CONTROLE JURISDICIONAL DAS OMISSÕES INCONVENCIONAIS.

George Marmelstein

Doutor em direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Direito Constitucional do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7). Juiz federal.

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RESUMO: Quando a eficácia de um tratado internacional de direitos humanos é frustrada por uma inação das autoridades nacionais, que deixam de adotar as medidas oportunas e satisfatórias para garantir o pleno cumprimento do compromisso internacional, tem-se uma omissão inconvencional. Neste artigo, analisa-se o controle jurisdicional das omissões inconvencionais, a fim de verificar em que medida os órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional poderão, com as ferramentas próprias do direito constitucional, enfrentar o problema da não-efetivação dos tratados internacionais por inércia dos agentes estatais. As soluções apresentadas buscam reforçar um diálogo multinível entre os vários órgãos de proteção, visando desenvolver, mediante um enriquecimento recíproco, um sistema cada vez mais expansivo de tutela da dignidade.

PALAVRAS-CHAVE: Controle De Convencionalidade; Omissão Inconvencional; Direitos Humanos; Força Normativa Do Tratado; Proteção Multinível

Judicial Review of Unconventionality by Omission

ABSTRACT: An unconventional omission occurs when the effectiveness of an international human rights treaty is frustrated by an inaction of the national authorities, which fail to adopt necessary measures to enforce the international commitment. In this paper, we analyze the judicial review of unconventional omissions in order to verify how the judges can contribute to enforce the human rights using the same tools of the constitutional law. The conclusions seek to strengthen a multi-level dialogue between the agencies in order to develop a system able to expand the protection of dignity.

KEYWORDS: Judicial Review; Control of Conventionality; Unconventional Omission; Human Rights; Enforcement of Treaty; Multi-Level Protection

Introdução

Quando a pretensão normativa da constituição é frustrada por uma inação estatal, tem-se uma omissão inconstitucional. Levando em conta este conceito, fica claro que o parâmetro normativo para verificar se há ou não uma inconstitucionalidade por omissão são as normas constitucionais que impõem deveres de ação. Em geral, a conduta exigida pela norma é a edição de uma lei sobre um determinado assunto (dever de legislar), mas também pode se referir a medidas a serem adotadas tanto no nível administrativo quanto judicial. Se a norma constitucional estabelece que algo deve ser feito, surge uma situação normativa potencialmente geradora de omissão inconstitucional, a ser reconhecida sempre que, por inércia, o dever contido na norma constitucional não é realizado. O debate situa-se, portanto, no plano da constitucionalidade, pois o que se busca corrigir é uma situação de desrespeito à Constituição pela não realização de algum tipo de dever emanado da norma constitucional.

Paralelamente a isso, podem ocorrer violações de direitos que se operam no plano da convencionalidade (ou seja, das convenções internacionais) e que decorrem da não implementação de medidas humanitárias previstas em tratados internacionais. Tal fenômeno pode ser chamado de omissão inconvencional, e a sua superação envolve o desenvolvimento de um mecanismo de controle de convencionalidade por omissão, a ser realizado tanto pelas autoridades nacionais (nível nacional) quanto pelas autoridades internacionais, sobretudo pelas cortes internacionais de direitos humanos (nível internacional)[1].

O presente estudo tem como objeto a análise do controle jurisdicional das omissões inconvencionais, a fim de verificar em que medida os órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional poderão, com as ferramentas próprias do direito constitucional, enfrentar o problema da não-efetivação dos tratados internacionais por inércia dos agentes estatais.

1  O sistema multinível de proteção dos direitos

No pós-Segunda Guerra, começaram a ser construídos alguns consensos axiológicos em torno da proteção da dignidade e da limitação do poder que levaram ao desenvolvimento de um sistema multinível de proteção dos direitos (PERNICE, 2009; PERNICE & KANITZ, 2004). Por esse modelo, um determinado caso de violação de direitos pode ser julgado por vários órgãos diferentes, em diversos níveis (nacional, supranacional, internacional, estrangeiro etc.), sem que exista uma hierarquia bem definida entre esses órgãos. Canotilho designou esse fenômeno de interconstitucionalidade, para destacar as relações de convergência, concorrência, justaposição e conflitos de várias constituições dentro de um mesmo espaço político, tendo em mira, especialmente, a realidade europeia (2006). Marcelo Neves, por sua vez, desenvolveu o conceito de transconstitucionalismo, a fim de defender um sistema de proteção dos direitos em que os vários centros de poder observam-se uns aos outros e dialogam entre si, ampliando os seus horizontes epistêmicos (metáfora do ponto cego: o outro pode ver), por meio de entrelaçamentos constitucionais (ou “pontes de transição”) entre as diversas ordens jurídicas (estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e locais). Assim, ao invés de disputarem espaços de poder, os órgãos buscam formas transversais de articulação, atuando de forma dialogal para solucionar os problemas comuns (2009).

