O IPVA E AS POLÊMICAS EM TORNO DA ABRANGÊNCIA DA EXPRESSÃO “VEÍCULOS AUTOMOTORES” E DA DIFERENCIAÇÃO DE ALÍQUOTAS EM FUNÇÃO DOS “TIPOS” DE VEÍCULOS: REFLEXÕES ACERCA DA ADI Nº 5654

Fernanda Mara Macedo Pacobahyba

Doutoranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

E-mail: pacmara9@yahoo.com.br

Fabiana Del Padre Tomé

Doutora e Mestre em Direito do Estado, com concentração em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Assistente de Coordenação no Curso de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP. Professora nos cursos de Especialização, Mestrado e Doutorado da PUC/SP. Professora do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogada.

E-mail: fabiana@barroscarvalho.com.br

RESUMO: O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), de competência dos Estados e do Distrito Federal, revela baixa densidade normativa dispondo acerca das previsões contidas no art. 155, da Constituição Federal. Diferentemente de outros impostos contidos na CF, o IPVA não possui lei complementar que atenda ao disposto no art. 146 da CF, o que dificulta sobremaneira a pragmática do imposto, sempre envolta em alguns conflitos entre os entes federativos. A questão mais emblemática acerca do IPVA, e que vem sendo reiteradamente sustentada pelo STF, refere-se ao alcance da expressão “veículos automotores”. Sustentando-se em uma retórica “interpretação histórica”, o STF vem dando azo a uma diminuição da largueza que o texto normativo constitucional permitiria, o que parece contrariar a Ciência do Direito e, em especial, as valiosas contribuições que o estudo da linguagem tem permitido ao Direito, notadamente ao se partir do conceito de que direito é linguagem, nos moldes do Constructivismo Lógico-Semântico. Ainda mais, a tendência apontada na petição inicial da ADI nº 5654, parece colmatar-se com mais um amesquinhamento do imposto, por conta de se olvidar as múltiplas categorias tipológicas que podem ser estabelecidas para os diversos fenômenos e, dentre eles, para o fenômenos jurídico. Assim, o presente trabalho conjuga a análise da jurisprudência e da doutrina relativas a essas temáticas, estabelecendo o foco de uma interpretação a partir do texto constitucional e que prestigie o fenômeno da realidade como construtor das normas jurídicas. Sob tal ponto de vista, pretende-se lançar um novo olhar sob a forma de interpretar a Constituição Federal e que não desperdice tal documento documento normativo sob o pálio de uma hermenêutica que atenda à intenção do legislador ou mesmo à vontade da lei.

PALAVRAS-CHAVE: IPVA; Constructivismo Lógico-Semântico; Hermenêutica; Veículos automotores; Tipos de veículos automotores.

“IPVA” and the controversies over the extent of the expression “automotive vehicles” and the differentiation of rates concerning the “types” of vehicles: reflections on the ADI n. 5654

ABSTRACT: The Tax on the Ownership of Motor Vehicles (IPVA), which falls within the competence of the States and the Federal District, reveals a low level of normative content regarding the forecasts contained in art. 155, of the Federal Constitution. Unlike other taxes contained in the FC, the IPVA does not have a complementary law that complies with the provisions of art. 146 of the Federal Constitution, which greatly complicates the pragmatics of the tax, always involved in some conflicts between federal entities. The most emblematic issue of the IPVA, which has been repeatedly supported by the STF, refers to the scope of the expression "motor vehicles". Sustaining itself in a rhetoric "historical interpretation", the STF has been giving rise to a reduction of the largess that the normative text constitutional would allow, what seems to contradict Law Science and, in particular, the valuable contributions that the study of the language has Allowed to the Right, especially when starting from the concept of that right is language, in the molds of the Logical-Semantic Constructivism. Moreover, the tendency pointed out in ADI's initial petition 5654 seems to be dealt with a further amalgamation of the tax, since the multiple typological categories that can be established for the various phenomena and among them phenomena legal. Thus, the present work combines the analysis of jurisprudence and doctrine related to these themes, establishing the focus of an interpretation from the constitutional text and that prestige the phenomenon of reality as a constructor of legal norms. From this point of view, it is intended to launch a new look in the form of interpreting the Federal Constitution and not to waste such document normative document under the canopy of a hermeneutic that meets the intention of the legislator or even the will of the law.

KEYWORDS: IPVA; Logical-Semantic Constructivism; Hermeneutic; Motor Vehicles; Types of motor vehicles.

Introdução

Ao se observar o Sistema Tributário Nacional brasileiro, em seu traçado aparentemente bem definido na Constituição Federal de 1988, relativamente ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), percebe-se a singeleza com que esse tributo foi tratado no texto maior, o que revelaria uma aparente facilidade em se estruturar as nomas relativas à sua incidência.

Contudo, diferentemente da aparente “singeleza” do texto constitucional, percebe-se que, por ser linguagem, o Direito possui uma dinâmica toda peculiar, revelando uma atividade que traz como limite material o próprio texto mas cuja revelação de sentido pode alcançar patamares que vão bem além da chamada “intenção” do autor ou mesmo da chamada “vontade da lei”, e trazendo a pragmática da interação entre textos e intérpretes, sem se descurar, jamais, do contexto no qual todos se inserem infalivelmente.

Nesse ponto, o Direito, enquanto texto, dita a forma como deseja ser interpretado, o que reduz consideravelmente a complexidade ao se lidar com o dado jurídico. Diferentemente de outros textos, como a poesia e a própria arte, o texto normativo aponta, desde já, as cores e a intensidade das luzes pelas quais quer se mirar, buscando não uma ditadura do texto mas, antes de tudo, a consagração do valor segurança, como um dos pilares de qualquer sociedade que se pretenda erigir como Estado de Direito.

É nesse enfoque que se buscará lançar luzes em um dos impostos menos discutidos na seara jurídica brasileira: quer sob o aspecto legislativo, quer doutrinário ou mesmo jurisprudencial, o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automores (IPVA), de competência dos Estados e do Distrito Federal, parece repousar em águas tranquilas, ante a falta de manifestações que lhe compreendam o conteúdo de forma mais minudente.

Contudo, tal tranquilidade revela uma série de questões mal definidas e outras que ainda estão pendentes de definição. Nesse ponto, o presente artigo visa, justamente, a analisar uma questão de cada uma dessas duas categorias. Assim, em um primeiro momento, como questão “mal definida”, tem-se a própria abrangência da expressão “veículos automores”, que mais parece se sustentar em argumentos de ordem histórica do que, propriamente, em hermenêutica jurídica.

Isso porque, antes de tudo, a interpretação jurídica não pode se desconectar do texto normativo, sob pena da jurisprudência ultrapassar os limites do texto legislado, o que caracteriza, no mínimo, um desvio de função por parte do Poder Judicário. Nesse mote, investigar-se-á se são apresentados, pelo Supremo Tribunal Federal, argumentos consistentes para que uma hermenêutica desconectada do documento normativo venha a se sustentar.

A seguir, como questão “ainda pendente de definição”, investigar-se-á a possibilidade dos Estados e do Distrito Federal empregarem critérios distintos para a configuração do critério quantitativo do IPVA, notadamente ao partirem do pressuposto de que existem “tipos” distintos de veículos, dentro de uma mesma categoria, e que poderiam dar azo a alíquotas diferenciadas do imposto.

Nesse ponto, trata-se de questão que foi utilizada para a instauração da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5654, proposta pela Procuradoria-Geral da República e que se assenta em uma interpretação restritiva do signo “tipo” de veículos automores. Assim, serão confrontados os argumentos apresentados pela PGR para sustentar a inconstitucionalidade de lei estadual, frente às modernas categorias da Ciência do Direito, notadamente a partir do Constructivismo Lógico-Semântico.

Dessa forma, é com base nesse misto de forças que se desenrolará a temática, a qual terá por vetores uma interpretação que se faz do Texto Constitucional para os demais documentos normativos vigentes e, nesse percurso, não olvida o caráter sobranceiro da competência tributária conferida aos Estados e ao Distrito Federal. Para tanto, a utilização das categorias da hermenêutica jurídica, aliadas à Teoria Geral do Direito e à admissão do direito como linguagem, revelam-se como instrumentos promissores para tal análise.

