da função social da
propriedade, porquanto norma cogente, dotada de eficácia jurídica, não pode se
limitar a indicar um estudo sociológico dos interesses metajurídicos tutelados
pelo instituto, tratando-se, em verdade, um de seus elementos.
Isto
é: a função social da propriedade se insere na própria estrutura do instituto,
não podendo ser considerada como uma mera remissão do legislador às
necessidades sociais e econômicas por ele atendidas.
Por
força de sua função social, a propriedade passa a ser entendida não só como um
direito do proprietário, mas como situação jurídica complexa, de modo que gera
também, ao lado das faculdades de usar, fruir e dispor, uma série de obrigações
perante terceiros individualizados e a coletividade, concernentes tanto em
abstenções quanto em prestações ativas (LOUREIRO, 2003, p. 122-123).
Em
paralelo com essa noção de função social da propriedade, a funcionalização da
empresa implica, sobretudo, na instrumentalização desse direito patrimonial à
consecução não só dos interesses individuais, mas também dos da coletividade.
Sintetizando essa visão, afirma Matias (2009, p. 87) que o princípio da função
social da empresa representa:
[…] a vinculação do exercício da empresa à
concretização de uma sociedade livre, justa e solidária, do que decorre um
complexo de deveres e obrigações, positivas e negativas, impostas aos
controladores e administradores, perante os empregados, fornecedores,
consumidores, meio ambiente, Estado, e toda a comunidade que com ela interage.
Também são emanações da função social da empresa o incentivo à sua preservação
e a obrigação de proteção aos sócios minoritários. Trata-se, assim, de
princípio jurídico, que pode ter a sua efetividade exigida, não mera proposição
de cunho moral.
Em
função do princípio ora em comento, revela-se uma evolução da noção de
propriedade empresarial, assumindo esta, modernamente, uma significativa
importância não só econômica, mas social, e contribuindo para a materialização
de uma sociedade nos moldes previstos na Constituição Federal de 1988. Nessa
esteira, a empresa, além de atender aos interesses de seus sócios, cria para
eles uma série de obrigações.
Conforme
escólio de Martins-Costa (2005, p. 51),consequência
dessa importância da empresa na vida comunitária é a existência de deveres da
sociedade para com a empresa, como o de preservá-la, e da empresa perante a
coletividade, como o de resguardar o meio ambiente, impondo-se ainda um certo
tipo de atuação por parte dos sócios daquela, que além de também serem
obrigados a contribuir para preservá-la, devem exercer a atividade empresarial
no interesse da empresa, ou seja, de todos os sócios, principalmente quando desempenharem
papel de controle, pelo que se nota uma aproximação das relações internas da
empresa à ideia de isonomia substancial prevista na Constituição Federal de
1988.
Alcança-se
modernamente, portanto, o entendimento de que o princípio da função social da
empresa, de natureza constitucional, por ser corolário do princípio da função
social da propriedade, deve não mais ser vislumbrado como norma programática
despida de qualquer eficácia, como se proposição ética fosse, mas sim como
verdadeiro princípio jurídico que, como tal, tem aplicabilidade imediata, e
cujo conteúdo consiste, sobretudo, na percepção da empresa como instrumento não
só do alcance dos interesses individuais dos sócios, mas da persecução de
objetivos socialmente relevantes, que têm implicações nas relações internas e
externas da empresa.
Ensina Nunes
(2002, p. 23) que a exclusão de sócios é instituto que divide posições
doutrinárias acerca da sua caracterização, sendo três as principais correntes.
Em primeiro
lugar, a teoria do poder corporativo disciplinar, que aponta que a sociedade
empresária poderia excluir seus membros nos casos previstos por lei ou
instrumento social, em aplicação de poder disciplinar do qual seria dotado o
ente coletivo sobre aqueles que o constituiriam, simetricamente ao poder
disciplinar da Administração Pública sobre seus agentes (NUNES, 2002, p. 32).
Critica-se esse
posicionamento, todavia, por ignorar que a expulsão de sócios nem sempre tem
caráter disciplinar, acontecendo, por vezes, simples com o preenchimento de
certos requisitos legais ou contratuais (NUNES, 2002, p. 32-33).
Outra teoria
acerca desta matéria seria a da disciplina taxativa legal, que defende que, em
face da importância econômico-social da empresa, seria de interesse público a
sua conservação, atribuindo caráter público ao instituto (NUNES, 2002, p. 25),
ao que se teceriam críticas pelo fato de que esse instituto se fundaria
principalmente no interesse privado dos sócios, sendo o interesse público no
caso em questão apenas reflexo, coincidente no mais das vezes com o interesse
particular dos sócios, apontando-se como falha igualmente a taxatividade legal
defendida pela teoria e o caráter exclusivamente sancionatório da expulsão(NUNES, 2002, p. 33-38).
