EMPRESA CONTEMPORÂNEA E A PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

João Luis Nogueira Matias

Doutor em Direito Público pela UFPE. Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UNI7 e da UFC. Juiz Federal.

joaoluisnm@uol.com.br

Mônica de Sá Pinto Nogueira

Mestranda em Direito Privado na UNI7. Advogada.

monica.pintonogueira@gmail.com

RESUMO. A empresa é instituto que está em constante transformação, adquirindo novas dinâmicas e padrões sempre com o objetivo de obter melhor eficiência econômica. A empresa contemporânea segmentou seu processo produtivo de bens, suscitando novos modelos de organização da atividade empresarial, do que são exemplos os grupos de sociedades unificados pelo poder de controle. Nesse âmbito, a empresa foi reconhecida como agente organizador da atividade produtiva e econômica, assumindo, assim, a função de agente econômico. Diante dessa dinâmica, não se pode deixar de reconhecer que, ao lado dos interesses privados, coexistem interesses alheios aos dos sócios. Logo, o direito societário incorporou a disciplina dos interesses internos e externos da empresa, abrangendo, portanto, os interesses dos sócios, empregados, fornecedores, consumidores e da comunidade em geral, entre outros. Os grupos de sociedades ganharam cada vez mais importância, chegando a ser considerados um dos principais formatos organizativos da atividade empresarial, e, por isso, requer que seus limites de atuação sejam delineados. Nesse sentido, evidenciam-se instrumentos internacionais, como, por exemplo, os Princípios Norteadores de Direitos Humanos e Empresas da ONU e as Diretrizes da OCDE para empresas multinacionais, que servem de parâmetro para a responsabilização civil das empresas em face das suas cadeias de produção globais.

PALAVRAS-CHAVE: Empresa. Direitos humanos. Função pública das empresas. Grupos de sociedades. Cadeias de produção.

Contemporary firm and the protection of human rights

ABSTRACT: The Firm is an institute in constant transformation, acquiring new dynamics and patterns in order to develop a better economic efficiency. The contemporary firm segmented its good-production process, enhancing new forms to organize the economic activity, among others the society groups unified by power of control. In this context, the firm was recognized as the organizing agent of the productive economic activity, assuming, thus, the function of economic agent. Whiten this dynamic, it must be recognized that, beside the private interests coexists interests others than the partner's. Soon societary law incorporated the discipline of the internal and external interests of the firm, covering, there after, the interets of partners, employees, suppliers, consumers and the community in general, among others. The society won even more importance, going as far as been considered the most important organizative layout of the entrepreneurial activity and, thus, requiring the delineation of its operating boundaries. In this regard, international instruments are caught in the spotlight, for example, the United Nations Guiding Principles in Business and Human Rights and the OECD guidelines for multinational enterprises, that work as parameter for the civil liability of firms in the global production chains.

KEYWORDS: Firm. Human rights. Public function of the firms. Groups of companies. Global production chains.

Introdução

No contexto da globalização econômica, diversos institutos jurídicos têm se transformado, o que também se dá com a empresa. A segmentação dos processos produtivos de bens e sua consequente dispersão geográfica em cadeias de produção globais impulsionaram um novo modelo de empresa, constituída, como sabido, por um feixe de contratos, que pode levar à constituição de grupos societários.

Por sua vez, os grupos societários, em face das transformações de mercado e da complexa interdependência da empresa em relação aos seus modos de produção, mostram-se em múltiplas maneiras de organização, expressos em constate mutação, sem obedecer os limites de cada personalidade jurídica participante. Desse modo, as forças globalizantes aliadas às estratégias empresariais de reorganização da produção em cadeias produtivas globais dão ensejo à evolução do direito societário.

A empresa passa a ser definida como organização de fatores de produção ou circulação de bens e serviços, ou seja, é reconhecida como agente organizador da atividade produtiva e gestora das propriedades privadas, tornando-se elemento imprescindível para os modos de produção capitalista, assumindo a função de agente econômico.

