Judicialização das relações sociais no Brasil do século XXI: aspectos práticos da democratização do acesso à Justiça e ao Direito

Judicialization of social relations in Brazil of XXI Century: practical aspects of the democratization of access to justice and legal rights

 

Marcelo de Souza Moura*

 

RESUMO: Analisam-se aspectos de uma pesquisa realizada no final do século XX, acerca do instituto da judicialização das relações sociais e políticas brasileiras, atualizando-o com as novas formas de se promover o acesso à Justiça e ao Direito nesses quinze anos do primeiro quartel do século XXI. Aqui são tratadas duas frentes de acesso à Justiça: a facilitação do acesso ao Poder judiciário, bem como a legislação que retira competências dessa instituição para deslocá-las para outros institutos e organizações.

 

PALAVRAS-CHAVE: Judicialização; Democracia; Acesso à Justiça e ao Direito.

 

ABSTRACT: In this article aspects of a survey about the Institute of judicialization of social and political relations in Brazil conducted at the end of the last century,  are analyzed, updating it with new ways to promote access to justice and and to legal rights at the beginning of XXI century. Two fronts of access to justice are outlined: the facilitation of the access to the Judiciary Branch, as well as the legislation that removes roles of that institutions to place them to other institutes and organizations.

 

KEYWORDS: Judicialization; Democracy; Access to Justice and to the Law.

 

 

INTRODUÇÃO

 

A atual realidade brasileira, que encontrou marco no Estado Democrático de Direito, representa uma nova etapa rumo aos ideários estatuídos como direitos fundamentais e sociais na Constituição da República de 1988 (CR).

Dentre todos os direitos do cidadão no País, um deles teve importância destacada no Estado brasileiro: o acesso igualitário à Justiça. Este torna-se referência na evolução da sociedade, impulsionando outro fenômeno observado mundialmente: a judicialização da sociedade.

Objetiva-se, neste artigo, observar aspectos práticos do fenômeno da Judicialização da Sociedade Brasileira nos passados quinze anos do século XXI. Para realizar a tarefa, tem-se como ponto de partida o trabalho da equipe de pesquisadores coordenada pelo Professor Doutor Luiz Werneck Vianna (SBI/IUPERJ), publicado com o título “A judicialização da política e das relações sociais no Brasil”. Tal obra, editada no findar do século imediatamente passado foi

[...] resultado de uma pesquisa iniciada em março de 1998 sobre o Poder Judiciário em suas relações com a política e a sociabilidade do País. Diante das importantes mutações ocorridas na organização e no funcionamento das instituições contemporâneas, o Poder Judiciário, antes periférico na práxis republicana, tem assumido novos papéis e repensado as suas estratégias (VIANNA, 1999, prefácio).

 

Desde a publicação da pesquisa, os institutos e práticas analisados naquela época se solidificaram, bem como outros foram criados, englobando desde uma evolução não comportamento da sociedade, no sentido de tomada de consciência na busca dos direitos por meio do Poder Judiciário, passando também pela modificação da legislação pátria, com o escopo de ampliar o acesso ao Direito e à Justiça, nem sempre levando o cidadão ao Poder Judiciário diretamente, mas fomentando-lhe a possibilidade de obter justiça por via de outras fontes e instituições.

Para realizar a tarefa, far-se-á inicialmente breve leitura introdutória da obra citada, demonstrando as origens e singularidades da judicialização no mundo, complementando com informações de outros estudos. Em seguida, são expressas as matrizes teóricas de apoio utilizadas pela equipe do professor Werneck, quais sejam: um eixo analítico (procedimentalista) e outro explicativo (substancialista). Passar-se-á em seguida pela Teoria da Interpretação Aberta da Constituição como base teórica para a judicialização. Desde então, se observarão aspectos práticos do fenômeno da judicialização no início do milênio no Brasil.

 

1 Origens da Judicialização

 

A equipe do Professor Werneck conseguiu estabelecer a ideia de que a origem da Judicialização nos moldes atuais está no século XIX, passando pela Revolução Industrial, bem como pela posterior criação de sindicatos e do desenvolvimento de legislações trabalhistas.