Por fim, a teoria
contratualista, majoritária na Itália, e inspirando-se tanto no instituto da
resolução contratual por inadimplemento quanto no princípio da preservação da
empresa, explica que a exclusão dos sócios seria fundada no descumprimento de
deveres sociais por parte dos membros do ente coletivo, o que justificaria suas
expulsões, completando parte dos doutrinadores que a lei ou os instrumentos
sociais poderiam prever outras cláusulas resolutivas expressas que
independessem de inadimplemento (NUNES, 2002, p. 26-28).
Apesar das
críticas à abordagem da exclusão de sócios como resolução contratual (NUNES,
2002, p. 38-39), afigura-se essa como a melhor solução, eis que afasta do
instituto o caráter de sanção, adequando-o à característica de contrato
plurilateral que assume o instrumento constituinte da sociedade empresária, ao
passo que valoriza o princípio da preservação da empresa, corolário do
princípio da função social da empresa.
Por outro lado,
ao tratar da matéria da exclusão de sócios na sociedade limitada, conforme
regulada na ordem jurídica brasileira, Coelho (2014, p. 447) aponta quatro
hipóteses em que esta pode se dar: a) quando o sócio descumpre seus deveres; b)
quando as quotas deste forem liquidadas a pedido de credor; c) quando entra ele
em falência; d) quando é declarado incapaz.
Na primeira
situação, constituir-se-ia a expulsão em sanção, opinião da qual se discorda,
haja vista se tratar esse caso não de sanção, mas de hipótese de resolução por
inadimplemento dos deveres do sócio, podendo acontecer de forma extrajudicial
quando em relação ao sócio minoritário, desde que obedecendo ao procedimento
previsto pelo Art. 1.085 do CC/02, enquanto nos demais casos não teria a
exclusão do sócio caráter sancionatório, sendo igualmente possível nessas
hipóteses a exclusão extrajudicial, com exceção da expulsão do sócio incapaz,
que só poderia ser decretada pelo juiz (COELHO, 2014, p. 448-451).
Em se falando
especificamente da exclusão do sócio incapaz, Coelho (2014, p. 451) afirma, com
fulcro no Art. 1.030, caput, do CC/02, aplicado subsidiariamente às sociedades
limitadas, que basta que a incapacidade se dê supervenientemente, isto é, após
a constituição da sociedade, para que se possa proceder com a expulsão daquele.
Não nos parece,
contudo, acertado o posicionamento. A exclusão do sócio, como anteriormente
exposto, trata-se de cláusula resolutiva que pode ser fundada no inadimplemento
por parte do sócio de seus deveres enquanto membro da sociedade ou em outras
previsões legais ou convencionais, justificando-se a expulsão sempre na
conservação da empresa.
Ora, o
entendimento de que a incapacidade superveniente do sócio é motivo de resolução
da sociedade em relação a este, independentemente de prejuízo à sociedade,
representa interpretação que, além de equivocada, por afastar o instituto em
comento do princípio da preservação da empresa, concede à norma caráter flagrantemente
inconstitucional, porquanto atentatória ao princípio da
isonomia, previsto no Art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, ao
discriminar de forma imotivada os sócios incapazes.
Em sentido
diametralmente oposto, Carvalhosa assevera (2003, p. 311) que a incapacidade superveniente
do sócio não poderia jamais ser aplicada às sociedades limitadas, pois
incompatível com o seu caráter misto, de capital e de pessoas, que o autor
atribui a essas sociedades, o qual não se compatibilizaria com essa hipótese de
expulsão.
Assiste certa
razão ao doutrinador, que aponta que a sociedade limitada não tem o caráter
presumidamente pessoal que assumem as sociedades simples, por exemplo. Nada
obstante, falha ele ao afastar completamente das sociedades limitadas a
aplicabilidade desse instituto, aparentemente ignorando as hipóteses em que se
verifica a existência de laços pessoais unindo os sócios das sociedades limitadas,
situações em que a incapacidade superveniente de um deles poderia representar
grave risco à continuidade da empresa.
Cita-se, como
exemplo, o caso de empresas pequenas, em que comumente todos os sócios exercem
atividades que viabilizam a consecução do objeto social, hipótese em que a
incapacidade de um deles poderia representar a inviabilidade da atividade
empresarial.
Se fosse adotada
a posição expressada pelo autor, na situação narrada os demais sócios não
poderiam excluir o incapaz, devendo esperar que seus atos ou omissões causassem
efetivo dano à empresa, o que representaria um grande perigo à continuidade da
sociedade, na contramão da preservação da empresa e, por conseguinte, do
princípio da função social da empresa.
