Imaginários sociais e direito do comum: contribuições da Teoria Crítica Latino-Americana para a elaboração de sustentabilidades

 

Social imaginary and law of the commons: contributions of the latin american critical theory to the sustainabilities’ construction

 

Luiza Landerdahl Christmann*

Rogério Portanova **

 

RESUMO: Nas constatações dos distintos ramos da Ciência que apontam para uma crise ambiental global e sistêmica, procuram-se opções que passam pela desconstituição dos dogmas impostos pelos modelos desenvolvimentistas e, principalmente, pela constituição de um imaginário que vá além da vulgata do sustentável. Para tanto, se recorre a autores clássicos e contemporâneos, identificando no chamado Novo Constitucionalismo Latino-Americano uma possibilidade de repensar tanto o Direito como os hábitos que levaram as pessoas a esta triste realidade que se mostra preocupante, porém paradoxal, tanto em suas opções como na constituição de seu imaginário civilizacional.

 

PALAVRAS-CHAVE: Sustentabilidade; Crise global; Novo Constitucionalismo Latino-Americano; Imaginário.

 

ABSTRACT: From the findings from various branches of science that point to a global and systemic environmental crisis,   alternatives that pass through the deconstruction of the dogma imposed by developmental models and especially the construction of a new imagination that goes beyond sustainable vulgate are sought. For this, the article goes from classic authors to contemporary ones and identify in the so-called Latin American New Constitutionalism a chance to rethink the law and the habits that have led us to this sad reality that appears to be worrying, however paradoxical, both in their alternatives as in the construction of the imaginary of the civilization.

 

KEYWORDS: Sustainability; Global Crisis; Latin American New Constitucionalism; Imaginary.

 

 

INTRODUÇÃO

 

  A busca pelo desenvolvimento e, mais recentemente, pelo desenvolvimento sustentável, impulsiona juristas, economistas, filósofos e sociólogos a pensar em torno dos rumos que precisam ser revistos e redirecionados – e, especialmente, de como fazê-lo – para garantir a manutenção da vida da forma como é conhecida, apesar das contundentes intervenções humanas no equilíbrio ecológico nos últimos séculos. A ciência avança numa espécie de sistematização de vários elementos que causaram a destruição ambiental e a ameaça à vida no planeta; desde os mais evidentes, como uma eventual guerra nuclear, que traria um comprometimento imediato com a continuidade vital, até os mais invisíveis e insensíveis, como a acumulação de resíduos providos de indústrias, sobretudo, os plásticos que começam a ameaçar os equilíbrios mais distantes, como os oceanos.

Recente previsão de institutos oceanográficos e de estudos de ecossistemas marinhos prevê que, para o ano de 2050, se poderá ter mais volume e peso de material plástico de origem industrial do que o equivalente em distintas formas de peixes no oceano. Não cabe aqui discutir as precisões sobre a data e o local, quais a mais importante é ver que esta tendência se mostra como inevitável, caso atitudes que levaram a esta condição não sejam imediatamente revistas. Neste caso, a responsabilidade vai desde os mais altos organismos internacionais, passando pelo Poder Público, o papel das ONGs e chegando a atitudes individuais que precisariam ser revistas, tanto do ponto de vista da educação como sob o prisma das sanções.

Há atualmente uma convergência em vistas a identificar atitudes do homem, principalmente desde o advento da Revolução Industrial, com o provável colapso ambiental causado pela sua intervenção, chegando mesmo a se levantar a hipótese de que, com suporte  nesta intervenção, se estaria entrando em uma nova era geológica chamada de Antropoceno. Some-se a isto o fato de que há também a constatação de que se caminha para a chamada 7ª grande extinção de espécies. Não se trata mais de adequar possibilidades econômicas ao ecossistema, mas retrabalhar radicalmente a intervenção antrópica sobre o meio ambiente. Mas não só sobre ele, também com os hábitos, a forma de divulgar a educação e uma cultura voltada para a satisfação individual e acumulação de riquezas materiais como sinônimo de êxito social.

Diversas propostas foram e estão sendo constituídas, passando por elaborações de reforma do Estado, de abandono do Estado, de novas bases territoriais de soberania que possibilitariam emergir um Direito Planetário; de esverdeamento da economia, de precificação dos recursos naturais; alcançando até propostas de cunho epistemológico, como o pensamento da complexidade.

Nota-se, portanto, que a discussão em torno do que pode se constituir como uma forma social, econômica, política e cultural de vida que promova a satisfação de necessidades materiais humanas em coordenação com o respeito aos imperativos ecológicos e aos limites dos ciclos naturais é uma preocupação que, além de atual, pode ser hoje entendida como de reconhecimento tardio.

Nesse sentido, esse artigo busca refletir em torno dessa confusão de problemas, no intuito de colaborar para o debate em torno dessas propostas de formulação do que, nesse trabalho, será chamado de sustentabilidade.

Não se pretende, no entanto, exprimir um conceito de sustentabilidade, pronto, único, fechado. Reconhecendo que o problema do desenvolvimento sustentável possui profundas raízes epistemológicas, entende-se que não cabe falar em um só meio de sustentabilidade, no primeiro momento, mas que essa noção precisa ser elaborada e vivida concretamente, por meio de um encontro de variados saberes. Logo, por meio do método indutivo, pretende-se desenvolver uma base teórica que forneça categorias sociológicas e jurídicas que auxiliem na formulação prática e contextual do sentido de sustentabilidade.

  Na medida em que o trabalho reconhece uma base epistemológica como fundamento dessa problemática – no sentido de que é o pensamento moderno, ocidental, branco e científico que tem definido o que é desenvolvimento sustentável – torna-se necessário encontrar outras formas de saber que possam ultrapassar os obstáculos epistemológicos[1] da própria ciência moderna e exercitar uma rica imaginação sociológica rumo à criação de opções.

Nessa esteira, este artigo adota como referencial teórico, que será profundamente abordado, a obra La apuesta por la vida, de Enrique Leff (2014), o qual ainda não se encontra disponível na língua portuguesa. Assim, no primeiro tópico do artigo, realizar-se-á uma aguda crítica à concepção de desenvolvimento sustentável e em torno da expressão meio ambiente que o envolve, para, em seguida, denotar as bases epistemológicas e sociológicas desenvolvidas por Leff (2014), por meio de duas categorias principais: territórios sustentáveis (como alternativa a meio ambiente) e imaginários sustentáveis.

