Imaginários
sociais e direito do comum: contribuições da Teoria Crítica Latino-Americana
para a elaboração de sustentabilidades
Social imaginary and law of the commons:
contributions of the latin american critical theory to the sustainabilities’
construction
Luiza Landerdahl Christmann*
Rogério Portanova **
RESUMO: Nas
constatações dos distintos ramos da Ciência que apontam para uma crise
ambiental global e sistêmica, procuram-se opções que passam pela desconstituição
dos dogmas impostos pelos modelos desenvolvimentistas e, principalmente, pela
constituição de um imaginário que vá além da vulgata do sustentável. Para tanto,
se recorre a autores clássicos e contemporâneos, identificando no chamado Novo
Constitucionalismo Latino-Americano uma possibilidade de repensar tanto o
Direito como os hábitos que levaram as pessoas a esta triste realidade que se
mostra preocupante, porém paradoxal, tanto em suas opções como na constituição
de seu imaginário civilizacional.
PALAVRAS-CHAVE:
Sustentabilidade; Crise global; Novo Constitucionalismo Latino-Americano;
Imaginário.
ABSTRACT: From the findings from various branches of science
that point to a global and systemic environmental crisis, alternatives that pass through the
deconstruction of the dogma imposed by developmental models and especially the
construction of a new imagination that goes beyond sustainable vulgate are
sought. For this, the article goes from classic authors to contemporary ones
and identify in the so-called Latin American New Constitutionalism a chance to
rethink the law and the habits that have led us to this sad reality that
appears to be worrying, however paradoxical, both in their alternatives as in
the construction of the imaginary of the civilization.
KEYWORDS: Sustainability; Global Crisis; Latin American New
Constitucionalism; Imaginary.
INTRODUÇÃO
A busca pelo desenvolvimento e, mais
recentemente, pelo desenvolvimento sustentável, impulsiona juristas,
economistas, filósofos e sociólogos a pensar em torno dos rumos que precisam
ser revistos e redirecionados – e, especialmente, de como fazê-lo – para
garantir a manutenção da vida da forma como é conhecida, apesar das
contundentes intervenções humanas no equilíbrio ecológico nos últimos séculos.
A ciência avança numa espécie de sistematização de vários elementos que
causaram a destruição ambiental e a ameaça à vida no planeta; desde os mais
evidentes, como uma eventual guerra nuclear, que traria um comprometimento
imediato com a continuidade vital, até os mais invisíveis e insensíveis, como a
acumulação de resíduos providos de indústrias, sobretudo, os plásticos que
começam a ameaçar os equilíbrios mais distantes, como os oceanos.
Recente
previsão de institutos oceanográficos e de estudos de ecossistemas marinhos
prevê que, para o ano de 2050, se poderá ter mais volume e peso de material
plástico de origem industrial do que o equivalente em distintas formas de
peixes no oceano. Não cabe aqui discutir as precisões sobre a data e o local, quais
a mais importante é ver que esta tendência se mostra como inevitável, caso
atitudes que levaram a esta condição não sejam imediatamente revistas. Neste
caso, a responsabilidade vai desde os mais altos organismos internacionais,
passando pelo Poder Público, o papel das ONGs e chegando a atitudes individuais
que precisariam ser revistas, tanto do ponto de vista da educação como sob o
prisma das sanções.
Há
atualmente uma convergência em vistas a identificar atitudes do homem,
principalmente desde o advento da Revolução Industrial, com o provável colapso
ambiental causado pela sua intervenção, chegando mesmo a se levantar a hipótese
de que, com suporte nesta intervenção, se
estaria entrando em uma nova era geológica chamada de Antropoceno. Some-se a isto
o fato de que há também a constatação de que se caminha para a chamada 7ª
grande extinção de espécies. Não se trata mais de adequar possibilidades
econômicas ao
ecossistema, mas retrabalhar radicalmente a intervenção antrópica sobre
o meio ambiente. Mas não só sobre ele, também com os hábitos, a forma de
divulgar a educação e uma cultura voltada para a satisfação individual e
acumulação de riquezas materiais como sinônimo de êxito social.
Diversas
propostas foram e estão sendo constituídas, passando por elaborações de reforma
do Estado, de abandono do Estado, de novas bases territoriais de soberania que
possibilitariam emergir um Direito Planetário; de esverdeamento da economia, de
precificação dos recursos naturais; alcançando até propostas de cunho
epistemológico, como o pensamento da complexidade.
Nota-se,
portanto, que a discussão em torno do que pode se constituir como uma forma
social, econômica, política e cultural de vida que promova a satisfação de
necessidades materiais humanas em coordenação com o respeito aos imperativos
ecológicos e aos limites dos ciclos naturais é uma preocupação que, além de
atual, pode ser hoje entendida como de reconhecimento tardio.
Nesse
sentido, esse artigo busca refletir em torno dessa confusão de problemas, no
intuito de colaborar para o debate em torno dessas propostas de formulação do
que, nesse trabalho, será chamado de sustentabilidade.
Não
se pretende, no entanto, exprimir um conceito de sustentabilidade, pronto,
único, fechado. Reconhecendo que o problema do desenvolvimento sustentável
possui profundas raízes epistemológicas, entende-se que não cabe falar em um só
meio de sustentabilidade, no primeiro momento, mas que essa noção precisa ser
elaborada e vivida concretamente, por meio de um encontro de variados saberes.
Logo, por meio do método indutivo, pretende-se desenvolver uma base teórica que
forneça categorias sociológicas e jurídicas que auxiliem na formulação prática
e contextual do sentido de sustentabilidade.
Na medida em que o trabalho reconhece uma base
epistemológica como fundamento dessa problemática – no sentido de que é o
pensamento moderno, ocidental, branco e científico que tem definido o que é
desenvolvimento sustentável – torna-se necessário encontrar outras formas de
saber que possam ultrapassar os obstáculos epistemológicos[1] da própria ciência moderna
e exercitar uma rica imaginação sociológica rumo à criação de opções.
Nessa
esteira, este artigo adota como referencial teórico, que será profundamente
abordado, a obra La apuesta por la vida,
de Enrique Leff (2014), o qual ainda não se encontra disponível na língua
portuguesa. Assim, no primeiro tópico do artigo, realizar-se-á uma aguda
crítica à concepção de desenvolvimento sustentável e em torno da expressão meio
ambiente que o envolve, para, em seguida, denotar as bases epistemológicas e
sociológicas desenvolvidas por Leff (2014), por meio de duas categorias
principais: territórios sustentáveis (como alternativa a meio ambiente) e
imaginários sustentáveis.