Adotando posição
intermediária, Vio (2008, p. 145-146) afirma que só seria possível a exclusão
dos sócios por incapacidade superveniente quando estivesse previsto no contrato
social algum dever deste em relação à sociedade que não mais pudesse ser
realizado em face da sua incapacidade, o que se justificaria no fato de que nas
sociedades limitadas não seria intrínseco aos sócios nenhum outro dever de
colaboração para a consecução do objeto social além da contribuição para a
integralização do capital social.
No que pese o
valor da posição em questão, por evidenciar que a exclusão do sócio incapaz
estaria relacionada ao papel que ele assumiria junto à sociedade, posição que vai na esteira de que a expulsão deve servir como forma de
preservação da sociedade, peca o autor ao pretender vincular a utilização do
instituto à existência de previsão, no contrato social, de deveres de
colaboração que não mais poderiam ser desempenhados por conta da incapacidade
superveniente, requisito que impossibilitaria a exclusão mesmo quando se
constatasse, no caso concreto, a ameaça que a incapacidade do sócio
representaria à empresa.
Em verdade, a
exclusão do sócio incapaz tem aplicação exatamente nos casos de empresas
pequenas e médias, em que habitualmente as previsões do contrato social não
atendem às minúcias pretendidas pelo doutrinador. Estaria praticamente despida
de eficácia, portanto, a exclusão por incapacidade superveniente.
Melhor critério
para que se meça a aplicabilidade da expulsão do sócio incapaz à sociedade
limitada é a análise da finalidade do instituto da exclusão de sócios,
atentando-se ao princípio da função social da empresa, que deve guiar a atuação
empresarial.
Explicando a
precípua finalidade do instituto em comento, tem-se Nunes (2002, p. 48-49), que
afirma:
A natureza e a função social das sociedades comerciais é que faz delas
factores de enorme interesse social, saltando para fora do âmbito dos contratos
de mero interesse dos participantes. As empresas comerciais representam um valor
económico de organização que é necessário conservar, para salvaguarda do
esforço organizador dos empresários, do direito dos empregados ao trabalho, dos
direitos dos sócios a ver frutificar o seu capital. A ordem jurídica deve, portanto,
facilitar o afastamento daquele sócio cuja presença é elemento pernicioso para
o seu normal funcionamento e para a prosperidade da sua empresa.
Em sentido
similar, tem-se a lição de Comparato (1997, p. 41), que explica que a resolução
parcial da sociedade atende a uma necessidade de proteção da atividade
empresarial, visando à sua continuidade, porquanto reconhecida juridicamente a
sua relevância social e econômica.
A exclusão de
sócios, inclusive daquele incapaz, deve se guiar, portanto, pelo objetivo de
preservar a empresa, o que justifica na sua função social enquanto produtora e
distribuidora de riquezas e instrumento de construção de uma sociedade justa,
livre e solidária. Nessa esteira, ressai como critério por excelência para a
aplicação do instituto em questão o risco que pode a incapacidade superveniente
do sócio representar para a continuidade da sociedade empresária. Essa ameaça
se revela na impossibilidade do sócio de cumprir algum de seus deveres perante
a sociedade, prejudicando suas atividades e arriscando a sua preservação.
Não prejudicando
a incapacidade civil a situação patrimonial do sócio, entretanto, pode-se
afirmar, de antemão, que quando a sociedade limitada se organizar como
sociedade de capitais — isto é, quando forem livremente cessíveis as quotas —
não cabe a exclusão do sócio que por ventura se tornar
incapaz. Ora, em empresas desse tipo o sócio é um mero prestador de capital,
não representando a sua incapacidade superveniente prejuízo à continuidade da
atividade empresarial.
Por outro lado,
quando for sociedade de pessoas a limitada, vislumbrando uma participação e
importância do sócio que vá além de sua prestação pecuniária referente à
integralização do capital social, é possível a exclusão do sócio incapaz. Ao se
aplicar esse instituto, contudo, é necessário ter-se olhos ao caso concreto,
devendo sempre se comprovar que o sócio acometido pela incapacidade tinha, de
fato, participação na sociedade que superasse o mero investimento financeiro e
que restara impossibilitada por conta de sua situação, sendo necessário ainda
se provar que isso representaria prejuízo à sociedade que ameaçaria a sua
preservação.
Não basta ser a
limitada uma sociedade de pessoas para que o sócio incapaz possa ser excluído,
portanto. É necessário igualmente que seja observado uma ameaça à continuidade
da empresa resultante de sua incapacidade, em face de um dever seu em relação à
sociedade que não mais poderá ser cumprido.
Cumpre destacar, por
fim, que os deveres de colaboração do sócio devem ser constatados à luz do caso
concreto, e não pela mera observação do contrato social.