Na Revolução Industrial, por exemplo, homens, mulheres e crianças eram levados ao trabalho em turnos impraticáveis para os padrões atuais. As pessoas eram exploradas em sua força laboral até a exaustão, o que acarretava a diminuição da expectativa de vida, além de aumentar o risco de acidentes de trabalho.

Naquela, começou a existir uma organização político-social dos trabalhadores – precursora das organizações sindicais nos moldes de hoje, ocasionando consequências no ambiente político dos países industrializados, com a promulgação de legislação aplicável aos trabalhadores, bem como a prolação de decisões judiciais que lhes eram favoráveis. Tentava-se assim obter a igualdade dos desiguais. Como bem observou a equipe do Professor Werneck, o Direito do Trabalho infiltrou no campo do direito um argumento de justiça que procurava compensar por meio da regulamentação jurídica a parte considerada ‘economicamente desfavorecida’ nas relações contratuais entre empregados e empregadores (VIANNA, 1999, p 16).

Para exemplificar, consideraremos o trabalho infantil, muito comum na Revolução Industrial do século XIX, sobretudo na Inglaterra. O estado de exploração da capacidade laboral dos menores tornou-se tão crítico que, em 1802, foi editado o Moral and Health Act, primeira manifestação concreta contra o trabalho do menor por mais de dez horas seguidas, fato muito comum na época (NASCIMENTO, 2002, p.8). Com tal legislação, as decisões judiciais se tornaram favoráveis aos menores trabalhadores quando obrigados a laborar nas condições proibidas em lei.

No final do século XIX e início do século XX, imperava no ordenamento jurídico de alguns países um ideal liberalista, com intensiva demanda pela exploração laboral. Em outros o ordenamento jurídico possuía inspiração no que se convencionou chamar de Estado de Bem- Estar (Welfare State), que encontrou como uma de suas bases as legislações protetoras do trabalho e de organização do ativismo sindical, acarretando, assim, verdadeira antinomia entre o Direito Público e o Direito Privado, “pondo a própria economia, além do mercado de trabalho, sob a jurisdição da Administração Pública e de suas formas”. (VIANNA, 1999, p.17). Pode-se dizer que era uma forma de controle do capitalismo, para acrescentar bem-estar social aos trabalhadores e seus componentes familiares. Naquele momento da história, as medidas de assistência familiar, projetos habitacionais, programas de saúde, dentre outras, faziam parte do ordenamento jurídico das nações como medidas para se aumentar a igualdade entre os cidadãos ou, pelo menos, numa tentativa de ampliação de acesso aos recursos necessários à manutenção da vida.

Um problema começou, entretanto, a ser notado nos anos de 1930/40, aumentando sobretudo após o segundo pós-guerra mundial: as relações de publicização da esfera privada ocasionavam perda da liberdade. Tanto o Estado de direito quanto o Estado social poderiam existir sem democracia (HABERMAS apud VIANNA, 1999, p.19).

Em obra dedicada às origens do totalitarismo, Hannah Arendt faz uma observação demonstrativa do cuidado que se deve ter para a consecução da igualdade e liberdade, dentro de um conceito de justiça e democracia aplicável a um Estado democrático de direito. A pensadora explica que “desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados, constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias [...]” (ARENDT, 1990, p. 372), já que nem sempre a busca da igualdade é restrita a ordenamento jurídico democrático, existindo em regimes opressores da liberdade individual e coletiva, buscando a liberdade pelo uso da força.