1  Limites à interpretação e a dinâmica normativa do IPVA: desacertos nos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal à luz da interpretação histórico-evolutiva

A presente abordagem se inicia a partir da definição da adoção de uma concepção normativa do direito, a partir da qual este é constituído pelo conjunto de normas válidas em um determinado país (BORGES, 2007; CARVALHO, 2015; ROBLES, 2011; TOMÉ, 2016; PACOBAHYBA, 2016) [1] [2]. A opção por tal concepção traz em si a possibilidade de construção interpretativa a partir do texto posto, chegando aos patamares superiores de construção do sistema, no qual se encontram as normas jurídicas em relação de coordenação e de subordinação[3]. Dessa forma, o processo interpretativo se revela como construção incansável do jurista, realimentado constantemente pela introdução de novos textos pela via da pragmática.

Assim, firmada essa premissa, o emprego dos métodos e das técnicas a ela inerentes serão direcionados à descrição e explicação da realidade normativa afeta ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). De pronto, algumas dificuldades são notadas a partir dos primeiros passos para a identificação desse importante tributo[4] de competência estadual. Uma das características mais evidentes do IPVA, na Constituição Federal de 1988 (CF/88), é que se dispõe de pouco “texto”[5] constitucional para se iniciar a construção, seja a nível de interpretação decisional, ou mesmo relativa à interpretação doutrinária, o que, ao revés, poderia ser considerado uma facilidade. É interessante observar que na redação original da CF/88[6] o conteúdo prescritivo já se revelava enxuto, como que a apontar uma provável “singeleza” do imposto a ser instituído pelos Estados e pelo Distrito Federal.

Tal característica, relativamente à “singeleza”, que em si não representa uma dificuldade, também não se reveste de caráter absoluto: isso porque, lidar com o dado da linguagem culmina na percepção da multiplicidade de conteúdos distintos que podem ser hauridos de um único signo, o que revela a necessidade de diplomas infraconstitucionais que desvencilhem mais características conotativas da competência plasmada na Constituição.

Assim, a dificuldade começa a se mostrar mais relevante na medida em que se verifica um vácuo normativo, pela ausência de lei complementar relativa à matéria, a qual pudesse atender às expectativas de reduzir os conflitos de competência em sede deste tributo, notadamente ao se verificar a atividade legiferante dos 26 Estados e do DF, ao editarem as leis ordinárias, no exercício da competência.

Com isso, a partir da regra-matriz de incidência[7] do IPVA, a qual é edificadas pelos comandos normativos estaduais, verificou-se a existência de alguns conflitos na pragmática jurídica[8]. Isso porque, reitere-se o argumento da pseudo-singeleza, apesar de se poder construir regras-matrizes que venham a ser textualmente idênticas, o conteúdo de cada um dos signos pode ser semanticamente diferente, gerando aplicações no “mundo real” particularmente dissonantes.

E um dos primeiros problemas enfrentados na construção do subsistema relativo ao IPVA revela-se no próprio desenho de sua materialidade. Tal ocorre porque se esbarra em duas expressões que não sofreram qualquer limitação por parte do texto constitucional, tendo em conta que a competência foi simplesmente para instituir “imposto sobre a propriedade de veículo automotor”. Contudo, o que se deve entender por “propriedade”[9] e, ainda mais, por “veículo automotor”?

Para tal pergunta, o sistema jurídico tributário apresenta uma resposta que vai além do caráter disciplinar pelo qual normalmente se enxerga o direito. Isso porque, nesse ponto, o Direito Tributário, ao se utilizar de institutos, conceitos e formas de direito privado, deve respeitar-lhes a definição, o conteúdo e o alcance, em um movimento hermenêutico que preserve, notadamente, as definições e limitações das competências tributárias (art. 110, CTN). E daí o motivo por se repetir em um trabalho doutrinário algo que parece não reverberar mais nas mais altas cortes do Brasil.

Isso porque, em diversas oportunidades (RE nº 134.509/AM, RE nº 255.111/SP, RE nº 397.550/PR, RE nº 128.734/AM, RE nº 128.735/AM, AI nº 488.988/SP, AI nº 526.452/SP, AI nº 527.054/SP, AI nº 500.049/SP, RE nº 379.572/RJ, AI nº 699.802[10] e, mais recentemente, pendente de julgamento, a ADI nº 5654, contra a lei do IPVA do Estado do Ceará) (MORAES; OLIVEIRA, 2014, p. 76-79), o STF, ao ser instado a se manifestar acerca da incidência do IPVA, tem revelado a “pacificação” do tema em torno da acepção de que na expressão “veículos automotores” estão compreendidos apenas os veículos terrestres.

Contudo, como se defenderá, a fundamentação para tal restrição não reside no respeito à integridade textual da CF/88, baseando-se em argumentos de cunho histórico, sem suporte documental apropriado e, ainda mais, desconsiderando que uma suposta “interpretação histórica”, não é interpretação propriamente dita[11] e que, mais acertadamente faria o STF ao invocar o método interpretativo histórico-evolutivo, que permitiria realizar a interpretação decisional a partir da inteireza dos signos constantes dos documentos legislados. Daí a insistência em se discutir, ainda mais uma vez, esse aspecto da materialidade do IPVA.

Antes mesmo de abordar os julgados relativos ao IPVA, vale a transcrição de excerto do voto no Ministro Celso de Mello[12], no julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706, relativo à inclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições para o PIS/PASEP e Cofins, e que merece ressonância sempre que vêm à tona matérias tributárias, em virtude do vigor ainda manifestado pelo CTN e que deve ser suavizado frente ao texto constitucional. Nesse ponto, como a questão aqui se inicial pelo âmbito competencial tributário conferido aos Estados e ao DF, o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado no sentido de que deve ser preservado o que denominou de “império do Direito Privado”, conforme se depreende do excerto do voto do Ministro Celso de Mello:

Veja-se, pois, que, para efeito de definição e identificação do conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário Nacional, em seu art. 110, “faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial […]” (ALIOMAR BALEEIRO, “Direito Tributário Brasileiro”, p. 687, item n. 2, atualizada pela Professora MISABEL ABREU MACHADO DERZI, 11ª ed., 1999, Forense – grifei), razão pela qual esta Suprema Corte, para fins jurídico-tributários, não pode recusar a definição que aos institutos é dada pelo direito privado, sem que isso envolva interpretação da Constituição conforme as leis, sob pena de prestigiar-se, no tema, a interpretação econômica do direito tributário, em detrimento do postulado da tipicidade, que representa, no contexto de nosso sistema normativo, projeção natural e necessária do princípio constitucional da reserva de lei em sentido formal, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (GILBERTO DE ULHÔA CANTO, “inCaderno de Pesquisas Tributárias nº 13/493, 1989, Resenha Tributária; GABRIEL LACERDA TROIANELLI, “O ISS sobre a Locação de Bens Móveis”, “inRevista Dialética de Direito Tributário, vol. 28/7-11, 8-9). (destacado no original)

Ora, voltando-se às perguntas propostas acima, particularmente à segunda delas (Contudo, o que se deve entender por “propriedade”[13] e, ainda mais, por “veículo automotor”?), tal não parece ter sido o entendimento adotado pela Egrégia Corte nos diversos julgamentos acima referenciados, relativos ao IPVA. Isso porque, antes mesmo de respeitar os signos contidos no texto constitucional, o STF se cingiu a um conteúdo meramente histórico, desconectando-se do universo mínimo que há de ser respeitado pelo intérprete decisional, e que se relaciona ao próprio texto.

Nesse sentido, é interessante observar que o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no RE nº 379.572/RJ, chega a afirmar que continua “convencido de que a interpretação literal, no caso, desconhece o sistema da Constituição. O IPVA é claramente um substitutivo da velha taxa rodoviária única. As embarcações marítimas estão sujeitas a outra disciplina, que é a federal”.

Assim, ao afirmar que a “interpretação literal desconhece o sistema da Constituição”, está-se construindo argumentos para que a decisão, ao final, seja contrária ao estabelecido no texto, isto é, deixa patente que foi desmerecido o suporte material que estruturava a ordem estabelecida, o que poderia desbordar não para uma decisão, mas uma mera escolha (e não decisão) do julgador (STRECK, 2013). No mesmo processo, o Ministro Cezar Peluzo atenta para o “risco de interpretação meramente literal do dispositivo”, o que parece dar azo para a desconsideração textual.