Acompanhando essa dinâmica, o direito societário passa cada vez mais a ter um viés publicista, incorporando às sociedades empresariais a função de preservar outros interesses além dos interesses dos sócios, que abrangem todos os demais interesses que circundam à sociedade empresarial.

Ao longo do século XX, o fenômeno dos grupos de sociedades assumiu grande importância, sendo considerados uma das principais modalidades de organização da atividade empresarial. Os grupos de sociedade possuem estrutura organizacional que lhes conduzem inevitavelmente às técnicas de controle e de coligação, que, por seu turno, se amoldam aos interesses das grandes empresas multinacionais.

Não obstante, a criação dos grupos societários permitiu ainda mais a concentração do poder econômico, aumentando a desigualdade social. E, em razão disso, desenvolvem-se instrumentos para delinear seus limites de atuação. Diante do atual ordenamento jurídico, impõe-se às empresas um papel além do que tinham outrora, quando se vislumbrava unicamente o lucro, tendo em vista que a atividade destas atinge a sociedade em uma perspectiva social tanto quanto a própria ordem econômica.

Nesse sentido, apontam-se relevantes instrumentos internacionais, que servem de parâmetro para a responsabilização das empresas no que diz respeito aos direitos humanos, dentre os quais se destacam, os ‘Princípios Norteadores de Direitos Humanos e Empresas’, elaborados pela Organização das Nações Unidas (ONU), e as Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico(OCDE) para empresas multinacionais, que consistem em recomendações para uma conduta empresarial responsável no contexto global.

Em tal contexto, despontam os seguintes questionamentos: sob a perspectiva jurídica, o modelo de empresa contemporânea está adequado ao direito societário? No atual contexto, em que a empresa é compreendida como uma atividade econômica organizada, quais são seus interesses internos e externos? Como e em que proporção os grupos de sociedades estão relacionados às cadeias de produção globais? De acordo com os princípios da ONU e com as diretrizes da OCDE, como e em que medida os grupos de sociedades são responsáveis pela efetivação dos direitos humanos?

Com o objetivo de responder a tais questionamentos, pretende-se investigar, inicialmente, sob a perspectiva jurídica, se o modelo de empresa contemporânea está adequado ao direito societário. Em seguida, com suporte na ideia de empresa-instituição, abordam-se os interesses internos e externos da empresa, para depois analisar os grupos de sociedades e sua relação com as cadeias de produção globais. No último capítulo, verifica-se se os princípios da ONU e as diretrizes da OCDE permitem novas perspectivas para a responsabilidade dos grupos de sociedade por descumprimento dos direitos humanos.

Ao final serão apresentadas as conclusões.

Recorre-se ao método sistêmico para realizar pesquisa qualitativa e bibliográfica.

1  A empresa contemporânea e a evolução do direito societário

A modificação contemporânea pela qual a empresa passa não é sintetizada de maneira simples, haja vista o fato de estar diretamente relacionada à complexidade social e econômica, que implica em alterações paradigmáticas no próprio direito societário. Acompanhando esse movimento desde a Idade Média até os dias atuais, à medida que o mercado evolui, surgem e desenvolvem-se distintos modelos de empresa, que alteram gradativamente seus modos de produção (SALOMÃO FILHO, 2015, p. 35).

Como consequência, o Direito Comercial também é alterado. Numa primeira fase foi elaborado com base nos costumes e nas regras das corporações de ofício, tendo por objeto apenas as atividades do comerciante. Depois foi ampliado, passando a abarcar todos os atos de comércio, independentemente da caracterização do sujeito que o praticasse. E, mais tarde, já em uma terceira etapa, a ideia de Direito Comercial desloca-se do "‘ato de comércio" para a "atividade econômica organizada", ou seja, a empresa (FORGIONI, 2016, p. 40-42, 49, 72-73).

Assim, a empresa, em todos os seus formatos, passa a ser o núcleo central do direito comercial.

Nesse sentido, Paula A. Forgioni (2016, p. 75) expressa que, “Mais uma vez, ao mesmo tempo que viram as páginas da história, também progride a técnica, modificam-se as estruturas políticas, sociais e econômicas, e evoluem os sistemas jurídicos. Não escapa à regra o direito que regula a atividade produtiva para o mercado”.