Com o intuito de aproximar a reflexão da
perspectiva jurídica e na indispensabilidade de se pensar em uma expressão
dessa índole para os fundamentos epistemológicos e sociológicos traçados, em
reforço à preocupação de se aproximar de outras formas de saber – e, portanto,
de outros modos de ser – o segundo tópico trilhará caminhos delineados pela
teoria crítica (do Direito) na América Latina. Inicialmente serão desenvolvidas
algumas reflexões mais amplas em torno da especificidade do discurso da teoria
crítica latino-americana, apontando algumas de suas preocupações centrais, para
então adentrar a obra de Carlos Rivera Lugo, a fim de que, no âmbito da Teoria
Crítica do Direito, seja viável exibir sua proposta de Direito do Comum como
uma possível expressão jurídica para os imaginários sociais.
1 Os limites do conceito de meio ambiente: territórios sustentáveis e imaginários sociais na consTITUIÇÃO de sustentabilidades
Repensar
o desenvolvimento sustentável rumo à sustentabilidade pressupõe refletir em
torno da relação do ser humano com a natureza. Sem dúvida, essa relação não foi
sempre a mesma ao longo da história e continua não sendo absolutamente igual
nos diversos povos da Terra (DIEGUES, 2001) – não obstante a globalização tenha
impulsionado significativamente um processo de certa homogeneização cultural
(BECK, 1999). Nessa perspectiva, demonstrar as limitações do pensamento moderno
ocidental, de base científica, torna-se indispensável, a fim de que novas
formas de saber e de ser no mundo se abram como opções para a conformação de
sentidos de sustentabilidade.
Leff
(2014) destaca o caráter epistêmico-político do campo socioambiental, no qual
ocorrem as lutas sociais e com suporte no qual são elaboradas as teorias
ambientais. Em seu entendimento, as teorias da modernidade reflexiva e da
modernização ecológica buscam lidar com os riscos e os efeitos da racionalidade
moderna dentro dos marcos teóricos e instrumentais da globalização. Por dita
razão, o autor questiona a capacidade de ecologização
da racionalidade moderna, ou seja, se essa é capaz de produzir uma solução
científico-tecnológica para a crise ambiental – questionamento ao qual ele
responde negativamente.
Assim,
a tentativa de constituir opções para a crise ambiental – que é, acima de tudo,
uma crise civilizatória – precisa ultrapassar os limites da racionalidade
moderna, alcançando as bases epistêmico-políticas do campo ambiental, de modo a
reconhecer a relevância dessas lutas
socioambientais (SANTILLI, 2005). Neste artigo, esse processo inicia pela
discussão do conteúdo da expressão “meio ambiente”, atrelada ao slogan do desenvolvimento sustentável.
Wolfgang Sachs (2000), preocupado com as
profundas raízes do pensamento moderno ocidental científico - o qual, desde a segunda
metade do século XX, é muito bem representado pelo conceito de desenvolvimento,
ao realizar a introdução à obra “Dicionário do Desenvolvimento: guia para o
conhecimento como poder”, exprime sucintamente o objetivo do livro nas
seguintes palavras:
Nossos ensaios
sobre os conceitos principais do discurso desenvolvimentista tem a intenção de
expor algumas das estruturas subconscientes que delimitam o pensamento de nossa
época. Acreditamos que qualquer esforço imaginativo para formular uma era
pós-desenvolvimentista terá primeiramente que vencer esses obstáculos. (SACHS,
2000, p. 16).
Nota-se, portanto, a íntima relação
estabelecida entre tais estruturas subconscientes – organizadas no plano
epistemológico, as quais compõem o paradigma moderno cartesiano-mecanicista
(CAPRA, 2006) – e a criação de mecanismos políticos de formulação de uma nova
era, outra forma de vida na Terra. Em outras palavras, também Sachs (2000) está
atento à base epistêmico-política do problema do desenvolvimento.
A
obra em foco, então, é estruturada por meio de verbetes – na forma de um dicionário
– escritos por variados autores, de modo a refletir em torno de palavras e
expressões com significado e conteúdo, de forma gradual ou de modo abrupto,
modificados e adaptados para servirem ao discurso desenvolvimentista, o qual
está estruturado predominantemente na concepção de crescimento infinito encabeçado pelo mercado, o qual é promovido pelo Estado-Nação para a produção de bens de consumo (necessidades), criados com base na aplicação
do conhecimento científico no
processo industrial. Dentre tantos verbetes relevantes, este artigo se
debruçará na reflexão expressa pelo próprio organizador da obra, Wolfgang
Sachs, a respeito do meio ambiente, em sua aproximação com o conceito de
desenvolvimento, de modo a compor a versão mais atualizada desse discurso: o
desenvolvimento sustentável.
Inicialmente,
destaca-se que o fato de que o sentido de desenvolvimento – não obstante a
expressão ter sido utilizada anteriormente – aparece com destaque pela primeira
vez no discurso de posse de Harry S. Truman como presidente dos Estados Unidos,
em 20 de janeiro de 1949 (ESTEVA, 2000). No pós-Segunda Guerra Mundial, os
Estados Unidos – junto com a União Soviética – era o principal ganhador da
disputa, especialmente porque a batalha não foi travada em seu território, a
devastação não o atingiu e, em contraposição, foi ele o protagonista da
reconstituição econômica da Europa ocidental, por meio de verbas (Plano
Marshall) e da venda de produtos.
Ao
mesmo tempo, entretanto, em que lançou a ideia de desenvolvimento, que foi se
conformando com maior clareza posteriormente, Truman, em seu discurso, apontou
para os países do Terceiro Mundo a condição de subdesenvolvimento. Esteva
(2000), nesse sentido, ressalta o fato de que tal concepção foi inventada, a
fim de imbuir nos países não industrializados a premência de buscar uma
equalização de sua situação ante os países de industrialização desenvolvida.
Logo, rapidamente, a condição biológica do desenvolvimento como processo
natural do desabrochar da maturidade tornou-se uma metáfora distorcida para
explicar a situação de anormalidade – de doença – dos países que não seguiam
tal forma de vida (ESTEVA, 2000).
Desde
então, o significado de desenvolvimento dependeu dos interesses e necessidades
das nações mais ricas, detentoras do sentido – então numa perspectiva
direcional do processo, de modo a definir o rumo a ser trilhado para se
alcançar o topo da escala da evolução social – da própria palavra (SACHS,
2000); o conteúdo da expressão meio ambiente também passa por esse processo.
Dessa forma, na medida em que o desenvolvimento começou a produzir seus efeitos
deletérios e esses passaram a ser sentidos pelos países europeus e pelos
Estados Unidos, por meio da produção da chuva ácida e a identificação de níveis
altos de pesticidas em peixes e aves, por exemplo, passou-se a questionar a
concepção predominante de desenvolvimento como crescimento econômico infinito,
abrindo-se caminho para as convenções internacionais – a primeira delas, em
Estocolmo, em 1972.