Assim, a construção do sistema, como defende Carvalho (2015), começa sempre a partir do texto, não se podendo alcançar os níveis superiores sem que se respeite o nível mais elementar, que é a literalidade. Longe de se identificar a literalidade com o conteúdo de verdadeiro “método”, entende-se que se trata da porta de acesso, da via pela qual se inicia o processo hermenêutico.

Curiosamente, a própria doutrina, apesar de defender a interpretação sedimentada no STF, no sentido de retirar da incidência do IPVA a propriedade das aeronaves e dos veículos marítimos, afirma que, “do ponto de vista gramatical, não resta dúvida de que as categorias dos aviões e das embarcações aquáticas são abrangidas pelo conceito manifestado pela expressão ‘veículos automores’”. A seguir, embasa sua rejeição à incidência por conta do que denomina de uma interpretação “histórica” e “sistemática”, contudo, sem justificar como se sustenta o atropelamento ao texto que o autor reconhece (FERRAZ, 2005, p. 109).

Outro destaque que merece ser realizado é que, diferentemente do que se possa entender como “intenção do legislador”, para a qual os aspectos históricos e documentais são determinantes[14], apesar de normalmente evasivos e difíceis de serem identificados após certo lapso temporal[15], a interpretação constitucional é mais consentânea com a chamada “vontade da lei”, plasmada a partir de mecanismos que integrem e formulem o que se tem por sistema jurídico.

Nesse ponto, e voltando-se ao art. 110 do CTN, não há como se defender a manutenção da integridade do texto constitucional recorrendo-se apenas ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB, Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), para fins de intelecção da expressão “veículos automotores”. Isso porque, ao se tratar da definição do conceito de “veículo automotor”, contida no critério material do imposto, parece não restar outro caminho se não o de partir para o CTB, olvidando-se que a amplitude conferida pela Constituição pode residir em diplomas outros.

Isso porque, logo em seu artigo 1º, o CTB delimita a que espécie de trânsito se refere e, por decorrência lógica, os tipos de veículos utilizados no trânsito terrestre: “O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código” (art. 1º, CTB). Daí empregar ao longo do seu texto, em 54 oportunidades distintas, a expressão “veículo automotor”. Assim, tendo em vista a peculiaridade da via a ser utilizada nesse tipo específico de trânsito, já ressaltada em suas disposições preliminares, seria despropositado o legislador ficar repetindo, à exaustão, tratar-se de veículo automotor terrestre. Nesse ponto, limitou-se sempre a empregar a expressão conjugada “veículo automotor”.

Entretanto, ao se partir do texto constitucional, perscrutando acerca da competência tributária, importa perquirir o âmbito da materialidade do imposto a ser criado não a partir de diplomas infraconstitucionais, mas considerando o campo objetal íntegro. É interessante observar que no julgamento do mesmo RE nº 379.572/RJ, o Ministro Joaquim Barbosa percebeu a redução que ora se estava a trilhar no julgamento, deixando esclarecido que “a expressão ‘veículos automotores’ é ampla o suficiente para abranger embarcações, ou seja, veículos de transporte aquático”.

Na mesma linha, o Ministro Marco Aurélio, no RE nº 134.509/AM, assentado na doutrina de Yoshiaki Ichiara, Cretella Júnior e Pinto Ferreira, afirma que “não se pode introduzir no dispositivo contitucional limitação que nele não se contém. A incidência abrange a propriedade de todo e qualquer veículo, ou seja, que tenha propulsão própria e que sirva ao transporte de pessoas e coisas”.

Nessa esteira, defende-se que o sentido há de ser vetorado não do CTB para a CF, limitando o conteúdo, mas da CF para o restante do sistema. Com isso, ao se observar o restante do sistema jurídico, percebe-se que outros veículos automotores possuem disciplinas específicas no ordenamento. Defende-se, aqui, que se o legislador de 1988 “quis” instituir a competência do IPVA nos mesmos moldes da taxa rodoviária única, deveria tê-lo feito atribuindo competência para os Estados e o Distrito Federal instituírem impostos sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, e não sem inserir este último signo adjetivante que, ao fazê-lo, reduz ainda mais o âmbito competencial estadual. Além deste argumento, Leopoldi e Miguel (2003, p. 29) acrescentam, ainda, que caso não intentasse abarcar os navios e as aeronaves, o legislador deveria tê-lo feito expressamente, o que, no processo de positivação constitucional, não ocorreu.

Nesse caso, poder-se-ia afirmar que ao tratar de veículos automotores, a CF estabeleceu um gênero, do qual seriam espécies os veículos automotores terrestres, aéreos e marítimos. Tal idealização, que será utilizada no capítulo seguinte, ao tratar dos tipos de veículos, colmata-se à perfeição às linhas classificatórias amplamente utilizadas pela Ciência, e, ainda mais, pela Ciência do Direito.

É válido ressaltar que, ao final de todos os julgamentos, a despeito das manifestações estruturadas em sentido contrário, a Corte Constitucional fundamentou-se em argumento absolutamente diverso a este, criando limitação que não está prevista no texto de 1988. Assim, ao defender uma definição “técnica” da expressão “veículos automotores” defendeu que a mesma abrangeria “exclusivamente os veículos de transporte viário ou terrestre”, sob um cariz eminentemente histórico, tal qual se admitiria caso o texto constitucional não se mantivesse aceso pelos constantes influxos normativos, a partir da doutrina.

Nos termos deste percurso gerativo de sentido, que se faz a partir da matriz constitucional, a competência relativa ao IPVA deve gravar a propriedade de veículos automotores terrestres, aéreos e marítimos, os quais refletem as possibilidades conhecidas na atualidade para o transporte humano, qual seja: trânsito terrestre, trânsito aéreo e trânsito marítimo.

Aqui, reluz uma consideração que se revela importante e que não apequenece os textos jurídicos, a partir de uma confrontação emimentemente histórica, desprezando-se o cunho evolutivo. Isso porque é papel da doutrina revelar-se como saber tecnológico, valendo-se de técnicas jurídico-interpretativas que se situem na arte do direito (BORGES, 2007, p. 154), em um movimento incessante de construção e desconstrução doutrinária e, por consequência, revelando novos contéudos jurisprudenciais.

Ainda com Souto Maior Borges (2007, p. 152):

O ato que põe norma no sistema (p. ex., lei, …) é ato humano e pois temporalmente datado. É então influenciado, na ordem temporal, pelo momento histórico em que foi editado. E incorpora assim ao seu texto e contexto concepções doutrinárias vigorantes nessa época. Mas, do ato instituinte de normas, decorre a criação contínua do ordenamento jurídico por ele próprio (autopoiese).

Isto posto, apesar de ser defensável nos primeiros julgados do STF a não incidência do IPVA sobre as aeronaves e as embarcações, dado o panorama “tecnológico” que assentava a doutrina da época, não se pode negar o aprimoramento intelectual da Ciência do Direito nos últimos anos, especialmente a partir dos influxos da Teoria da Linguagem, notadamente a partir da Escola do Constructivismo Lógico-Semântico, e que parecem apontar para a necessidade urgente de revisão da jurisprudência pacificada.

Uma outra questão merece destaque pelo fato de ter sido utilizada como fundamento pelo Supremo Tribunal Federal para uma construção restritiva da competência tributária afeta ao IPVA: tendo em conta que compete à União legislar sobre navegação marítima ou aérea ou para dispor sobre tráfego aéreo ou marítimo, espaço aéreo ou mar territorial, justifica-se que a cobrança do imposto restaria impossibilitada, dada a incompetência estadual para dispor sobre tais matérias[16].

Ora, tal argumento não resiste, sequer, à observância do mesmo modelo tributário já observado no IPVA: legislar sobre trânsito e transporte é de competência privativa da União (art. 22, inc. XI) e, ainda assim, não inviabiliza a incidência do imposto sobre a propriedade de veículos automotores terrestres. Nesse sentido, por que tal obstáculo se imporia aos veículos automotores aéreos e marítimos?

Um outro exemplo de tributo de competência estadual e que lida com uma materialidade cuja competência legislativa é conferida à União encontra-se no comércio exterior (art. 22, inc. VIII, CF), tendo em vista a possibilidade de cobrança do chamado ICMS Importação na última fase do que se denomina “despacho aduaneiro”: conforme previsão inserida no art. 155, § 2º, inciso IX, alínea “a”, o ICMS incide “grosso modo” nas operações de entrada de bens ou mercadorias importados do exterior do País. Contudo, tal operação de entrada de bens ou mercadorias se dá em um contexto mais amplo, denominado “Comércio Exterior”, cuja competência legislativa para dispor sobre a matéria é conferida com privatividade à União.

