Direito e Economia, Responsabilidade Civil Contemporânea e Desenvolvimento Econômico

Law and Economics, Contemporary Tort Law and Economic Development

 

Uinie Caminha*

Afonso de Paula Pinheiro Rocha**

 

RESUMO: O artigo objetiva apresentar uma análise econômica da responsabilidade civil evidenciando os custos implícitos que a mesma acarreta para a sociedade e para o desenvolvimento econômico. Apresentam-se noções introdutórias sobre direito e econômica, com o enfoque na concepção de direito e economia comportamental para demonstrar fenômenos cognitivos que ocorrem na apreciação de situações nas quais há ocorrência de danos. Demonstra-se como esses fenômenos e a dinâmica de aplicação da responsabilidade civil podem representar ônus sociais que inibem o desenvolvimento econômico. Conclui-se que existe uma relação direta entra a dinâmica de responsabilidade civil adotada e o desenvolvimento social sendo importante que os juristas tenham consciência desses incentivos e custos implícitos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil; Direito e Economia, Desenvolvimento Econômico.

 

ABSTRACT: This article makes an economic analysis of tort law, showing the implicit costs that it entails for society and for economic development. It starts with introductory notions of law and economics, focusing on behavioral law and economics to demonstrate cognitive phenomena that occur in the assessment of situations in which damages take place. It shows how these phenomena and the dynamic of liability may represent social burdens that inhibit economic development. It concludes that there is a direct relation between tort law and social development and it is important that Law experts are aware of these implicit incentives and costs.

 

KEYWORDS: Tort law; Law and Economic; Economic Development.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Responsabilidade civil é o mecanismo do ordenamento jurídico pátrio pelo qual se efetuam reparações em face de danos ocorridos. Embora de percepção quase intuitiva em sua conceituação básica, existem perguntas mais sutis que podem ser efetuadas e tão importantes quanto o próprio instituto. Notadamente, por que é importante reparar danos sofridos? Qual é a melhor forma de reparar os danos que os indivíduos sofrem em suas relações? Será que todo e qualquer tipo de dano deve ser reparado? A quem imputar o dever de evitar a ocorrência do dano em uma determinada relação? Mais que isso, será que a culpa ainda é útil frente à objetivação da responsabilidade civil?

São perguntas que interessam à investigação jurídica e é proposta deste artigo que a Análise Econômica do Direito, especialmente em sua atual vertente de análise comportamental, pode oferecer importantes insights sobre como tratar a responsabilidade civil, e esta pode ser manejada de forma eficiente pelos juristas.

Apresentam-se, assim, noções gerais sobre direito e economia comportamental e sua correlação com a análise da responsabilidade civil, incluindo paralelo com o direito comparado (tort law) e crítica da percepção atual da responsabilidade civil no direito pátrio.

A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica da literatura de interesse para embasar o suporte de inferências deriváveis da análise proposta. Espera-se, com isso, contribuir para o avanço do debate na forma de tratamento na praxe judiciária da responsabilidade civil.

 

1 DIREITO E ECONOMIA E A PERCEPÇÃO REAL DAS DECISÕES DOS INDIVIDUOS

 

Por Direito e Economia deve-se entender um movimento de diferentes doutrinas que buscam a interdisciplinaridade para o estudo dos fenômenos jurídicos tendo por base a racionalidade individual e a utilização do aparato instrumental microeconômico para examinar a formação, a estrutura, os processos e o impacto social das instituições jurídicas (ROWLEY, 1989, p. 125).

Tais doutrinas almejam encontrar a racionalidade subjacente aos comandos jurídicos, o que decorre da “[...] percepção da importância de recorrer a alguma espécie de avaliação ou análise econômica na formulação de normas jurídicas visando torná-las cada vez mais eficientes”. (SZTAJN, 2005, p. 75).

