Água e
desenvolvimento: análise da Lei n° 9.433/97 sob a perspectiva do direito de
acesso à água potável
Water and
development: analysis of the Federal Law ° 9.433/97 under the perspective of
the right of access to drinking water
Alana Ramos Araújo *
RESUMO: A relação água e sociedade, necessária à manutenção da vida, engendra uma
realidade de grande complexidade, por vezes conflituosa, cujas soluções ainda
não foram formuladas de forma satisfatória às variadas demandas, dentre as
quais o acesso da população à água. No Brasil, a Lei nº 9.433/97 propõe a
gestão da demanda por melhores serviços de abastecimento de água, por via dos
seus instrumentos. Revela-se, todavia, que 55% dos municípios brasileiros
possuem abastecimento de água deficitário ou ele inexiste. Assim, levanta-se o
seguinte questionamento: os problemas do direito de acesso à água
enfrentados pela população brasileira estão relacionados ao modelo
teórico de gestão hídrica delineado pela Lei n° 9.433/97? A busca de solução
para este problema perpassa o objetivo de analisar o modelo teórico da gestão
hídrica brasileiro, relacionando-o com os problemas de acesso à água ocorrentes na realidade social brasileira. O caminho
metodológico percorrido abaliza-se nos métodos dedutivo e hermenêutico-jurídico,
mediante a interpretação sistemática, histórica e teleológica. Constata-se que
o modelo teórico da gestão da água doce brasileira se ancora em mecanismos
econômicos que priorizam o desenvolvimento econômico em prejuízo do
desenvolvimento social e ambiental, comprometendo, desta feita, o
desenvolvimento humano nas suas múltiplas dimensões.
PALAVRAS-CHAVE: Água; Desenvolvimento; Modelo de
administração hídrica.
ABSTRACT: The relationship between
water and society, necessary for sustaining life on earth, engenders a highly
complex scenario, sometimes conflicting, whose solutions have not yet been
satisfactorily formulated to various demands, among which the population's
access to water. In Brazil, the Federal Law nº 9.433/97 proposes the management
of demand for better water supply services through their instruments. However,
it is revealed that 55% of Brazilian municipalities have deficient or
non-existent water supply services. That brings the question: the problems of
the right to access to water faced by the Brazilian population are related to
the theoretical model of water management outlined by Law nº. 9.433/97? The search for a solution to this problem
permeates the purpose of analyzing the theoretical model of water management in
Brazil, linking it to the problems of access to water currently present in the
Brazilian social reality. The methodological path is based on deductive and
hermeneutic-law methods through systematic, historical and teleological
interpretation. It appears that the theoretical model of Brazilian freshwater
management is anchored in economic mechanisms that prioritize economic
development at the expense of social and environmental development, hence,
compromising human development in its multiple dimensions.
KEYWORDS: Water; Development; Model
of water management.
A água tem papel de relevo na existência humana, animal e vegetal,
estando presente em tudo quanto os sentidos conseguem perceber e é diretamente
imbricada com questões sociais, econômicas, políticas, éticas, culturais e
ambientais. A presença ou a ausência deste recurso natural determina,
respectivamente, maior ou menor grau de desenvolvimento social, ambiental e
econômico.
O Brasil é um país privilegiado por gozar de grande disponibilidade
hídrica. Em torno de 12% da água doce disponível no mundo alocam-se em
território brasileiro (BRASIL, 2015). O modelo teórico da gestão desta riqueza
hídrica, trazido pela Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de
1997, revela que, em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos
hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais e que é objetivo da
política assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade
de água, em especial por meio do instrumento chamado outorga de direitos de uso
dos recursos hídricos, que tem como objetivo assegurar o efetivo exercício dos
direitos de acesso à água.
Não obstante este quadro hidrológico-normativo, a realidade do seio
social expõe, alarmantemente, vacuidade no efetivo direito de acesso à água,
pois o serviço de água potável no Brasil caracteriza-se por graves
desequilíbrios e por défice na prestação, considerando-se que existem “12
milhões de residências no país sem acesso à rede geral” de abastecimento de
água. (PNSB, 2008, p. 37).