Ademais, procede o mesmo com relação ao ICMS incidente sobre as prestações de serviço de comunicação, quando a competência para legislar em matéria de telecomunicações também é privativa da União (art. 22, inc. IV, CF). Dessa forma, como estes casos, tantos outros poderiam ser averiguados no sistema normativo e fariam ruir argumentos desse jaez exclusivamente para o IPVA.

Por fim, o argumento que parece ser o mais expressivo contra a interpretação que se ora se desenvolve relaciona-se à disposição do art. 158 da Constituição Federal, inserido na seção que dispõe acerca da repartição das receitas tributárias. Isso porque, o STF condicionou a materialidade do IPVA não nos caracteres dispostos no art. 155 da CF, mas a partir da forma de repartição do produto da arrecadação do imposto, o que se revela um retrocesso em sede de Ciência do Direito.

Tem-se por assente que, apesar da visão disciplinar não revelar a complexidade do dado normativo, a divisão das matérias nos chamados “ramos” do direito, visa a ordenar os conteúdos linguísticos apropriados à construção de cada um dos subsistemas, sem judicar-lhes caracteres de autonomia[17] [18]. Ainda mais quando se fala em direito tributário, este se revela como uma especificação do direito no qual a tecnicidade inerente à linguagem jurídica se revela ainda mais pungente.

Dessa forma, recorrendo a uma definição do conteúdo relativo ao direito tributário positivo, ter-se-ia que o mesmo seria “o ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos” (CARVALHO, 2015, p. 44). Em assim sendo, as questões relativas à repartição do produto da arrecadação dos impostos situar-se-ia, de maneira mais adequada, em outro ramo do direito, qual seja o do direito financeiro.

Daí já se chega ao primeiro deslumbre: a construção da norma jurídica em sentido estrito, relativa à incidência tributária, isto é, da regra-matriz de incidência tributária, mantém-se regada pelos conteúdos normativos derivados do texto constitucional (CARRAZZA, 2015) e que perfaçam o conteúdo mínimo necessário a que um tributo possa se dizer instituído. Nesse ponto, enquanto unidade mínima e irredutível de manifestação do deôntico, a regra-matriz do IPVA não pode se encontrar limitada por conteúdos que são apanhados em um momento posterior à incidência, após as atividades de arrecadação e de fiscalização dos tributos.

Nesse ponto, parece que é por demais desprestigiar a competência dos Estados e do Distrito Federal restringir o seu poder de tributar, atendidas todas as limitações constitucionais a ele inerentes e que plasmam um verdadeiro “estatuto constitucional de defesa dos contribuintes”, ao se condicionar a materialidade dos tributos a requisitos que diminuam a sua abrangência, por conta do emprego de expressões que não se revelem adequadas a descrever o controle dos veículos aéreos ou marítimos.

Assim, a redação do art. 158, inciso III, da CF, que seria a instauradora da celeuma e motivadora da constrição material do IPVA, assim enuncia: “Pertencem aos Municípios: […] III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios”. Com o fito de não se amesquinhar o conteúdo da materialidade disposta no art. 155, inciso III, poder-se-ia apontar que uma interpretação coerente com o sistema seria no sentido de que apenas o IPVA incidente sobre veículos automotores terrestres, que são os únicos que se sujeitam a licenciamento, seria objeto de repartição.

Tal é defensável na medida em que se observa que não foram muitos os impostos sujeitos à repartição, conforme previsto nos arts. 157 e 158 do texto constitucional: tal se dá, atualmente, apenas no tocante ao IR, ao IPI, ao ITR, ao ICMS e ao IPVA. O próprio ITCMD, também de competência estadual, não é objeto de repartição com os municípios. Daí, não se entende que isso seja uma regra absoluta e que permita diminuir a construção do critério material do IPVA para ser preservada.

Em sentido oposto, poder-se-ia defender que o legislador constitucional, dada a heterogeneidade de seus membros, ao tratar de veículos licenciados, utilizou-se deste signo em seu sentido vulgar, revelando uma impropriedade, atecnia ou deficiência a ser solucionada pelo jurista. Isso porque, por se tratar de linguagem técnica, que se assenta no discurso natural, mas aproveitando “quantidade considerável de palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científicas” (CARVALHO, 2015, p. 35), às vezes se percebe o seu emprego equivocado.

Nessa medida, ainda que estritamente as legislações relativas aos transportes aéreos e marítimos não disponham necessariamente de licenciamentos, mas sim, de certificações, ter-se-ia a possibilidade de empregar-se o termo correlato em tais legislações. Dessa forma, a exemplo do “Certificado de Matrícula” e do “Certificado de Aeronavegabilidade”[19], sendo este com prazo de vigência específico, os mesmos poderiam adaptar-se ao conteúdo que quis o legislador empregar ao dispor acerca do “licenciamento”.

Em tais certificados, inclusive, é possível se identificar o proprietário do veículo e o Estado da federação em que o mesmo têm domicílio, o que revela a possibilidade de identificação perfeita e imediata do ente que teria a possibilidade de exercer a competência tributária[20]. Diferentemente do que se tem apontado, o fato de tal cadastro se dar em uma repartição federal não obstaculiza a identificação do Estado da federação em que está domiciliado o proprietário.

Por fim, uma questão que desborda da questão normativa propriamente dita mas que pode interessar ao Direito sob outro prisma: aqui, volta-se à questão de que o direito visa a regular condutas intersubjetivas, canalizando os valores que a sociedade entende relevantes. Ora, em uma Constituição que se vivifica pela interpretação e pelos influxos de novas evoluções e novas visões que a sociedade vai desenvolvendo, não se admite que o IPVA venha a incidir apenas sobre a propriedade de veículos automotores terrestres[21], os quais se revelam como motor absolutamente indispensável da economia nacional.

Em outro sentido, até pelo caráter da suntuosidade e pela expressão da capacidade contributiva dos proprietários de veículos automotores aéreos e marítimos, não há como desconsiderá-los na incidência do IPVA, e certamente tal asserção se afirma como os valores pretendidos pela sociedade brasileira[22], que ainda sofre com uma carga tributária que impacta mais gravemente os mais pobres, em detrimento daqueles que mais revelam riqueza.

Vale ressaltar que, a despeito do abrangência que se defende ínsita ao texto constitucional, e em virtude das sucessivas decisões em sentido contrário tomadas pelo STF, encontra-se em fase de apreciação pelo Congresso Nacional a Proposta de Emenda a Constituição nº 283, de 2013[23] (apensada à PEC nº 140, de 2012), que identificaria de forma expressa as espécies de veículos e incluiria a posse no âmbito competencial dos Estados e do DF, ao fixar nova redação ao inciso III, do art. 155, da CF: “propriedade ou posse de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos”.

Destaque-se, por fim, que no que tange à proposição em análise na casa legislativa, existe a previsão de regra imunitória aos “veículos aquáticos e aéreos de uso comercial, destinados à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas”. Tal PEC, que já foi jocosamente denominada de “PEC dos jatinhos”, parece lançar luzes a uma questão que, de há muito, já poderia estar sedimentada no panorama normativo nacional.

2  O conceito de “tipos” de veículos e o desenho dos contornos do IPVA pelo legislador ordinário: uma análise à luz do julgamento do Recurso Extraordinário nº 562.045/RS

A partir deste capítulo, passar-se-á a dispor de um aspecto estrutural relativo ao IPVA que, diferentemente do apontado acima, ainda não reverberou nas cortes superiores e cuja ressonância na doutrina ainda não parece evidente. Nesse ponto, vislumbra-se a oportunidade de, mais uma vez, aprofundar-se a hermenêutica sob o viés da construção da Ciência do Direito, dada a importância da doutrina para a própria estruturação da jurisprudência.

Ora, tomada a doutrina como uma rede que conecta diversos doutrinadores, será esta a responsável por legitimar as diversas leituras feitas pelos julgadores, estruturando a jurisprudência (CARNEIRO, 2015, p. 149-150), que se vivifica no núcleo inquebrantável dos textos escritos, quer de direito positivo, quer de Ciência do Direito[24]. Enaltece-se, por fim, o papel doutrinário como um sistema de referência, a partir de uma visão estruturalista (BORGES, 2007, p. 150).