É no contexto de tais inovações que, para Eduardo Munhoz (2002, p. 4-5), o atual formato organizacional da atividade empresarial tem como pressuposto a existência de estruturas organizacional e patrimonial próprias, voltadas à consecução de interesses que vão além dos interesses dos sócios.

Com efeito, já alertava John Kenneth Galbraith (1982, p. 59-60), nas grandes sociedades os empresários cederam lugar à tecnoestrutura. A liderança da empresa no passado era exercida exclusivamente pelo empresário, sendo este, então, que unia a propriedade ou o controle de capital às inovações. Com o advento da nova concepção de empresa, cuja organização separa a propriedade do controle da empresa, o empresário não existe mais como pessoa individual. Ele foi substituído por uma entidade coletiva. A direção da empresa moderna é formada por “[…] inúmeros indivíduos que estão empenhados, em qualquer tempo determinado, em obter, digerir ou trocar e analisar informações. […] Por conseguinte, a decisão na empresa moderna é produto não de indivíduos, porém de grupos”.

No mesmo sentido, Eduardo Munhoz (2002, p. 73): “Em face dessa estrutura, abre-se caminho para a dissociação entre a propriedade do capital e o controle societário-empresarial, permitindo-se a criação de uma estrutura administrativa técnica e especializada (tecnocracia)”.

As modificações são bem mais amplas, seguindo além das alterações internas na empresa, ensejando novas formas de empresa e impactando a relação entre empresas diferentes.

A evolução da realidade econômica deu ensejo a diversas modalidades de organização da atividade empresarial, destacando-se os grupos societários e as múltiplas manifestações do poder de controle.

Até pouco tempo, de acordo com Fábio Comparato (1996, p. 40), a estrutura organizacional das grandes empresas era a de um grupo societário de subordinação, abrangendo uma sociedade controladora e várias controladas, que, por sua vez, eram hierarquizadas piramidalmente, fixando-se a empresa holding em seu topo.

Não obstante, com o advento da descentralização da cadeia de produção, houve múltiplas manifestações pela adoção do esquema reticular, que refuta o modelo de empresa tradicional, com participação societária de capital, aproximando-se de um modo de organização que é constituído por uma rede de contratos, fato significativo de que é um grupo de coordenação. Continua o autor, destacando que a sociedade controladora tem apenas a função de governo sobre as outras empresas, “[…] fornecedoras de componentes ou matérias-primas, fabricadoras dos produtos acabados, pesquisadoras de novos produtos e novos mercados, ou distribuidora em diferentes mercados nacionais” (COMPARATO, 1996, p. 41).

Nesse sentido, José Engrácia Antunes (1994, p. 153) entende que, “A empresa de grupo (ou plurissocietária) constitui uma nova e revolucionária forma de organização da empresa moderna, alternativa aos tradicionais modelos da empresa individual e da empresa unissocietária”.

Nesse âmbito, é fundamental se ter uma visão de como o poder econômico das empresas se revela ante seus interesses internos e externas. E é com base nesse novo panorama de empresa que se realizará o exame dos seus interesses.

2  Função pública da empresa: interesses internos e externos

Consoante exprime Eduardo Munhoz (2002, p. 27), a grande dicotomia entre o direito público e direito privado vem sendo ultrapassada pelo sistema jurídico, haja vista que, desde o Estado social, deixou de existir uma separação estanque dos interesses público e privado. Reconheceu-se, com efeito, uma nova categoria de “agentes privados, investidos de funções sociais”.

Segundo esse autor, o direito societário afasta-se do direito privado, que, por sua vez, é exclusivamente destinado a regular os interesses dos agentes econômicos, numa concepção liberal de laissez-faire, incorporando às sociedades empresariais a função de constituir instrumentos de implementação de políticas públicas, que promovam os valores consagrados pelo ordenamento jurídico.

