Judicialização das relações sociais
no Brasil do século XXI: aspectos práticos da democratização do acesso à
Justiça e ao Direito
Judicialization
of social relations in Brazil of XXI Century: practical aspects of the
democratization of access to justice and legal rights
Marcelo de Souza Moura*
RESUMO: Analisam-se aspectos de uma pesquisa realizada no
final do século XX, acerca do instituto da judicialização das relações sociais
e políticas brasileiras, atualizando-o com as novas formas de se promover o acesso
à Justiça e ao Direito nesses quinze anos do primeiro quartel do século XXI.
Aqui são tratadas duas frentes de acesso à Justiça: a facilitação do acesso ao
Poder judiciário, bem como a legislação que retira competências dessa
instituição para deslocá-las para outros institutos e organizações.
PALAVRAS-CHAVE: Judicialização; Democracia; Acesso à Justiça e ao
Direito.
ABSTRACT: In this article aspects of a survey about the
Institute of judicialization of social and political relations in Brazil conducted
at the end of the last century, are
analyzed, updating it with new ways to promote access to justice and and to
legal rights at the beginning of XXI century. Two fronts of access to justice
are outlined: the facilitation of the access to the Judiciary Branch, as well
as the legislation that removes roles of that institutions to place them to
other institutes and organizations.
KEYWORDS: Judicialization; Democracy; Access to Justice and to
the Law.
INTRODUÇÃO
A atual
realidade brasileira, que encontrou marco no Estado Democrático de Direito,
representa uma nova etapa rumo aos ideários estatuídos como direitos
fundamentais e sociais na Constituição da República de 1988 (CR).
Dentre todos
os direitos do cidadão no País, um deles teve importância destacada no Estado
brasileiro: o acesso igualitário à Justiça. Este torna-se referência na
evolução da sociedade, impulsionando outro fenômeno observado mundialmente: a
judicialização da sociedade.
Objetiva-se,
neste artigo, observar aspectos práticos do fenômeno da Judicialização da
Sociedade Brasileira nos passados quinze anos do século XXI. Para realizar a
tarefa, tem-se como ponto de partida o trabalho da equipe de pesquisadores
coordenada pelo Professor Doutor Luiz Werneck Vianna (SBI/IUPERJ), publicado com o título “A
judicialização da política e das relações sociais no Brasil”. Tal obra, editada
no findar do século imediatamente passado foi
[...] resultado de uma pesquisa iniciada em março de
1998 sobre o Poder Judiciário em suas relações com a política e a sociabilidade
do País. Diante das importantes mutações ocorridas na organização e no
funcionamento das instituições contemporâneas, o Poder Judiciário, antes
periférico na práxis republicana, tem assumido novos papéis e repensado as suas
estratégias (VIANNA, 1999, prefácio).
Desde a
publicação da pesquisa, os institutos e práticas analisados naquela época se
solidificaram, bem como outros foram criados, englobando desde uma evolução não
comportamento da sociedade, no sentido de tomada de consciência na busca dos
direitos por meio do Poder Judiciário, passando também pela modificação da
legislação pátria, com o escopo de ampliar o acesso ao Direito e à Justiça, nem
sempre levando o cidadão ao Poder Judiciário diretamente, mas fomentando-lhe a
possibilidade de obter justiça por via de outras fontes e instituições.
Para
realizar a tarefa, far-se-á inicialmente breve leitura introdutória da obra
citada, demonstrando as origens e singularidades da judicialização no mundo,
complementando com informações de outros estudos. Em seguida, são expressas as
matrizes teóricas de apoio utilizadas pela equipe do professor Werneck, quais
sejam: um eixo analítico (procedimentalista) e outro explicativo
(substancialista). Passar-se-á em seguida pela Teoria da Interpretação Aberta
da Constituição como base teórica para a judicialização. Desde então, se
observarão aspectos práticos do fenômeno da judicialização no início do milênio
no Brasil.
1 Origens da Judicialização
A
equipe do Professor Werneck conseguiu estabelecer a ideia de que a origem da
Judicialização nos moldes atuais está no século XIX, passando pela Revolução Industrial,
bem como pela posterior criação de sindicatos e do desenvolvimento de legislações
trabalhistas.