Daí a importância de contribuir para o aprofundamento das meditações interpretativas decisionais, a partir do influxo de novas ideias por parte da doutrina, sempre a partir do direito posto. Nesse ponto, a redação do art. 155, §6º, inciso II, da CF, assim enuncia: “Art. 155, § 6º O imposto previsto no inciso III [IPVA]: […] II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização”. Tal redação, vale pontuar, foi inserida na CF a partir da Emenda Constitucional nº 42, de 2003. Interessa, a partir de agora, fixar-se no signo “tipo”.

Aqui, então, o recurso ao conteúdo dicionarial será esgotado a partir de três consultas ao signo: na primeira, realizada no Michaelis (2009, p. 1846), pode-se dizer do tipo:

2 coisa ou indivíduo que possui caracteres distintivos de uma classe, um grupo etc.; símbolo […] 3 espécie, gênero […] 9 COM conjunto das características que indicam as qualidades de um produto <leite t. A> 12 LING na relação tipo/ocorrência, cada vocábulo configurando um elemento da língua, por oposição às ocorrências que o caracterizam como elemento da fala 13 SEMIO signo que representa uma categoria ou um conjunto de casos ou indicações, por oposição às ocorrências particulares mediante as quais uma categoria se manifesta.

A seguir, efetuada em um dicionário etimológico-prosódico (BUENO, 1968, p. 3979), tem-se por tipo “figura, fôrma, modêlo, exemplo, classe, símbolo”. Por fim, em sentido filosófico, tipo pode ser empregado “no sentido de modelo, forma, esquema ou conjunto interligado de características que pode ser repetido por um número indefinido de exemplares” (ABBAGNANO, 2000).

Com isso, ao se apontar para “tipo de veículos”, está-se a pretender identificar classes, modelos, conjuntos, grupos. E em se tratando dessa atividade, de formulação de tipos, tem-se que se abrem múltiplas possibilidades ao legislador estadual[25]. É interessante observar, dentre os sentidos apontados, aquele que indica um uso comercial do termo, constante no Michaelis: “conjunto das características que indicam as qualidades de um produto <leite t. A>”.

E aí, talvez um retrocesso histórico dê a noção exata de como o texto constitucional pode se adaptar aos novos valores que a sociedade elege, a partir de novos conteúdos hermenêuticos. Isso porque, o movimento não ocorre do texto legislado para a realidade: é exatamente o sentido oposto que se verifica. Na medida em que as diferenças vão se fazendo visíveis na sociedade, é que o direito passa a se expressar de forma diferenciada, a fim de acompanhar as mudanças fácticas, que são muito mais intensas que as alterações normativas.

Para tanto, retorne-se ao Michaelis, com o exemplo do “leite tipo A”: é difícil imaginar que o legislador originário constitucional refletisse uma sociedade que, como a de hoje, estivesse afeiçoada à infinidade de tipos de leite que ora se tem à disposição. Praticamente, quando se falava em leite, estava-se a apontar o leite de vaca, provavelmente sem detalhar características que levem em conta exigências de higiene na ordenha e no transporte (o que vem a caraterizar os leites tipo A, B ou C)[26].

Ainda em 1988, época da promulgação da Constituição, ao se falar em veículo automotor, e não propriamente nos tipos dele, a sociedade não dispunha praticamente de opções: tinha-se o que depois veio a ser denominado, jocosamente, de verdadeiras “carroças”: a mudança, ainda que leve, e direcionada a classes sociais específicas, ocorreu apenas com o Governo Collor, quando houve a abertura ao mercado estrangeiro, na aquisição de veículos[27]. Assim, não haveria muito sentido falar em tipos de veículos pois não se contava com opções relevantes, desbordando apenas em uma chamada categoria tipológica primária, que abrangeria o que se poderia delimitar com a ideia de gênero.

Contudo, a interpretação que se pretende fazer aponta para vetores culturais diferenciados, especialmente por conta de uma dinâmica do mercado que revolucionou a forma como a sociedade encara os “tipos” de veículos existentes. Assim, existem diferenças fundamentais que podem ser estabelecidas entre um carro com potência de até 100 cavalos e outro cuja potência é superior a 180 cavalos. Inclusive, diante de tais diferenças, a própria indústria automobilística aponta para nichos de mercados distintos, com gostos absolutamente divergentes e com características de renda básica dos consumidores na aquisição de tais veículos.

Dessa forma, por exemplo, levando em conta características deste jaez, o próprio legislador federal selecionou “tipos” de veículos diferenciados, voltados normalmente ao consumo das classes C e D, ao estabelecer a redução da alíquota do IPI de 7% para zero, para veículos de até 1000 cilindradas. Para veículos entre 1000 e 2000 cilindradas, a redução na alíquota, à época, foi de 13% para 6,5%[28]. Ainda mais, as próprias legislações estaduais do IPVA já estabelecem, há bastante tempo, alíquotas diferenciadas para veículos automotores terrestres em função do combustível utilizado, chegando a isentar os veículos elétricos, em prestígio ao art. 225 da Constituição Federal, em verdadeira utilização de categorias tipológicas e que visem a alcançar finalidades outras que não a mera arrecadação do tributo.

Aqui, o tema seria farto para fins de defesa de tipos diferentes de veículos. Nesse ponto, em que o legislador estadual manifesta a sua criatividade no sentido de alcançar a máxima efetividade do texto constitucional, tributando com alíquotas menores tipos de veículos que sejam menos poluentes ao meio ambiente, ou mesmo não os tributando, como é o caso dos veículos elétricos, não há como se imaginar que a classificação tipológica deva se restringir a automóveis, ônibus e caminhões.

E aqui, ainda se poderia citar o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto)[29], instituído pelo Governo Federal, e que, por meio de benefício fiscais, cria um estímulo à produção de veículos que se diferenciem por conta do consumo de combustíveis, prestigiando aqueles que se revelem mais econômicos em sua utilização.

Nesse movimento, algumas leis estaduais relativas ao IPVA passaram a diferenciar suas alíquotas tomando por base a potência máxima de seus motores (com a utilização da grandeza cavalo-vapor) e, em se tratando de motocicletas, utilizando-se da grandeza “cilindrada” ou volume do motor. Tome-se como exemplo, o Estado do Ceará, que nas alterações empreendidas na Lei Estadual nº 12.023, de 20 de novembro de 1992, por meio da Lei nº 15.893, de 27 de novembro de 2015, passou a dispor da seguinte redação, relativamente à fixação das alíquotas aplicáveis ao IPVA:

Art. 6º Aos veículos abaixo discriminados aplicar-se-ão as seguintes alíquotas:

[…]

III – motocicletas, motonetas, ciclomotores e triciclos com potência:

a) de até 125 cilindradas, 2,0% (dois por cento);

b) superior a 125 e até 300 cilindradas, 3,0% (três por cento);

c) superior a 300 cilindradas, 3,5% (três vírgula cinco por cento);

IV – automóveis, camionetas, caminhonetes e utilitários com potência:

a) de até 100cv, 2,5% (dois vírgula cinco por cento);

b) superior a 100cv e até 180cv, 3,0% (três por cento);

c) superior a 180cv, 3,5 (três vírgula cinco por cento). (destacado)

De forma semelhante, o Estado de Pernambuco, valeu-se do mesmo critério de diferenciação na Lei nº 10.849, de 28 de dezembro de 1992:

Art. 7º. As alíquotas do IPVA são:

[…]

III - para motocicleta, ciclomotor, triciclo, quadriciclo, motoneta e similares, observada a respectiva motorização: 

b) no período de 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2019:

1. 1,0% (um por cento), no caso de veículo com motor inferior a 50 cm³ (cinquenta centímetros cúbicos);

2. 2,5 % (dois vírgula cinco por cento), no caso de veículo com motor de cilindrada até 300 cm³ (trezentos centímetros cúbicos);

2. 3,0 % (três por cento), no caso de veículo com motor de cilindrada acima de 300 cm³ (trezentos centímetros cúbicos) até 600 cm³ (seiscentos centímetros cúbicos); e

3. 3,5 % (três vírgula cinco por cento), no caso de veículo com motor de cilindrada acima de 600 cm³ (seiscentos centímetros cúbicos). (destacado)

Assim, não parece ser adequada ao panorama atual a interpretação trazida pela Procuradoria-Geral da República (PGR), inaugurando a ADI nº 5654. Chega a PGR a afirmar que “motocicleta de até 125cc não é tipo de veículo automotor diferente de outra com 300cc. Do mesmo modo, automóvel com 100cv não é, necessariamente, tipo de veículo diverso […] de automóvel de 180cv”. Nesse ponto, pode-se dizer que a realidade dos argumentos até aqui expedindos suplanta essa afirmação.