A esta realidade, o fato de que a política hídrica em comento, antes
mesmo de mencionar os fundamentos e objetivo antecitados, determina
prioritariamente e com maior consistência que a água é um recurso natural
dotado de valor econômico e que a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar
o uso múltiplo das águas, primando pela exploração do produto para atividades
da indústria, agricultura, psicultura, lazer e outras, mediante o instrumento
da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, que constitui um mecanismo
econômico da gestão da água doce.
A leitura deste modelo teórico da gestão revela que a governança
brasileira dos recursos hídricos tem caráter preponderantemente econômico e
supervaloriza a utilização da água para suprir este viés do desenvolvimento, em
flagrante prejuízo do desenvolvimento humano nas suas múltiplas dimensões.
Assim, em virtude de tal contexto, questiona-se: os problemas do direito de
acesso à água enfrentados pela população brasileira
estão relacionados ao modelo teórico da gestão hídrica delineado pela Lei n°
9.433/97?
Questionar se o marco regulatório responsável por gerenciar o direito de
acesso à água perfaz um modelo que dificulta a concretização deste direito
parece, a priori, paradoxal, contudo
não o é, uma vez que as escolhas político-ideológicas na elaboração da lei da
gestão de recursos hídricos têm reflexos inevitáveis no manejo das ações
gerenciais da água doce brasileira.
Ante o exposto, este trabalho investiga o modelo teórico de governança
da água pela perspectiva da justiça hídrica, que abrange a compreensão da água
como um direito e um bem dotado de valor social, moral, humano, ético,
econômico, ambiental e como um bem necessário ao desenvolvimento humano nas
suas múltiplas dimensões.
Assim, o objetivo geral é analisar a relação entre os problemas do
direito de acesso à água enfrentados pela população brasileira
e o modelo teórico da gestão hídrica proposto pela Lei n° 9.433/97. Para
atingir este objetivo geral, os objetivos específicos traçados são: contextualizar
a gênese do modelo de gestão proposto pela Lei n° 9.433/97; descrever o modelo
teórico da gestão hídrica brasileiro; levantar dados oficiais de acesso à água
potável no Brasil; realizar uma revisão teórica e político-ideológica do modelo
da gestão da água doce no Brasil.
A questão hídrica é debatida no meio político, econômico, acadêmico e
social há algumas décadas. No que tange à política da gestão hídrica adotada
pelo Brasil, existem pesquisas tais como as teses de doutoramento em Direito de
Irigaray (2003), Henkes (2008) e Moraes Neto (2009). Cabe gizar, contudo, que
estes trabalhos, cada um com sua importância, analisaram a gestão da água como
um direito humano fundamental; os fatores de risco das decisões político-jurídicas
em torno da água e a cobrança pelo uso da água, respectivamente.
Assim, o estudo sedimenta-se sobre a constatação de que ainda não foi
encontrado trabalho acadêmico estabelecendo a relação entre o direito de acesso
à água potável e o modelo da gestão hídrica da Lei n° 9.433/97, pois, até onde
se investigou, os trabalhos apontam outros vieses de análise da gestão hídrica.
Neste sentido, para contribuir com os esforços destes e de outros
pesquisadores a proposta investiga os impactos do modelo econômico de gestão
dos recursos hídricos no direito de acesso à água da população brasileira, utilizando
como método de abordagem, ou seja, aquele que proporciona a base lógica da
investigação (GIL, 2008), o dedutivo, o qual se “propõe a extrair uma ideia de
outras anteriores” (LAMY, 2011, p. 158), cuja argumentação torna explícitas
verdades particulares contidas em verdades universais.
Recorre-se, ainda, ao método hermenêutico jurídico que busca “o sentido
verdadeiro e o alcance real das expressões do Direito”. (FRIEDE, 2011, p. 158).