O problema da perda da liberdade tendia a aumentar, com a grande intervenção do Poder Público na esfera privada. Para amenizar a situação, começa-se um trabalho legislativo diferenciado do que até então existia. Começou-se a admitir “leis experimentais de caráter temporário e leis de regulação de prognóstico inseguro [...], a inserção de cláusulas gerais, referências em branco e, principalmente, de conceitos jurídicos indeterminados” (HABERMAS, apud VIANNA 1999, p. 21). Agindo assim, o Poder Judiciário seria investido, pelo próprio caráter de Lei no Estado Social, do papel do legislador implícito recebendo capacidade legal pra reverter abusos em casos concretos. (VIANNA,1999, p.21),

Com isso, uma consequência esperada foi a maior autonomia e mais liberdade do Poder Judiciário para interferir nas relações entre público e privado (como nas de órgão estatal e particular) e relações entre privado e privado (como nas relações de empregado e empregador). Exige-se, pois, maior participação do Poder Judiciário para se determinar o direito geral das leis, inclusive com participação política.

 

Em torno do Poder Judiciário vem-se criando, então, uma nova arena pública, externa ao clássico ‘sociedade civil – partidos – representação – formação da vontade majoritária’, constituindo em ângulo perturbador para a teoria clássica da soberania popular. Nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação cedem lugar aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta de indivíduos, de grupos sociais e até de partidos – como nos casos de países que admitem o controle abstrato de normas -, em um tipo de comunicação que prevalece a lógica dos princípios, do direito material, deixando-se para trás as antigas fronteiras que separavam o tempo passado, de onde a lei geral e abstrata hauria seu fundamento, do tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do ético e do justo. (VIANNA, 1992, p.22)

 

Aparecem, então, dois pontos distintos, o primeiro dos quais é representado por uma mudança de comportamento dos magistrados e também dos membros do Ministério Público, passando agora para uma função mais ativa de zelar pela justiça e pelos ideais da lei.

O segundo pondo relaciona-se com as consequências para a liberdade. Muito mais do que a perda da liberdade idealizada no modelo de Contrato Social de Rousseau ou de Emmanuel Kant, em que as pessoas, em busca da proteção do coletivo, abriam mão de sua liberdade para conviver em Estados sob a égide de um poder comum (KANT, 2003, p.62). Agora em busca de uma igualdade, existe um crescente esvaziamento dos ideais e práticas de liberdade, conduzindo para um momento de ocorrência de uma cidadania passiva de clientes (VIANNA, 1999, p. 23), razão pela qual se infere ser a judicialização importante na mudança de atitude dos cidadãos e da própria cultura da sociedade envolvida.

 

2 Aportes metodológicos

 

Por utilizar-se a base teórica de uma pesquisa realizada, se faz necessário noticiar brevemente o suposto teórico nela aplicado. A equipe do professor Werneck Vianna trabalhou com dois eixos: o procedimentalista e o subjetivista.

No primeiro, representados pelos autores Antonie Garapon e Jüngen Habermas,

 

[...] viria a compreensão de que a invasão da política pelo direito, mesmo que reclamada em nome da igualdade, levaria à perda da liberdade, ‘ao gozo passivo de direitos’, ‘à privatização da cidadania’, ao paternalismo estatal, na caracterização de Habermas, e, na de Garapon, ‘a clericalização da burocracia’, ‘a uma justiça de salvação’, com a redução dos cidadãos ao estatuto de indivíduos-clientes de um Estado providencial.’ (VIANNA, 1999, p.23).

 

No eixo substancialista, também chamado de explicativo, tendo em Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin seus grandes representantes, “a partir de estratégias diversas e diferentes inspirações doutrinárias, mas sempre com referência à história e ao mundo empírico, como no caso crucial das relações maioria-minoria, concede-se ao Poder Judiciário uma nova inserção no âmbitro das relações entre os três Poderes [...]” (VIANNA, 1999, p. 37). Este eixo permite ao Poder Judiciário transcender ao modelo de freios e contrapesos, sendo esta sua maior crítica pelos procedimentalistas.

Os dois eixos têm um ponto em comum: reconhecem o Judiciário como instituição estratégica para as democracias contemporâneas, seguindo sua função no sistema de freios e contrapesos dos poderes estatais, bem como de promover a garantia de autonomia individual e cidadã – variando a maior ou menor intensidade de atuação do Judiciário nestas frentes de trabalho (checks and balances ou garantia do indivíduo face ao coletivo) conforme o eixo teórico seguido.