A proteção multinível dos direitos suscita uma série de questões interessantes, que ainda clamam por respostas da comunidade jurídica. Assim, por exemplo, a incorporação dos tratados internacionais nos sistemas nacionais abre um debate sobre o seu status jurídico e sobre eventuais antinomias entre o tratado e as normas constitucionais e infraconstitucionais do sistema (choque entre legislações). Do mesmo modo, a implementação das decisões proferidas pelos órgãos internacionais de proteção gera a necessidade de se analisar o grau de vinculação das autoridades nacionais aos precedentes internacionais, o que pode ser especialmente problemático quando há divergências interpretativas sobre o significado dos direitos ou quando há divergências entre os órgãos internacionais e nacionais a respeito de qual solução deve prevalecer em uma dada situação envolvendo colisão de direitos (choque entre jurisdições)[2].

O campo para o debate é vastíssimo e, obviamente, enfrentar todos esses problemas escapa aos estreitos limites do presente trabalho. Para a compreensão do tema aqui tratado (omissões inconvencionais), basta ter em mente que deve haver uma forte interação entre os níveis nacionais e internacionais de proteção dos direitos. Dentro dessa perspectiva, não se pode perder de vista que a relação entre referidos níveis não é de hierarquia ou subordinação, mas de coordenação e complementaridade. Por isso, os diversos órgãos que compõem a estrutura multinível de proteção dos direitos devem ter uns perante os outros uma atitude de respeito e de mútua compreensão, e não de hostilidade, ou de indiferença, muito menos de arrogância. Todos devem ter consciência de que compartilham (ou pelo menos deveriam compartilhar) o mesmo projeto comum: construir conjuntamente, mediante um enriquecimento recíproco, um sistema cada vez mais expansivo de tutela da dignidade.

Na prática, a cooperação multinível vai gerar deveres em várias direções: de um lado, as autoridades nacionais devem estar preparadas para assimilar a contribuição que vêm do sistema internacional de proteção dos direitos humanos; de outro lado, os órgãos internacionais deverão incorporar em seu repertório de soluções as experiências humanitárias vivenciadas nos níveis nacionais e locais[3]. Além disso, deve haver também uma troca de experiências entre os diversos órgãos jurisdicionais de cada país, devendo ser estimulado, em particular, um diálogo entre países que enfrentam problemas semelhantes e possuem backgrounds sociais, políticos, econômicos e culturais aproximados.

Góngora Mera menciona, a esse respeito, três tipos de convergências que poderiam ocorrer de forma dialogal entre os vários órgãos envolvidos na proteção de direitos:

(a) uma convergência descendente (top-down), em que os órgãos nacionais adotam os standards humanitários desenvolvidos pelos órgãos internacionais;

(b) uma convergência ascendente (bottom-up), em que os órgãos internacionais adotam standards humanitários desenvolvidos pelos órgãos nacionais;

(c)  uma convergência paralela entre os órgãos nacionais de diversos países, através do qual há uma troca de experiência de soluções humanitárias (2010, p. 403/​430).

É muito importante enfatizar o caráter multidirecional desse processo, a fim de evitar que o diálogo entre cortes se torne uma espécie de colonialismo jurídico, onde algumas cortes mais influentes (as metrópoles) influenciam a formação do pensamento jurídico dos países periféricos (as colônias), mas não são influenciadas por estes. Os inconvenientes de um modelo assim, que tem sido a tônica predominante nas últimas décadas, são notórias, pois tal tipo de “diálogo”:

(a) gera uma dependência cultural dos países periféricos em relação aos países “mais desenvolvidos”;

(b) não proporciona um efetivo diálogo entre cortes, já que a estrutura da “conversação” é a de um monólogo de mão única;

(c)  impede o amadurecimento intelectual de países menos desenvolvidos, desestimulando a sua capacidade de pensar seus próprios problemas com autonomia e autenticidade;

(d) provoca a importação de saberes de uma forma descontextualizada da realidade local;

(e)  cria uma ilusão de que o saber vindo de fora é sempre “mais avançado” e intrinsecamente melhor do que aquele que vem de dentro;

(f)  menospreza o saber vindo de zonas periféricas, que, muitas vezes, pode ser mais adequado para a realidade local do que aquele vindo de países mais desenvolvidos.