Portanto, este método é da maior importância, vez que permite extrair da lei,
sentidos que são invisíveis, tendo-se em conta que “a lei, em si mesma, é um
objeto intelectual, uma estrutura abstrata que necessita ser compreendida e
desenvolvida, pois, ao ser analisada, ela revela significados que vão além do
que está escrito”. (MACHADO, 2003a, p. 133).
O tema mostra-se relevante e de interesse estratégico para toda a
sociedade, pois a investigação busca acrescentar novo
olhar, outros dados e verdades ainda não reveladas para contribuir teoricamente
para a reflexão da comunidade científica e a sociedade como um todo.
Procedidas a estas notas introdutórias, parte-se na sequência para a
explanação do marco teórico que fornece as bases de sustentação do trabalho ora
delineado. Para o desenvolvimento do tema, abordar-se-á, num percurso breve e
global, a gênese e descrição do modelo teórico de gestão da água doce; a
relação entre este modelo, o direito de acesso à água e o desenvolvimento; far-se-á,
ainda, uma contextualização do direito de acesso à água potável no Brasil.
1 GOVERNANÇA BRASILEIRA DA ÁGUA
DOCE
Água, lei, gestão e sociedade são partes de um todo complexo, geralmente
problemático, cuja evolução, no Brasil, passou por lentas e sucessivas fases
para se chegar à atual configuração de escassez, regulamentação e
descentralização das decisões.
Quando a visão paradigmática da água era a da abundância dos corpos
hídricos brasileiros, a regulamentação era parca, distanciada das questões
socioambientais (CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 2000), tanto assim que a disciplina
jurídica e a administração das águas do Brasil sob a égide do Decreto n° 24.643
de 10 de julho de 1934, notadamente conhecido como Código de Águas, eram
voltadas essencialmente para “disciplinar o aproveitamento industrial das águas
e, de modo especial, o aproveitamento e exploração da energia hidráulica”
(MILARÉ, 2009, p. 483), tendo em vista a corrida pelo desenvolvimento
industrial do País naquele momento histórico cuja economia deixava de ser
marcadamente agrícola.
Foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
entretanto, que abriu horizontes para uma gestão hídrica sistemática, integrada
e descentralizada por meio do artigo 21, inciso XIX, que determina a
competência da União para instituir o sistema nacional de gerenciamento dos
recursos hídricos, revelando a intenção do legislador constituinte originário
de instituir um novo modelo da gestão hídrica no País.
A determinação constitucional mencionada foi regulamentada no âmbito
infraconstitucional, com a edição da Lei Ordinária nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, a qual instituiu a Política Nacional
de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos (SINGREH).
Numa visão global, o modelo da gestão hídrica brasileiro está ancorado
na seguinte estrutura: Título I que traz a PNRH, cujos quatro capítulos
estabelecem os fundamentos, os objetivos, as diretrizes
gerais de ação e os instrumentos da gestão; Título II, que contempla o
SINGREH, sendo dividido em seis capítulos que tratam dos objetivos e da
composição do sistema, bem como dos órgãos incumbidos de executar a política
hídrica; ao final, nos Títulos III e IV a lei em comento prevê infrações e
penalidades e disposições gerais e transitórias, respectivamente.
É importante, portanto, fazer uma breve
contextualização da gênese da Lei nº 9.433/97, cuja “gestação” produziu
reflexos diretos no modelo da gestão cunhado neste documento jurídico.
A política hídrica brasileira foi erguida com base na administração
francesa da água (D’ISEP, 2010), a qual, no Direito comparado, é considerada
“uma das experiências de gestão da água potável e de saneamento da água servida
mais bem sucedidas da Europa ocidental” (MACHADO, 2003b, p. 31), “sobretudo no que se refere ao envolvimento de distintos
grupos sociais na definição das formas de regulação do acesso e uso da água”
(OCDE, 2003, apud MARTINS, 2008, p. 86).