A pesquisa do Professor Werneck Vianna prossegue traçando os pontos de tensão e aproximação provocados pela judicialização das relações sociais e políticas brasileiras nos eixos procedimentalista e substantivistas, que não são objeto deste estudo, já que aqui se pretende perante um fato posto - “judicialização das relações sociais brasileiras”- observar o fenômeno nos primeiros quinze anos do século XXI, mediante novas formas de acesso à Justiça.

Para tratar especificamente da judicialização no Brasil, uma teoria possível é a da sociedade aberta de intérpretes da Constituição, utilizada também na pesquisa que serve de norte. Esse sistema encontra como um de seus principais desenvolvedores o Professor Peter Häberle, seguidor do constitucionalismo do Estado Social. É muito bem difundido no Direito brasileiro, por autores como o professor Paulo Bonavides, intelectual paraibano há dezenas de ano radicado no Ceará. É uma variação do método tópico concretista de Konrad Hesse, que considera não existir nenhuma leitura da Constituição independente de problemas concretos[1]. Pela Teoria da Constituição Aberta, de Häberle, em virtude de uma democratização do processo interpretativo, que não fica mais adstrito apenas ao corpo clássico de intérpretes, é possível uma interpretação constitucional estendida a todos os cidadãos. Neste “todos”, acha-se abrangida a totalidade dos órgãos estatais, entes públicos, cidadãos, os grupos existentes. (BONAVIDES, 2002, p. 512)

Assim sendo, permite-se que órgãos como o Procon possa interpretar a legislação constitucional, bem como clubes ou associações privadas, ou mesmo um condomínio edilício. Dessa forma, a teoria da sociedade aberta de intérpretes pode legitimar a prática de judicialização da sociedade brasileira.

Uma observação importante foi feita por Bonavides acerca da democracia pensada por Peter Häberle, afirmando ser esta “sensível a uma espécie de metodologia tópica e concretista, a que serve de escudo, não é a do povo-massa, absoluto, possuidor de um novo gênero de direito divino, mas a do cidadão, artífice de uma democracia do cidadão” (BONAVIDES, 2002, p. 515).

Assim, espera-se que este cidadão, que com o passar do tempo se torna mais consciente de seu papel na democracia, participe da formação e manutenção do Estado, exigindo que seus direitos sejam concretizados.

 

 

 

 

3 A judicialização no Brasil do século XXI

 

No que tange à judicialização, a nova realidade brasileira começou a ser moldada antes mesmo de promulgada a Constituição da República de 1988, na época da Assembleia Constituinte. Como é natural – mas não necessariamente uma regra absoluta - nova Constituição representa uma ruptura na ordem institucional e jurídica no País de ocorrência. No Brasil, a ruptura foi bastante drástica, porquanto se saiu de um governo militar imposto para um governo civil democrático, no qual a dignidade da pessoa humana, juntamente com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, foram privilegiados como fundamentos do Estado brasileiro, no art. 1º da Constituição (BRASIL, 1988).

Com estes fundamentos e outros ideais, como a igualdade entre todos os cidadãos e a facilitação de acesso à Justiça, concebidos como direitos humanos fundamentais (art. 5º), a Carta política brasileira recebeu o epíteto de Constituição Cidadã. Todos estes direitos - alguns ainda não regulamentados - foram, paulatinamente, modificando o pensamento, tanto da população quanto do Poder Judiciário, que passou a considerar a desigualdade extrema de nossa sociedade em suas decisões.

De outra parte, ainda se vivencia no Brasil, além da democracia representativa, por eleição direta, uma democracia participativa, com institutos como o referendo e os mandados de segurança e injunção. A CR, ao permitir que setores da sociedade interpretem as leis e tenham participação política efetiva – setores estes antes à margem de participação ou interpretação – permite-se que sejam utilizados recursos anteriormente destinados apenas a um pequeno grupo seleto da sociedade, afeito às minúcias das ciências jurídicas.