  Com o intuito de aproximar a reflexão da perspectiva jurídica e na indispensabilidade de se pensar em uma expressão dessa índole para os fundamentos epistemológicos e sociológicos traçados, em reforço à preocupação de se aproximar de outras formas de saber – e, portanto, de outros modos de ser – o segundo tópico trilhará caminhos delineados pela teoria crítica (do Direito) na América Latina. Inicialmente serão desenvolvidas algumas reflexões mais amplas em torno da especificidade do discurso da teoria crítica latino-americana, apontando algumas de suas preocupações centrais, para então adentrar a obra de Carlos Rivera Lugo, a fim de que, no âmbito da Teoria Crítica do Direito, seja viável exibir sua proposta de Direito do Comum como uma possível expressão jurídica para os imaginários sociais.

 

1 Os limites do conceito de meio ambiente: territórios sustentáveis e imaginários sociais na consTITUIÇÃO de sustentabilidades

 

Repensar o desenvolvimento sustentável rumo à sustentabilidade pressupõe refletir em torno da relação do ser humano com a natureza. Sem dúvida, essa relação não foi sempre a mesma ao longo da história e continua não sendo absolutamente igual nos diversos povos da Terra (DIEGUES, 2001) – não obstante a globalização tenha impulsionado significativamente um processo de certa homogeneização cultural (BECK, 1999). Nessa perspectiva, demonstrar as limitações do pensamento moderno ocidental, de base científica, torna-se indispensável, a fim de que novas formas de saber e de ser no mundo se abram como opções para a conformação de sentidos de sustentabilidade.

Leff (2014) destaca o caráter epistêmico-político do campo socioambiental, no qual ocorrem as lutas sociais e com suporte no qual são elaboradas as teorias ambientais. Em seu entendimento, as teorias da modernidade reflexiva e da modernização ecológica buscam lidar com os riscos e os efeitos da racionalidade moderna dentro dos marcos teóricos e instrumentais da globalização. Por dita razão, o autor questiona a capacidade de ecologização da racionalidade moderna, ou seja, se essa é capaz de produzir uma solução científico-tecnológica para a crise ambiental – questionamento ao qual ele responde negativamente.

Assim, a tentativa de constituir opções para a crise ambiental – que é, acima de tudo, uma crise civilizatória – precisa ultrapassar os limites da racionalidade moderna, alcançando as bases epistêmico-políticas do campo ambiental, de modo a reconhecer a relevância dessas lutas socioambientais (SANTILLI, 2005). Neste artigo, esse processo inicia pela discussão do conteúdo da expressão “meio ambiente”, atrelada ao slogan do desenvolvimento sustentável.

  Wolfgang Sachs (2000), preocupado com as profundas raízes do pensamento moderno ocidental científico - o qual, desde a segunda metade do século XX, é muito bem representado pelo conceito de desenvolvimento, ao realizar a introdução à obra “Dicionário do Desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder”, exprime sucintamente o objetivo do livro nas seguintes palavras:

 

Nossos ensaios sobre os conceitos principais do discurso desenvolvimentista tem a intenção de expor algumas das estruturas subconscientes que delimitam o pensamento de nossa época. Acreditamos que qualquer esforço imaginativo para formular uma era pós-desenvolvimentista terá primeiramente que vencer esses obstáculos. (SACHS, 2000, p. 16).

 

  Nota-se, portanto, a íntima relação estabelecida entre tais estruturas subconscientes – organizadas no plano epistemológico, as quais compõem o paradigma moderno cartesiano-mecanicista (CAPRA, 2006) – e a criação de mecanismos políticos de formulação de uma nova era, outra forma de vida na Terra. Em outras palavras, também Sachs (2000) está atento à base epistêmico-política do problema do desenvolvimento.

A obra em foco, então, é estruturada por meio de verbetes – na forma de um dicionário – escritos por variados autores, de modo a refletir em torno de palavras e expressões com significado e conteúdo, de forma gradual ou de modo abrupto, modificados e adaptados para servirem ao discurso desenvolvimentista, o qual está estruturado predominantemente na concepção de crescimento infinito encabeçado pelo mercado, o qual é promovido pelo Estado-Nação para a produção de bens de consumo (necessidades), criados com base na aplicação do conhecimento científico no processo industrial. Dentre tantos verbetes relevantes, este artigo se debruçará na reflexão expressa pelo próprio organizador da obra, Wolfgang Sachs, a respeito do meio ambiente, em sua aproximação com o conceito de desenvolvimento, de modo a compor a versão mais atualizada desse discurso: o desenvolvimento sustentável.

Inicialmente, destaca-se que o fato de que o sentido de desenvolvimento – não obstante a expressão ter sido utilizada anteriormente – aparece com destaque pela primeira vez no discurso de posse de Harry S. Truman como presidente dos Estados Unidos, em 20 de janeiro de 1949 (ESTEVA, 2000). No pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos – junto com a União Soviética – era o principal ganhador da disputa, especialmente porque a batalha não foi travada em seu território, a devastação não o atingiu e, em contraposição, foi ele o protagonista da reconstituição econômica da Europa ocidental, por meio de verbas (Plano Marshall) e da venda de produtos.

Ao mesmo tempo, entretanto, em que lançou a ideia de desenvolvimento, que foi se conformando com maior clareza posteriormente, Truman, em seu discurso, apontou para os países do Terceiro Mundo a condição de subdesenvolvimento. Esteva (2000), nesse sentido, ressalta o fato de que tal concepção foi inventada, a fim de imbuir nos países não industrializados a premência de buscar uma equalização de sua situação ante os países de industrialização desenvolvida. Logo, rapidamente, a condição biológica do desenvolvimento como processo natural do desabrochar da maturidade tornou-se uma metáfora distorcida para explicar a situação de anormalidade – de doença – dos países que não seguiam tal forma de vida (ESTEVA, 2000).

Desde então, o significado de desenvolvimento dependeu dos interesses e necessidades das nações mais ricas, detentoras do sentido – então numa perspectiva direcional do processo, de modo a definir o rumo a ser trilhado para se alcançar o topo da escala da evolução social – da própria palavra (SACHS, 2000); o conteúdo da expressão meio ambiente também passa por esse processo. Dessa forma, na medida em que o desenvolvimento começou a produzir seus efeitos deletérios e esses passaram a ser sentidos pelos países europeus e pelos Estados Unidos, por meio da produção da chuva ácida e a identificação de níveis altos de pesticidas em peixes e aves, por exemplo, passou-se a questionar a concepção predominante de desenvolvimento como crescimento econômico infinito, abrindo-se caminho para as convenções internacionais – a primeira delas, em Estocolmo, em 1972.