A empresa passa a ser definida, pois, como uma organização de fatores de produção ou circulação de bens e serviços, ou seja, está inserida na ordem econômica[1] como agente organizador da atividade produtiva e gestora das propriedades privadas, além de ter, dentre seus deveres, o atendimento à justiça social (art. 170, CF/​88). Desse modo, a empresa constitui elemento imprescindível para o modo de produção capitalista, nos moldes definidos na Constituição, passando a ser entendida como um agente econômico (FORGIONI, 2016, p. 93-96).

Como se vê, não cumpre mais ao direito societário apenas a disciplina dos interesses internos, ou seja, dos sócios exclusivamente, mas também daqueles externos, que abrangem todos interesses que circundam a sociedade empresarial, dentre os quais se realçam os dos empregados, fornecedores e consumidores (MUNHOZ, 2002, p. 29).

Nesse intento, a lei de sociedade por ações faz alusão aos interesses internos e externos da empresa, ao prever em seus artigos 116 e 154, respectivamente, que o acionista controlador deverá ter em conta os interesses dos demais acionistas, dos seus trabalhadores, bem como o da comunidade em que atua; ao mesmo tempo, determina que o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferirem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.[2]

Desse modo, segundo Fábio Comparato (1996, p. 44), “[…] a lei reconhece que, no exercício da atividade empresarial, há interesses internos e externos, que devem ser respeitados […]”. De fato, a lei societária determina que tanto as pessoas que contribuem diretamente para o funcionamento da empresa, como também os interesses da ‘comunidade’ em que ela atua, devem ser considerados.

É na mesma linha que Eduardo Munhoz (2002, p. 38) defende que a teoria institucionalista da sociedade suscita que “[…] as sociedades existem e se desenvolvem não para atender aos interesses dos sócios (dos capitalistas), mas sim para servir ao interesse público representado pela empresa, como organização que transcende a sociedade comercial”.

Na compreensão desse autor, a teoria institucionalista volta-se à função econômica de interesse público da macroempresa, indicando a valorização do órgão de administração da sociedade empresária. Assim, ainda que em detrimento do interesse dos sócios deve se ater à autopreservação da unidade produtiva.

Malgrado o disposto, Fábio Comparato (1983, p. 301) alerta para a noção de que o reconhecimento dos interesses externos da sociedade não implica dizer que esta tenha como objetivo primordial, senão único, o interesse coletivo. Ora, é evidente que toda empresa tem dentre seus objetivos o lucro, o que não o torna, entretanto, um direito absoluto. Nesses termos, apesar da afirmação legal de que a empresa tem como escopo o lucro (art. 2º, Lei 6404/​76)[3], “[…] a liberdade individual de iniciativa empresária não torna absoluto o direito ao lucro, colocando-o acima do cumprimento dos grandes deveres de ordem econômica e social, igualmente expressos na Constituição”.

Com efeito, a empresa tem a função de estabelecer regras que proporcionem à máxima eficiência dos seus interesses internos e externos. “Uma eficiência não apenas produtiva, mas distributiva, que assegure duradoura prosperidade, rentabilidade e repartição equitativa de resultados entre todos os participantes da atividade empresarial” (MUNHOZ, 2002, p. 93-101).

É com essa perspectiva que se refletirá a seguir acerca dos grupos de sociedade e as cadeias de produção globais.

3   Os grupos de sociedades e as cadeias de produção globais

Como decorrência da globalização, ao longo do século XX, o fenômeno dos grupos de sociedades ganhou dimensão no plano nacional e internacional, sendo considerados uma das principais formas organizativas da atividade empresarial. Certamente, os grupos de sociedades possuem estrutura organizacional que as conduz inevitavelmente às técnicas de controle e de coligação. Por sua vez, esse conjunto de métodos é considerado como sistema jurídico inerente à organização das empresas multinacionais, predominado, portanto, em tempos de economia globalizada. Assim sendo, as multinacionais ou transnacionais, sob o aspecto jurídico, muita vez se identificam com os grupos de sociedades (MUNHOZ, 2002, p. 93-101).