Um
longo caminho, entretanto, foi trilhado para que o casamento entre
desenvolvimento e meio ambiente ocorresse, por meio do Relatório Brundtland, em
1987. Nesse processo, digladiaram-se por um tempo o ambientalismo e o
desenvolvimentismo, na medida em que aquele exigia a desaceleração econômica,
tendo em vista a proteção ambiental, enquanto esse recomendava o crescimento
econômico como meio de extinção da pobreza. Essa situação se inverteu no
momento em que foi possível estabelecer a pobreza como produtora de degradação
ambiental, conforme se depreende das palavras de Sachs (2000, p. 121):
Porém com o
desmatamento e a desertificação em expansão por todo o mundo, os pobres foram
rapidamente identificados como agentes de destruição e tornaram-se os alvos de
campanhas para promover a "consciência ambiental”. Uma vez que culpar a
vítima entrou no consenso profissional, a velha receita também podia ser usada
para enfrentar o novo desastre: já que o crescimento supostamente eliminaria a
pobreza, o meio ambiente somente poderia ser protegido através de uma nova era
de crescimento. [...] O caminho assim estava livre para o casamento entre
"meio ambiente" e "desenvolvimento": o novo membro podia
portanto ser bem-vindo no seio da tradicional família.
Nessa perspectiva, o Relatório Brundtland,
conhecido pela apresentação do conceito de desenvolvimento sustentável – que
surge da aproximação entre desenvolvimento e meio ambiente – estabeleceu como
remédio para a degradação ambiental, ainda que não fosse condição suficiente, mais crescimento. Desse modo, o
conceito de desenvolvimento que se encontrava em decadência, se renovou e
revigorou, tornando-se a nova razão (de ser) do Estado (raison d’Etat).
Nessa nova realidade, então, se fez
politicamente relevante discutir e refletir em torno dos contornos teóricos da
expressão meio ambiente, a fim de estabelecer um conceito operacional que
interessasse ao desenvolvimento sustentável. O movimento ecológico desempenhou
importante e ambivalente papel nesse processo, na medida em que, simultaneamente,
questionou a base científica da industrialização, mas se utilizou da mesma
ciência para se fortalecer como forma de produção de conhecimento e de poder
(SACHS, 2000).
Assim,
após o período inicial, em que prevaleceu a concepção organicista – segundo a
qual o todo é maior que a soma das partes, conduzindo à existência de uma
realidade supraindividual, a qual permitiu à ecologia a identificação como área
autônoma de estudo – após a Segunda Guerra Mundial, a concepção mecanicista de
ciência retomou sua hegemonia, possibilitando a emergência das categorias de sistema e de ecossistema. Dessa forma, Sachs (2000) destaca que a ambivalência
da ciência da ecologia resulta da contraposição do sentido dessas palavras:
ciência como forma de produção do conhecimento na lógica mecanicista e
reducionista – paradigma da simplificação, segundo Morin (2001) – e ecologia
como forma de compreensão do mundo que busca reconhecer as relações e
inter-relações das partes, em oposição ao cientificismo moderno.
Não
obstante a conotação não exclusivamente reducionista de que se revestiu a
ciência da ecologia, o conceito de meio ambiente que interessou ao
desenvolvimento sustentável não conseguiu se afastar do predominante caráter
utilitário e antropocêntrico atribuído pela economia aos recursos naturais.
Mais do que isso, no entanto, a preocupação com o meio ambiente se tornou
objeto da gestão racional pelo
Estado, representado por especialistas e técnicos nos temas ambientais, por
meio de normas e regulamentações (SACHS, 2000). A questão política se
sobressai, mas também o aspecto epistemológico é mais uma vez inegável, na
medida em que o conhecimento adequado para preservar os ciclos naturais é
aquele produzido sob o método científico.
Nesse
sentido, Vandana Shiva (2002) denuncia a invasão da silvicultura científica na
gestão das florestas na Índia, por meio da imposição de um paradigma
reducionista na sua forma de compreender a floresta e de um padrão de
uniformidade – pelo uso do eucalipto – de modo a prejudicar a biodiversidade, a
forma de vida das comunidades locais e sua produção de alimento. Nas palavras
da autora,
O reducionismo
do paradigma da silvicultura científica criado pelos interesses industriais e
comerciais violentam tanto a integridade das florestas quanto a integridade das
culturas florestais que precisam das florestas e de sua diversidade para
satisfazer suas necessidades de alimento, fibras e moradia. (SHIVA, 2002, p. 32).
Dessa forma, percebe-se que o desenvolvimento
sustentável propõe uma noção utilitária, economicista, centralizada,
epistemologicamente dominante e socialmente destruidora de meio ambiente. Tanto
Shiva (2002) quanto Sachs (2000) ressaltam o papel desempenhado pelo movimento
Chipko, na Índia, que buscava proteger as florestas locais, haja vista o modo
de vida das comunidades, como um exemplo dos efeitos deletérios que a imposição
desse conceito pode gerar nos povos da floresta, como aqueles nos quais Chico
Mendes, no Brasil, serviu de protagonista. Nessa linha, a cientificização da
natureza se completa com a gestão “racional”[2] do meio ambiente, em busca
do chamado desenvolvimento sustentável, que, no entanto, retira a
sustentabilidade constituída ao longo de séculos e, às vezes, milênios, pelos
próprios povos. Assim, Sachs (2000, 127) acentua que,
Embora os
peritos em recursos tenham chegado em nome da proteção da natureza, sua idéia
de natureza contradiz profundamente a idéia de natureza concebida pelos
aldeões. Natureza, quando ela se torna objeto de política e planejamento,
transforma-se em "meio ambiente". Usar dois conceitos alternadamente
pode confundir, porque impede a identificação do "meio" como uma
determinada construção da "natureza" específica para nossa época.
Contrariamente às conotações, que estamos atualmente sendo socializados a
aceitar, raramente houve um conceito que representasse a natureza de uma
maneira mais abstrata, passiva e vazia de qualidades do que "meio
ambiente".
Denota-se,
portanto, que a monocultura impregna não somente a forma de produção de
vegetais e a silvicultura, mas ela se realiza essencialmente por meio da
monocultura da mente (SHIVA, 2002), ou seja, mediante pensamento único, verdade
única – a científica – colonizadora de todas as outras formas de pensar,
produzir e viver. Em razão disso, a fim de constituir outra noção em torno da
natureza, cheia de conteúdo, sentidos, práticas, símbolos e imaginários, que
seja plural e diversificada – e não unívoca e homogênea, como meio ambiente –
propõe-se a compreensão dos territórios sustentáveis
(LEFF, 2014) como fundamento para a(s) sustentabilidade(s), com origem nos
imaginários sociais. É necessário, logo, descolonizar os modelos
epistêmico-político-econômicos em torno da ideia de desenvolvimento, o que,
segundo Leff (2014), já está acontecendo.