Encerrada essa fase inicial, que teve intuito de colmatar o conteúdo semântico do texto constitucional, notadamente ao se cingir aos aspectos inerentes aos “tipos de veículos”, partir-se-á para um outro parâmetro de análise, o qual revela conexão com a interpretação feita pelo próprio Supremo Tribunal Federal no RE nº 562.045/RS. Nesse processo, o STF admitiu a constitucionalidade da legislações estaduais que estabelecessem alíquotas progressivas para o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de Bens e Direitos (ITCMD), ainda que tal progressividade não tenha sido plasmada em disposição constitucional. E aqui, o princípio mais prestigiado na intelecção foi justamente a capacidade contributiva.

Nesse ponto, sobreleva o texto do §1º, art. 145, da CF[30]. Ao observar o estabelecimento de alíquotas diferentes para veículos automotores terrestres nas legislações cearense e pernambucana, não se tem a aplicação da técnica da progressividade, corriqueiramente utilizada para graduação da capacidade contributiva: não se trata de, sobre uma mesma grandeza, imputar um plexo de alíquotas distintas, tal qual se julgou relativamente ao ITCMD instituído pela lei gaúcha.

Diferentemente disso, os fundamentos do RE nº 562.045/RS podem ser aqui utilizados pois se percebe que, a partir deste julgado, tomando por base o voto do Ministro Eros Grau, parece desapegar-se da noção de que o art. 145, §1º, da CF, aplicar-se-ia, exlcusivamente, aos impostos ditos “pessoais”, em contraposição daqueloutros denominados de impostos reais.

Nesse ponto, merece destaque a ênfase feita pelo Ministro Eros Grau ao texto constitucional, na medida em que reitera que, em momento algum, o art. 145, §1º, da CF, revela um conteúdo limitador para sua aplicação. Em sendo assim, defende:

O que a Constituição diz é que os impostos, sempre que possível, deverão ter caráter pessoal. A Constituição prescreve, afirma um dever ser: os impostos deverão ter caráter pessoal sempre que possível. E, mais, diz que os impostos, todos eles, sempre que possível serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

7. Há duas sentenças aí : (1) terem caráter pessoal e (2) serem graduados, os impostos, segundo a capacidade econômica do contribuinte. Sempre que possível. Assim devem ser os impostos.

8. Permitam-me insistir neste ponto: o § 1º do artigo 145 da Constituição determina como devem ser os impostos, todos eles. Não somente como devem ser alguns deles. Não apenas como devem ser os impostos dotados de caráter pessoal. Isso é nítido. Nítido como a luz solar passando através de um cristal, bem polido. (destacado). STF, Voto-vista do Ministro Eros Grau. RE nº 562.045/RS.

Trata-se de questão que deve ser reacendida na jurisprudência brasileira, no sentido de fortalecer o entendimento acima identificado, o qual torna mais plena a aplicação do princípio da capacidade contributiva no direito tributário brasileiro.

Com tudo isso, não se pode duvidar que a variedade de tipos distintos de veículos que têm sido ofertada ao mercado nacional brasileiro guarda estreita consideração com recursos de ordem econômica das pessoas que adquirem tais bens. A título de exemplo, a média de valores de um automóvel de até 100 cavalos se perfaz em torno de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais). Enquanto isso, carros que possuam mais de 180 cavalos ultrapassem em pelo menos três vezes esse valor.

Dessa forma, estabelecem-se, a partir de nichos de mercados distintos, possibilidades amplas de utilização da capacidade contributiva, a fim de graduar o tributo, ainda que de caráter real, segundo a capacidade econômica do sujeito passivo. Nesse ponto, o critério pelo qual se pautaram as leis ordinárias estaduais não se revelam absurdos e desarrazoados, tal qual seria se vislumbrassem tipos distintos de veículos levando em conta a quantidade de portas ou mesmo a cor do automóvel.

Em sentido contrário, nada mais vez o legislador do que estruturar na norma jurídica em sentido estrito, notadamente sob o viés do critério quantitativo, diferenciações que já vinham sendo amplamente adotadas pela sociedade, e que revelam conteúdos incontroversos de riqueza.

Conclusão

O Sistema Tributário Nacional brasileiro, como verdadeiro conjunto de proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos, revela-se mais densificado a partir do movimento hermenêutico realizado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Nesse sentido, partindo do texto promulgado, os quais revelam os valores eleitos pela sociedade, vão sendo aprimorados os conteúdos originais, sob os próprios influxos da realidade.

Dessa forma, ao se observar o conteúdo documental relativo ao IPVA, percebe-se a singeleza com que esse tributo vem sendo tratado seja sob o aspecto legislativo, seja sob os aspectos doutrinário e jursprudencial. Para agravar as dificuldades, a falta de lei complementar relativa à matéria vem conduzindo questões importantes acerca do imposto para o Supremo Tribunal Federal.

Isto posto, ao analisar o conteúdo da materialidade afeta ao IPVA, avalia-se que o STF desconsiderou, em sua atividade decisória, o conteúdo mínimo ofertado pela CF/88 pois, em diversas oportunidades, a pretexto de realizar uma interpretação histórica, acabou por simplesmente desconsiderar a redação promulgada, ainda que isso tenha sido alertado por alguns dos ministros. Decorrente de tais manifestações, surgem decisões reiteradas acerca da matéria, e que apontam que a expressão “veículo automotor”, contida no art. 155, inciso III, da CF/88 referir-se-ia, exclusivamente, aos veículos terrestres.

Contudo, conforme se pode demonstrar, o percurso gerativo de sentido, especialmente ao se tomar o fenômeno normativo sob a ótica do texto, há de ser realizado, no mínimo, a partir do texto, sem jamais desconsiderar os signos ali plasmados. E ainda que tal acepção pudesse ser aceita nos julgados pós-promulgação da CF/88, não haveria como sustentá-los na atualidade, em virtude das mudanças paradimáticas pelas quais passaram os veículos automotores em todo o mundo e os próprios reclamos sociais.

A seguir, no que pertine à possibilidade de se estabelecerem alíquotas diferenciadas em função do tipo de veículo automotor, as legislações de alguns Estados vêm sendo questionadas em ADI, pela PGR, ao argumento de que sob o signo “tipo” só podem ser enquadradas as definições consideradas mais abrangentes relativas às materialidades do IPVA. Dessa forma, o entendimento da PGR seria no sentido de se reduzir o diferencial criado no critério quantitativo das leis estaduais, ao considerar que as categorias tipológicas podem ser ampliadas, por conta da amplitude de categorias que podem ser vislumbradas pelo legislador ordinário.

Contudo, conforme se conclui, a expressão “tipos de veículos automotores” há de ser empregada em sua máxima amplitude, com vistas a alcançar o maior contorno pretendido pela CF/88. Como exemplo que garante o emprego do tributo para atingir vetores ambientais, por exemplo, tem-se o emprego de alíquotas diferenciadas por conta do tipo de combustível utilizado no veículo, o que permite alguns Estados da federação atribuírem alíquota zero ou isentarem o IPVA de automóveis elétricos, por exemplo.

De idêntica forma, respeitando-se a competência dos Estados e do Distrito Federal, não existem motivos no texto constitucional que obstaculizem a utilização de categorias tipológicas que venham a estabelecer alíquotas diferenciadas e, conseguintemente, tratamento tributário diferenciado, a ser modulado conforme valores outros erigidos no mesmo texto, como é o caso da capacidade contributiva.

Diante de tudo isso, prestigia-se uma interpretação que se faz do Texto Constitucional para os demais documentos normativos vigentes, não olvidando o caráter sobranceiro da competência tributária conferida aos Estados e ao Distrito Federal. E tal se revela adequado e possível devido ao emprego das categorias da hermenêutica jurídica, aliadas à Teoria Geral do Direito e à admissão do direito como linguagem, que tem mostrado ânimos reveladores para a construção normativa no país.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução coordenada e revista de Alfredo Bosi. São Paulo: Martisn Fontes, 2000.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2010.