Segundo Engrácia Antunes (1993, p. 12), há informações de que na Bélgica os grupos de sociedade de maior porte têm, muita vez, mais de cem sociedades controladas ou coligadas. Na Alemanha, estima-se que 92% das sociedades anônimas estão, de algum modo, coligadas. Na França, as empresas plurissocietárias representam cerca de 50% do volume total de negócios industriais, 60% dos investimentos, 40% da população economicamente ativa e 80% do total da produção industrial. No que diz respeito à Inglaterra, foi realizado um estudo em 1981, o qual revelou que as 50 sociedades de maior porte têm mais de 10.000 subsidiárias. Em Portugal, no início dos anos de 1990 foram verificados grupos empresarias privados que tinham, em média, mais de 50 sociedades. Nos Estados Unidos, “[…] os cem maiores grupos industriais realizam aproximadamente 40% do volume de negócios global e possuem quase que 50% da totalidade do ativo patrimonial da indústria ianque. E como não poderia deixar de ser, no Japão, em pesquisa realizada em 1987, verificou-se que investidores institucionais retinham 39,3% das ações das sociedades japonesas e que outras sociedades detinham 25,6%, o que perfaz um total de 64,9%.

Em síntese, de acordo com pesquisa realizada por Engrácia Antunes (1994, p. 13), “[…] as sociedades comerciais apresentam-se organizadas em grupos nos seguintes índices: 70% das sociedades comerciais na Alemanha; 50% na Suíça; 60% na França; 55% na Inglaterra; 65% nos Estados Unidos e 88% no Japão”.

Eis um fenômeno mundial.

Malgrado o disposto, convém observar que existem diversas formas de organização de grupos, que se mostram em constate mutação, sem obedecer os limites de cada personalidade jurídica participante do grupo (MUNHOZ, 2002, p. 123).

Na realidade, de acordo com Eduardo Munhoz (2002, p. 126-132), desde os anos de 1980, as macroempresas, organizadas, regra geral, em conglomerados, iniciaram um movimento de redução do tamanho e do escopo. O sistema produtivo de altíssima competitividade e inovação, inerente ao mundo dos negócios – core business – tornou ineficientes nos conglomerados, decorrendo daí a descentralização das cadeias de produção, que, por sua vez, se especializaram, transferindo para o mercado as atividades antes desenvolvidas internamente.

Não se pode deixar de observar, portanto, que as cadeias de produção assumiram papel primordial na organização dos grupos de sociedade, haja vista que, com base em controle externo, segmentaram-se em grupos de subordinação e/​ou coordenação. De fato, como bem explica esse autor, criou-se uma relação entre as sociedades contratante e contratada, que não é mais baseada na propriedade capital, mas em modalidade de controle externo. Os grupos de sociedades transformaram-se em unidade empresarial, “[…] na medida em que os recursos são orientados pelo mecanismo de autoridade e direção, e não pelo sistema de preços, que caracteriza as relações de mercado”.

Ainda consoante esse autor, os grupos de sociedade, que antes via de regra tinham suporte em vínculos de participação de capital, passaram a se formar por meio de relações contratuais. Desse modo, além de gerarem situações de controle externo em diversos graus, permanecem em constante mutação, adequando-se às exigências do mercado. Aliás, os grupos de sociedades representam a principal modalidade de “[…] organização da atividade empresarial contemporânea em virtude de sua capacidade contínua expansão e concentração às exigências de flexibilidade e diversificação funcional, setorial e geográfica impostas pela economia globalizada”.

Desde os anos de 1970, as empresas multinacionais passaram por uma fase de reestruturação, em que as suas atividades relacionadas a manufatura, e, gradativamente, outras atividades antes consideradas centrais, são deslocadas para outras empresas independentes (outsourcing) ou ainda para organizações de outros países (offshoring), significando a globalização da produção, como bem explica Susan Elisabeth de Oliveira (2015, p. 54-60):

A globalização da produção, por fim, pode ser entendida como um processo de internacionalização, fragmentação e dispersão geográfica das atividades produtivas, ou dos vários estágios de produção ao longo da cadeia produtiva de bens e serviços, somada a uma profunda integração funcional entre esses segmentos. […] Este processo tem sido desenvolvido por meio das empresas transnacionais e seus parceiros e fornecedores, formando as cadeias de valor globais.