Um longo caminho, entretanto, foi trilhado para que o casamento entre desenvolvimento e meio ambiente ocorresse, por meio do Relatório Brundtland, em 1987. Nesse processo, digladiaram-se por um tempo o ambientalismo e o desenvolvimentismo, na medida em que aquele exigia a desaceleração econômica, tendo em vista a proteção ambiental, enquanto esse recomendava o crescimento econômico como meio de extinção da pobreza. Essa situação se inverteu no momento em que foi possível estabelecer a pobreza como produtora de degradação ambiental, conforme se depreende das palavras de Sachs (2000, p. 121):

 

Porém com o desmatamento e a desertificação em expansão por todo o mundo, os pobres foram rapidamente identificados como agentes de destruição e tornaram-se os alvos de campanhas para promover a "consciência ambiental”. Uma vez que culpar a vítima entrou no consenso profissional, a velha receita também podia ser usada para enfrentar o novo desastre: já que o crescimento supostamente eliminaria a pobreza, o meio ambiente somente poderia ser protegido através de uma nova era de crescimento. [...] O caminho assim estava livre para o casamento entre "meio ambiente" e "desenvolvimento": o novo membro podia portanto ser bem-vindo no seio da tradicional família.

 

  Nessa perspectiva, o Relatório Brundtland, conhecido pela apresentação do conceito de desenvolvimento sustentável – que surge da aproximação entre desenvolvimento e meio ambiente – estabeleceu como remédio para a degradação ambiental, ainda que não fosse condição suficiente, mais crescimento. Desse modo, o conceito de desenvolvimento que se encontrava em decadência, se renovou e revigorou, tornando-se a nova razão (de ser) do Estado (raison d’Etat).

  Nessa nova realidade, então, se fez politicamente relevante discutir e refletir em torno dos contornos teóricos da expressão meio ambiente, a fim de estabelecer um conceito operacional que interessasse ao desenvolvimento sustentável. O movimento ecológico desempenhou importante e ambivalente papel nesse processo, na medida em que, simultaneamente, questionou a base científica da industrialização, mas se utilizou da mesma ciência para se fortalecer como forma de produção de conhecimento e de poder (SACHS, 2000).

Assim, após o período inicial, em que prevaleceu a concepção organicista – segundo a qual o todo é maior que a soma das partes, conduzindo à existência de uma realidade supraindividual, a qual permitiu à ecologia a identificação como área autônoma de estudo – após a Segunda Guerra Mundial, a concepção mecanicista de ciência retomou sua hegemonia, possibilitando a emergência das categorias de sistema e de ecossistema. Dessa forma, Sachs (2000) destaca que a ambivalência da ciência da ecologia resulta da contraposição do sentido dessas palavras: ciência como forma de produção do conhecimento na lógica mecanicista e reducionista – paradigma da simplificação, segundo Morin (2001) – e ecologia como forma de compreensão do mundo que busca reconhecer as relações e inter-relações das partes, em oposição ao cientificismo moderno.

Não obstante a conotação não exclusivamente reducionista de que se revestiu a ciência da ecologia, o conceito de meio ambiente que interessou ao desenvolvimento sustentável não conseguiu se afastar do predominante caráter utilitário e antropocêntrico atribuído pela economia aos recursos naturais. Mais do que isso, no entanto, a preocupação com o meio ambiente se tornou objeto da gestão racional pelo Estado, representado por especialistas e técnicos nos temas ambientais, por meio de normas e regulamentações (SACHS, 2000). A questão política se sobressai, mas também o aspecto epistemológico é mais uma vez inegável, na medida em que o conhecimento adequado para preservar os ciclos naturais é aquele produzido sob o método científico.

Nesse sentido, Vandana Shiva (2002) denuncia a invasão da silvicultura científica na gestão das florestas na Índia, por meio da imposição de um paradigma reducionista na sua forma de compreender a floresta e de um padrão de uniformidade – pelo uso do eucalipto – de modo a prejudicar a biodiversidade, a forma de vida das comunidades locais e sua produção de alimento. Nas palavras da autora,

 

O reducionismo do paradigma da silvicultura científica criado pelos interesses industriais e comerciais violentam tanto a integridade das florestas quanto a integridade das culturas florestais que precisam das florestas e de sua diversidade para satisfazer suas necessidades de alimento, fibras e moradia. (SHIVA, 2002, p. 32).

 

  Dessa forma, percebe-se que o desenvolvimento sustentável propõe uma noção utilitária, economicista, centralizada, epistemologicamente dominante e socialmente destruidora de meio ambiente. Tanto Shiva (2002) quanto Sachs (2000) ressaltam o papel desempenhado pelo movimento Chipko, na Índia, que buscava proteger as florestas locais, haja vista o modo de vida das comunidades, como um exemplo dos efeitos deletérios que a imposição desse conceito pode gerar nos povos da floresta, como aqueles nos quais Chico Mendes, no Brasil, serviu de protagonista. Nessa linha, a cientificização da natureza se completa com a gestão “racional”[2] do meio ambiente, em busca do chamado desenvolvimento sustentável, que, no entanto, retira a sustentabilidade constituída ao longo de séculos e, às vezes, milênios, pelos próprios povos. Assim, Sachs (2000, 127) acentua que,

 

Embora os peritos em recursos tenham chegado em nome da proteção da natureza, sua idéia de natureza contradiz profundamente a idéia de natureza concebida pelos aldeões. Natureza, quando ela se torna objeto de política e planejamento, transforma-se em "meio ambiente". Usar dois conceitos alternadamente pode confundir, porque impede a identificação do "meio" como uma determinada construção da "natureza" específica para nossa época. Contrariamente às conotações, que estamos atualmente sendo socializados a aceitar, raramente houve um conceito que representasse a natureza de uma maneira mais abstrata, passiva e vazia de qualidades do que "meio ambiente".

 

Denota-se, portanto, que a monocultura impregna não somente a forma de produção de vegetais e a silvicultura, mas ela se realiza essencialmente por meio da monocultura da mente (SHIVA, 2002), ou seja, mediante pensamento único, verdade única – a científica – colonizadora de todas as outras formas de pensar, produzir e viver. Em razão disso, a fim de constituir outra noção em torno da natureza, cheia de conteúdo, sentidos, práticas, símbolos e imaginários, que seja plural e diversificada – e não unívoca e homogênea, como meio ambiente – propõe-se a compreensão dos territórios sustentáveis (LEFF, 2014) como fundamento para a(s) sustentabilidade(s), com origem nos imaginários sociais. É necessário, logo, descolonizar os modelos epistêmico-político-econômicos em torno da ideia de desenvolvimento, o que, segundo Leff (2014), já está acontecendo.