Na
Revolução Industrial, por exemplo, homens, mulheres e crianças eram levados ao
trabalho em turnos impraticáveis para os padrões atuais. As pessoas eram
exploradas em sua força laboral até a exaustão, o que acarretava a diminuição
da expectativa de vida, além de aumentar o risco de acidentes de trabalho.
Naquela,
começou a existir uma organização político-social dos trabalhadores –
precursora das organizações sindicais nos moldes de hoje, ocasionando consequências
no ambiente político dos países industrializados, com a promulgação de legislação
aplicável aos trabalhadores, bem como a prolação de decisões judiciais que lhes
eram favoráveis. Tentava-se assim obter a igualdade dos desiguais. Como bem
observou a equipe do Professor Werneck, o Direito do Trabalho infiltrou no
campo do direito um argumento de justiça que procurava compensar por meio da
regulamentação jurídica a parte considerada ‘economicamente desfavorecida’ nas
relações contratuais entre empregados e empregadores (VIANNA, 1999, p 16).
Para
exemplificar, consideraremos o trabalho infantil, muito comum na Revolução
Industrial do século XIX, sobretudo na Inglaterra. O estado de exploração da
capacidade laboral dos menores tornou-se tão crítico que, em 1802, foi editado
o Moral and Health Act, primeira manifestação concreta contra o trabalho
do menor por mais de dez horas seguidas, fato muito comum na época (NASCIMENTO,
2002, p.8). Com tal legislação, as decisões judiciais se tornaram favoráveis
aos menores trabalhadores quando obrigados a laborar nas condições proibidas em
lei.
No
final do século XIX e início do século XX, imperava no ordenamento jurídico de
alguns países um ideal liberalista, com intensiva demanda pela exploração
laboral. Em outros o ordenamento jurídico possuía inspiração no que se
convencionou chamar de Estado de Bem- Estar (Welfare State), que encontrou como uma de suas bases as legislações
protetoras do trabalho e de organização do ativismo sindical, acarretando, assim,
verdadeira antinomia entre o Direito Público e o Direito Privado, “pondo a
própria economia, além do mercado de trabalho, sob a jurisdição da
Administração Pública e de suas formas”. (VIANNA, 1999, p.17). Pode-se dizer
que era uma forma de controle do capitalismo, para acrescentar bem-estar social
aos trabalhadores e seus componentes familiares. Naquele momento da história,
as medidas de assistência familiar, projetos habitacionais, programas de saúde,
dentre outras, faziam parte do ordenamento jurídico das nações como medidas
para se aumentar a igualdade entre os cidadãos ou, pelo menos, numa tentativa
de ampliação de acesso aos recursos necessários à manutenção da vida.
Um
problema começou, entretanto, a ser notado nos anos de 1930/40, aumentando
sobretudo após o segundo pós-guerra mundial: as relações de publicização da
esfera privada ocasionavam perda da liberdade. Tanto o Estado de direito quanto
o Estado social poderiam existir sem democracia (HABERMAS apud VIANNA, 1999, p.19).
Em obra
dedicada às origens do totalitarismo, Hannah Arendt faz uma observação demonstrativa
do cuidado que se deve ter para a consecução da igualdade e liberdade, dentro
de um conceito de justiça e democracia aplicável a um Estado democrático de
direito. A pensadora explica que “desde os tempos antigos, a imposição da
igualdade de condições aos governados, constituiu um dos principais alvos dos
despotismos e das tiranias [...]” (ARENDT, 1990, p. 372), já que nem sempre a
busca da igualdade é restrita a ordenamento jurídico democrático, existindo em
regimes opressores da liberdade individual e coletiva, buscando a liberdade
pelo uso da força.