Com efeito, essa preocupação prescritiva torna-se particularmente relevante para o campo da responsabilidade civil, no qual o espaço de construção jurisdicional é proeminente. Notadamente, o sistema de responsabilidade civil, com a previsão regras genéricas de responsabilização baseada em culpa ou em formas de responsabilização objetiva, redunda por delegar a jurisprudência o delineamento concreto de hipóteses de incidência à casuística jurisdicional. Os julgados tendem a se confundir com o próprio direito na descrição de hipóteses indenizáveis.

Também por estas razões o campo da responsabilidade civil sempre foi um espaço fértil para as análises de economistas. Questões de precificação dos danos sofridos, avaliação dos deveres de cuidado envolvidos e os ônus que as partes suportam demandam alguma forma de métrica. Cooter e Ulen (2010, p.332-333) destacam que é possível, então, pensar um modelo econômico para a responsabilidade civil baseada na análise do custo do dano e no custo de se evitar o dano, além da precaução, sob a ótica econômica, ser entendida como comportamentos e atitudes que reduzam a probabilidade ou magnitude de um acidente.

Adicionalmente, corroborando a estreita relação, tem-se que trabalhos seminais que são tidos como marcos do início do movimento de direito e economia (The Problem of Social Cost, de Ronald Coase, e Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, de Guido Calabresi) tratam exatamente de questões de responsabilidade civil para derivar uma teorização que interessa a todo o Direito.

As concepções clássicas de Direito e Economia são usualmente associadas à suposição metodológica de que os indivíduos são racionais e tendem a maximizar suas utilidades por meio de suas ações, sendo o direito e as normas jurídicas, mecanismos de influência e estímulos desses comportamentos. Essa percepção de racionalidade individual é extremamente útil para o Direito, notadamente quando da análise prospectiva dos efeitos de determinada legislação.

Em sua evolução, o movimento de direito e economia tem convidado uma série de adjetivações que representam uma interdisciplinaridade ainda maior. Notadamente, para os fins deste artigo, interessa o que se convenciona chamar de Direito e Economia Comportamental (Behavioural Law & Economics). Este segmento de pesquisa busca trazer para a metodologia de estudo um maior refinamento das premissas e elementos informativos sobre a racionalidade humana, colocando em contraste os comportamentos reais das pessoas em face das contrapartes idealizadas e perfeitamente racionais dos modelos teóricos.

O avanço dessa nova abordagem decorre da verificação empírica das limitações cognitivas humanas que influenciam de forma significativa as condutas e decisões dos indivíduos, projetando ainda efeitos coletivos. Com efeito, os indivíduos reais estão sujeitos a não só informações imperfeitas na hora de tomar decisões, como existem limitações de racionalidade, limitações de força de vontade e altruísmo (bounded racionality; bounded willpower; bounded self-interest) (JOLLS; SUNSTEIN; THALER, 1998, p. 1476).

A racionalidade limitada, de uma forma geral, relaciona-se com o reconhecimento da insuficiência informacional e mesmo limitações cognitivas na hora de efetuar decisões. Preconceitos e noções intuitivas, mas falaciosas, tendem a comprometer as previsões dos modelos que supõe um agente perfeitamente racional para os indivíduos concretos.

As limitações na força de vontade dos indivíduos também são fatores que podem influenciar decisões, a exemplo de pessoas que adotam condutas que não representam a maximização de suas utilidades no longo prazo.

Por fim, a percepção da existência de altruísmo e situações onde as pessoas sacrificam seu interesse particular em favor de outros também impõe importante limitação no modelo de racionalidade estrita e maximização de utilidade individualmente considerada. Pessoas reais tendem a orientar seus comportamentos dentro de balizas consideradas como justas mesmo quando racionalmente não é necessário.

Embora estas limitações e os fenômenos empíricos relacionados – otimismo ou pessimismo exagerado; heurística de disponibilidade (availability heuristics); tendenciosidade em retrospectiva (hindsight bias); aversão à perda (loss aversion); efeito de titularidade (endowment effect) – não sejam o foco exato desse estudo, comprovam que os comportamentos humanos não são perfeitamente racionais e isso é extremamente relevante na avaliação das expectativas das partes envolvidas em uma situação de reparação de dano e da racionalidade que aplicará o magistrado na resolução da situação judicializada.