O modelo francês de gestão de recursos hídricos é regulamentado pela Lei
nº. 64-1.245, a qual “permitiu a implantação de um sólido e pioneiro sistema de
gestão” (RAMOS, 2007, p. 14) aperfeiçoado pela Lei nº. 92-3 (LANNA, PEREIRA,
HUBERT, 2002, p. 118) e orientado pelo Código Francês do Meio Ambiente que
determina: “Art. L. 210-1 – L’eau fait
partie du patrimoaine commun de la nation. Sa protection, sa mise en valeur et le
développement de la ressource utilisable, dans le respect des équilibres
naturels, sont d’intérêt general”[1].
A importação deste modelo para a realidade brasileira veio numa situação
política, econômica, social e ambiental de grande complexidade, revelando
profundas desigualdades sociais e estagnação econômica (SACHS, 2003), depleção
do meio ambiente natural, internalização da tendência mundial à mercantilização
dos espaços da vida social, em especial por via do discurso ambientalista, e dos
recursos naturais, destacando-se, neste ínterim, a água (QUERMES, 2006).
Assim, o novo marco regulatório antecitado, em atenção às pressões
econômico-ambientais introduzidas pela Agenda 21, confeccionada na Conferência
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), chamada
Eco-92 ou Rio-92, erigiu um modelo da gestão hídrica marcado
pelos “mecanismos de mercado” (SILVA, 2010, p. 145), com “elementos claros de
regulação econômica voltados para a formação de um mercado de águas” (MORAES NETO,
2009, p. 57) dentre os quais o valor econômico da água, a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos e a outorga pelos direitos de uso dos recursos hídricos.
Deste modo, a Lei nº 9.433/97 descortina um modelo da gestão hídrica predominantemente voltado para a utilização da água
como um recurso para o desenvolvimento econômico, embora seja assaz comum na
literatura a compreensão de que “a Lei nº 9.433/97 coloca o Brasil entre os
países de legislação mais avançada do mundo no setor de recursos hídricos” (PORTO;
PORTO, 2008, p. 6) e que a finalidade da política das águas “é orientada pelo
direito humano universal de acesso à água”. (D’ISEP, 2010, p. 226).
De fato, o modelo da gestão hídrica brasileiro tem como objetivo
“assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água”
(LEI Nº 9.433/97, ART. 2°) e “o efetivo exercício dos direitos de acesso à
água” (LEI Nº 9.433/97, ART. 11), todavia não é o que se observa através da
“posição economicoideológica adotada pelo Estado” brasileiro na formulação
desta política hídrica (MORAES NETO, 2009, p. 57).
Com efeito, a escolha mesma da nomenclatura adotada pela política
hídrica revela esta posição, porquanto a água é o elemento natural (GRANZIERA,
2001) e o recurso hídrico é a água voltada para a finalidade de bem econômico
(POMPEU, 2006).
Efetivamente, a política de águas privilegia uma profunda mudança
paradigmática no que concerne ao valor da água (GRAF, 2010), dando a esta a
primazia do valor econômico (MUSETTI, 2001) sobre outros valores fundamentais, como
social, ambiental, humano, ético e cultural.
Assinale-se o fato de que este paradigma economicista da água reverte-se
em consequências que comprometem a democratização efetiva dos direitos de
acesso à água, tendo em vista que a política nacional de recursos hídricos
possui “um importante papel diretivo, na medida em que indica valores e
decisões políticas que devem ser consideradas no gerenciamento dos recursos
hídricos em nosso país” (IRIGARAY, 2003, p. 118), influenciando o tipo de relação
que os grupos envolvidos na gestão – Poder Público,
usuários econômicos e sociedade – devem manter com a água.
Neste ponto, insta ressaltar que “uma das maiores críticas feitas à
PNRH, como também às demais legislações hídricas em nível mundial, se dá ao
fato de elas não definirem o direito ao acesso à água” (HENKES, 2008, p. 134) e
com isso “a lei afronta a dignidade das pessoas: não se pode prescindir do uso
da água para a sobrevivência diária” (CAUBET, 2006, p. 147).