A concepção de territórios sustentáveis de Leff (2014) é multifacetada e envolve aspectos físicos, geográficos, biológicos, sociais, políticos, jurídicos, culturais, simbólicos e epistemológicos; relaciona-se com a compreensão em torno da natureza, pressupõe formas alternativas de conhecimento, depende dos ciclos naturais e possui implicações políticas. Os territórios sustentáveis exigem o encontro de variados saberes, em vez da supremacia do conhecimento científico; ressaltam a relevância das lutas socioambientais como instrumento político de libertação dos povos; destacam a inadequação das formas jurídicas modernas, da propriedade privada, para a proteção dos direitos culturais dos povos locais.

Com a categoria de territórios sustentáveis, Leff (2014) se apropria da concepção de Guatarri (1990) a respeito dos “territórios existenciais” como base para as três ecologias – mental, social e ambiental – para destacar sua acepção simbólica, a fim de qualificá-los como modos de ser no mundo.

 

En la cuestión territorial se confrontan las estrategias de poder por la reapropiación de la naturaleza generando una reconceptualización del territorio. El territorio ya no es sólo la base físico-geográfica para el ejercicio de la soberanía del Estado consagrado por el derecho internacional. [...] El territorio es cultura-naturaleza, lugar-soporte de la existencia humana. (LEFF, 2014, p. 467).

 

  Percebe-se, evidentemente, que a noção de território sustentável é muito mais rica, plural e complexa do que a ideia de meio ambiente, mostrando-se mais frutífera para a concepção de um novo sentido em torno da palavra sustentabilidade – em vez de desenvolvimento sustentável. A compreensão e a conformação dos territórios sustentáveis, porém, dependem dos imaginários sociais, sendo relevante estudar essa noção que é, para ele, a própria fonte com origem na qual é possível pensar opções e, mais do que isso, pode-se constituir como a própria prática concreta dessas opções.

  Entendendo que a crise ambiental é, acima de tudo, civilizatória, Leff (2014) assinala que é necessário exercitar a imaginação sociológica, a fim de buscar soluções para tal crise, inventando e/ou reinventando as formas de ser em sociedade, acompanhado pelo entendimento de Santos (2010). A Sociologia moderna, entretanto, se constituiu com suporte na das Ciências Exatas, positivistas, mecanicistas; as respostas formuladas pela Sociologia moderna para compreender e guiar a sociedade hoje se mostram insuficientes, decadentes – como o conceito de desenvolvimento (SACHS, 2000).

Nesse sentido, impõe-se a revisão de suas bases e, acima de tudo, a elaboração de outra sociologia; uma sociologia ambiental que ultrapasse às propostas elaboradas nos cânones modernos. Essencialmente, é preciso repensar a forma como a Sociologia percebe a sociedade em sua relação com a natureza. Em razão disso, entende Leff (2014, p. 19) que “[...] la crisis ambiental abre una crítica sobre una falla fundamental de las ciencias sociales: el haber pensado el orden social independientemente de las condiciones de la naturaleza en las que se constituye, funciona y se autodestruye la sociedad”.

Assim, Leff (2014) propõe a formação de uma sociologia ambiental pós-moderna, no sentido da desconstituição dos princípios metafísicos da Modernidade – não para cair no relativismo ou na anarquia ontológica, mas a fim de reconhecer e demandar por uma ontologia da diversidade e da diferença. Logo, não se consistem em abandonar a racionalidade, de afastar-se completamente do conhecimento científico; “[...] la constitución de la racionalidad ambiental, pensada como articulación de racionalidades, plantea el encuentro, hibridación y convivencia entre modernidad y tradición”. (LEFF, 2014, p. 72). Sem pretensões de estabelecer conceitos herméticos e definitivos, pode-se afirmar que as palavras seguintes denotam os elementos mais relevantes da proposta do autor em torno da nova sociologia ambiental.

 

La sociología ambiental se construye en ese desafío de enlazar la comprensión del mundo moderno con la imaginación sociológica de otros modos sustentables de ser en el mundo y con los mundos tradicionales de vida. Si el objeto privilegiado de la sociología [moderna] […] ha sido el estudio de la sociedad moderna y el proceso de modernización, hoy se encuentra con el campo de la etnología y la antropología […]. Se abren así nuevos horizontes de indagatoria sociológica hacia un encuentro de paradigmas para comprender el diálogo de saberes entre mundos diferenciados de vida. (LEFF, 2014, p. 45).

 

  Esse diálogo de saberes, então, pressupõe o contato com os imaginários sociais dos povos que, em razão do pensamento abissal da Modernidade (SANTOS, 2009), sofreram a morte física, moral e epistemológica de seus pares e que ainda muito sofrem. Cuida-se, portanto, de revelar os imaginários, recuperar os saberes e reaver as práticas[3] ecológicas das populações tradicionais (LEFF, 2014, p. 310), aprendendo com eles outras formas de ser no mundo.

  Com Cornelius Castoriadis, a Sociologia recuperou a relevância dos imaginários sociais, que haviam sido afastados do estudo dessa Ciência pela ambição científica objetivista, muito bem expressada pela concepção positivista de sociologia de August Comte. Segundo Leff (2014), no entendimento de Castoriadis, os imaginários sociais não são representações (ideológicas) do mundo; diferentemente, eles estão arraigados às identidades que conformam o ser cultural em sua acepção coletiva, que se ressignificam e buscam reforçar sua autonomia perante os processos de colonização por culturas hegemônicas, como no caso da globalização. Conforme ressaltado anteriormente, porém, os imaginários sociais não se limitam ao aspecto ideal, simbólico, mas coexistem no real, na materialidade. Dessa forma, as palavras de Leff são mais uma vez essenciais para a compreensão:

 

En los imaginarios sociales arraiga lo real de la Tierra, generando formas del ser en los que se despliegan modos de pensar y de sentir el mundo; prácticas, hábitus y costumbres que no reflejan la clarividencia ni la verdad de lo real, sino que crean mundos de vida, que no siempre se traducen en formaciones discursivas. Sin embargo, cuando esos imaginarios se enuncian lingüísticamente, adquieren un carácter colectivo y dialógico en donde se expresa la fuerza imaginativa y prospectiva de un pueblo o comunidad en la invención de nuevos mundos de vida. (LEFF, 2014, p. 347).