Com efeito, tais evidências empíricas não podem ser desconsideradas quando da avaliação dos efeitos sociais das regras do sistema de responsabilidade civil:

 

[…] these findings affect a crucial assumption, being that injurers will respond with efficient care to effective standards set by judges (under negligence) or will find by themselves the efficient level of care on the basis of weighing up the costs of prevention and the benefits of reducing the accident risk.[1] (FAURE, 2008, p. 85)

 

Feitas estas considerações introdutórias, passa-se a descrever a concepção atual de responsabilidade civil; como os modelos teóricos ora descritos podem auxiliar na aplicação do instituto e a relação com o desenvolvimento socioeconômico.

 

2 REPSONSABILIDADE CIVIL CONTEMPORÂNEA

 

A responsabilidade civil é um campo de especial relevância para as interações econômicas entre os indivíduos. Para Ana Frazão, a responsabilidade civil volta-se a uma multiplicidade de funções, não só a reparação, pelo que ganha relevância sua utilização instrumental para a sociedade:

 

Quanto às funções da responsabilidade civil na atualidade, embora persista a importância da compensação, vem ganhando destaque a função normativa ou de desestímulo, cuja dimensão social é evidente, já que ultrapassa a relação entre o causador do dano e a vítima que requer a indenização. Essa é uma das razões pelas quais não há ranço acentuadamente patrimonialista que impeça a responsabilidade civil de cumprir a função de tutelar os mais diversos interesses, inclusive os públicos. (FRAZÃO, 2011, p. 36)

 

Essa multiplicidade de funções é especialmente relevante para a sociedade moderna que é pautada por uma multiplicidade de interações e exposições recíprocas de riscos entre seus diversos integrantes, tanto que a doutrina conceitua a sociedade contemporânea como sociedade de risco. Segundo Beck, a sociedade de risco “[...] designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial” (BECK, 1997, p. 25).

A multiplicidade de novos riscos implica que o direito passa a ser demandado por novas respostas para as pretensões de reparação. Assim, importantes questionamentos para a responsabilidade civil na atualidade são: qualitativamente, que tipos de riscos devem ser tutelados juridicamente pela da responsabilidade civil? Quantitativamente, quando o nível de risco se torna relevante para a imposição de responsabilidade civil por danos eventualmente verificados?

Consoante Steven Shavell (2007, p. 142), o sistema de responsabilidade civil possui uma correlação direta com os riscos vividos em sociedade, pois funciona como seguro implícito para as vítimas (possibilidade de recuperar os danos sofridos de um ofensor) e impõe um custo adicional que deve ser considerado pelo ofensor (custo associado ao risco de que o evento dano ocorra).

O instituto da responsabilidade civil possui duas grandes dinâmicas de verificação da incidência do dever de reparação – responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva. Fazendo um paralelo com o direito comparado seria possível associar tais dinâmicas aos negligence based e strickt liability based systems.

A primeira implica análise do nível de cuidado associado a conduta de um agente que gera risco para saber se o mesmo deve arcar ou não com o dano eventualmente verificado. Já a segunda dinâmica impõe o ônus de reparação ao autor de determinada conduta geradora de um dano, independentemente da perquirição relativa à negligência ou ao nível de cuidado adotado com a atividade. Embora existam subvariantes dos sistemas, a categorização ampla já é suficiente para demonstrar que a adoção de um sistema ou de outro implica na alocação dos riscos associados a uma atividade, bem como influencia os agentes em suas condutas.

Outro ponto a ser destacado é que o regime de responsabilidade civil possui custos que vão além do simples dano vivenciado por uma parte e que deve ser indenizado por outrem. Em realidade existem custos primários, secundários e terciários:

 

Primary accident costs are the victims’ losses. The costs of avoiding damages (by increasing the care level and reducing the activity level of a dangerous activity) should be balanced against the victims’s losses and ideally the sum of these costs should be minimized. Secondary costs of accidents result, if those who bear the primary accident costs are risk-averse. In such a case any kind of risk spreading and even of shifting the primary costs to the least risk-averse party leads to a social gain. Tertiary costs include all administrative costs of putting the case through the legal system. (SCHÄFER, 2000, p. 571)

 

Com efeito, a escolha de uma dinâmica de responsabilização representa um conjunto de custos invisíveis, notadamente o risco incorporado ao preço de determinado produto e atividade e o custo de funcionamento da máquina estatal para que o sistema seja efetivado.