Ao mesmo tempo, esta mesma sociedade vai convivendo com a Ciência Jurídica, tornando-se mais politizada e consciente dos seus direitos. Nas palavras de Cittadino apud Vianna, “é portanto, pela via da participação político-jurídica [...] que se processa a interligação entre os direitos fundamentais e a democracia participativa”. (VIANNA, 1999, p. 40).

Este novo perfil de sociedade, cada vez mais consciente da legislação, busca efetivar os seus direitos constitucionais, tornando-se uma sociedade judicializada. Elege seus representantes para o exercício da democracia participativa, porém não mais fica “deitada eternamente em berço esplêndido” como o solo brasileiro descrito no Hino Nacional do País. Rejeita a função de cidadania passiva. Organiza-se – ou pelo menos tenta se organizar – para exercer a democracia participativa, além de buscar o exercício de seus direitos já concedidos na CR.

Esta conscientização modifica a atitude dos poderes, fazendo, inclusive, que o poder legislativo adeque a legislação pátria conforme os novos anseios da sociedade, o que nem sempre costuma acontecer.

Aliando a este novo entendimento do Poder Judiciário, os outros Poderes também contribuíram para a judicialização da sociedade, mediante Legislação que facilitava tanto o acesso ao Judiciário, quanto aquela que retirava do Judiciário o caráter de julgador exclusivo de direitos.

Passa-se agora a observar alguns institutos e organizações que contribuem para esta evolução da sociedade. Para efeitos didáticos diferencia-se em duas frentes de judicialização: a de facilitação do acesso ao Judiciário e a de legislação que retira competências do Poder Judicante, alocando-as em outras instituições. Ambas, ao seu modo, fomentam a democratização do acesso à Justiça e ao Direito.

 

3.1 Facilitação de acesso ao Judiciário

 

Desde o ano de 1950, com a promulgação da Lei nº 1.060, a justiça é gratuita e facultada a todos. Esta conquista representou uma mudança na atitude da sociedade, tornando-a mais integrada e homogênea em certo sentido.  Apenas permitir, porém, a gratuidade da Justiça não basta para os dias de hoje. É preciso também pensar em como garantir o acesso ao Judiciário para quem não possa pagar advogados; é preciso tornar a justiça mais presente e célere na vida do cidadão. Neste sentido, observam-se as posições e Institutos do Poder Judiciário, apostos na sequência.

 

a) Modificação das decisões judiciais envolvendo obrigações de outros entes federativos

 

No passado, as medidas judiciais envolvendo obrigações não cumpridas por entes federativos eram desfavoráveis ao particular, sob o argumento de que a intervenção do judiciário nas decisões administrativas do Legislativo ou Executivo feriria o Princípio da Separação de Poderes. Nos últimos dez anos do século XX, esta situação começou a ser revertida, influenciada, sobretudo, pela garantia de direitos das minorias e pela divulgação de direitos fundamentais. Atualmente, este novo entendimento do Judiciário se amplia, além de se consolidar por via de decisões reiteradas dos tribunais estaduais e das cortes superiores brasileiros.

Um exemplo pode ser dado por meio de medidas liminares, para que o Estado ofereça medicamentos gratuitos a quem não pode arcar com seus custos. Consoante Barcellos, no início dos anos 1990, o Judiciário não concedia medidas liminares de medicamentos sob o argumento de que feriria o Princípio da Independência dos Poderes Estatais. Mais no final da década e início do século XXI, entretanto, o Poder Judiciário não se escusa mais de aplicação do direito representado pelo art. 196 da CR, de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, determinando ao Poder Executivo que financie o tratamento de todos aqueles que comprovem ter necessidade (BARCELLOS, 2001, p.256).

A divulgação destas decisões incentiva outras pessoas em situações similares a procurar a concretização de seus direitos, buscando-os também no Judiciário.