 

  Sendo assim, os imaginários sociais carregam aspectos culturais e simbólicos, pressupõem o diálogo de saberes, são simultaneamente ideal e também real, e são criados e reinventados nos territórios sustentáveis – os quais são igualmente materiais e existenciais, conforme ressaltado. Logo, partindo dos imaginários sociais como fontes e produtos de elaboração de sustentabilidades, concretas e localizadas, mostra-se inegável impulsionar estratégias epistêmico-políticas que configurem legitimidade e visibilidade a eles, viabilizando a reinvenção da apropriação da natureza e a busca por direitos coletivos que possam igualmente proteger e preservar tais imaginários sociais (LEFF, 2014). Em poucas palavras, é preciso criar instrumentos político-jurídicos que possibilitem a manutenção desses processos com arrimo nos quais se tornem concebível a aposta pela vida.

 

2 Possibilidades de contribuição da teoria crítica latino-americana: direito do comum como uma expressão jurídica para os imaginários sociais

 

  O desenvolvimento sustentável como conceito que decorre do casamento entre desenvolvimento e meio ambiente (SACHS, 2000) já não é suficiente para expressar os rumos que precisam ser trilhados para evitar o fim da vida. Nessa perspectiva, partindo-se de outras bases epistemológicas e sociológicas, apresentaram-se as categorias de territórios sustentáveis e de imaginários sociais como novos meios teóricos com amparo nos quais é possível pensar a sustentabilidade.

  Em meio a tantas formulações teóricas a respeito da sustentabilidade, escolheu-se trabalhar essas inovadoras concepções porque elas partem do reconhecimento da relevância dos saberes e dos modos de vida dos povos ancestrais, que foram – e ainda são – colonizados e subjugados pela racionalidade moderna, em consonância com a proposta de Santos (2009), no sentido das epistemologias do Sul. No contexto desse Sul Global, tão diverso e tão rico, escolhe-se[4] neste trabalho a América Latina como local de produção de saber, em especial de teoria crítica do Direito, para colaborar nessa empreitada de construção de sustentabilidades. Essa escolha é reforçada pelo destaque conferido por Leff (2014) à história política do ambientalismo latino-americano, especialmente marcada por lutas pela reapropriação da natureza e dos territórios de vida dos povos, os quais foram perdidos com o colonialismo – lutas essas que continuam sendo travadas.

  O que entender, porém, por teoria crítica? Nas palavras de Wolkmer (2015a, p. 29), a teoria crítica pode ser compreendida como:

[...] o instrumento pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes, subalternos e colonizados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos de resistência que conduzem à formação de novas sociabilidades possuidoras de uma concepção de mundo libertadora, antidogmática, participativa, criativa e transformadora.

 

  A expressão teoria crítica atualmente ampliou o seu significado e seu escopo ao ponto de ser possível conceituá-la genericamente, nos termos apresentados há pouco. Essa expressão teórica, entretanto, iniciou com uma escola filosófica alemã que ficou conhecida como Escola de Frankfurt, a qual teve como expoentes – desde seu início, em 1923, até a atualidade – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e Axel Honneth (WOLKMER, 2015a).  Wolkmer (2015a) destaca o fato de que a compreensão em torno da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt como processo histórico-social se caracterizou por um agudo questionamento da teoria tradicional, a qual recebeu diferentes caracterizações por cada um desses expoentes, conforme o enfoque pessoal de estudo realizado.

  De qualquer forma, utilizando-se mais uma vez das palavras de Wolkmer (2015a, p. 31), considerando os objetivos deste trabalho, é possível destacaro fato de que “[...] enquanto a ideia de consciência e de razão na teoria tradicional está vinculada ao mundo da natureza e ao presente em contemplação, a teoria crítica expressa a ideia de razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em constante transformação”. Percebe-se, portanto, que a Teoria Crítica frankfurtiana se baseou na dialética materialista de Marx para revitalizar o marxismo e recuperar o pensamento crítico revolucionário que busca articular teoria e práxis.

  Boaventura de Sousa Santos (2010 e 2009), todavia, assim como Wolkmer (2015a e 2015b), da mesma forma que Leff (2014), destacam que o pensamento abissal da Modernidade, assentada em uma racionalidade formal e instrumental, tem limitações na sua capacidade de reinvenção, de criar alternativas. É justamente em razão disso que Santos (2009) propõe falar em epistemologias do Sul, que Wolkmer (2015a) estabelece a necessidade de uma teoria crítica descolonial baseada no pluralismo jurídico e na interculturalidade, e que Leff (2014) exige como fonte para criação da sustentabilidade os imaginários sociais dos povos do Sul.

  Nota-se, então, que os conceitos de território sustentável e de imaginário social carregam em si mesmos os elementos caracterizadores de uma teoria crítica desde baixo, de modo a ser possível esperar que o diálogo seja profícuo. Na mesma linha de pensamento, a teoria jurídica crítica deve ser capaz de questionar e de romper com o jurídico-normativo oficialmente consagrado, além de possibilitar a concepção de práticas jurídicas opcionais e emancipadoras (WOLKMER, 2015a).

  No que diz respeito aos estudos culturais latino-americanos, Santiago Castro-Gómez (2005) se propõe a abordar o contexto discursivo mais amplo da teoria crítica latino-americana, chamando a atenção para as particularidades das reflexões aqui produzidas e, principalmente, ressaltando a necessidade de um olhar latino-americano a respeito da América Latina. Para isso, Castro-Gómez (2005) inicia abordando o que chama de ponto cego na obra de Karl Marx, desenvolvendo e criticando alguns aspectos da interpretação desse autor a respeito da América Latina no contexto de sua crítica ao capitalismo.

Segundo Castro-Gómez (2005), Karl Marx não entendeu necessário estudar o capitalismo na América Latina porque, influenciado pelo entendimento de Hegel, via na América Latina uma realidade anterior, pré-capitalista, de caráter feudal. O colonialismo, nesse sentido, foi interpretado como um passo necessário no processo de formação de uma burguesia nacional, que então impulsionaria o desenrolar do processo histórico nos termos por ele preconizados, de modo que seu objeto de análise se limitava às relações entre classe burguesa e estrato proletário. Nesse sentido,

 

Desde la perspectiva de Marx el colonialismo no es un fenómeno digno de ser considerado por sí mismo sino tan sólo una antesala para la emergencia en las periferias de la burguesía, única clase capaz de impulsar la crisis del orden feudal de producción. El colonialismo es un efecto colateral de la expansión europea por el mundo y, en este sentido, forma parte de un tránsito necesario hacia el advenimiento mundial del comunismo. […] Por eso la discriminación étnica y racial fueron consideradas por Marx como fenómenos “pre-capitalistas” propios de sociedades en las cuales todavía no había emergido la burguesía y en las cuales reinaba el ordenamiento estamental y teológico, característico del “antiguo régimen”. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 17-18)[5].