Por isso, o modelo dialogal que se defende é uma interação em que os participantes “olhem nos olhos uns dos outros” e virem seus rostos mais para o lado do que para cima. Ou seja, é um modelo que possa gerar um enriquecimento mútuo, onde países com realidades socioeconômicas semelhantes troquem experiências e aprendam entre si. Isso não significa, obviamente, virar as costas para a produção intelectual que vem “de cima”, mesmo porque isso seria até contraditório com os pressupostos da proteção humanitária (constitucional e internacional), cujas bases teóricas tiveram origem em países do hemisfério norte. O que se pretende é tão somente reforçar a importância de uma autonomia intelectual em que o saber alheio não é imposto ou recebido acriticamente, de forma subserviente, mas assimilado de um modo reflexivo e ponderado. A função de qualquer conhecimento que vem de fora é permitir a abertura intelectual para que se possa aprimorar o processo de construção de soluções autênticas, nunca devendo servir de bengala ou muleta para substituir a falta de capacidade de pensamento.

Mas essa interação entre os órgãos de proteção de direitos pode ir muito além da mera troca de experiências. Na verdade, em certo sentido, pode-se dizer que os órgãos nacionais responsáveis pela aplicação do direito são, ao mesmo tempo, partes integrantes da comunidade internacional e, como tais, assumem também a missão de dar efetividade ao direito humanitário, como agentes oficiais do sistema internacional, podendo até mesmo, em determinados contextos, participar formalmente de atos processuais da jurisdição internacional, seja na fase de diagnóstico da violação de direitos, seja na fase de implementação da solução. Nessa missão, devem se sentir responsáveis pela construção de uma grande rede humanitária em nível global e, para isso, devem ampliar seus horizontes epistêmicos e reduzir o provincianismo constitucional, incorporando em seu arsenal de conhecimento juridicamente relevante não apenas as decisões internacionais favoráveis aos direitos humanos, mas também as decisões de outros órgãos nacionais (de outros países) capazes de expandir a proteção da dignidade[4]. Nesse contexto, tanto o direito internacional quanto o direito estrangeiro poderiam, em algum sentido e observados alguns parâmetros de compatibilização e de reconhecimento, serem tratados como fontes do direito interno, visando ampliar a rede de proteção humanitária[5].

É óbvio que essa ampla convergência (de intenções, de valores e de propósitos) entre os diversos níveis de proteção não impede a ocorrência de choques pontuais entre legislações e jurisdições. Apesar disso, na imensa maioria dos casos, os diversos níveis de proteção dos direitos operam em fina sintonia. Provavelmente, a percepção de que há mais desacordos do que acordos seja fruto da heurística da disponibilidade de que tratam os psicólogos sociais, em que os incidentes conflituosos nos marcam com muito mais intensidade do que os acontecimentos de conformidade[6]. Um confronto simples entre a constituição brasileira e as principais declarações de direitos humanos demonstra, sem muita dificuldade, que o padrão de conformidade segue, em linhas gerais, a lógica estatística da curva de Gauss (curva em forma de sino), havendo uma grande área de confluência e apenas um pequeno percentual de situações de “desvio padrão”, em que ou a constituição contempla direitos não contemplados nos tratados, ou deixa de contemplar alguns direitos previstos em tratados, ou contém regras menos favoráveis aos direitos do que os tratados, que, a rigor, seria a única situação efetivo de choque normativo. Nas situações em que existem

(a) direitos previstos na constituição e nos tratados em extensão equivalente;

(b) direitos previstos nos tratados, mas não na constituição;

(c)  direitos previstos na constituição, mas não nos tratados;

(d) direitos previstos na constituição em maior extensão do que nos tratados, não há verdadeiramente conflito normativo e são essas as situações mais comuns de presenciar.

Em face disso, para evitar uma sobreposição de funções ou a ocorrência de conflitos desnecessários e contraproducentes, o sistema multinível adota como premissa a ideia de que os mecanismos internacionais têm um caráter subsidiário, assumindo um papel de mero reforço e complemento ao sistema de proteção nacional. Disso decorre, por exemplo, a necessidade do esgotamento da vias nacionais antes de se buscar a proteção internacional ou então a concessão de alguma margem de apreciação para que os órgãos nacionais solucionem os problemas domésticos de violação de direitos com uma certa autonomia. Nesses termos, o nível internacional não pode assumir uma função substitutiva ou de instância recursal, devendo agir apenas quando o sistema nacional falha e sempre com o escopo de ampliar (jamais restringir!) o círculo de proteção humanitária. Por isso, o direito internacional não deve ser acionado quando a proteção doméstica é mais efetiva e mais abrangente. Dito de modo mais claro: a proteção internacional somente faz sentido para ampliar o núcleo da dignidade, de modo que não é correto mobilizar um tratado internacional com o intuito de suprimir, limitar ou excluir direitos reconhecidos no âmbito nacional. Os direitos internacionais dos direitos humanos, como bem explicou Sérgio García Ramirez, são o “piso” da proteção humanitária, não o “teto” (2011, p. 139). Em quase todos os tratados de direitos humanos, essa fórmula de exclusão é adotada expressamente. Vale dizer: o próprio sistema internacional se auto-restringe para evitar uma piora no sistema de proteção já adotado na esfera doméstica[7].