O
problema da perda da liberdade tendia a aumentar, com a grande intervenção do
Poder Público na esfera privada. Para amenizar a situação, começa-se um
trabalho legislativo diferenciado do que até então existia. Começou-se a
admitir “leis experimentais de caráter temporário e leis de regulação de
prognóstico inseguro [...], a inserção de cláusulas gerais, referências em
branco e, principalmente, de conceitos jurídicos indeterminados” (HABERMAS, apud VIANNA 1999, p. 21). Agindo assim,
o Poder Judiciário seria investido, pelo próprio caráter de Lei no Estado
Social, do papel do legislador implícito recebendo capacidade legal pra
reverter abusos em casos concretos. (VIANNA,1999, p.21),
Com
isso, uma consequência esperada foi a maior autonomia e mais liberdade do Poder
Judiciário para interferir nas relações entre público e privado (como nas de
órgão estatal e particular) e relações entre privado e privado (como nas
relações de empregado e empregador). Exige-se, pois, maior participação do
Poder Judiciário para se determinar o direito geral das leis, inclusive com
participação política.
Em torno do Poder Judiciário vem-se
criando, então, uma nova arena pública, externa ao clássico ‘sociedade civil –
partidos – representação – formação da vontade majoritária’, constituindo em
ângulo perturbador para a teoria clássica da soberania popular. Nessa nova
arena, os procedimentos políticos de mediação cedem lugar aos judiciais,
expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta de indivíduos, de grupos
sociais e até de partidos – como nos casos de países que admitem o controle
abstrato de normas -, em um tipo de comunicação que prevalece a lógica dos
princípios, do direito material, deixando-se para trás as antigas fronteiras
que separavam o tempo passado, de onde a lei geral e abstrata hauria seu
fundamento, do tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do ético e do
justo. (VIANNA, 1992, p.22)
Aparecem,
então, dois pontos distintos, o primeiro dos quais é representado por uma
mudança de comportamento dos magistrados e também dos membros do Ministério
Público, passando agora para uma função mais ativa de zelar pela justiça e
pelos ideais da lei.
O
segundo pondo relaciona-se com as consequências para a liberdade. Muito mais do
que a perda da liberdade idealizada no modelo de Contrato Social de Rousseau ou
de Emmanuel Kant, em que as pessoas, em busca da proteção do coletivo, abriam
mão de sua liberdade para conviver em Estados sob a égide de um poder comum
(KANT, 2003, p.62). Agora em busca de uma igualdade, existe um crescente
esvaziamento dos ideais e práticas de liberdade, conduzindo para um momento de
ocorrência de uma cidadania passiva de clientes (VIANNA, 1999, p. 23), razão
pela qual se infere ser a judicialização importante na mudança de atitude dos cidadãos
e da própria cultura da sociedade envolvida.
2 Aportes metodológicos
Por
utilizar-se a base teórica de uma pesquisa realizada, se faz necessário
noticiar brevemente o suposto teórico nela aplicado. A equipe do professor
Werneck Vianna trabalhou com dois eixos: o procedimentalista e o subjetivista.
No
primeiro, representados pelos autores Antonie Garapon e Jüngen Habermas,
[...] viria a compreensão de que a
invasão da política pelo direito, mesmo que reclamada em nome da igualdade,
levaria à perda da liberdade, ‘ao gozo passivo de direitos’, ‘à privatização da
cidadania’, ao paternalismo estatal, na caracterização de Habermas, e, na de
Garapon, ‘a clericalização da burocracia’, ‘a uma justiça de salvação’, com a
redução dos cidadãos ao estatuto de indivíduos-clientes de um Estado
providencial.’ (VIANNA, 1999, p.23).
No eixo
substancialista, também chamado de explicativo, tendo em Mauro Cappelletti e
Ronald Dworkin seus grandes representantes, “a partir de estratégias diversas e
diferentes inspirações doutrinárias, mas sempre com referência à história e ao
mundo empírico, como no caso crucial das relações maioria-minoria, concede-se
ao Poder Judiciário uma nova inserção no âmbitro das relações entre os três
Poderes [...]” (VIANNA, 1999, p. 37). Este eixo permite ao Poder Judiciário
transcender ao modelo de freios e contrapesos, sendo esta sua maior crítica
pelos procedimentalistas.