Isso porque a
exclusão do sócio não se relaciona à previsão no instrumento social de um dever
de colaboração que teria sido infringido pelo sócio — aceitar isso seria
acolher a já refutada teoria do poder corporativo disciplinar —, mas sim com
uma necessidade de preservação da empresa justificada no princípio da função
social da empresa.
Tem-se, assim,
uma cláusula resolutiva legal da sociedade em relação ao sócio que, por conta
de incapacidade superveniente, não pode mais cumprir um dever assumido em face
à sociedade, constatado sempre no caso concreto, prejudicando assim a empresa e
ameaçando a sua continuidade.
Apesar de as
conclusões sustentadas serem plenamente aplicáveis à ordem jurídica pátria em
seu estado atual, por significarem interpretação do Art. 1.030 do Código Civil
de 2002 à luz do princípio da função social da empresa, é importante que à
matéria seja conferido tratamento legislativo aprimorado, que afaste dúvidas
quanto ao significado da norma em discussão.
Sendo assim,
propõe-se, de lege ferenda, que à
redação do dispositivo discutido seja incluída, após a menção à incapacidade superveniente
como causa de exclusão do sócio, a ressalva de que esta só seria possível
quando impusesse “risco à continuidade da empresa, verificado na impossibilidade
de cumprimento, por parte do sócio incapaz, de prestações fundamentais à
consecução do objeto social”.
Isto
posto, tem-se que o
instituto da exclusão do sócio representa uma aplicação do princípio da função
social da empresa, mais particularmente no que se refere à preservação desta.
Deste modo, só é possível a expulsão do sócio incapaz quando este representar
um risco à continuidade da sociedade, o que não se dá na generalidade dos
casos, mas, conforme demonstrado, apenas nas sociedades limitadas que são
sociedades de pessoas e somente quando houver por parte do sócio incapaz um
dever de colaboração em relação à empresa que, não mais exercido por conta da
incapacidade, represente um risco à preservação desta. Ademais, é interessante
que haja o aprimoramento do tratamento legislativo da matéria, explicitando-se,
na redação do Art. 1.030 do Código Civil de 2002, que o ali previsto só é
aplicável em havendo risco à continuidade da empresa.
No presente
trabalho, estudou-se a exclusão motivada por incapacidade nas sociedades
limitadas, procurando estabelecer seus critérios de aplicação com base no princípio
da função social da empresa.
Primeiramente se
expôs um panorama histórico da função social, desde sua origem como postulado
metajurídico que justificava a tutela de certas matérias pelo direito, até o
cenário atual, em que se reconhece a sua imediata aplicabilidade e caráter
constitucional, chegando-se inclusive a desdobramentos da funcionalização patrimonial,
tais como a função social dos contratos e da empresa.
Em segundo lugar,
analisou-se de forma mais detida o princípio da função social da empresa,
demonstrando ser ele corolário do princípio da função social da propriedade,
sendo de ordem constitucional, portanto. Ademais, buscou-se esclarecer seu
significado, concluindo-se que se trata de princípio que busca funcionalizar a
empresa para se alcançar não só os interesses privados, mas também interesses
da coletividade, o que tem desdobramentos práticos tais como a procura de
igualdade substancial dentro das relações empresariais, com a proteção dos
sócios minoritários, dos trabalhadores e daqueles que contratam com a empresa,
bem como a preservação desta, eis que de assumida relevância social e econômica
na atualidade.
Por fim, investigou-se as construções doutrinárias acerca do
instituto da exclusão de sócios e, de forma mais específica, em relação à exclusão
de sócios incapazes na sociedade limitada, apresentando-se e tecendo-se
críticas aos principais posicionamentos.
No que se refere
à definição dos critérios de aplicação, concluiu-se que, para determina-los, há
de se atentar ao princípio da função social da empresa, que justifica a
possibilidade da exclusão de sócios ao zelar pela preservação daquela.
Imperioso, por
conseguinte, que o instituto só seja utilizado quando a incapacidade
superveniente do sócio importar risco à continuidade da sociedade, o que só se
pode verificar nas sociedades limitadas que são sociedades de pessoas, e apenas
nos casos em que o sócio tenha algum dever de colaboração, a ser aferido no
caso concreto, que diante de sua condição não mais poderá ser desempenhado,
representando prejuízo à empresa que ameace a sua preservação.
Ademais, no que
pese estes critérios já serem aplicáveis, por se tratarem de delimitação do
instituto da exclusão de sócios, à luz do princípio da função social da
empresa, é importante que haja o aprimoramento do tratamento legislativo da
matéria, sugerindo-se, de lege ferenda,
que se acrescente à redação do Art. 1.030 do Código Civil de 2002 que a
exclusão de sócio por capacidade superveniente só seria possível quando impusesse
“risco à continuidade da empresa, verificado na impossibilidade de cumprimento,
por parte do sócio incapaz, de prestações fundamentais à consecução do objeto
social”.
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