A premissa que se quer ressaltar é que a doutrina tem empreendido grandes esforços na construção de teses e na ressignificação de elementos tradicionais da responsabilidade civil com o objetivo de encontrar fundamentos para a expansão da indenizabilidade dos novos danos. Não se nega a importância dessa expansão, contudo, quer se chamar a atenção para os efeitos que restam eclipsados, mas possuem profundas repercussões sociais.

 

3 EFEITOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL NA PRÁTICA JUDICIÁRIA E DESENVOLVIMENTO SOCIOECONOMICO

 

Em uma sociedade plural e complexa, em que as interações adotam formas que ultrapassam em velocidade e ante a possibilidade de previsões normativas prévias, o modelo de responsabilização civil possui efeitos sobre a dinâmica das interações sociais e efetivamente afeta o nível de diversas atividades de interesse social relevante. Deborah La Freta (2003) colaciona uma série de situações nas quais a expansão e incertezas associadas ao sistema de responsabilidade civil causam um impacto direto nos níveis de atividades socialmente desejáveis, inclusive com efeito de limitação e retração de comportamentos.

Primeiro, a autora identifica que o sistema de responsabilização civil como inibidor de inovação. Empresas tendem a tomar suas decisões sobre pesquisa e desenvolvimento considerando possíveis ônus prospectivos relacionados à litigiosidade e responsabilização civil, e eventuais produtos inovadores têm que enfrentar um ônus prévio de um manejo de possível passivo consumerista futuro. Ainda nesse ponto, várias empresas arcam com ônus de seguros associados a possíveis passivos decorrentes de acidentes com os produtos no mercado, o que limita os recursos para utilização em outras funções – notadamente, pesquisa e desenvolvimento.

A autora utiliza como exemplo os levantamentos das práticas da indústria farmacêutica, em que a análise de custo-benefício decorrente de indenizações possível é fator, muitas vezes, proibitivo no desenvolvimento de novas drogas.

Segundo, o sistema de responsabilização civil pode influir adversamente na competitividade e surgimento de novas empresas. Como exemplo, a autora aponta para evidências de estudos nos quais universidades negam licenciamento de patentes para pequenas e médias empresas por receio da insolvabilidade de tais entes em casos de responsabilização civil e passem a ser o alvo dos litigantes.

Nas duas hipóteses ventiladas pela autora, fica claro o ônus social não mensurado inerente ao sistema de responsabilização civil. Mais que isso, fica evidente que não é apenas o ônus primário (custos dos danos efetivamente condenados), mas os danos secundários e terciários que se tornam relevantes para a sociedade.

Os danos secundários chegam de forma diluída à coletividade de consumidores quando o risco associado à possível responsabilização civil é incorporado ao preço que é pago por produtos ou serviços. Da mesma forma, a sociedade suporta o ônus dos custos terciários de forma difusa, associados à própria litigância, com a manutenção mais cara do sistema judiciário.[2]

Esta constatação demonstra que a responsabilidade civil, muito mais do que simplesmente um instituto do Direito Civil, traduz-se em realidade em uma verdadeira política judiciária que impacta de forma imediata nos comportamentos dos indivíduos, o que pode gerar cenários de direcionamento ineficiente dos mesmos em face do interesse social. Com efeito, o desenvolvimento econômico e social é impactado diretamente pela política judiciária relacionada à responsabilidade civil, consoante evidenciam:

 

Because the risk of harm usually increases together with more activity, maintaining a low level of activity may allow parties to escape a duty to invest in cost-effective precautions. When their benefit from more activity is smaller than the costs of such precautions, parties are likely to restrict their activity even when a higher activity level is more socially desirable. (PARDOLESI; TASSONE, 2008, p. 5)

 

A aversão ao risco implica que certos comportamentos, embora desejáveis, tendem a ser reduzidos em face do custo do risco associado à possibilidade de acionamento para a reparação civil. É de todo natural que agentes racionais adotem medidas mitigadoras de sua exposição ou transfiram esse ônus em suas relações econômicas, por exemplo, diretamente em majoração do preço de produtos ou serviços ou indiretamente nos custos em face de seguros contratados.