 

  Este ponto cego na obra de Marx implica a desconsideração da relevância da questão étnica como elemento transversal ao problema das classes sociais, de modo que não lhe foi possível compreender a profundidade das raízes do colonialismo na Modernidade, as quais produziram estruturas e relações sociais que se sedimentaram até a realidade atual. Esse entendimento só passou a se modificar com o início dos estudos pós-coloniais e subalternos, no final do século XX, por meio de estudiosos provenientes de antigas colônias europeias na Ásia e Oriente Médio, como Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak, dentre outros.

  Os estudiosos da corrente dos Subalternos e dos Estudos Pós-coloniais chamaram a atenção para a dimensão epistemológica e simbólica do colonialismo, que não foi somente um sistema econômico e político, mas implicou igualmente uma hierarquização entre as distintas culturas, sendo a cultura branca europeia superior, mediante a conformação do que Dussel (2003) chama de mito da modernidade. Em seu entendimento, a construção histórica da Europa como centro do mundo e de sua modernidade como ápice do processo de evolução social humana é uma “invenção ideológica” (DUSSEL, 2003, p. 44), da qual resulta o eurocentrismo. Assim, o que chama de mito da Modernidade é a contradição estabelecida entre a racionalidade da Modernidade, como saída da humanidade de um estado de imaturidade intelectual, de cunho provinciano, com o outro lado da modernidade, que se realiza como um processo irracional de violência: o índio, o oriental, o negro são vítimas desse lado irracional da Modernidade[6]. Em complemento, Castro-Gómez (2005, p. 20) afirma:

 

Casi todos los autores mencionados han argumentado que las humanidades y las ciencias sociales modernas crearon un imaginario sobre el mundo social del “subalterno” (el oriental, el negro, el indio, el campesino) que no solo sirvió para legitimar el poder imperial en un nivel económico y político sino que también contribuyó a crear los paradigmas epistemológicos de estas ciencias y a generar las identidades (personales y colectivas) de colonizadores y colonizados[7].

 

  Os estudos pós-coloniais e subalternos, então, possuíram um papel muito relevante, no sentido de desvelar a base cultural, epistemológica e simbólica da colonialidade. Entretanto, Castro-Gómez (2005) apresenta algumas críticas que teóricos marxistas realizaram aos estudos subalternos, a fim de ressaltar o risco que perspectivas essencialmente voltadas para a questão simbólica possuem de resultarem na inação, na passividade, por afastarem demasiadamente a realidade concreta e material da análise social. Sem adentrar em tais críticas – que não são o objeto desse trabalho – cabe ressaltar que uma das propostas articuladas pelos críticos consiste na compreensão da Modernidade e da colonialidade como dois mundos, duas realidades que se relacionam e se complementam – e que essa proposta é desenvolvida por teóricos latino-americanos (CASTRO-GÓMEZ, 2005), como Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Ramón Grosfóguel, especialmente no contexto da filosofia da libertação, do conceito de matriz de poder colonial, da colonialidade como forma de poder e de saber[8] – desenvolvendo, assim, uma crítica descolonial (uma crítica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) (GROSFÓGUEL, 2009).

  É nesse âmbito rico de produção teórica que se insere a teoria jurídica crítica latino-americana, na medida em que reconhece a necessidade de descolonizar os conceitos, as categorias e as práticas jurídicas instituídas e de cunho colonizador. Nesse sentido, Wolkmer (2015b, p. 95) assinala que,

 

Antes de tudo, para se constituir uma cultura político-jurídica mais democrática, marcada pelo pluralismo, pela descolonização e pela liberação, faz-se necessário, refletir e forjar um pensamento crítico, construído a partir da práxis das sociedades emergentes, capaz não somente de viabilizar novos conceitos, categorias, representações e instituições sociais, como também repensar as fontes do direito, tomando em conta os critérios da pluralidade e interculturalidade. (Grifou-se)

 

  Para constituir essa cultura político-jurídica mais democrática, Wolkmer (2015b) propõe a necessidade de conceber um paradigma descolonizador do Direito, que possa estruturar um pensamento crítico apto a transformar a sociedade e permitir à sociedade latino-americana o reconhecimento de sua diversidade cultural e identitária. Segundo Wolkmer (2015b), é preciso partir do resgate do sujeito latino-americano na história e, especialmente, do sujeito coletivo que representa os diversos povos e grupos subalternizados, representados pelas populações indígenas, afrodescendentes, de camponeses e demais movimentos sociais (ou socioambientais) – o que demanda um paradigma baseado na alteridade.

  É, enfim, nesse contexto teórico e geopolítico que se traz a concepção de Carlos Rivera Lugo (2013 e 2014), porto-riquenho que propõe o Direito do Comum, aqui apresentado como uma possível expressão jurídica para os imaginários sociais de Leff (2014). Carlos Rivera Lugo propõe-se questionar e refletir em torno do que chama de “forma-jurídica”[9], como a juridicidade característica da Modernidade e, especialmente, do capitalismo. Para isso, garante, de início, que se exprime como um marxista que não teve receio de mergulhar na crítica pós-moderna a fim de repensar sua teoria e sua prática – o que se percebe por meio da influência de Michel Foucault e sua noção de saber como poder nas microrrelações sociais, que aparece em sua obra.

  Lugo (2014) reconhece, portanto, a ruptura de época que é entendida por alguns como Pós-Modernidade, para ressaltar especialmente o impulso que esse novo contexto produz no processo de superação dos limites do Direito como sistema fechado e autônomo de normas, nos termos da racionalidade formal, característica da Modernidade. Certamente, os caracteres principais dessa ruptura de época demandam uma reinvenção do Direito e do marxismo – como a teoria crítica tem procurado realizar – sem recair nas ilusões que o prefixo “pós” possa induzir, conforme salienta a teoria descolonial latino-americana.