Os dois
eixos têm um ponto em comum: reconhecem o Judiciário como instituição
estratégica para as democracias contemporâneas, seguindo sua função no sistema
de freios e contrapesos dos poderes estatais, bem como de promover a garantia
de autonomia individual e cidadã – variando a maior ou menor intensidade de
atuação do Judiciário nestas frentes de trabalho (checks and balances ou garantia do indivíduo face ao coletivo)
conforme o eixo teórico seguido.
A
pesquisa do Professor Werneck Vianna prossegue traçando os pontos de tensão e
aproximação provocados pela judicialização das relações sociais e políticas
brasileiras nos eixos procedimentalista e substantivistas, que não são objeto
deste estudo, já que aqui se pretende perante um fato posto - “judicialização
das relações sociais brasileiras”- observar o fenômeno nos primeiros quinze
anos do século XXI, mediante novas formas de acesso à Justiça.
Para
tratar especificamente da judicialização no Brasil, uma teoria possível é a da
sociedade aberta de intérpretes da Constituição, utilizada também na pesquisa
que serve de norte. Esse sistema encontra como um de seus principais desenvolvedores
o Professor Peter Häberle, seguidor do constitucionalismo do Estado Social. É muito
bem difundido no Direito brasileiro, por autores como o professor Paulo Bonavides,
intelectual paraibano há dezenas de ano radicado no Ceará. É uma variação do método
tópico concretista de Konrad Hesse, que considera não existir nenhuma leitura
da Constituição independente de problemas concretos[1]. Pela
Teoria da Constituição Aberta, de Häberle, em virtude de uma democratização do
processo interpretativo, que não fica mais adstrito apenas ao corpo clássico de
intérpretes, é possível uma interpretação constitucional estendida a todos os
cidadãos. Neste “todos”, acha-se abrangida a totalidade dos órgãos estatais, entes
públicos, cidadãos, os grupos existentes. (BONAVIDES, 2002, p. 512)
Assim
sendo, permite-se que órgãos como o Procon possa interpretar a legislação
constitucional, bem como clubes ou associações privadas, ou mesmo um condomínio
edilício. Dessa forma, a teoria da sociedade aberta de intérpretes pode legitimar
a prática de judicialização da sociedade brasileira.
Uma
observação importante foi feita por Bonavides acerca da democracia pensada por
Peter Häberle, afirmando ser esta “sensível a uma espécie de metodologia tópica
e concretista, a que serve de escudo, não é a do povo-massa, absoluto,
possuidor de um novo gênero de direito divino, mas a do cidadão, artífice de
uma democracia do cidadão” (BONAVIDES, 2002, p. 515).
Assim,
espera-se que este cidadão, que com o passar do tempo se torna mais consciente
de seu papel na democracia, participe da formação e manutenção do Estado,
exigindo que seus direitos sejam concretizados.
3 A judicialização no Brasil do século XXI
No que
tange à judicialização, a nova realidade brasileira começou a ser moldada antes
mesmo de promulgada a Constituição da República de 1988, na época da Assembleia
Constituinte. Como é natural – mas não necessariamente uma regra absoluta - nova
Constituição representa uma ruptura na ordem institucional e jurídica no País
de ocorrência. No Brasil, a ruptura foi bastante drástica, porquanto se saiu de
um governo militar imposto para um governo civil democrático, no qual a
dignidade da pessoa humana, juntamente com os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa, foram privilegiados como fundamentos do Estado brasileiro, no
art. 1º da Constituição (BRASIL, 1988).
Com
estes fundamentos e outros ideais, como a igualdade entre todos os cidadãos e a
facilitação de acesso à Justiça, concebidos como direitos humanos fundamentais
(art. 5º), a Carta política brasileira recebeu o epíteto de Constituição
Cidadã. Todos estes direitos - alguns ainda não regulamentados - foram,
paulatinamente, modificando o pensamento, tanto da população quanto do Poder
Judiciário, que passou a considerar a desigualdade extrema de nossa sociedade
em suas decisões.
De
outra parte, ainda se vivencia no Brasil, além da democracia representativa,
por eleição direta, uma democracia participativa, com institutos como o
referendo e os mandados de segurança e injunção. A CR, ao permitir que setores
da sociedade interpretem as leis e tenham participação política efetiva –
setores estes antes à margem de participação ou interpretação – permite-se que
sejam utilizados recursos anteriormente destinados apenas a um pequeno grupo
seleto da sociedade, afeito às minúcias das ciências jurídicas.