Perceba-se o encadeamento lógico formado:

1.                      A velocidade das transformações sociais cria novas formas de interações entre indivíduos, além de bens e situações juridicamente relevantes e passíveis de proteção;

2.                      A proteção dessas situações se faz através do portfólio de sanções permitidas pelo direito. A dinâmica basilar civil é através da reparação/compensação com o ônus incidindo sobre o patrimônio daquele reputado como responsável pelo sistema de normas;

3.                      A multiplicidade e velocidade das transformações sociais passa a demandar para o mínimo de longevidade e efetividade prática do direito, que a técnica legislativa incorpore cláusulas gerais e/ou normas de conteúdo aberto. Tais dispositivos fortalecem e entram em simbiose com discurso contemporâneo prevalente de filtragem constitucional, constitucionalização e direito por meio da invocação principiológica;

4.                      Esse contexto fortalece a jurisprudência como fator de definição do que é ou não indenizável, bem como os valores de cada situação danosa. Com efeito, especialmente nos danos extrapatrimoniais, a discricionariedade judicial é extremamente ampla e com previsão legal, como comprova a dinâmica do parágrafo único do art. 953 e do art. 954 do Código Civil;

5.                      Além disso, a litigância jurídica no ordenamento pátrio pode ser dita de custo reduzido, vez que os requisitos para os benefícios da gratuidade judiciária dependem apenas de requisitos formais de declarações produzidas pela parte interessada;

6.                      Ainda sobre o ordenamento pátrio e a multiplicidade e morosidade associada às diversas instâncias implica na ausência de definições em curto lapso temporal sobre as teses apresentadas para a indenizabilidade de determinada situação.

De todas essas premissas, parece uma conclusão lógica inferir que a dinâmica de incentivos para os agentes sociais é propor várias ações (custo baixo) mediante a construção de novas teses argumentativas (cláusulas gerais, normas abertas e argumentação principiológica) com probabilidade de decisões favoráveis (amplo espaço de discricionariedade judicial).

Além disso, a demora em uma ação uniformizadora das instâncias superiores (multiplicidade de recursos e morosidade judiciária) implica que as primeiras decisões favoráveis têm um efeito multiplicador e incentivador prolongado que se autorreforça pela permanência de decisões reiteradas de primeira instância, por exemplo, considerando uma situação como ensejando reparação por dano moral e não um mero aborrecimento. Com efeito, o problema já é identificado pela doutrina como “jurisprudência lotérica” (CAMBI, 2001), ante a pluralidade de situações nos quais há julgamentos díspares recorrentes, inclusive quando já há posicionamentos de instâncias superiores.

Neste ponto, não é apenas a ampla criatividade jurisprudencial e a demora na efetivação da uniformização por parte dos tribunais que criam distorções ou incentivos para uma maior litigiosidade e estímulo de novas teorias de situações indenizáveis. A própria avaliação dos casos de danos está sujeita a efeitos cognitivos que distorcem a percepção de culpa e risco.

Antes de detalhar o ponto, oportuna pequena digressão para delinear um dos efeitos observados em direito e economia indicado no tópico anterior, a tendenciosidade retrospectiva (hindsight bias). Trata da distorção cognitiva relacionada a avaliação da probabilidade de ocorrência de um determinado evento ex ante quando a análise é realizada ex post, ou seja, quando o evento já aconteceu (VISCUSI, 2011, p. 19). Com efeito, os estudos mostram que os processos cognitivos dos indivíduos (o que inclui, partes, juízes e promotores) majoram a percepção de um risco quando analisada a situação de um evento em que o dano se concretizou desse risco. Esse fenômeno é inclusive parte do dia-a-dia, por exemplo, quando se questiona a conduta do técnico de futebol no dia seguinte a uma derrota - expressão popular do famoso: “Era óbvio que isso ia acontecer!.