De mais a mais, a revisão crítico-reflexiva das teorias
desenvolvimentistas de alhures que marcaram meados do século XX (VEIGA, 2008),
já não admite a visão restritiva do desenvolvimento como sinônimo de
crescimento econômico, pois o desenvolvimento nas suas múltiplas dimensões está
inafastavelmente imbricado nas chamadas “soluções triplamente ganhadoras”
(SACHS, 2003, p. 63), tais são as questões social, econômica e ambiental.
A pedra angular do desenvolvimento deve estar sedimentada na “interação
do econômico com o não-econômico [...] no horizonte de
aspirações da coletividade em questão” (FURTADO, 2003, p.102-103), na
consideração dos valores dentro da teoria econômica (SALOMÃO FILHO, 2012).
É neste sentir que o modelo teórico da gestão hídrica
brasileiro se mostra vulnerável e limitado, pois supervaloriza o viés
econômico do desenvolvimento em detrimento de outros valores fundamentais da
água, pois esta, “além de ser um insumo indispensável à produção, e um recurso
estratégico para o desenvolvimento econômico [...] É ainda um bem cultural e
social indispensável à sobrevivência e à qualidade de vida da população (GRAF,
2000, p. 31).
Assim, os grandes desafios dos recursos hídricos passam pela compreensão
político-ideológica do desenvolvimento (VICTORINO, 2003), tendo em vista que “é
impossível se conceber desenvolvimento em toda a sua dimensão sem acesso à
água, podendo-se até mesmo afirmar que onde não há água dificilmente poderá o
homem se desenvolver em sua plenitude” (XAVIER, IRUJO, SANTOS NETO, 2008, p.
11).
Destaque-se, portanto, o fato de que a política pública brasileira de
água doce carece de um espírito mais humanizador – não se confunda com
antropocêntrico, este marcado pela centralização, apropriação e dominação da
natureza em coroação às necessidades variadas da humanidade conforme a
perspectiva do paradigma social dominante (EGRI; PINFIELD, 1998) – tendo em
vista que “em qualquer escala de valores, as considerações de ordem humanitária
devem primar sobre as de ordem econômica ou financeira. Acima, bem acima do
mercado estão os seres humanos”. (TRINDADE, 1999, p. 322).
Com efeito, “O acesso à água potável – bem comum da humanidade –
constitui um direito econômico e social fundamental de toda pessoa assim como
um direito coletivo de toda comunidade humana” (PETRELLA, 2001, apud AZEVEDO, 2008, p. 106) e, malgrado esta
premissa esteja clara e bem delimitada na literatura, a Lei nº 9.433/97 traz um
marco regulatório e um modelo teórico da gestão açambarcado por um “leviatã”
(HOBBES, 1651) econômico que dificulta a execução de ações voltadas para a
garantia do direito de acesso à água no Brasil.
É de relevo consignar que não se pretende aqui negar a validade e a
importância da face econômica do desenvolvimento nem da utilização de
instrumentos econômicos na administração da água. O que se quer, outrossim, é propor uma análise abrangente,
crítico-reflexiva sobre o caráter fortemente unilateral do modelo de gestão
hídrica brasileiro, descortinando seus limites, de modo a relacioná-lo com a
realidade social e buscar a correspondência entre o fato e a norma.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO DE
ACESSO À ÁGUA
Conforme já expresso, supõe previamente que o país enfrenta graves
problemas de acesso à água potável, defendido neste trabalho como um direito
humano fundamental e fator preponderante para o desenvolvimento. Assim, é
interessante expor, numa perspectiva ampla, a realidade atual do acesso à água
potável no Brasil, partindo de dados estatísticos fornecidos por agências de
pesquisa; perpassando, ainda, informações midiáticas e pesquisas científicas envolvendo
a matéria.