A
concepção de territórios sustentáveis de Leff (2014) é multifacetada e envolve
aspectos físicos, geográficos, biológicos, sociais, políticos, jurídicos,
culturais, simbólicos e epistemológicos; relaciona-se com a compreensão em
torno da natureza, pressupõe formas alternativas de conhecimento, depende dos
ciclos naturais e possui implicações políticas. Os territórios sustentáveis
exigem o encontro de variados saberes, em vez da supremacia do conhecimento
científico; ressaltam a relevância das lutas socioambientais como instrumento
político de libertação dos povos; destacam a inadequação das formas jurídicas
modernas, da propriedade privada, para a proteção dos direitos culturais dos
povos locais.
Com
a categoria de territórios sustentáveis, Leff (2014) se apropria da concepção
de Guatarri (1990) a respeito dos “territórios existenciais” como base para as
três ecologias – mental, social e ambiental – para destacar sua acepção
simbólica, a fim de qualificá-los como modos
de ser no mundo.
En la cuestión territorial se confrontan las
estrategias de poder por la reapropiación de la naturaleza generando una
reconceptualización del territorio. El territorio ya no es sólo la base
físico-geográfica para el ejercicio de la soberanía del Estado consagrado por
el derecho internacional. [...] El territorio es cultura-naturaleza,
lugar-soporte de la existencia humana. (LEFF, 2014, p. 467).
Percebe-se, evidentemente, que a noção de território
sustentável é muito mais rica, plural e complexa do que a ideia de meio
ambiente, mostrando-se mais frutífera para a concepção de um novo sentido em
torno da palavra sustentabilidade – em vez de desenvolvimento sustentável. A
compreensão e a conformação dos territórios sustentáveis, porém, dependem dos imaginários sociais, sendo relevante
estudar essa noção que é, para ele, a própria fonte com origem na qual é
possível pensar opções e, mais do que isso, pode-se constituir como a própria
prática concreta dessas opções.
Entendendo que a crise ambiental é, acima de tudo,
civilizatória, Leff (2014) assinala que é necessário exercitar a imaginação
sociológica, a fim de buscar soluções para tal crise, inventando e/ou
reinventando as formas de ser em sociedade, acompanhado pelo entendimento de
Santos (2010). A Sociologia moderna, entretanto, se constituiu com suporte na
das Ciências Exatas, positivistas, mecanicistas; as respostas formuladas pela Sociologia
moderna para compreender e guiar a sociedade hoje se mostram insuficientes,
decadentes – como o conceito de desenvolvimento (SACHS, 2000).
Nesse
sentido, impõe-se a revisão de suas bases e, acima de tudo, a elaboração de
outra sociologia; uma sociologia ambiental que ultrapasse às propostas
elaboradas nos cânones modernos. Essencialmente, é preciso repensar a forma como
a Sociologia percebe a sociedade em sua relação com a natureza. Em razão disso, entende Leff (2014, p. 19) que “[...]
la crisis ambiental abre una crítica sobre una falla fundamental de las
ciencias sociales: el haber pensado el orden social independientemente de las
condiciones de la naturaleza en las que se constituye, funciona y se
autodestruye la sociedad”.
Assim,
Leff (2014) propõe a formação de uma sociologia ambiental pós-moderna, no sentido
da desconstituição dos princípios metafísicos da Modernidade – não para cair no
relativismo ou na anarquia ontológica, mas a fim de reconhecer e demandar por
uma ontologia da diversidade e da
diferença. Logo, não se consistem em abandonar a racionalidade, de
afastar-se completamente do conhecimento científico; “[...] la constitución de la racionalidad ambiental, pensada como
articulación de racionalidades, plantea el encuentro, hibridación y convivencia
entre modernidad y tradición”. (LEFF, 2014, p. 72). Sem pretensões de estabelecer
conceitos herméticos e definitivos, pode-se afirmar que as palavras seguintes
denotam os elementos mais relevantes da proposta do autor em torno da nova
sociologia ambiental.
La sociología
ambiental se construye en ese desafío de enlazar la comprensión del mundo
moderno con la imaginación sociológica de otros modos sustentables de ser en el
mundo y con los mundos tradicionales de vida. Si el objeto privilegiado de la
sociología [moderna] […] ha sido el estudio de la sociedad moderna y el proceso
de modernización, hoy se encuentra con el campo de la etnología y la
antropología […]. Se abren así nuevos horizontes de indagatoria sociológica
hacia un encuentro de paradigmas para comprender el diálogo de saberes entre
mundos diferenciados de vida. (LEFF,
2014, p. 45).
Esse diálogo de saberes, então, pressupõe o contato
com os imaginários sociais dos povos que, em razão do pensamento abissal da Modernidade
(SANTOS, 2009), sofreram a morte física, moral e epistemológica de seus pares e
que ainda muito sofrem. Cuida-se, portanto, de revelar os imaginários,
recuperar os saberes e reaver as práticas[3] ecológicas das populações
tradicionais (LEFF, 2014, p. 310), aprendendo com eles outras formas de ser no
mundo.
Com Cornelius Castoriadis, a Sociologia
recuperou a relevância dos imaginários sociais, que haviam sido afastados do
estudo dessa Ciência pela ambição científica objetivista, muito bem expressada
pela concepção positivista de sociologia de August Comte. Segundo Leff (2014),
no entendimento de Castoriadis, os imaginários sociais não são representações
(ideológicas) do mundo; diferentemente, eles estão arraigados às identidades
que conformam o ser cultural em sua acepção coletiva, que se ressignificam e buscam
reforçar sua autonomia perante os processos de colonização por culturas hegemônicas,
como no caso da globalização. Conforme ressaltado anteriormente, porém, os
imaginários sociais não se limitam ao aspecto ideal, simbólico, mas coexistem
no real, na materialidade. Dessa forma, as palavras de Leff são mais uma vez
essenciais para a compreensão:
En los
imaginarios sociales arraiga lo real de la Tierra, generando formas del ser en
los que se despliegan modos de pensar y de sentir el mundo; prácticas, hábitus
y costumbres que no reflejan la clarividencia ni la verdad de lo real, sino que
crean mundos de vida, que no siempre se traducen en formaciones discursivas.
Sin embargo, cuando esos imaginarios se enuncian lingüísticamente, adquieren un
carácter colectivo y dialógico en donde se expresa la fuerza imaginativa y
prospectiva de un pueblo o comunidad en la invención de nuevos mundos de vida. (LEFF, 2014, p. 347).