Segundo essa autora, a fragmentação produtiva avança concomitantemente às decisões estratégicas corporativas de especialização ou concentração da empresa em atividades centrais (core competencies). Delegam-se, portanto, as outras atividades à medida que há redução de custos para a empresa.

Não obstante, como bem atenta Calixto Salomão Filho (2015, p. 105): “Ao lado das estruturas criadas pelo mercado e aquelas criadas pelo Direito, há um terceiro tipo, tão ou mais preocupante do ponto de vista jurídico, de estrutura concentradora de poder econômico”. Com efeito, a existência de um poder econômico dominante tem efeitos deletérios tanto quanto ou mais do que nas situações de poder de livre mercado.

A criação das multinacionais permitiu a concentração do poder econômico de tal maneira que promoveu desigualdade social ainda maior, o que, por sua vez, dá ensejo ao desenvolvimento de instrumentos, cujo objetivo é coibir os abusos do poder econômico. Assim, ante o atual ordenamento jurídico, como já ressaltado, reverbera-se a ideia de que as empresas desempenhem um papel além do que era outrora ideal, quando se vislumbrava unicamente o lucro, tendo em vista que a atividade destas atinge a sociedade numa perspectiva social tanto quanto a própria ordem econômica.

Com a globalização da economia, as fronteiras dos países abriram-se à livre circulação dos capitais, bens e serviços, sem, contudo, incluir socialmente os seres humanos. A concentração de renda e poder em escala mundial acompanharam pari passu a globalização do mercado, acarretando “[…] o trágico aumento - estatisticamente comprovado - dos marginalizados e excluídos em todas as partes do mundo, nesta mais recente manifestação de um perverso neodarwinismo social” (TRINDADE, 2006, p. 421).

Reforça-se, portanto, a imprescindibilidade da transição do direito comercial, de um patamar eminentemente privado em direção a ideais voltados também ao coletivo, valorizando iniciativas econômicas e sociais que agregam a comunidade como um todo. Com efeito, a formação de um ambiente corporativo voltado também às contingências sociais ainda é bastante tímida, o que representa a urgência da conscientização empresarial para o fato de que a busca pelo lucro precisa ser relativizada perante a desigualdade social.

Para tanto, o reconhecimento da responsabilização das empresas no que diz respeito aos direitos humanos é um ponto essencial.

4   Direitos humanos nas empresas multinacionais

A responsabilização dos grupos de sociedades transnacionais extrapola a disciplina jurídica delineada no direito societário, pois, as várias sociedades integrantes do grupo, muita vez, submetem-se a ordenamentos jurídicos distintos. Numa visão tradicional do direito societário, nestes casos, a responsabilidade recai apenas na subsidiária que diretamente causa algum prejuízo, seja em relação ao meio ambiente, aos consumidores, ou aos trabalhadores (TOMAZETTE, 2014, p. 154-155). Não obstante, essa lógica parece insuficiente e ineficaz.

Nesse sentido, evidenciam-se relevantes instrumentos internacionais, que servem de parâmetro para a responsabilização das empresas no que diz respeito aos direitos humanos, dentre os quais se destacam a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), inferindo-se que, para a proteção aos direitos e garantias fundamentais das pessoas e da coletividade como um todo, é necessário o envolvimento dos Estados, instituições intergovernamentais e não governamentais (PINTO, 2014, p. 13).

Mais do que isso, além dos Estados, instituições intergovernamentais e não governamentais, a observância dos direitos humanos deve ser imposta às empresas, investidores e agências de fomento ao desenvolvimento, especialmente pelos grupos de sociedades, haja vista que é, como já visto, mediante a globalização de mercados, a forma predominante da atividade econômica organizada. Por certo, a prática dos direitos humanos nas empresas tem influenciado, cada vez mais, decisões que abrangem fusões e aquisições, processos de due diligence, auditorias e avaliações de risco empresarial e financeiro dos negócios.