Estatisticamente, revela-se que, dos 5.564[2] municípios
brasileiros existentes em 2008[3], 33 deles
não dispunham de serviço de abastecimento de água via rede geral de
distribuição em nenhum de seus distritos, sendo os municípios dos Estados da
Paraíba, Piauí e Rondônia, os mais abrangidos por tal condição (PNSB, 2008).
Sem embargo, tais dados indicam uma universalização do serviço de distribuição
de água por sistemas de abastecimento, todavia a “pesquisa considera como
servido todo município que apresenta ao menos um único distrito, total ou
parcialmente contemplado com rede de abastecimento de água, independentemente
da eficiência do serviço prestado e do número de ligações domiciliares à mesma”.
(IBGE, 2011, p. 120).
Ainda se impõe salientar que em outros 793 municípios o serviço é
ineficiente ou inexiste em certas localidades, de sorte que somando àqueles 33
que não dispõem de redes,o total é de 826 municípios
abastecidos, em parte ou totalmente, por formas alternativas de obtenção de
água – carros-pipa, poços particulares e chafarizes, bicas ou minas (IBGE,
2011). Não apenas os dados quantitativos são críticos, pois, qualitativamente,
tem-se que em 12,8% dos municípios a água é apenas parcialmente tratada ou não
tem nenhum tratamento (PNSB, 2008).
No que concerne ao acesso à água no plano nacional, tem-se que, dos
5.565 municípios brasileiros, 45% - equivalente a 52 milhões de habitantes de
um total de 190.732.694 (IBGE, 2010) pessoas! – possui abastecimento de água
satisfatório, entretanto, os outros 55% dos municípios restantes possuem abastecimento
deficitário e continuou sendo assim até o ano de 2015 (ANA, 2010).
Em contrapartida, a exploração econômica da água no Brasil é crescente e
acelerada, especialmente para os setores da agricultura, indústria e matriz
energética. Nesta linha de análise, destaca-se pesquisa realizada por Caubet
(2006), voltada, dentre outros fins, para ressaltar o papel fundamental das
convicções ideológicas imersas na definição das políticas públicas de recursos
hídricos no Brasil, e que relata estudos de caso de instalação de usinas e
indústrias em Santa Catarina que revelam a primazia dada aos interesses econômicos
em detrimento de momentos vitais da população residente às bacias hidrográficas
envolvidas na investigação.
Tais dados quantiqualitativos sobre o acesso à água no Brasil provocam
consternação e desnudam a ideia de que “num dos países mais ricos em água doce
do planeta, as cidades enfrentam crises de abastecimento” (REBOUÇAS, 2003, p.
342) e que “o acesso a esta substância fundamental às formas de vida foi
reconhecido no cenário internacional, mas carece de aplicação concreta. Por
enquanto, o direito à água é muito mais um princípio do que um fato”. (RIBEIRO,
2008, p.125).
Para elucidar a magnitude desta afirmação, mencione-se o fato de que o
Ministério Público de Pocinhos, localizado no Estado da Paraíba, impetrou ação
civil pública contra a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (CAGEPA) em
virtude da constatação de irregularidades no abastecimento de água deste
Município, sendo que a Justiça determinou à população o não pagamento da conta
de água, pois o fornecimento desta é precário, mesmo na zona urbana, cuja
situação é agravada em razão de que, em algumas localidades do município, a
água só é distribuída duas vezes por mês (NÓBREGA, 2012).
Em outra oportunidade, o quadro “Brasil, quem paga é você” do Programa
Fantástico, transmitido pela Rede Globo de Televisão, aos 21 de janeiro de
2013, fez veicular uma reportagem sobre a grave seca enfrentada na região
Nordeste de 2012 a 2013. Revelou-se escassez crítica que acarretou embaraços
para a economia, pois o gado que normalmente vale R$ 1.000,00 está valendo R$
100,00 – 10 vezes abaixo do valor comum! – causando movimentos migratórios de
famílias inteiras – pobreza, fome, sede e morte.