BORGES, José Souto Maior. Hermenêutica histórica em direito tributário. Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 2007, v. 75, jul./ago., p. 145-163.

BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1968.

CARNEIRO, Luísa Cristina Miranda. IPVA: Teoria, prática e questões polêmicas. São Paulo: Noeses, 2016.

CARNEIRO, Wálber Araujo. O direito e as possibilidades epistemológicas do paradigma hermenêutico. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz. (org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015, p. 133-152.

_______. Hermenêutica jurídica heterorreflexiva: uma teoria dialógica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 2015.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2015.

FERRAZ, Roberto. Aspectos controvertidos do IPVA. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, ano 2005, n. 113, p. 107-115, fev. 2005.

FERRAZ JR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2014.

IVO, Gabriel. Norma jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006.

LEOPOLDI, Elaise Ellen; MIGUEL, Luciano Garcia. Incidência do IPVA sobre Aeronaves e Embarcações. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 92, maio, 2003, p. 26-32.

MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

MORAES, Líria Kédina Cuimar de Sousa e; OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de. A controvérsia acerca da incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações e aeronaves. Cadernos de Finanças Públicas, Brasília, n. 14, p. 69-101, dez. 2014.

PACOBAHYBA, Fernanda Mara de O M C. Dos limites à interpretação jurídica: reflexões acerca do percurso gerativo de sentido no Constructivismo Lógico-Semântico. Nomos: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v. 36, n, 1, 2016, p. 165-203.

ROBLES, Gregorio. Teoría del derecho: fundamentos de Teoría Comunicacional del Derecho. Volumen I. España: Thomson Reuters, 2011.

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis: Vozes, 1999.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2016.

Recebido em: 19 jun. 2017.

Aceito em: 11 dez. 2017.



[1]  Dentre todos os autores que perfilam essa corrente, destaque-se a doutrina de Paulo de Barros Carvalho, o qual erige uma escola normativista do Direito, a partir da adoção de um método hermenêutico-analítico, o qual se revela apropriado para construir a realidade jurídico-normativa do Sistema Tributário Nacional. Deve-se destacar ainda, pelo esforço teórico, a construção da Teoria Comunicacional do Direito, feita por Gregorio Robles, e que revela potentes instrumentos para análise e construção interpretativa, à luz do ordenamento posto.

[2]  A primeira premissa a ser assentada a partir de tal concepção é a de que o do direito é visto, “visto no plano do objeto, como normas jurídicas, tem como objetivo regular a conduta humana em face de uma finalidade, valiosa, em determinado momento histórico” (IVO, 2006, p. XXV).

[3]  Aqui, vale destacar a dinâmica construído no plano ideal por Paulo de Barros Carvalho e que se identifica com o chamado “percurso gerativo de sentido”. Neste percurso, a partir do texto normativo, o intérprete, seja ele um órgão legitimado a inovar o ordenamento posto, inserindo outras normas, seja o cientista do direito, que construiria nova doutrina, ambos têm a possibilidade de perpassar os campos sintático, semântico e pragmático, inerentes a qualquer objeto estabelecido por meio da linguagem. Acerca do “percurso gerativo de sentido”, veja-se a proposição de tal trajeto sob o aspecto pluridimensional: PACOBAHYBA, Fernanda Mara de O M C. Dos limites à interpretação jurídica: reflexões acerca do percurso gerativo de sentido no Constructivismo Lógico-Semântico. Revista Nomos, v. 36, n, 1, 2016, p. 165-203.

[4]  Trata-se, na maior parte dos Estados, da segunda maior fonte de arrecadação tributária de que dispõem os entes federativos. Os dados relativos às fontes de arrecadação tributária de todas as unidades da federação estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Disponível em: www.confaz.fazenda.gov.br.

[5]  Toda a disciplina constitucional relativa ao IPVA encontra-se no seguinte excerto normativo: “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: […] III - propriedade de veículos automotores. […] § 6º O imposto previsto no inciso III: I - terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal; II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização”.

[6]  CF/88 (redação original): “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir: I - impostos sobre: […] c) propriedade de veículos automotores”. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti /1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 29 mar. 17.

[7]  A Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) nada mais representa do que um esquema lógico-formal e que materializa a chamada “norma tributária em sentido estrito”, a qual prescreve a incidência. Como exemplo de construção pode-se citar aquele realizado por Luísa Cristina Miranda Carneiro (2016, p. 174-175), e que assim pode ser indicado: “(i) critério material: ser proprietário de veículo automotor; (ii) critério espacial: limites territoriais do Estado ou do Distrito Federal em que está registrado o veículo automotor, que deve coincidir com o local do domicílio do proprietário; (iii) critério temporal: instante fixado em lei, a partir do momento em que a propriedade é adquirida ou se mantém […]; (iv) critéro pessoal: o sujeito ativo é o Estado ou Distrito Federal em que estiver registrado o veículo automotor; e, o sujeito passivo é o proprietário do veículo automotor (contribuinte) ou quem, eleito por lei, tenha relação (vínculo econômico) com o exercício dessa propriedade (responsável); critério quantitativo: a base de cálculo é o valor venal de veículo automotor; e a alíquota, o percentual fixado em lei estadual, com observância do art. 155, §6º, incisos I e II, da CF”.

[8]  Dentre todos os temas que poderiam ser aqui trazidos, e que poderiam ser apontados como tendentes a identificar uma verdadeira “guerra fiscal” entre os Estados, relativamente ao IPVA, são dignos de serem destacados os temas com repercussão geral reconhecida pelo STF (sob os nºs 685 e 708), os quais afirmam a tese da existência de conflitos de competências entre os Estados e reforçam, ainda mais, a necessidade de edição de lei complementar para o imposto.

[9]  No que tange à propriedade, não é a partir desse conteúdo que repousam as maiores dissonâncias acerca do IPVA. Pode-se afirmar, com segurança, que no tocante à “internalização” ao direito tributário do conceito de propriedade, a doutrina tributarista revelou-se com grande intensidade, especialmente por se tratar de signo existente no Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Não se pode olvidar, contudo, que há uma agitação incomum na doutrina e na jurisprudência por conta de sujeição passiva dos bancos, relativamente ao IPVA, no caso dos contratos de alienação fiduciária de automóveis, que são bastante comuns no Brasil. Para os fins deste trabalho, o foco será direcionado à discussão do conteúdo e alcance da expressão “veículos automotores”, mais do que, propriamente, à “propriedade”.

[10] O trabalho de catalogação dessas decisões está contido no capítulo 3 - “Jurisprudência”, do artigo intitulado “A controvérsia acerca da incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações e aeronaves” (MORAES; OLIVEIRA, 2014).

[11] O que se defende aqui é que os julgados do STF parecem ter uma conotação muito maior de História do Direito do que de direito positivo.

[12] Voto ainda não publicado no Diário de Justiça Eletrônico mas que foi tornado público na própria página oficial do Supremo Tribunal Federal, sob a forma de “Notícias STF” intitulada “Voto do ministro Celso de Mello no julgamento que invalidou a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=338645. Acesso em 18 jun. 17.

[13] No que tange à propriedade, não é a partir desse conteúdo que repousam as maiores dissonâncias acerca do IPVA. Pode-se afirmar, com segurança, que no tocante à “internalização” ao direito tributário do conceito de propriedade, a doutrina tributarista revelou-se com grande profusão, especialmente por se tratar de signo existente no Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Não se pode olvidar, contudo, que houve uma movimentação intensa doutrinária e jurisprudencial por conta de sujeição passiva dos bancos, relativamente ao IPVA, no caso dos contratos de alienação fiduciária de automóveis, o que é bastante comum no país. Para os fins deste trabalho, o foco será direcionado à discussão do conteúdo e alcance da expressão “veículos automotores”, mais do que, propriamente, à “propriedade”.