 

b) Defensorias Públicas

 

Entre as medidas que facilitam o acesso ao Judiciário, pode-se mencionar a organização de Defensorias Públicas nos estados, para atendimento da população carente, sem recursos para pagar advogados particulares.

Em alguns casos, somente neste século, as Defensorias foram organizadas. Como exemplo, é citado o Estado de Alagoas, onde a Defensoria Pública só foi organizada no ano de 2001 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE ALAGOAS, 2006).

As defensorias públicas ainda estão longe de cumprir totalmente sua função, em decorrência de fatores como falta de defensores, material de trabalho e recursos financeiros. Ainda assim, no entanto, pode-se ver um avanço em relação ao passado: o excesso de trabalho é causado pela grande e crescente demanda das pessoas, o que corrobora o entendimento de que a população está cada vez mais judicializada, buscando a solução para seus problemas por intermédio de defensor público – embora também releve o grave problema econômico do País, pois a maioria das pessoas não pode arcar com honorários de advogado.

 

c) Juizados Especiais

 

Outra prática de acesso ao Judiciário é representada pela implementação de Juizados Especiais em todo o País. Embora decorrentes da Lei nº 9.099, de 1995, neste século sua função foi e continua sendo ampliada para outros ramos do Direito. Antes, apenas ações cíveis e penais poderiam integrar o rol de procedimentos dos Juizados. Com a edição da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, foi criado o Juizado Especial Federal, para ações de até 60 salários mínimos, envolvendo as competências da Justiça Federal, como, por exemplo, ações de revisão de pensão e benefícios do INSS, que, segundo dados da Secção de Minas Gerais da Justiça Federal, são as ações que representam o maior volume, hoje, dos Juizados Especiais (JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS, 2015).

          Por outro lado, ainda nos Juizados Especiais comuns, regulados pela Lei nº 9.099/1995, muito foi feito no sentido de melhoria de atendimento ao público. A Comarca de Belo Horizonte, atualmente, conta com Juizados Especiais cíveis, criminais, das relações de consumo, de acidentes de trânsito e de empresas, ampliando o acesso e a celeridade dos processos, pois há mais juízes e funcionários para o processamento mais especializado em determinados ramos do Direito. E esta é uma tendência com iniciativas nacionais, não só em capitais, mas também em Comarcas menores no interior dos Estados.

 

d) Levando a Justiça até o povo: fóruns regionalizados e Juizados Especiais Itinerantes

 

Ainda na linha de acesso ao Judiciário, pode-se observar que o fator distância é preocupação constante estatal, pois constitui complicador para grande parte da população brasileira. Existem cidades, lugarejos e distritos no País que não são contemplados com órgãos do Poder Judiciário.

A distância ainda influencia em grandes cidades, onde o deslocamento até o órgão judicial pode comprometer a vida diária do cidadão comum pela ausência de tempo e de recursos financeiros. Para amenizar estes problemas, algumas medidas já foram tomadas.

Pode-se observar a crescente regionalização de fóruns em grandes cidades como São Paulo e Belo Horizonte. A primeira conta com cinco fóruns regionalizados, e em BH há o Fórum Regional do Barreiro, além de um fórum central. Essa medida aproxima o Poder Judiciário dos habitantes das regiões, facilitando a prestação jurisdicional.

A regionalização está longe de ser bem-vinda pela classe dos advogados, principalmente dos que têm escritório fora dessas regiões, pois estes profissionais são obrigados ao deslocamento para acompanhamento de seus processos. O objetivo maior da regionalização, entretanto, se encontra na adequada prestação jurisdicional com maior conforto para o cidadão, atendendo perfeitamente sua função.

Além dessa, existem as incitativas dos Juizados Especiais Itinerantes, tanto da Justiça comum quanto da justiça especial, na tentativa de chegar mais rápido e mais perto da população que não tem acesso aos grandes centros urbanos. Por meio de ônibus e barcos adaptados, conciliadores e juízes se deslocam até as cidades onde não existem sedes do Poder Judiciário, resolvendo litígios que dificilmente seriam solucionados na Justiça.