Ante o exposto, o que sobreleva é orientar o modelo brasileiro de gestão
da água e a sua execução para o problema diuturnamente central do gerenciamento
dos recursos hídricos: assegurar a utilização prioritária da água para fins
sanitários – sem olvidar, entrementes, de outros usos econômicos e sociais
deste recurso – em especial o abastecimento de água potável (VARGAS, 1999),
pois a escassez iminente “não escolhe suas vítimas, simplesmente chega e se
instala, trazendo miséria, fome, doenças, desespero e morte”. (SOUZA, 2009, p.
20).
Esta linha é da maior relevância, considerando a razão de que o fim do
“Estado hidrogestor” (D’ISEP, 2012, p. 127) “é o bem comum, entendido este como
conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida
social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade
humana”. (DALLARI, 2011, p. 112).
De fato, o desvio desta finalidade do Estado em aclamação ao
desenvolvimento econômico de per se o
leva a ser “o único a viver em prazeres e delícias, tendo ao redor pessoas que
gemem e se lamentam”. (MORUS, 2011, p. 53). No que diz respeito ao direito de
acesso à água, “a primazia da vida se estabelece sobre todos os outros
possíveis usos da água. Nenhum outro uso da água, nenhum interesse de ordem
política, de mercado ou de poder, pode se sobrepor às leis básicas da vida”.
(CNBB, 2003, apud VIEGAS, 2005, p. 7).
CONCLUSÃO
O desenvolvimento humano nas suas múltiplas dimensões requer uma visão
holística, sistemática e totalizadora do desenvolvimento, que leve em
consideração as questões sociais, ambientais, econômicas, políticas, éticas e
culturais na gestão das necessidades da população. No que tange à água,
percebe-se que esta não pode ser gerida desconsiderando-se o seu caráter como
direito humano fundamental e a sua garantia efetiva por via do acesso.
O modelo teórico da gestão dos recursos hídricos no Brasil, contudo, por
meio da Lei nº. 9.433/97, revela a supremacia do
atendimento às demandas econômicas em prejuízo do direito de acesso à água
potável que é da titularidade do povo brasileiro, conforme atesta a
Constituição Federal de 1988. Esta escolha do Estado Brasileiro na formulação
da sua política hídrica inviabiliza a utilização da água para o desenvolvimento
socioambiental, porquanto alimenta com preponderância o desenvolvimento
econômico, comprometendo, numa visão global, o desenvolvimento humano na sua
completude.
Deste modo, constata-se a necessidade premente de revisão do modelo teórico
da gestão da água doce brasileira, de modo a reafirmar os valores
socioambientais na legislação elevando-os ao mesmo patamar de importância do
valor econômico da água. Esta revisão teórica, jurídica e ideológica poderá
levar a uma revisão das ações políticas e tomadas de decisão no que diz
respeito à gestão hídrica e, assim, abrir caminhos para a efetivação do direito
de acesso à água, viabilizando o desenvolvimento econômico e socioambiental do
povo brasileiro.
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* Doutoranda em Ciências Jurídicas pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em
Recursos Naturais, com Bolsa CAPES, pelo Programa de Pós-Graduação em
Recursos Naturais da UFCG. Bacharela em Direito pela UFCG. Professora do curso
de Direito, Departamento de Ciências Jurídicas, Centro de Ciências
Jurídicas/UFPB. Integrante do Grupo de Pesquisa Sustentabilidade, Impacto,
Gestão e Direito Ambiental, das Relações Sociais e de Consumo, coordenado pela
Prof.ª Dr.ª Belinda Pereira da Cunha, sendo este artigo resultado de pesquisa
realizada no referido Grupo de Pesquisa. E-mail: [email protected].
Data de recebimento do artigo: 05/01/2016 – Data de avaliação: 27/01/2016 e 28/01/2016.
[1] Tradução livre: A água faz parte do patrimônio comum do País. Sua proteção, valorização e desenvolvimento do recurso utilizável, em respeito ao equilíbrio natural, são de interesse geral.
[2] Atualmente, são 5.565 municípios (ANA, 2010).
[3] Ano-base da última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).