Ao
mesmo tempo, esta mesma sociedade vai convivendo com a Ciência Jurídica,
tornando-se mais politizada e consciente dos seus direitos. Nas palavras de
Cittadino apud Vianna, “é portanto,
pela via da participação político-jurídica [...] que se processa a interligação
entre os direitos fundamentais e a democracia participativa”. (VIANNA, 1999, p.
40).
Este
novo perfil de sociedade, cada vez mais consciente da legislação, busca
efetivar os seus direitos constitucionais, tornando-se uma sociedade judicializada.
Elege seus representantes para o exercício da democracia participativa, porém
não mais fica “deitada eternamente em berço esplêndido” como o solo brasileiro
descrito no Hino Nacional do País. Rejeita a função de cidadania passiva.
Organiza-se – ou pelo menos tenta se organizar – para exercer a democracia
participativa, além de buscar o exercício de seus direitos já concedidos na CR.
Esta
conscientização modifica a atitude dos poderes, fazendo, inclusive, que o poder
legislativo adeque a legislação pátria conforme os novos anseios da sociedade,
o que nem sempre costuma acontecer.
Aliando
a este novo entendimento do Poder Judiciário, os outros Poderes também
contribuíram para a judicialização da sociedade, mediante Legislação que
facilitava tanto o acesso ao Judiciário, quanto aquela que retirava do
Judiciário o caráter de julgador exclusivo de direitos.
Passa-se
agora a observar alguns institutos e organizações que contribuem para esta
evolução da sociedade. Para efeitos didáticos diferencia-se em duas frentes de
judicialização: a de facilitação do acesso ao Judiciário e a de legislação que
retira competências do Poder Judicante, alocando-as em outras instituições.
Ambas, ao seu modo, fomentam a democratização do acesso à Justiça e ao Direito.
3.1 Facilitação de acesso ao Judiciário
Desde o
ano de 1950, com a promulgação da Lei nº 1.060, a justiça é gratuita e
facultada a todos. Esta conquista representou uma mudança na atitude da sociedade,
tornando-a mais integrada e homogênea em certo sentido. Apenas permitir, porém, a gratuidade da
Justiça não basta para os dias de hoje. É preciso também pensar em como
garantir o acesso ao Judiciário para quem não possa pagar advogados; é preciso
tornar a justiça mais presente e célere na vida do cidadão. Neste sentido, observam-se
as posições e Institutos do Poder Judiciário, apostos na sequência.
a) Modificação das decisões judiciais
envolvendo obrigações de outros entes federativos
No
passado, as medidas judiciais envolvendo obrigações não cumpridas por entes
federativos eram desfavoráveis ao particular, sob o argumento de que a
intervenção do judiciário nas decisões administrativas do Legislativo ou Executivo
feriria o Princípio da Separação de Poderes. Nos últimos dez anos do século XX,
esta situação começou a ser revertida, influenciada, sobretudo, pela garantia
de direitos das minorias e pela divulgação de direitos fundamentais.
Atualmente, este novo entendimento do Judiciário se amplia, além de se
consolidar por via de decisões reiteradas dos tribunais estaduais e das cortes
superiores brasileiros.
Um exemplo
pode ser dado por meio de medidas liminares, para que o Estado ofereça
medicamentos gratuitos a quem não pode arcar com seus custos. Consoante Barcellos,
no início dos anos 1990, o Judiciário não concedia medidas liminares de
medicamentos sob o argumento de que feriria o Princípio da Independência dos
Poderes Estatais. Mais no final da década e início do século XXI, entretanto, o
Poder Judiciário não se escusa mais de aplicação do direito representado pelo
art. 196 da CR, de que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
determinando ao Poder Executivo que financie o tratamento de todos aqueles que
comprovem ter necessidade (BARCELLOS, 2001, p.256).
A divulgação
destas decisões incentiva outras pessoas em situações similares a procurar a
concretização de seus direitos, buscando-os também no Judiciário.
b) Defensorias Públicas
Entre
as medidas que facilitam o acesso ao Judiciário, pode-se mencionar a organização
de Defensorias Públicas nos estados, para atendimento da população carente, sem
recursos para pagar advogados particulares.