Em 2008, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou relatório, denominado ‘Proteger, Respeitar e Remediar’, determinando ao Estado garantir a proteção dos direitos humanos nas empresas; impõe à empresa o dever de respeitar os direitos humanos concernentes às suas cadeias produtivas e entorno, sobretudo, prevenindo os riscos e mitigando os influxos negativos da atividade empresarial; determinando, ainda, que ambos garantam mecanismos de remediação judicial ou extrajudicial.[4]

Depois disso, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou, em 2011, os "Princípios Norteadores de Direitos Humanos e Empresas", que se consolidaram como comando fundamental para as corporações, investidores e avaliadores de risco. Esses princípios consistem, sobremaneira, na disseminação de política de direitos humanos; due diligence que garanta a identificação de riscos e influências existentes ou potenciais; determinação de ações e dotações orçamentárias que façam frente aos riscos identificados; acompanhamento por meio de indicadores; e comunicação pública sobre a maneira de tratar riscos e influxos identificados.

Desse modo, esses princípios norteadores dos direitos humanos fomentam o debate internacional sobre a responsabilidade social das empresas, em especial, no que diz respeito à elaboração conceitual relativa à due diligence em relação aos impactos sociais e de direitos humanos, bem como o da responsabilidade no âmbito da esfera de influência das empresas. (DIEESE, 2012)

Os princípios orientadores reconhecem que o Estado e as empresas possuem papéis diferentes em relação aos Direitos Humanos; não obstante, obrigam a ambos o seu cumprimento. Nesse sentido, preveem que o Estado tem a obrigação de respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos e as liberdades fundamentais, ao mesmo tempo em que, estabelecem para as empresas o papel de cumprir as leis e respeitar os direitos humanos, devendo ambos responder pela reparação em caso de violação de tais direitos.

Com efeito, o Estado tem o dever de estabelecer o que se espera das empresas em termos de respeito aos direitos humanos por meio de legislação, pelo sistema judiciário e pelo Poder Executivo.

As empresas hão de respeitar os direitos humanos, significando que, além de evitarem infringi-los, devem dar tratamento adequado aos efeitos deletérios imanentes de suas atividades, que possam vir a ocorrer sobre os direitos humanos. Assim sendo, têm de adotar medidas adequadas de prevenção, mitigação e, quando apropriado, de remediar a ofensa aos direitos humanos.

Efetivamente, os princípios norteadores dos direitos humanos preveem três situações distintas. Na primeira, predizem que as atividades da empresa causam influências adversas sobre os direitos humanos por suas próprias atividades, como, por exemplo, quando expõe seus empregados a riscos no trabalho sem o adequado equipamento de segurança. Na segunda situação, estabelece a responsabilidade da empresa nas hipóteses que esta contribui para impactos adversos causados por um terceiro, como, por exemplo, nos casos dos grupos de sociedades, haja vista que, regra geral, as empresas descentralizam suas cadeias de produção de bens por meio de outsourcing e offshoring. E, por último, configura-se a responsabilidade da empresa, inclusive, quando há impactos negativos sobre os direitos humanos decorrentes da sua atividade produtiva, ainda que esta não tenha contribuído diretamente, tal como em situações nas quais um banco empresta recursos para uma terceira empresa cujas atividades levam à remoção de uma comunidade de suas terras tradicionais (DIEESE, 2012).

Os princípios recomendam, pois, a adoção, pelas empresas, de políticas de compromisso com os direitos humanos e de processos que os viabilizem, tais como a diligência devida e a reparação de impactos. Desse modo, o conceito de diligência devida constitui um inato contínuo de identificação, prevenção, mitigação e prestação de contas sobre a atuação das empresas no que diz respeito aos direitos humanos (SANOMIYA; MORAES, 2015)

Com suporte nesses princípios, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também estabeleceu diretrizes para as empresas multinacionais, que, por seu turno, se traduzem em um conjunto de recomendações governamentais, visando ao comportamento empresarial responsável e consistente com as leis e normas internacionais.[5]

Isso porque, ante a globalização do mercado, o panorama dos investimentos internacionais e das empresas multinacionais está em constante evolução, ao mesmo tempo em que novos e mais complexos padrões de produção surgem e, por isso, as Diretrizes da OCDE incorporaram um novo capítulo sobre direitos humanos e de princípios sobre a necessidade da realização de “due diligence”.