Em outras situações, mesmo em comarcas onde há Justiça instalada, os Juizados Especiais Itinerantes são utilizados para acelerar a prestação jurisdicional. Como exemplo, temos o Juizado de Acidentes de Trânsito Itinerante na região da Capital Federal. É possível acionar a Justiça tão logo ocorra o acidente, com os veículos ainda na via pública, o que permite a inspeção judicial do juiz e a proximidade com as condições físicas dos condutores e do ambiente, fazendo a prestação jurisdicional ser cumprida poucas horas após o evento (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, 2007).

 

3.2 Legislação que retira competências do Judiciário

 

Quanto à legislação que retira competências do Judiciário, observa-se que esta pode ser importante para facilitar o acesso ao próprio Judiciário. Retirando ou repartindo competências com outros órgãos, a legislação permite um acesso mais rápido para ações envolvendo estas competências específicas, diminuindo o volume de trabalho do Poder Judiciário, que pode então se dedicar a questões mais complexas.

O Poder Público já percebeu ser preciso não só aproximar o cidadão do Poder Judiciário, mas do próprio Direito. E mais, é preciso também ofertar a este cidadão o Estado democrático de direito na sua essência, mesmo que a Justiça seja realizada de forma privada.

 

a) Tribunal Arbitral

 

Um exemplo pode ser visto pelos Tribunais de Arbitragem e Mediação, as pessoas físicas ou jurídicas podem recorrer a eles mediante cláusula de eleição que exclui a busca pelo Poder Judiciário. Embora previstos desde 1996, somente neste século passaram a ter maior adesão, sobretudo de grandes empresas, que elegem a justiça privada para dirimir os problemas de seus contratos.

A opção para o grande público composto por pessoas de baixa renda ainda é tímida mas, como foi expresso, ao se eleger a competência dos Tribunais Arbitrais, as partes excluem o judiciário num primeiro momento, deixando-o apto a poder tratar de outras questões, incluindo-se os direitos de titulares com menor poder aquisitivo.

 

b) Ampliação das funções dos Serviços Notariais

 

Outro exemplo pode ser observado em legislações, como a Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que alterou dispositivos do Código de Processo Civil de 1973 (CPC), para permitir que divórcios, separações, inventários e partilhas de bens possam ser realizados, em algumas situações, diretamente em Cartórios por meio de escrituras públicas, sem a necessidade de homologação pelo Poder Judiciário. Assim ficou redigido o CPC, que sairá de cena em março de 2016:

 

Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.

[...]

 

Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.

[...]

 

A tendência também foi incorporada Ao novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015, que trata com maior atenção acerca da questão de solução de controvérsias por meios alternativos à utilização do Poder Judiciário Brasileiro (BRASIL, 2015).

Iniciativas como estas ocorrem desde a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que representou uma reforma constitucional das disposições relativas ao Poder Judiciário. A intenção do legislador pátrio também foi de permitir o maior acesso não apenas ao Poder Judiciário, mas à Lei e ao direito, contribuindo muito para a judicialização da sociedade.

 

c) Participação de entidades civis e estatais

 

Outro exemplo pode ser observado pelas entidades civis e estatais, que buscam levar o justo – e não a justiça – ao particular por intermédio do Direito. Entidades como sindicatos já têm consolidada a sua participação na intermediação de questões entre empregados e empregadores, mesmo sem recorrer à Justiça do Trabalho.

Da mesma forma, funciona no tocante à proteção aos consumidores. Os Procons, dependendo do Estado-Membro, organizados por entes estatais ou entidades privadas, representam a chance de um ajuste de conduta entre fornecedores de bens ou serviços e os consumidores, antes mesmo de se acionar o Poder Judiciário.

Outras entidades civis também podem contribuir com a judicialização da sociedade. Em Minas Gerais, umas das associações que presta este papel é o Movimento das Donas de Casa (MDC). Agindo além de assessoria judiciária, também oferece orientação sobre leis e direitos, educando – por assim dizer – a população acerca de seus direitos. (MOVIMENTO DAS DONAS DE CASA DE MINAS GERAIS, 2016).