Este fenômeno guarda importante relação com a responsabilidade civil, notadamente com a percepção humana para que haja a configuração de uma situação indenizável. Com efeito, no âmbito da responsabilidade subjetiva um dos elementos centrais é a culpa. Já no âmbito da responsabilização objetiva o elemento de destaque é o risco. Essa dicotomia está espelhada no dispositivo do art. 927 do Código Civil e seu parágrafo único.

A culpa pode ser entendida como ato ilícito decorrente da violação da norma geral de imposição do dever de cuidado, ou seja, a violação do dever de cuidado que cabe ao homem médio observar (ANGELIN, 2012, p. 53-54). Mas como se dá o efetivo processo cognitivo de percepção da culpa? Qual é o esquema básico de processamento de informações para que se possa chegar a uma situação de negligência sobre esse dever básico de cuidado?

No direito comparado existe importante marco teórico-jurisprudencial que evidencia em fórmula a avaliação cognitiva que é feita na análise dessa negligência. Trata-se da Regra de Hand desenvolvida pelo Justice Learned Hand, iniciando-se no paradigmático caso United States v. Carroll Towing Company. Tal fórmula tem por escopo apresentar o design objetivo implícito a um juízo sobre o dever ordinário de cuidado. Partindo da notação “P” para a probabilidade do dano, “L” para o dano e “B” para os custos dos cuidados, a configuração de uma situação indenizável (negligência decorrente da violação do dever ordinário de cuidado) depende de que B seja inferior a L multiplicado por P, ou seja: “B < P x L”.

Perceba-se que a fórmula efetivamente captura a essência do processo cognitivo sobre o dever de cuidado. Notadamente se o custo com precaução era menor do que a probabilidade de ocorrência de um dano em relação a sua extensão se efetivado, era razoável (racionalidade atribuída ao homem médio) que tais medidas de cuidado fossem tomadas.

Retomando a linha de raciocínio anterior, verifica-se que a tendenciosidade em retrospectiva (hindsight bias) é o fenômeno de percepção exagerada da probabilidade de um evento considerando que o mesmo já ocorreu. Considerada a fórmula de Hand para explicitar a situação, aumentar a probabilidade do evento eleva o “P x L”, logo o espectro do nível de cuidado esperado “B” tona-se mais amplo. Somando-se isso à múltipla litigiosidade, a indenizabilidade em primeira instância reforça a recorrência de casos e o efeito de hindsight bias de que determinada situação “claramente” já ensejaria a responsabilização civil.

No âmbito da responsabilidade objetiva, há um efeito similar, já que o foco de investigação é se determinada atividade apresenta um determinado risco, que carrega uma carga de análise de probabilidade. Com efeito, ao se avaliar se determinada atividade expõe terceiros a um determinado risco, há um juízo de probabilidade da ocorrência de eventos que geram o dano sempre em análise ex post de um estado de coisas ex ante. Logo, a mesma análise se aplica.

Todo este desenvolver teórico objetiva demonstrar que o design do nosso sistema de responsabilidade civil cumulado com fenômenos cognitivos inerentes aos seres humanos gera a litigiosidade. Muitas vezes, o foco de análise doutrinário e jurisprudencial é o de que a litigiosidade é responsabilidade dos litigantes de massa que violam os direitos dos consumidores em larga escala – a exemplo de bancos, planos de saúde, empresas de produtos de consumo. Tais entidades estariam a negar sistematicamente direitos constitucionais dos consumidores. Tal abordagem, se não de todo equivocada, ao menos é certamente incompleta e superficial.