Dentre as características apontadas por Lugo (2014), por intermédio de outros autores, pode-se destacar: a incredulidade frente aos metarrelatos da Modernidade; o saber como principal força de produção e fonte de poder; a insurgência de saberes das populações e a produção de novas subjetividades; o fato de que os processos de decisão da sociedade ultrapassam as possibilidades do Estado-Nação moderno, e o fato de que a constituição do novo vínculo social e a direção da sociedade dependem da capacidade dos produtores de saber de imprimirem um novo sentido à situação de transformações constantes. Ante tais características, além da Pós-Modernidade que induza a esvaziamentos de sentido e a simples superação da modernidade, acompanhando-se Dussel (2003), tem-se um projeto transmoderno, para uma transmodernidade, por meio da incorporação da alteridade negada.

 

La modernidad nace realmente en el 1492: esa es nuestra tesis. Su real superación […] es subsunsión de su carácter emancipador racional europeo transcendido como proyecto mundial de liberación de su Alteridad negada: la “Trans-Modernidad” (como nuevo proyecto de liberación político, económico, ecológico, erótico, pedagógico, religioso, etcétera). (DUSSEL, 2003, p. 50 – 51).

 

  Nesta senda, voltando a Lugo (2013), para desenvolver sua proposta do Direito do Comum, o autor expressa a forma de regulação social da atualidade, marcada por uma dualidade: o Direito e o não Direito. Entende ele que o primeiro é a forma hegemônica na civilização capitalista atual, sendo imposta de cima; o segundo, por sua vez, é insurgente e nasce de baixo.

  O Direito, segundo Lugo (2013), é caracterizado pela forma-jurídica, a qual é entendida pelo autor, como “[...] una instancia sancionadora de las irradiaciones de esa outra forma, de carácter primordial: la forma-valor y su materialización en la mercancia” (LUGO, 2013, p. 701). Assim, pensado para legitimar as forças e os interesses do capital, a forma-jurídica é caracterizada por forte estatismo e intenso legalismo; ainda, por adotar como critério de legitimação um poder externo, implica o fetichismo da lei, que cria a ilusão de essa ser capaz de abarcar toda a realidade social. Por fim, essa estrutura de regulação adota como direito fundamental a propriedade privada e, em razão do critério de legitimação ser exterior, expropria da comunidade o potencial normativo que dela emana.

  O não Direito, por sua vez, é expresso sob a forma normativa de regulação social. Assim, “la norma es, si se quiere, la forma básica, es decir, elemental, primaria y autogestada, y cuya fuente material es societal. Es el resultado de un acto de voluntad de un individuo o una comunidad” (LUGO, 2013, p. 701). O não Direito se caracteriza por um pluralismo humano e societário, uma abertura ética, e possui como critério de legitimação a autodeterminação, a cooperação e a solidariedade. Ainda no entendimento de Lugo (2013), a aparente inexistência de tal forma insurgente de regulação social decorre de uma estratégia discursiva conduzida pela forma hegemônica, que intencionalmente a produz como inexistente.

  Dessa maneira, por meio de uma sociologia das ausências (SANTOS, 2002), que permite desocultar realidades produzidas como inexistentes pela Ciência e pelo Direito modernos, torna-se possível vislumbrar o Direito do Comum como a forma de regulação social que emerge do ser social, que reconhece a necessidade de descolonização total da vida, como destruição de todas as relações de dominação, desde as capitalistas às colonialistas, das patriarcais às racistas (LUGO, 2013) – e, acrescenta-se, também, do ser humano sobre a natureza. O Direito do Comum surge da retomada da soberania popular como soberania comunitária, a qual se torna a expressão mais original do poder constituinte, originária do interesse comum (LUGO, 2014).

  O Direito do Comum, nessa perspectiva, pressupõe um novo paradigma de regulação social, que se afasta do Estado, da lei e do capital, a fim de se reaproximar da comunidade. Para isso, sem dúvida, faz-se imperativo um meio de organização social diferente, assim como de exercício de poder e de produção do jurídico que se oponham à hegemonia do capital e da propriedade privada. Em suma, esse processo impõe reconhecer a emergência de subjetividades coletivas, transgressoras da ordem capitalista (e da colonialidade do poder e do saber), essencialmente representadas na América Latina pelos movimentos socioambientais, que buscam a gestão do comum e a distribuição de seu produto pela própria comunidade (reapropriação social da natureza, nos termos de Enrique Leff).

  Nas ricas palavras de Lugo (2014),

 

Lo común son bienes y construcciones comunes. Son nuestras luchas, pero también nuestras creaciones sociales; es nuestro lenguaje y los espacios de acción comunicativa que compartimos; son nuestros saberes y nuestras riquezas naturales; es la democracia absoluta y la autodeterminación local como gobierno de todos, por todos y para todos. Lo común es nuestro modo históricamente determinado de estar juntos y cooperar los unos con los otros en torno a fines compartidos. Lo común se realiza en la cabal socialización de su gestión y producto. Lo común se encarna en todos y todas; lo común es de todos y todas. (P. 118 – 119).

 

  É possível compreender, portanto, por meio dessas palavras, por que se propõe nesse trabalho a aproximação da teoria jurídica crítica latino-americana para pensar uma expressão normativa para os imaginários sociais da sustentabilidade. A noção de Direito do Comum como expressão do não Direito é extremamente rica, plural, epistemologicamente aberta e politicamente libertadora. O Direito do Comum também reconhece a necessidade de criação de outras formas de organização social, ressaltando a gestão do comum pela própria comunidade, da mesma forma que os imaginários sociais se relacionam com os territórios sustentáveis.

  Por fim, assim como Leff (2014) se aproxima da crítica pós-moderna para com ela aprender, mas não se limita a ela como fonte para a produção de um futuro sustentável, propondo o diálogo de saberes e a elaboração de uma racionalidade ambiental, também Lugo (2013 e 2014) assim entende ao reconhecer a ruptura de época salientada pela Pós-Modernidade – sem abdicar da análise contextual e dialética do problema da legitimidade da regulação social. Enfim, muitas outras relações entre a teoria jurídica crítica latino-americana, em especial a noção de Direito do Comum, poderiam ser realizadas para com a proposta dos imaginários sociais da sustentabilidade – mas, nos limites deste trabalho, entende-se que o principal foi satisfatoriamente apontado.