Sendo assim, os imaginários sociais carregam
aspectos culturais e simbólicos, pressupõem o diálogo de saberes, são
simultaneamente ideal e também real, e são criados e reinventados nos
territórios sustentáveis – os quais são igualmente materiais e existenciais,
conforme ressaltado. Logo, partindo dos imaginários sociais como fontes e
produtos de elaboração de sustentabilidades, concretas e localizadas, mostra-se
inegável impulsionar estratégias epistêmico-políticas que configurem legitimidade
e visibilidade a eles, viabilizando a reinvenção da apropriação da natureza e a
busca por direitos coletivos que possam igualmente proteger e preservar tais
imaginários sociais (LEFF, 2014). Em poucas palavras, é preciso criar
instrumentos político-jurídicos que possibilitem a manutenção desses processos
com arrimo nos quais se tornem concebível a aposta pela vida.
2 Possibilidades de contribuição da teoria crítica latino-americana: direito do comum como uma expressão jurídica para os imaginários sociais
O desenvolvimento sustentável como
conceito que decorre do casamento entre desenvolvimento e meio ambiente (SACHS,
2000) já não é suficiente para expressar os rumos que precisam ser trilhados para
evitar o fim da vida. Nessa perspectiva, partindo-se de outras bases
epistemológicas e sociológicas, apresentaram-se as categorias de territórios
sustentáveis e de imaginários sociais como novos meios teóricos com amparo nos
quais é possível pensar a sustentabilidade.
Em meio a tantas formulações teóricas a
respeito da sustentabilidade, escolheu-se trabalhar essas inovadoras concepções
porque elas partem do reconhecimento da relevância dos saberes e dos modos de
vida dos povos ancestrais, que foram – e ainda são – colonizados e subjugados
pela racionalidade moderna, em consonância com a proposta de Santos (2009), no
sentido das epistemologias do Sul. No contexto desse Sul Global, tão diverso e
tão rico, escolhe-se[4]
neste trabalho a América Latina como local de produção de saber, em especial de
teoria crítica do Direito, para colaborar nessa empreitada de construção de
sustentabilidades. Essa escolha é reforçada pelo destaque conferido por Leff
(2014) à história política do ambientalismo latino-americano, especialmente
marcada por lutas pela reapropriação da natureza e dos territórios de vida dos
povos, os quais foram perdidos com o colonialismo – lutas essas que continuam
sendo travadas.
O que entender, porém, por teoria crítica? Nas
palavras de Wolkmer (2015a, p. 29), a teoria crítica pode ser compreendida
como:
[...] o
instrumento pedagógico operante (teórico-prático) que permite a sujeitos
inertes, subalternos e colonizados uma tomada histórica de consciência,
desencadeando processos de resistência que conduzem à formação de novas
sociabilidades possuidoras de uma concepção de mundo libertadora,
antidogmática, participativa, criativa e transformadora.
A expressão teoria crítica atualmente ampliou
o seu significado e seu escopo ao ponto de ser possível conceituá-la
genericamente, nos termos apresentados há pouco. Essa expressão teórica,
entretanto, iniciou com uma escola filosófica alemã que ficou conhecida como
Escola de Frankfurt, a qual teve como expoentes – desde seu início, em 1923, até
a atualidade – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas
e Axel Honneth (WOLKMER, 2015a). Wolkmer
(2015a) destaca o fato de que a compreensão em torno da Teoria Crítica da
Escola de Frankfurt como processo histórico-social se caracterizou por um agudo
questionamento da teoria tradicional, a qual recebeu diferentes caracterizações
por cada um desses expoentes, conforme o enfoque pessoal de estudo realizado.
De qualquer forma, utilizando-se mais uma vez
das palavras de Wolkmer (2015a, p. 31), considerando os objetivos deste
trabalho, é possível destacaro fato de que “[...] enquanto a ideia de
consciência e de razão na teoria tradicional está vinculada ao mundo da
natureza e ao presente em contemplação, a teoria crítica expressa a ideia de
razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em
constante transformação”. Percebe-se, portanto, que a Teoria Crítica
frankfurtiana se baseou na dialética materialista de Marx para revitalizar o
marxismo e recuperar o pensamento crítico revolucionário que busca articular
teoria e práxis.
Boaventura de Sousa Santos (2010 e 2009), todavia,
assim como Wolkmer (2015a e 2015b), da mesma forma que Leff (2014), destacam
que o pensamento abissal da Modernidade, assentada em uma racionalidade formal
e instrumental, tem limitações na sua capacidade de reinvenção, de criar
alternativas. É justamente em razão disso que Santos (2009) propõe falar em
epistemologias do Sul, que Wolkmer (2015a) estabelece a necessidade de uma
teoria crítica descolonial baseada no pluralismo jurídico e na
interculturalidade, e que Leff (2014) exige como fonte para criação da
sustentabilidade os imaginários sociais dos povos do Sul.
Nota-se, então, que os conceitos de território
sustentável e de imaginário social carregam em si mesmos os elementos
caracterizadores de uma teoria crítica desde baixo, de modo a ser possível
esperar que o diálogo seja profícuo. Na mesma linha de pensamento, a teoria jurídica crítica deve ser capaz de
questionar e de romper com o jurídico-normativo oficialmente consagrado, além
de possibilitar a concepção de práticas jurídicas opcionais e emancipadoras
(WOLKMER, 2015a).
No que diz respeito aos estudos culturais
latino-americanos, Santiago Castro-Gómez (2005) se propõe a abordar o contexto
discursivo mais amplo da teoria crítica latino-americana, chamando a atenção
para as particularidades das reflexões aqui produzidas e, principalmente,
ressaltando a necessidade de um olhar latino-americano a respeito da América
Latina. Para isso, Castro-Gómez (2005) inicia abordando o que chama de ponto
cego na obra de Karl Marx, desenvolvendo e criticando alguns aspectos da
interpretação desse autor a respeito da América Latina no contexto de sua
crítica ao capitalismo.