[14] Deve-se destacar, ainda, que a naturalidade na defesa de tais argumentos, como se fossem verdades que se impõem necessariamente, ou como se se tratasse de efeitos óbvios do texto, resplandece nos julgados relativos ao IPVA. Em um outro trecho, utilizando-se de recursos retóricos que visam a aplacar as dúvidas acerca do campo de incidência do imposto, o Ministro Sepúlveda Pertence se vale de parecer do Dr. Moacir Antônio Machado da Silva, Procurador da República, que assim se manifesta: “não há dúvida de que a idéia [ideia] de circunscrever o novo imposto as veículos de circulação terrestre, isto é, ao mesmo âmbito material de incidência da Taxa Rodoviária Única, manifestada de forma clara e ostensiva pelo legislador constituinte derivado, transparece nitidamente do texto do art. 23, nº III, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda nº 27, de 1985”. Contudo, ao se apontar o texto do art. 23, nº III, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda nº 27, de 1985, tem-se meramente mais uma circularização que se dá na mesma questão, pois o contorno normativo volta a se cingir sobre o signo “veículo”. Merece mais cuidado ainda ao se observar que, a fim de permitir a interpretação de texto da Constituição Federal de 1988, utilizam-se de argumentos que poderiam ser defendidos no panorama constitucional anterior, isto é, da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Entretanto, relega-se a segundo plano a absoluta distinção estrutural entre os dois ordenamentos constitucionais, que erigem Estados que não se confundem.

[15] É interessante observar que se tem utilizado a chamada “interpretação histórica” desconectada de documentos desse teor que comprovem a veracidade do que está sendo admitido, para fins de interpretação de textos jurídicos. À semelhança de Schleiermacher (1999), cujo trabalho pioneiro para uma teoria geral da hermenêutica deve ser aplaudido, os intérpretes do direito parecem estar em busca de uma interpretação psicológica, querendo compreender o legislador melhor do que ele se compreendia. Contudo, a se considerar o direito como linguagem, notadamente sob a forma escrita, não há como se pretender promover uma interpretação verdadeiramente histórica sem que sejam carreados ao percurso os textos que comprovem tal intenção. Ademais, ainda que se contem com tais expedientes (tais como atas das votações nas casas legislativas), ainda assim todo esse complexo de informações é apenas um conteúdo dentre diversos outros. Para tanto, deve o intérprete perscrutar por todo o sistema, buscando-lhe a harmonia.

[16] Aqui, vale fazer menção ao voto do Ministro Francisco Rezek, no RE nº 134.509/AM, no qual parece ressaltar uma “preocupação” muito maior com os aspectos de eficácia da norma, do que com o conteúdo normativo propriamente dito: “Penso no que seriam as consequências de se abonar a constitucionalidade dessa exação. Penso em como se deveriam alterar normas relacionadas com registros e cadastros. Penso no IPVA, que o constituinte manda ser arrecadado por Estados e repartido depois com o Município onde está licenciado cada veículo. Penso em como se afetarão navios e aviões aos municípios…”.

[17] Conforme doutrina de Alfredo Augusto Becker (2010, p. 32), que ora se faz mais atual do que nunca, em vista da manutenção (e talvez até da ampliação) do “manicômio jurídico tributário”, a “autonomia do Direito Tributário é um problema falso e falsa é a autonomia de qualquer outro ramo do Direito Positivo”. Reforçando os argumentos anteriores, Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 43) defende que “a ordenação jurídica é uma e indecomponível. Seus elementos – as unidades normativas – se acham irremediavelmente entrelaçados pelos vínculos de hierarquia e pelas relações de coordenação, de tal modo que tentar conhecer regras jurídicas isoladas, como se prescindissem da totalidade do conjunto, seria ignorá-lo, enquanto sistema de proposições prescritivas”.

[18] Não se pode olvidar, ainda, que o próprio STF reconhece tratar-se o Direito Tributário como verdadeiro “‘direito de superposição’, na medida em que encampa conceitos que lhe são fornecidos pelo Direito Privado (Direito Civil, Comercial, do Trabalho, etc)”, na doutrina de Gian Antonio Micheli. STF, Voto do Ministro Celso de Mello, Recurso Extraordinário nº 574.706.

[19] Tais certificados são utilizados para os veículos automotores aéreos e marítimos, por exemplo.

[20] Interessante observar que a indicação dessa alternativa guarda conexão com o tema a ser discutido em sede da Repercussão Geral nº 708, cuja ementa assim enuncia: “Possibilidade de recolhimento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automores (IPVA) em estado diverso daquele em que o contribuinte mantém sua sede ou domicílio tributário”.

[21] Conforme dados do IBGE, apenas a frota de automóveis ultrapassou os 49 milhões de veículos em 2015. Além destes, têm-se também os caminhões, os ônibus, as motocicletas, dentre outros. Disponível em: http://cidades.ib ge.gov.br/painel/frota.php. Acesso em 29 mar. 17.

[22] É interessante observar matéria jornalística intitulada “Mesmo sem mar, DF é a quarta unidade da federação com o maior número de barcos”, divulgada na internet e que bem reflete esse aspecto cultural que aqui se propugna. Em determinado trecho, a fim de tentar justificar o porquê do Distrito Federal, apesar de não possuir litoral, ter uma das maiores frotas marítimas do país, a matéria assim enuncia: “Apesar de não ser uma região litorânea, o Distrito Federal possui aproximadamente cinco mil embarcações. O número é considerado alto, mas pode ser explicado porque o DF tem uma das maiores rendas per capita do País” (destacado). Disponível em: http://noticias.r7.com/distrito-federal/mesmo-sem-mar-df-e-a-quarta-unidade-da-federacao-com-o-maior-numero-de-barcos-04082013. Acesso em 29 mar. 17.

[23] Inteiro teor disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/propmostrarintegra?codteor= 1105191 &filename=PEC+283/2013. Acesso em 29 mar. 17.

[24] Aqui, não se pode deixar de apontar que a ideia referenciada por Wálber Araujo Carneiro (2015, p. 133-151) é estruturada em um sentido mais estreito do que o aqui posto. Isso porque, defende o autor que “não é a jurisprudência que legitima a doutrina, e sim a rede doutrinária que legitima [a] jurisprudência. Ao juiz é dada a possibilidade de romper com a jurisprudência somente se a rede doutrinária assim o permitir, sendo que esse rompimento atrai o ônus argumentativo do rechaço do modelo jurisprudencial rechaçado, bem como dos modelos doutrinários que o sustentava”. Na defesa desta tese, longe de se pugnar por um niilismo interpretativo, ou por um subjetivismo ilimitado, que autorizaria qualquer interpretação por parte dos cientistas do direito ou mesmo em se tratando do processo de positivação do direito, não se pode olvidar que, no que pertine ao Direito Tributário, cujos estudos científicos são relativamente recentes no Brasil, bem como por um tecnicismo muitas vezes exagerado e confuso da legislação tributária, o qual dificulta o aprofundamento teórico, não é raro inexistir doutrina acerca de matérias específicas. E isso é encontradiço no IPVA. Nesse caso, o autor desenvolve tese a partir do que denomina Teoria Dialógica do Direito (CARNEIRO, 2011).

[25] Aqui, reitere-se a ausência de lei complementar estabelecendo normas gerais acerca do IPVA, o que faz operar um vácuo ainda maior entre o texto constitucional e os textos estaduais e distrital.

[26] No que pertine ao leite, é interessante observar que os Estados têm inserido determinados gêneros alimentícios, considerados de primeira necessidade, na lista denominada “cesta básica”, nos termos do Convênio ICMS nº 128, de 1994. Dentre os itens assim considerados, sobreleva o exemplo do leite. Nesse ponto, à época do convênio e com as legislações estaduais que aperfeiçoaram a matéria, não haveria os múltiplos tipos de leite, em escala industrial, tais como de arroz, de soja, com e sem lactose, vitaminado, com sabores, compostos lácteos, e uma infinidade de outros tipos distintos que se passou a oferecer no mercado. Nesse ponto, não dá para afirmar que todos eles se tratem simplesmente de leite, desconsiderando as diferenças que os fazem, releventamente, importantes para aqueles que consomem. Para alguém que seja intolerante ou alérgico à lactose, a diferença do produto pode representar a própria manutenção da saúde do indivíduo.

[27] Vide interessante matéria no blog do Estadão, que atualiza essa temática. Disponível em: http://blogs.estadao. com.br/primeira-classe/a-volta-das-carrocas/. Acesso em 29 mar. 17.

[28] Vide Decreto Federal nº 6.809, de 30 de março de 2009.

[29] Os contornos desse programa, bem como de toda a legislação que o rege, estão disponíveis em <http:// inovarautomdic.gov.br>. Acesso em 29 mar. 17.

[30] CF, art. 145, § 1º: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.