Em
alguns casos, somente neste século, as Defensorias foram organizadas. Como
exemplo, é citado o Estado de Alagoas, onde a Defensoria Pública só foi
organizada no ano de 2001 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE ALAGOAS, 2006).
As
defensorias públicas ainda estão longe de cumprir totalmente sua função, em
decorrência de fatores como falta de defensores, material de trabalho e recursos
financeiros. Ainda assim, no entanto, pode-se ver um avanço em relação ao
passado: o excesso de trabalho é causado pela grande e crescente demanda das
pessoas, o que corrobora o entendimento de que a população está cada vez mais
judicializada, buscando a solução para seus problemas por intermédio de
defensor público – embora também releve o grave problema econômico do País,
pois a maioria das pessoas não pode arcar com honorários de advogado.
c) Juizados Especiais
Outra
prática de acesso ao Judiciário é representada pela implementação de Juizados
Especiais em todo o País. Embora decorrentes da Lei nº 9.099, de 1995, neste
século sua função foi e continua sendo ampliada para outros ramos do Direito.
Antes, apenas ações cíveis e penais poderiam integrar o rol de procedimentos
dos Juizados. Com a edição da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, foi criado
o Juizado Especial Federal, para ações de até 60 salários mínimos, envolvendo
as competências da Justiça Federal, como, por exemplo, ações de revisão de
pensão e benefícios do INSS, que, segundo dados da Secção de Minas Gerais da
Justiça Federal, são as ações que representam o maior volume, hoje, dos
Juizados Especiais (JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS, 2015).
Por outro lado, ainda nos Juizados
Especiais comuns, regulados pela Lei nº 9.099/1995, muito foi feito no sentido
de melhoria de atendimento ao público. A Comarca de Belo Horizonte, atualmente,
conta com Juizados Especiais cíveis, criminais, das relações de consumo, de
acidentes de trânsito e de empresas, ampliando o acesso e a celeridade dos
processos, pois há mais juízes e funcionários para o processamento mais
especializado em determinados ramos do Direito. E esta é uma tendência com
iniciativas nacionais, não só em capitais, mas também em Comarcas menores no
interior dos Estados.
d) Levando a Justiça até o povo: fóruns
regionalizados e Juizados Especiais Itinerantes
Ainda
na linha de acesso ao Judiciário, pode-se observar que o fator distância é
preocupação constante estatal, pois constitui complicador para grande parte da
população brasileira. Existem cidades, lugarejos e distritos no País que não
são contemplados com órgãos do Poder Judiciário.
A
distância ainda influencia em grandes cidades, onde o deslocamento até o órgão
judicial pode comprometer a vida diária do cidadão comum pela ausência de tempo
e de recursos financeiros. Para amenizar estes problemas, algumas medidas já
foram tomadas.
Pode-se
observar a crescente regionalização de fóruns em grandes cidades como São Paulo
e Belo Horizonte. A primeira conta com cinco fóruns regionalizados, e em BH há
o Fórum Regional do Barreiro, além de um fórum central. Essa medida aproxima o
Poder Judiciário dos habitantes das regiões, facilitando a prestação
jurisdicional.
A
regionalização está longe de ser bem-vinda pela classe dos advogados,
principalmente dos que têm escritório fora dessas regiões, pois estes
profissionais são obrigados ao deslocamento para acompanhamento de seus processos.
O objetivo maior da regionalização, entretanto, se encontra na adequada
prestação jurisdicional com maior conforto para o cidadão, atendendo
perfeitamente sua função.
Além dessa,
existem as incitativas dos Juizados Especiais Itinerantes, tanto da Justiça
comum quanto da justiça especial, na tentativa de chegar mais rápido e mais
perto da população que não tem acesso aos grandes centros urbanos. Por meio de
ônibus e barcos adaptados, conciliadores e juízes se deslocam até as cidades
onde não existem sedes do Poder Judiciário, resolvendo litígios que
dificilmente seriam solucionados na Justiça.