Segundo
Castro-Gómez (2005), Karl Marx não entendeu necessário estudar o capitalismo na
América Latina porque, influenciado pelo entendimento de Hegel, via na América
Latina uma realidade anterior, pré-capitalista, de caráter feudal. O
colonialismo, nesse sentido, foi interpretado como um passo necessário no
processo de formação de uma burguesia nacional, que então impulsionaria o
desenrolar do processo histórico nos termos por ele preconizados, de modo que
seu objeto de análise se limitava às relações entre classe burguesa e estrato
proletário. Nesse sentido,
Desde
la perspectiva de Marx el colonialismo no es un fenómeno digno de ser
considerado por sí mismo sino tan sólo una antesala para la emergencia en las
periferias de la burguesía, única clase capaz de impulsar la crisis del orden
feudal de producción. El colonialismo es un efecto colateral de la expansión
europea por el mundo y, en este sentido, forma parte de un tránsito necesario
hacia el advenimiento mundial del comunismo. […] Por eso la discriminación
étnica y racial fueron consideradas por Marx como fenómenos “pre-capitalistas”
propios de sociedades en las cuales todavía no había emergido la burguesía y en
las cuales reinaba el ordenamiento estamental y teológico, característico del
“antiguo régimen”.
(CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 17-18)[5].
Este ponto
cego na obra de Marx implica a desconsideração da relevância da questão étnica
como elemento transversal ao problema das classes sociais, de modo que não lhe
foi possível compreender a profundidade das raízes do colonialismo na Modernidade,
as quais produziram estruturas e relações sociais que se sedimentaram até a
realidade atual. Esse entendimento só passou a se modificar com o início dos
estudos pós-coloniais e subalternos, no final do século XX, por meio de
estudiosos provenientes de antigas colônias europeias na Ásia e Oriente Médio,
como Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak, dentre outros.
Os estudiosos da corrente
dos Subalternos e dos Estudos Pós-coloniais chamaram a atenção para a dimensão
epistemológica e simbólica do colonialismo, que não foi somente um sistema
econômico e político, mas implicou igualmente uma hierarquização entre as
distintas culturas, sendo a cultura branca europeia superior, mediante a
conformação do que Dussel (2003) chama de mito
da modernidade. Em seu entendimento, a construção histórica da Europa como
centro do mundo e de sua modernidade como ápice do processo de evolução social
humana é uma “invenção ideológica” (DUSSEL, 2003, p. 44), da qual resulta o
eurocentrismo. Assim, o que chama de mito da Modernidade é a contradição
estabelecida entre a racionalidade da Modernidade, como saída da humanidade de
um estado de imaturidade intelectual, de cunho provinciano, com o outro lado da
modernidade, que se realiza como um processo irracional de violência: o índio,
o oriental, o negro são vítimas desse lado irracional da Modernidade[6]. Em complemento, Castro-Gómez (2005, p. 20)
afirma:
Casi todos los autores mencionados han
argumentado que las humanidades y las ciencias sociales modernas crearon un
imaginario sobre el mundo social del “subalterno” (el oriental, el negro, el
indio, el campesino) que no solo sirvió para legitimar el poder imperial en un
nivel económico y político sino que también contribuyó a crear los paradigmas
epistemológicos de estas ciencias y a generar las identidades (personales y
colectivas) de colonizadores y colonizados[7].
Os estudos
pós-coloniais e subalternos, então, possuíram um papel muito relevante, no
sentido de desvelar a base cultural, epistemológica e simbólica da
colonialidade. Entretanto, Castro-Gómez (2005) apresenta algumas críticas que
teóricos marxistas realizaram aos estudos subalternos, a fim de ressaltar o
risco que perspectivas essencialmente voltadas para a questão simbólica possuem
de resultarem na inação, na passividade, por afastarem demasiadamente a
realidade concreta e material da análise social. Sem adentrar em tais críticas
– que não são o objeto desse trabalho – cabe ressaltar que uma das propostas
articuladas pelos críticos consiste na compreensão da Modernidade e da
colonialidade como dois mundos, duas realidades que se relacionam e se
complementam – e que essa proposta é desenvolvida por teóricos
latino-americanos (CASTRO-GÓMEZ, 2005), como Enrique Dussel, Walter Mignolo,
Aníbal Quijano e Ramón Grosfóguel, especialmente no contexto da filosofia da
libertação, do conceito de matriz de poder colonial, da colonialidade como
forma de poder e de saber[8] – desenvolvendo, assim,
uma crítica descolonial (uma crítica do eurocentrismo por parte dos saberes
silenciados e subalternizados) (GROSFÓGUEL, 2009).
É nesse âmbito rico de
produção teórica que se insere a teoria jurídica crítica latino-americana, na
medida em que reconhece a necessidade de descolonizar os conceitos, as
categorias e as práticas jurídicas instituídas e de cunho colonizador. Nesse
sentido, Wolkmer (2015b, p. 95) assinala que,
Antes de tudo, para se constituir uma cultura político-jurídica mais democrática, marcada pelo pluralismo, pela descolonização e pela liberação, faz-se necessário, refletir e forjar um pensamento crítico, construído a partir da práxis das sociedades emergentes, capaz não somente de viabilizar novos conceitos, categorias, representações e instituições sociais, como também repensar as fontes do direito, tomando em conta os critérios da pluralidade e interculturalidade. (Grifou-se)
Para constituir essa cultura político-jurídica mais democrática, Wolkmer (2015b) propõe a necessidade de conceber um paradigma descolonizador do Direito, que possa estruturar um pensamento crítico apto a transformar a sociedade e permitir à sociedade latino-americana o reconhecimento de sua diversidade cultural e identitária. Segundo Wolkmer (2015b), é preciso partir do resgate do sujeito latino-americano na história e, especialmente, do sujeito coletivo que representa os diversos povos e grupos subalternizados, representados pelas populações indígenas, afrodescendentes, de camponeses e demais movimentos sociais (ou socioambientais) – o que demanda um paradigma baseado na alteridade.
É, enfim,
nesse contexto teórico e geopolítico que se traz a concepção de Carlos Rivera
Lugo (2013 e 2014), porto-riquenho que propõe o Direito do Comum, aqui
apresentado como uma possível expressão jurídica para os imaginários sociais de
Leff (2014). Carlos Rivera Lugo propõe-se questionar e refletir em torno do que
chama de “forma-jurídica”[9], como a juridicidade
característica da Modernidade e, especialmente, do capitalismo. Para isso,
garante, de início, que se exprime como um marxista que não teve receio de
mergulhar na crítica pós-moderna a fim de repensar sua teoria e sua prática – o
que se percebe por meio da influência de Michel Foucault e sua noção de saber
como poder nas microrrelações sociais, que aparece em sua obra.
Lugo (2014) reconhece, portanto, a ruptura de época que é entendida por alguns como Pós-Modernidade, para ressaltar especialmente o impulso que esse novo contexto produz no processo de superação dos limites do Direito como sistema fechado e autônomo de normas, nos termos da racionalidade formal, característica da Modernidade. Certamente, os caracteres principais dessa ruptura de época demandam uma reinvenção do Direito e do marxismo – como a teoria crítica tem procurado realizar – sem recair nas ilusões que o prefixo “pós” possa induzir, conforme salienta a teoria descolonial latino-americana.