 

4 O papel da mídia na Judicialização da sociedade brasileira

 

Não se pode esquecer o papel que a mídia desempenha hoje em dia para a divulgação de direitos do cidadão brasileiro. Desde a CR de 1988, a imprensa passou a ter a liberdade de poder divulgar as informações sem o crivo da censura que ocorria no regime militar.

Com o avanço natural da sociedade rumo às facilidades do mundo contemporâneo, onde os meios de comunicação passaram a tornar a informação disponível de forma farta e instantânea, é natural que o acesso à informação referente aos direitos chegue cada vez mais perto e rápido para toda a população.

Neste sentido, as informações aportam a um público que a eles não tinha acesso, de tal sorte que a sociedade se vê esclarecida de alguns dos direitos que possui.

Com isso, o cidadão tem a possibilidade de procurar direitos, dos quais, em algumas situações, desconhecia a existência, seja por meio de advogado, seja sozinho em Juizados Especiais, ou nas relações de consumo, ou mesmo procurando a própria imprensa para denunciar situações de abuso e desrespeitos aos seus direitos.

Os meios de propagação coletiva divulgam largamente as leis que facilitam o direito do cidadão, como, por exemplo, a Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, citada há pouco, que divulga para a população o fato de que não é mais exclusivo da competência do Poder Judiciário realizar a separação, quando os cônjuges estão em consenso e não possuem filhos menores, bastando a presença de um advogado e uma escritura pública lavrada em cartório. Dessa forma, o papel da imprensa oficialmente instituída, bem como de outros meios midiáticos, especialmente os criados em instrumentos digitais, torna-se cada vez mais relevante em uma sociedade que privilegia a informação.

 

CONCLUSÃO

 

A democratização do acesso à Justiça e ao Direito é um dos reflexos da judicialização da sociedade brasileira. As novas relações do cidadão brasileiro com o meio ambiente demonstram o seu novo interesse em querer se tornar um cidadão ativo e participante da vida política do País, na medida em que busca a efetividade de seus direitos.

O Poder Público, sensível aos avanços desta sociedade, não se furta de tentar fomentar meios para que a população concretize seus direitos. Equipa o Judiciário, permitindo que consiga chegar mais perto do povo, facilitando seu acesso – mesmo que ainda se necessite de mais recursos para se alcançar, cada vez mais, titulares de direitos que ainda se encontram à margem da sociedade. Em outra frente, consegue retirar a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário, equipando outros entes e autarquias, bem como assentindo que a própria sociedade civil se organize para que o Direito e a Justiça sejam exercidos.

A pesquisa conduzida pelo Professor Luiz Werneck Vianna no final do século XX permanece atual. Seu trabalho se procedeu a uma releitura constante das novas tendências das relações sociais no sentido de se tornarem cada vez mais uma sociedade judicializada.

Ressalte-se, por oportuno, que a judicialização, como fenômeno social, nunca estará completa, perpetuando-se de forma cíclica, pois mais direitos serão criados e outros titulares poderão ser atingidos por tais direitos. Acompanhará a evolução e a necessidade da população rumo ao acesso ao Direito e à Justiça, fazendo parte de uma tendência mundial, em que o ser humano se torna mais consciente de seus direitos e de seu papel na luta por estes direitos.

 

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 1a ed 1989, 5ª reimpressão 2004. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2001.

BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no federalismo das regiões. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

______. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em <http//www.senado.gov.br>. Acesso em: 22 Jan.. 2016.

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* Doutor em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Professor do IBMEC-MG. E-mail: [email protected].

Data de recebimento do artigo: 25/01/2016 – Data de avaliação: 02/02/2016 e 05/02/2016.

[1] Este método possui três elementos basilares - a norma que vai se concretizar, a compreensão prévia do intérprete do contexto histórico e social no qual a norma está inserida (pré-compreensão) e o problema concreto a resolver (HESSE, 1998, p.61).