Em
outras situações, mesmo em comarcas onde há Justiça instalada, os Juizados
Especiais Itinerantes são utilizados para acelerar a prestação jurisdicional.
Como exemplo, temos o Juizado de Acidentes de Trânsito Itinerante na região da Capital
Federal. É possível acionar a Justiça tão logo ocorra o acidente, com os
veículos ainda na via pública, o que permite a inspeção judicial do juiz e a
proximidade com as condições físicas dos condutores e do ambiente, fazendo a
prestação jurisdicional ser cumprida poucas horas após o evento (TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, 2007).
3.2 Legislação que retira competências do Judiciário
Quanto
à legislação que retira competências do Judiciário, observa-se que esta pode
ser importante para facilitar o acesso ao próprio Judiciário. Retirando ou
repartindo competências com outros órgãos, a legislação permite um acesso mais
rápido para ações envolvendo estas competências específicas, diminuindo o
volume de trabalho do Poder Judiciário, que pode então se dedicar a questões
mais complexas.
O Poder
Público já percebeu ser preciso não só aproximar o cidadão do Poder Judiciário,
mas do próprio Direito. E mais, é preciso também ofertar a este cidadão o Estado
democrático de direito na sua essência, mesmo que a Justiça seja realizada de
forma privada.
a) Tribunal Arbitral
Um
exemplo pode ser visto pelos Tribunais de Arbitragem e Mediação, as pessoas
físicas ou jurídicas podem recorrer a eles mediante cláusula de eleição que
exclui a busca pelo Poder Judiciário. Embora previstos desde 1996, somente neste
século passaram a ter maior adesão, sobretudo de grandes empresas, que elegem a
justiça privada para dirimir os problemas de seus contratos.
A opção
para o grande público composto por pessoas de baixa renda ainda é tímida mas,
como foi expresso, ao se eleger a competência dos Tribunais Arbitrais, as
partes excluem o judiciário num primeiro momento, deixando-o apto a poder
tratar de outras questões, incluindo-se os direitos de titulares com menor
poder aquisitivo.
b) Ampliação das funções dos Serviços
Notariais
Outro
exemplo pode ser observado em legislações, como a Lei nº 11.441, de 04 de
janeiro de 2007, que alterou dispositivos do Código de Processo Civil de 1973 (CPC),
para permitir que divórcios, separações, inventários e partilhas de bens possam
ser realizados, em algumas situações, diretamente em Cartórios por meio de
escrituras públicas, sem a necessidade de homologação pelo Poder Judiciário.
Assim ficou redigido o CPC, que sairá de cena em março de 2016:
Art. 982. Havendo testamento ou interessado incapaz,
proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes,
poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual
constituirá título hábil para o registro imobiliário.
[...]
Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio
consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os
requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura
pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha
dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada
pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se
deu o casamento.
[...]
A tendência
também foi incorporada Ao novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015,
que trata com maior atenção acerca da questão de solução de controvérsias por
meios alternativos à utilização do Poder Judiciário Brasileiro (BRASIL, 2015).
Iniciativas
como estas ocorrem desde a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que
representou uma reforma constitucional das disposições relativas ao Poder
Judiciário. A intenção do legislador pátrio também foi de permitir o maior
acesso não apenas ao Poder Judiciário, mas à Lei e ao direito, contribuindo
muito para a judicialização da sociedade.
c) Participação de entidades civis e estatais
Outro
exemplo pode ser observado pelas entidades civis e estatais, que buscam levar o
justo – e não a justiça – ao particular por intermédio do Direito. Entidades
como sindicatos já têm consolidada a sua participação na intermediação de
questões entre empregados e empregadores, mesmo sem recorrer à Justiça do
Trabalho.
Da
mesma forma, funciona no tocante à proteção aos consumidores. Os Procons,
dependendo do Estado-Membro, organizados por entes estatais ou entidades
privadas, representam a chance de um ajuste de conduta entre fornecedores de
bens ou serviços e os consumidores, antes mesmo de se acionar o Poder
Judiciário.