Os princípios da ONU, portanto, influenciam o debate internacional sobre a responsabilidade social das empresas, eminentemente, na elaboração conceitual relativa à diligência devida em relação aos influxos sociais e de direitos humanos, bem como a responsabilidade no âmbito da esfera de influência das empresas (DIEESE, 2012).

Como se vê, apesar de as empresas serem fundamentais na geração de empregos e riquezas no mundo, salienta-se que, em uma economia globalizada, estão sujeitas às leis internacionais concernentes a proteção aos direitos humanos. Decerto, a empresa é responsável pela sua cadeia de produção como um todo. A empresa responde pelos impactos de suas decisões e atividades sobre as quais exerça controle externo, ou, ainda, nas situações em que a empresa não tiver a autoridade legal ou formal para tanto, mas esteja de algum modo sendo beneficiada por suas atividades produtivas.

Conclusão

As demandas econômicas impulsionam as transformações sociais, repercutindo, de forma inevitável, nas normas jurídicas. O exercício da atividade econômica organizada já não cabe apenas nos moldes tradicionais, tendo sido criados novos modelos de empresa, que demandam regulação jurídica adequada.

A regulação jurídica adequada deve considerar que a empresa-instituição é um agente econômico de desenvolvimento, que interage de fato com a realidade social, devendo sua conduta ser pautada pelo reconhecimento e proteção de todos os interesses que a circundam. Além dos interesses dos sócios, devem ser resguardados os interesses da empresa em si, dos empregados, dos fornecedores, dos consumidores, bem como de toda a coletividade.

Os grupos de sociedade e as cadeias de produção globais possuem uma relação intrínseca. A segmentação dos processos produtivos de bens e sua consequente dispersão geográfica em cadeias de produção globais impulsionaram um intrincado arcabouço relacional entre os grupos de sociedades, que os torna praticamente indissociáveis. Esse fenômeno é caracterizado por complexas inter-relações entre empresas, formando um extenso feixe de contratos, que, muita vez, ultrapassa os limites de cada personalidade jurídica, sem, contudo, assumir alguma responsabilidade. Isto, por si, já justifica a necessidade de reformas estruturais jurídicas, econômicas e sociais.

A realidade dos grupos societários ultrapassa o padrão comumente tratado pelo direito societário, evidenciando-se, nesse sentido, a necessidade de responsabilização das sociedades integrantes desses grupos. A responsabilização dos grupos societários, especialmente nas cadeias produtivas globais, ainda não está bem delineada, importando identificar o alcance da responsabilidade empresarial em direitos humanos.

Não obstante, em razão das novas normas internacionais, como, por exemplo, os princípios norteadores da ONU e as Diretrizes da OCDE, os grupos societários tendem a ser responsabilizados por sua cadeia de produção global, tenha dela se beneficiado diretamente ou não.

Referências

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WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UnB, 2012, v. I.

Recebido em: 30 jan. 2018.

Aceito em: 15 mar. 2018.

 



[1]    Segundo Max Weber (2012, p. 209), a ordem econômica é a distribuição do efetivo poder de disposição sobre bens e serviços econômicos, que resulta consensualmente do modo de equilíbrio de interesses e da maneira como a ordem jurídica e a economia social são de fato empregados.

[2]    Art. 116, parágrafo único, Lei 6.404/​76.  O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Art. 154, caput, Lei 6.404/​76. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

[3]    Art. 2º, caput, Lei 6.404/​76. Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.

[4]    NAÇÕESUNIDAS.ORG. Princípios Norteadores de Direitos Humanos e Empresas. Disponível em: <https://​nacoesunidas.org/​conselho-de-direitos-humanos-aprova-principios-orientadores-para-empresas/​>. Acesso em: 22 out. 2017.

[5]    PCN. Ponto de Contato Nacional das Diretrizes da OCDE para as empresas multinacionais. Disponível em: <http://​www.pcn.fazenda.gov.br/​assuntos/​ocde/​diretrizes-da-ocde-para-as-empresas-multinacionais>. Acesso em: 24 out. 2017.