O design do sistema de responsabilidade civil estimula a incerteza, que é precificada e retorna ao mercado de consumo como ônus adicional. Não só isso, como destacado acima, os custos secundários e terciários se acumulam. São recursos que poderiam ser utilizados para múltiplas finalidades de interesse social se não estivessem perpetuados em decorrência do design do sistema que estimula esses custos.

Em termos econômicos, o que o artigo demonstrou é que há significativas externalidades[3] que não são tratadas nos debates doutrinários atuais da responsabilidade civil. Logo, até pode ser verdadeiro interesse da sociedade a plena reparação de danos, mas esta escolha deve ser informada e consciente dos ônus que tal escolha traz, inclusive, para a própria sociedade de forma reflexa e implícita.

A responsabilidade civil, portando, não é só um instituto jurídico, mas um sistema de geração de incentivos para condutas que podem ou não ser mais onerosas para os próprios agentes sociais. Essa tomada de consciência é importante não só para os indivíduos envolvidos, mas para que se possa pensar em alterações estruturais do sistema de incentivos hoje existente.

 

CONCLUSÃO

 

Objetivou-se, por meio deste trabalho, instigar a reflexão sobre o fenômeno das dinâmicas inerentes à responsabilidade civil, partindo-se de considerações de Direito e Economia para verificar como essas interações refletem na sociedade e, especialmente, podem implicar a utilização de recursos de uma forma não eficiente e que redunda em prejudicar a coletividade difusa.

Partindo das premissas evidenciadas ao longo do texto, são possíveis algumas conclusões:

1) Mais do que falar em responsabilidade civil como apenas um instituto jurídico, ela é melhor compreendida como um verdadeiro sistema de abordagem das situações que autorizam a veiculação de uma pretensão de reparabilidade em uma sociedade de massa, complexa e sujeita a uma crescente pluralidade de riscos inerentes a novas formas de interação social;

2) A aplicação da responsabilidade civil cria incentivos e molda o comportamento dos agentes sociais de formas que podem ser positivas ou negativas para as finalidades tidas por desejadas. Além disso, podem gerar ônus, além das indenizações e valores de condenação, para os envolvidos e para a sociedade;

3) Além dos custos dos valores das condenações judiciais (custos primários), existem custos secundários (relativos à precificação do risco) e terciários (custo com a estrutura administrativa do sistema judiciário), que recaem sobre a coletividade dos consumidores de um determinado produto ou serviço e mesmo difusamente sobre a sociedade;

4) Esses ônus, por si, já representam uma redução dos recursos disponíveis para investimento e desenvolvimento socioeconômico, como o sistema pode inibir a inovação e desenvolvimento de novas tecnologias, produtos, serviços e práticas socialmente desejáveis em face da aversão ao risco e incertezas judiciárias;

5) O sistema judiciário e o momento de dominância de teorias argumentativo-principiológicas favorecem a criatividade judicial e reforçam de incentivos para judicialização ampla. Além disso, o fenômeno cognitivo de majoração da percepção ex post dos riscos ex ante de uma situação já configurada incidem sobre os indivíduos, magistrados e promotores na apreciação dos elementos de configuração da indenizabilidade de certos danos.

O que se quer colocar em discussão como parte final deste artigo é que os fenômenos cognitivos relacionados à avaliação humana, notadamente no caso da responsabilidade civil em que as situações de danos são exatamente apreciadas ex post, o sistema de normas deveria contrabalancear esse efeito de tendenciosidade em retrospecto. Contudo, o que se verifica é que o sistema jurídico em verdade reforça os incentivos para a judicialização excessiva, formando-se um círculo vicioso.

Esse processo redunda exatamente na majoração dos riscos secundários e terciários relacionados ao sistema de responsabilidade civil, o que tem por efeito elevar custos que são suportados pela coletividade, além de gerar situações de desestimulo ao desenvolvimento e inovação de produtos e serviços socialmente desejáveis.

A conclusão final é a necessidade de tomada de consciência deste contexto para que se possam derivar modificações no sistema de normas e na dinâmica de percepção das partes, juízes e promotores sobre as situações de danos indenizáveis e o manejo da responsabilidade civil.