Dentre as características apontadas por Lugo
(2014), por intermédio de outros autores, pode-se destacar: a incredulidade
frente aos metarrelatos da Modernidade; o saber como principal força de
produção e fonte de poder; a insurgência de saberes das populações e a produção
de novas subjetividades; o fato de que os processos de decisão da sociedade
ultrapassam as possibilidades do Estado-Nação moderno, e o fato de que a
constituição do novo vínculo social e a direção da sociedade dependem da
capacidade dos produtores de saber de imprimirem um novo sentido à situação de
transformações constantes. Ante tais características, além da Pós-Modernidade
que induza a esvaziamentos de sentido e a simples superação da modernidade,
acompanhando-se Dussel (2003), tem-se um projeto transmoderno, para uma
transmodernidade, por meio da incorporação da alteridade negada.
La modernidad nace realmente en el 1492: esa es nuestra tesis. Su real
superación […] es subsunsión de su carácter emancipador racional europeo
transcendido como proyecto mundial de liberación de su Alteridad negada: la
“Trans-Modernidad” (como nuevo proyecto de liberación político, económico,
ecológico, erótico, pedagógico, religioso, etcétera). (DUSSEL, 2003, p. 50 – 51).
Nesta senda, voltando a Lugo (2013), para
desenvolver sua proposta do Direito do Comum, o autor expressa a forma de
regulação social da atualidade, marcada por uma dualidade: o Direito e o não Direito.
Entende ele que o primeiro é a forma hegemônica na civilização capitalista
atual, sendo imposta de cima; o segundo, por sua vez, é insurgente e nasce de
baixo.
O Direito, segundo Lugo (2013), é caracterizado pela forma-jurídica, a qual é entendida pelo autor, como “[...] una instancia sancionadora de las irradiaciones de esa outra forma, de carácter primordial: la forma-valor y su materialización en la mercancia” (LUGO, 2013, p. 701). Assim, pensado para legitimar as forças e os interesses do capital, a forma-jurídica é caracterizada por forte estatismo e intenso legalismo; ainda, por adotar como critério de legitimação um poder externo, implica o fetichismo da lei, que cria a ilusão de essa ser capaz de abarcar toda a realidade social. Por fim, essa estrutura de regulação adota como direito fundamental a propriedade privada e, em razão do critério de legitimação ser exterior, expropria da comunidade o potencial normativo que dela emana.
O não Direito, por sua vez, é expresso sob a
forma normativa de regulação social. Assim, “la norma es, si se quiere,
la forma básica, es decir, elemental, primaria y autogestada, y cuya fuente
material es societal. Es el resultado de un acto de voluntad de un individuo o
una comunidad” (LUGO, 2013, p. 701). O não Direito se
caracteriza por um pluralismo humano e societário, uma abertura ética, e possui
como critério de legitimação a autodeterminação, a cooperação e a
solidariedade. Ainda no entendimento de Lugo (2013), a aparente inexistência de
tal forma insurgente de regulação social decorre de uma estratégia discursiva
conduzida pela forma hegemônica, que intencionalmente a produz como
inexistente.
Dessa maneira, por meio de uma sociologia das
ausências (SANTOS, 2002), que permite desocultar realidades produzidas como
inexistentes pela Ciência e pelo Direito modernos, torna-se possível vislumbrar
o Direito do Comum como a forma de regulação social que emerge do ser social,
que reconhece a necessidade de descolonização total da vida, como destruição de
todas as relações de dominação, desde as capitalistas às colonialistas, das
patriarcais às racistas (LUGO, 2013) – e, acrescenta-se, também, do ser humano
sobre a natureza. O Direito do Comum surge da retomada da soberania popular
como soberania comunitária, a qual se torna a expressão mais original do poder
constituinte, originária do interesse comum (LUGO, 2014).
O Direito do Comum, nessa perspectiva,
pressupõe um novo paradigma de regulação social, que se afasta do Estado, da
lei e do capital, a fim de se reaproximar da comunidade. Para isso, sem dúvida,
faz-se imperativo um meio de organização social diferente, assim como de
exercício de poder e de produção do jurídico que se oponham à hegemonia do
capital e da propriedade privada. Em suma, esse processo impõe reconhecer a
emergência de subjetividades coletivas, transgressoras da ordem capitalista (e
da colonialidade do poder e do saber), essencialmente representadas na América
Latina pelos movimentos socioambientais, que buscam a gestão do comum e a
distribuição de seu produto pela própria comunidade (reapropriação social da
natureza, nos termos de Enrique Leff).
Nas ricas palavras de Lugo (2014),
Lo común son bienes y construcciones comunes. Son nuestras luchas, pero
también nuestras creaciones sociales; es nuestro lenguaje y los espacios de
acción comunicativa que compartimos; son nuestros saberes y nuestras riquezas
naturales; es la democracia absoluta y la autodeterminación local como gobierno
de todos, por todos y para todos. Lo común es nuestro modo históricamente
determinado de estar juntos y cooperar los unos con los otros en torno a fines
compartidos. Lo común se realiza en la cabal socialización de su gestión y
producto. Lo común se encarna en todos y todas; lo común es de todos y todas. (P. 118 – 119).
É possível compreender, portanto, por meio dessas
palavras, por que se propõe nesse trabalho a aproximação da teoria jurídica
crítica latino-americana para pensar uma expressão normativa para os
imaginários sociais da sustentabilidade. A noção de Direito do Comum como
expressão do não Direito é extremamente rica, plural, epistemologicamente
aberta e politicamente libertadora. O Direito do Comum também reconhece a
necessidade de criação de outras formas de organização social, ressaltando a
gestão do comum pela própria comunidade, da mesma forma que os imaginários
sociais se relacionam com os territórios sustentáveis.
Por fim, assim como Leff (2014)
se aproxima da crítica pós-moderna para com ela aprender, mas não se limita a
ela como fonte para a produção de um futuro sustentável, propondo o diálogo de
saberes e a elaboração de uma racionalidade ambiental, também Lugo (2013 e
2014) assim entende ao reconhecer a ruptura de época salientada pela Pós-Modernidade
– sem abdicar da análise contextual e dialética do problema da legitimidade da
regulação social. Enfim, muitas outras relações entre a teoria jurídica crítica
latino-americana, em especial a noção de Direito do Comum, poderiam ser
realizadas para com a proposta dos imaginários sociais da sustentabilidade –
mas, nos limites deste trabalho, entende-se que o principal foi
satisfatoriamente apontado.