 

CONCLUSÕES

 

  No contexto dos problemas socioambientais, pensar em soluções modernas para os dilemas e as dificuldades criados pela Modernidade é como propor apenas doses mais fortes de um remédio que já mostra não ter potencial para curar a doença – agudizando-a ainda mais. Nesse sentido, este trabalho se propôs repensar o próprio problema ambiental transpondo os limites da racionalidade moderna, formal e instrumental, de modo a realizar uma severa crítica ao conceito de desenvolvimento sustentável para propor novos sentidos do que se chamou de sustentabilidade. Principalmente com a agudização do problema ambiental ao longo do tempo, que fez com que se chegasse a uma convergência de natureza preocupante em face sas conclusões de cientistas de variados ramos do conhecimento, reuniram-se algumas delas como o aquecimento global, a nova era do Antropoceno e a chamada 7ª grande extinção. De forma deliberada, apenas foram enunciados estes fenômenos sem se entrar numa análise mais detalhada, mostrando o longo caminho que conduziu a este problema convergente e suas possíveis opções, porém sem um receituário preciso.

  Com origem na proposta sustentabilidade, criticou-se o conceito de meio ambiente, vazio de sentido e de simbologia, propondo-se a adoção da ideia de territórios sustentáveis, por meio dos quais se passou a refletir sobre o significado teórico e prático dos imaginários sociais. Verificou-se, nesse processo, que a concepção dos imaginários sociais tende a constituir uma noção frutífera, na medida em que admite a relevância do conhecimento científico, porém se abre para um diálogo com vários saberes, concretos, reais, produzidos como consequência do modo de vida das comunidades tradicionais da América Latina.

  Em decorrência, atentou-se para a indispensabilidade da regulação social se reinventar e se mostrar aberta ao diálogo de saberes a novas formas de normatização. Nesse sentido, recuperando-se a necessidade de um pensamento latino-americano a respeito da América Latina, aproximou-se a teoria crítica do direito produzida na América Latina, em especial a noção de Direito do Comum, como um novo recurso de reflexão teórico-prática para a formulação de sustentabilidades. Foi possível verificar, então, as possibilidades libertadoras que subjazem ao Direito do Comum como produção de não Direito, assentado em novas formas de organização social, de poder e de saber – da mesma maneira que os imaginários sociais.

  Assim, concluiu-se que a relação entre territórios sustentáveis e imaginários sociais para com a noção de Direito de Comum é bastante frutífera e demanda maiores estudos, a fim de identificar aproximações e eventuais incongruências entre tais elaborações críticas. Algumas das aproximações foram apontadas, já neste trabalho, como fatores potenciais de reforço e fortalecimento recíproco – o que não impede uma eventual identificação de profundos obstáculos neste diálogo. Por hora, aponta-se, superficialmente, apenas a percepção em torno de certo apego por parte de Leff (2014) a autores ocidentais, em detrimento de pesquisadores latino-americanos, conforme claramente ressaltam as críticas descoloniais às propostas pós-coloniais.

  Nos limites deste trabalho, no entanto, se concluiu pela possibilidade de identificar a noção de Direito do Comum como uma expressão normativa dos imaginários sociais, haja vista a elaboração plural e concreta de sustentabilidades. Aponta-se, ainda, a necessidade de se pensar uma juridicidade que vá além e aquém do Estado-Nação, que, paradoxalmente, mostra seu esgotamento, mas não um substituto à altura.

 

REFERÊNCIAS

 

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* Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: luizalc.direito@yahoo.com.br.

** Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: rogerio.portanova@ufsc.br.

Data de recebimento do artigo: 27/01/2016 – Data de avaliação: 29/01/2016 e 29/01/2016.

[1]A expressão e o conceito são de Gaston Bachelard, conforme Michel Mialle (2005).

[2] O uso das aspas na palavra racional se justifica pelo intuito deste trabalho de questionar a racionalidade moderna, formal, técnica, econômica – que não é, no entanto, a única racionalidade possível. Nesse sentido, Leff (2014; 2002; e, principalmente, 2006) propõe a constituição de uma racionalidade ambiental.

[3]A elaboração teórica de Leff (2014) passa pela compreensão de Cornelius Castoriadis sobre imaginários sociais, de Pierre Bourdieu sobre habitus e de Philipe Descola acerca de esquemas de práticas, sendo essas duas últimas categorias formas de explicação em torno dos meios por intermédio dos quais os imaginários sociais se expressam, verbalizam-se.  Nos limites deste artigo, focar-se-á na categoria do imaginário social. Para saber mais sobre as outras categorias, ver: LEFF, 2014, p. 311 – 314 e p. 347.

[4] “Os desafios estão postos na busca de novas fontes de legitimidade por meio do reconhecimento de epistemes alternativas que foram sempre ocultadas, minimizadas ou mesmo negadas, no âmbito de diversidades culturais em ricas tradições da América Latina, África e Oriente. Este reconhecimento múltiplo das experiências ocidentais e orientais não inviabiliza ou obstaculiza uma escolha metodologicamente mais específica de um Sul global latino-americano”. (WOLKMER, 2015, p. 41).

[5] Na perspectiva da Marx, o colonialismo não é um fenômeno digno de ser considerado em si mesmo, mas é apenas uma antessala para a emergência da burguesia em suas periferias, único capaz de impulsionar a crise do modo feudal de produção. O colonialismo é um efeito colateral da expansão europeia pelo mundo e, nesse sentido, faz parte de um processo necessário para o surgimento mundial do comunismo. [...] Por isso a discriminação étnica e racial foram consideradas por Marx como fenômenos “pré-capitalistas” próprios de sociedades nas quais, entretanto, não havia emergido a burguesia e nas quais reinava o ordenamento estamental e teológico, característico do “antigo regime”.

[6] Em sentido semelhante, Santos (2009), ao desenvolver o pensamento abissal da Modernidade, aponta que, deste lado da linha se encontram a legalidade, os direitos humanos, o contrato social, a racionalidade; do outro lado da linha, a apropriação, a violência, o genocídio.

[7] Quase todos os autores citados têm argumentado que as Humanidades e as Ciências Sociais modernas criaram um imaginário sobre o mundo social do “subalterno” (o oriental, o negro, o índio, o campesino) que não somente serviu para legitimar o poder imperial em nível econômico e político, mas também contribuiu para criar os paradigmas epistemológicos dessas ciências e a produzir as identidades (individuais e coletivas) de colonizadores e colonizados. Tradução livre.

[8] Para saber mais em torno da constituição da colonialidade como forma de poder e de saber, ver: QUIJANO, 2009.

[9] A crítica à forma-jurídica como expressão da juridicidade moderna capitalista é realizada desde Pashukanis, na obra La teoría general del derecho y del marxismo (1924). Para saber mais, ver: LUGO, 2013.