Outras
entidades civis também podem contribuir com a judicialização da sociedade. Em
Minas Gerais, umas das associações que presta este papel é o Movimento das
Donas de Casa (MDC). Agindo além de assessoria judiciária, também oferece
orientação sobre leis e direitos, educando – por assim dizer – a população
acerca de seus direitos. (MOVIMENTO DAS DONAS DE CASA DE MINAS GERAIS, 2016).
4 O papel da mídia na Judicialização da
sociedade brasileira
Não se
pode esquecer o papel que a mídia desempenha hoje em dia para a divulgação de
direitos do cidadão brasileiro. Desde a CR de 1988, a imprensa passou a ter a
liberdade de poder divulgar as informações sem o crivo da censura que ocorria
no regime militar.
Com o
avanço natural da sociedade rumo às facilidades do mundo contemporâneo, onde os
meios de comunicação passaram a tornar a informação disponível de forma farta e
instantânea, é natural que o acesso à informação referente aos direitos chegue
cada vez mais perto e rápido para toda a população.
Neste
sentido, as informações aportam a um público que a eles não tinha acesso, de
tal sorte que a sociedade se vê esclarecida de alguns dos direitos que possui.
Com
isso, o cidadão tem a possibilidade de procurar direitos, dos quais, em algumas
situações, desconhecia a existência, seja por meio de advogado, seja sozinho em
Juizados Especiais, ou nas relações de consumo, ou mesmo procurando a própria
imprensa para denunciar situações de abuso e desrespeitos aos seus direitos.
Os
meios de propagação coletiva divulgam largamente as leis que facilitam o direito
do cidadão, como, por exemplo, a Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, citada
há pouco, que divulga para a população o fato de que não é mais exclusivo da
competência do Poder Judiciário realizar a separação, quando os cônjuges estão
em consenso e não possuem filhos menores, bastando a presença de um advogado e
uma escritura pública lavrada em cartório. Dessa forma, o papel da imprensa
oficialmente instituída, bem como de outros meios midiáticos, especialmente os
criados em instrumentos digitais, torna-se cada vez mais relevante em uma
sociedade que privilegia a informação.
CONCLUSÃO
A
democratização do acesso à Justiça e ao Direito é um dos reflexos da
judicialização da sociedade brasileira. As novas relações do cidadão brasileiro
com o meio ambiente demonstram o seu novo interesse em querer se tornar um
cidadão ativo e participante da vida política do País, na medida em que busca a
efetividade de seus direitos.
O Poder
Público, sensível aos avanços desta sociedade, não se furta de tentar fomentar
meios para que a população concretize seus direitos. Equipa o Judiciário,
permitindo que consiga chegar mais perto do povo, facilitando seu acesso –
mesmo que ainda se necessite de mais recursos para se alcançar, cada vez mais,
titulares de direitos que ainda se encontram à margem da sociedade. Em outra
frente, consegue retirar a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário,
equipando outros entes e autarquias, bem como assentindo que a própria sociedade
civil se organize para que o Direito e a Justiça sejam exercidos.
A
pesquisa conduzida pelo Professor Luiz Werneck Vianna no final do século XX
permanece atual. Seu trabalho se procedeu a uma releitura constante das novas
tendências das relações sociais no sentido de se tornarem cada vez mais uma
sociedade judicializada.
Ressalte-se,
por oportuno, que a judicialização, como fenômeno social, nunca estará completa,
perpetuando-se de forma cíclica, pois mais direitos serão criados e outros
titulares poderão ser atingidos por tais direitos. Acompanhará a evolução e a
necessidade da população rumo ao acesso ao Direito e à Justiça, fazendo parte
de uma tendência mundial, em que o ser humano se torna mais consciente de seus
direitos e de seu papel na luta por estes direitos.
REFERÊNCIAS
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* Doutor em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Professor
do IBMEC-MG. E-mail: [email protected].
Data de recebimento do artigo: 25/01/2016
– Data de avaliação: 02/02/2016 e 05/02/2016.
[1] Este método possui três elementos basilares - a norma que vai se concretizar, a compreensão prévia do intérprete do contexto histórico e social no qual a norma está inserida (pré-compreensão) e o problema concreto a resolver (HESSE, 1998, p.61).