 

REFERÊNCIAS

 

ANGELIN, Karine Ansiliero. Dano injusto como pressuposto do dever de indenizar. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. 2012

BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997.

COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito e Economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

FARIA, Guilherme Nacif de. Ética e análise econômica do Direito no Protocolo de Quioto. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 44 n. 175 jul./set. 2007.

FAURE, Michael G. Calabresi and Behavioural Tort Law and Economics. Erasmus Law Review, Vol. 1, P. 75-102, 2008.

JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard H., A Behavioral Approach to Law and Economics. Stanford Law Review, Vol. 50. P. 1471-1550. July 1998.

LA FETRA, Deborah. Freedom, Responsibility and Risk: Fundamental Principles Supporting Tort Reform. Indiana Law Review, Vol. 36, p. 645, 2003. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=699624>. Acesso em: 8 jan. 2015.

NASCIMENTO, Auster Moreira. Uma contribuição para o estudo dos custos de oportunidade. São Paulo: USP, 1998. Dissertação (Mestrado em Contabilidade), Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Universidade de São Paulo, 1998.

PARDOLESI, Roberto; TASSONE, Bruno, Guido Calabresi on Torts: Italian Courts and the Cheapest Cost Avoider. Erasmus Law Review, Vol. 1, No. 4, 2008.

POLINSKY, A. Mitchell; SHAVELL Steven. Handbook of Law and Economics. Vol. 1. Elsevier. 2007.

ROWLEY, Charles K. Public Choice and the Economic Analysis of Law. In: MERCURO, Nicholas (ed.). Law and Economics. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989.

SCHÄFER, Hans-Bernd. Tort Law: General. In.: Bouckaert, Boudewijn and De Geest, Gerrit (eds.), Encyclopedia of Law and Economics, Volume II. Civil Law and Economics. Cheltenham: Edward Elgar, 2000.

SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (orgs.) Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

VISCUSI, W. Kip. Does Product Liability Make Us Safer? (February 28, 2011). Vanderbilt Law and Economics Research Paper No. 11-11. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1770031>. Acesso em 21 jan. 2016.



* Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora dos Programas de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogada. E-mail: [email protected].

** Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). MBA em Direito Empresarial pela FGV/Rio. Procurador do Trabalho. E-mail: [email protected].

Data de recebimento do artigo: 01/02/2016 – Data de avaliação: 12/02/2016 e 14/02/2016.

[1] Tradução livre: “[...] estes achados afetam uma pressuposição crucial, aquela que os violadores vão responder com cuidado eficiente aos efetivos padrões estabelecidos pelos juízes (sobre negligência) ou irão encontrar por si próprios o custo eficiente de cuidado com base no balanceamento entre os custos de prevenção e os benefícios advindos da redução do nível de acidentes”.

[2] A este respeito é interessante perceber a ocorrência da noção de custo de oportunidade.  Trata-se de numa noção econômica de que para cada escolha efetuada, se está a sacrificar uma diversidade de outros cursos de conduta até então possíveis antes da decisão. A análise da eficiência da escolha realizada deve ser feita em contraste com a melhor alternativa sacrificada, de modo a verificar se escolha realidade foi a melhor possível. (NASCIMENTO, 1998, p. 28).

[3] Por externalidade devem-se entender os custos associados reais associados à constituição e transferências de direitos. Na visão de Guilherme de Nacif Faria: Dentro de um mercado ideal, as partes que nele atuam captam todos os benefícios e assumem todos os custos. Entretanto, em algumas situações especiais, os benefícios podem afetar terceiros; como exemplo, a cultura de abelhas por um produtor de mel que acaba por beneficiar, com a polinização, os agricultores que cultivam frutas ao redor. Ocorre aí uma externalidade positiva chamada benefício externo. Da mesma forma, se parte do custo da produção de um bem é suportado, não pelo produtor, mas por terceiros que nada têm com a relação de produção e consumo, então esse desvio do mercado ideal é chamado de custo externo e é uma externalidade negativa. (FARIA, 2007, p. 179)