CONCLUSÕES
No contexto dos problemas socioambientais,
pensar em soluções modernas para os dilemas e as dificuldades criados pela Modernidade
é como propor apenas doses mais fortes de um remédio que já mostra não
ter potencial para curar a doença – agudizando-a ainda mais. Nesse sentido,
este trabalho se propôs repensar o próprio problema ambiental transpondo os
limites da racionalidade moderna, formal e instrumental, de modo a realizar uma
severa crítica ao conceito de desenvolvimento sustentável para propor novos
sentidos do que se chamou de sustentabilidade. Principalmente com a agudização
do problema ambiental ao longo do tempo, que fez com que se chegasse a uma
convergência de natureza preocupante em face sas conclusões de cientistas de
variados ramos
do conhecimento, reuniram-se algumas delas como o aquecimento global, a
nova era do Antropoceno e a chamada 7ª grande extinção. De forma deliberada,
apenas foram enunciados estes fenômenos sem se entrar numa análise mais
detalhada, mostrando o longo caminho que conduziu a este problema convergente e
suas possíveis opções, porém sem um receituário preciso.
Com origem na proposta sustentabilidade,
criticou-se o conceito de meio ambiente, vazio de sentido e de simbologia,
propondo-se a adoção da ideia de territórios sustentáveis, por meio dos quais
se passou a refletir sobre o significado teórico e prático dos imaginários
sociais. Verificou-se, nesse processo, que a concepção dos imaginários sociais
tende a constituir uma noção frutífera, na medida em que admite a relevância do
conhecimento científico, porém se abre para um diálogo com vários saberes,
concretos, reais, produzidos como consequência do modo de vida das comunidades
tradicionais da América Latina.
Em decorrência, atentou-se para a
indispensabilidade da regulação social se reinventar e se mostrar aberta ao
diálogo de saberes a novas formas de normatização. Nesse sentido,
recuperando-se a necessidade de um pensamento latino-americano a respeito da
América Latina, aproximou-se a teoria crítica do direito produzida na América
Latina, em especial a noção de Direito do Comum, como um novo recurso de
reflexão teórico-prática para a formulação de sustentabilidades. Foi possível
verificar, então, as possibilidades libertadoras que subjazem ao Direito do
Comum como produção de não Direito, assentado em novas formas de organização
social, de poder e de saber – da mesma maneira que os imaginários sociais.
Assim, concluiu-se que a relação entre
territórios sustentáveis e imaginários sociais para com a noção de Direito de
Comum é bastante frutífera e demanda maiores estudos, a fim de identificar
aproximações e eventuais incongruências entre tais elaborações críticas.
Algumas das aproximações foram apontadas, já neste trabalho, como fatores
potenciais de reforço e fortalecimento recíproco – o que não impede uma
eventual identificação de profundos obstáculos neste diálogo. Por hora, aponta-se,
superficialmente, apenas a percepção em torno de certo apego por parte de Leff
(2014) a autores ocidentais, em detrimento de pesquisadores latino-americanos,
conforme claramente ressaltam as críticas descoloniais às propostas
pós-coloniais.
Nos limites deste trabalho, no entanto, se
concluiu pela possibilidade de identificar a noção de Direito do Comum como uma
expressão normativa dos imaginários sociais, haja vista a elaboração plural e
concreta de sustentabilidades. Aponta-se, ainda, a necessidade de se pensar uma juridicidade
que vá além e aquém do Estado-Nação, que, paradoxalmente, mostra seu esgotamento,
mas não um substituto à altura.
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95 – 101.
* Doutoranda
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].
** Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].
Data de recebimento do artigo: 27/01/2016 – Data de avaliação:
29/01/2016 e 29/01/2016.
[1]A expressão e o conceito são de Gaston Bachelard,
conforme Michel Mialle (2005).
[2] O uso das aspas na palavra racional se justifica pelo
intuito deste trabalho de questionar a racionalidade moderna, formal, técnica,
econômica – que não é, no entanto, a única racionalidade possível. Nesse
sentido, Leff (2014; 2002; e, principalmente, 2006) propõe a constituição de
uma racionalidade ambiental.
[3]A elaboração teórica de Leff (2014) passa pela
compreensão de Cornelius Castoriadis sobre imaginários sociais, de Pierre Bourdieu
sobre habitus e de Philipe Descola
acerca de esquemas de práticas, sendo essas duas últimas categorias formas de
explicação em torno dos
meios por intermédio dos quais os imaginários sociais se expressam, verbalizam-se. Nos limites deste artigo, focar-se-á na
categoria do imaginário social. Para saber mais sobre as outras categorias,
ver: LEFF, 2014, p. 311 – 314 e p. 347.
[4] “Os
desafios estão postos na busca de novas fontes de legitimidade por meio do
reconhecimento de epistemes alternativas que foram sempre ocultadas,
minimizadas ou mesmo negadas, no âmbito de diversidades culturais em ricas
tradições da América Latina, África e Oriente. Este reconhecimento múltiplo das
experiências ocidentais e orientais não inviabiliza ou obstaculiza uma escolha
metodologicamente mais específica de um Sul global latino-americano”. (WOLKMER,
2015, p. 41).
[5] Na perspectiva da Marx, o colonialismo não é um fenômeno
digno de ser considerado em si mesmo, mas é apenas uma antessala para a
emergência da burguesia em suas periferias, único capaz de impulsionar a crise
do modo feudal de produção. O colonialismo é um efeito colateral da expansão
europeia pelo mundo e, nesse sentido, faz parte de um processo necessário para
o surgimento mundial do comunismo. [...] Por isso a discriminação étnica e
racial foram consideradas por Marx como fenômenos “pré-capitalistas” próprios
de sociedades nas quais, entretanto, não havia emergido a burguesia e nas quais
reinava o ordenamento estamental e teológico, característico do “antigo
regime”.
[6] Em sentido semelhante, Santos (2009), ao desenvolver o
pensamento abissal da Modernidade, aponta que, deste lado da linha se encontram
a legalidade, os direitos humanos, o contrato social, a racionalidade; do outro
lado da linha, a apropriação, a violência, o genocídio.
[7] Quase todos os autores citados têm argumentado que as
Humanidades e as Ciências Sociais modernas criaram um imaginário sobre o mundo
social do “subalterno” (o oriental, o negro, o índio, o campesino) que não
somente serviu para legitimar o poder imperial em nível econômico e político,
mas também contribuiu para criar os paradigmas epistemológicos dessas ciências
e a produzir as identidades (individuais e coletivas) de colonizadores e colonizados.
Tradução livre.
[8] Para saber mais em torno da constituição da
colonialidade como forma de poder e de saber, ver: QUIJANO, 2009.
[9] A crítica à forma-jurídica como expressão da
juridicidade moderna capitalista é realizada desde Pashukanis, na obra La teoría general del derecho y del marxismo
(1924). Para saber mais, ver: LUGO, 2013.