É importante ter consciência do papel subsidiário do sistema internacional até para que não se adote a crença (ingênua) de que as fontes jurídicas internacionais são sempre mais evoluídas ou avançadas do que as fontes nacionais. Como sugere René Urueña, “não há realmente nada de intrinsecamente progressista (ou ‘avançado’) no âmbito supranacional ou internacional, em si mesmo considerados: a ordem internacional pode fazer tanto bem quanto mal; e pode contribuir para a justiça, como também pode se tornar uma ferramenta para legitimar o abuso dos fracos” (2014, p. 22/​23). Não se pode, portanto, incorrer no erro de idolatrar o sistema internacional, esquecendo-se dos problemas que também existem naquela esfera de poder. Mais prudente é reconhecer os estreitos limites de sua função e perceber que sua atuação só faz sentido para ampliar o círculo de proteção da dignidade, jamais para reduzir.

Se a subsidiariedade do direito internacional for bem compreendida, a ocorrência de choques entre níveis ficará restrita àquelas situações em que a proteção nacional está aquém da proteção internacional. Isso pode ocorrer em duas situações básicas: (1) o sistema normativo nacional possui normas internas que conflitam total ou parcialmente com as disposições contidas em tratados internacionais, reduzindo o âmbito de proteção dos direitos humanos; (2) o sistema normativo nacional não contém uma norma que reproduza o direito previsto em um tratado internacional e não contempla a possibilidade da aplicação direta do referido tratado para a solução de casos domésticos[8].

As duas situações provocam o problema da inconvencionalidade, ou seja, da incompatibilidade do sistema nacional com as convenções internacionais. Invocando a usual classificação já adotada na teoria das inconstitucionalidades, pode-se dizer que, no primeiro caso, tem-se a inconvencionalidade por ação, enquanto no segundo caso tem-se a inconvencionalidade por omissão. Nesse sentido, a omissão inconvencional ocorre toda vez que a eficácia de um tratado internacional é frustrada por omissão das autoridades nacionais, que deixam de adotar as medidas oportunas e satisfatórias para garantir o pleno cumprimento do compromisso internacional.

2  O controle das omissões inconvencionais

O controle das omissões inconvencionais pode ocorrer em ambos os níveis (nacional e internacional). Isso ocorre em razão do caráter híbrido dos tratados internacionais de direitos humanos, que podem funcionar tanto como norma interna, a vincular as autoridades nacionais após serem internalizados no ordenamento jurídico, quanto como norma internacional, servindo como parâmetro normativo para a verificação do grau de comprometimento do estado com os valores humanitários reconhecidos pela comunidade internacional. É fácil perceber que, dentro de um modelo multinível dialogal, os tratados internacionais de direitos humanos representam um instrumento privilegiado de conexão normativa entre o sistema nacional e internacional e, portanto, constituem uma peça-chave para a própria ideia de convencionalidade, já que é o parâmetro normativo que servirá de base para o controle de validade humanitária a ser exercido tanto por órgãos internacionais quanto por órgãos nacionais.

Embora o uso da expressão “controle de convencionalidade” seja relativamente recente, a ideia que ela representa é bem mais antiga, pois desde os primórdios do direito internacional se discute a necessidade de compatibilizar o direito interno de cada país signatário de um tratado com as cláusulas convencionadas no referido tratado. A base normativa geralmente invocada para justificar o controle de convencionalidade é o princípio da boa-fé e o pacta sunt servanda, contido no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que estabelece que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Assim, parte-se do pressuposto de que as obrigações convencionais são vinculantes, devendo os órgãos estatais garantir o seu cumprimento no plano doméstico, não podendo invocar um conflito com normas internas para se eximir de cumprir o que foi pactuado.

Dessa ideia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) desenvolveu a noção de controle de convencionalidade, aproveitando a experiência já consolidada que se construiu em torno do controle de constitucionalidade[9]. De fato, em dois julgamentos proferidos em 2006, a CIDH definiu os pressupostos básicos do controle de convencionalidade, assinalando que, quando as leis internas de um determinado país se chocam com as disposições da convenção interamericana, os juízes devem permanecer vinculados ao tratado internacional, abstendo-se, portanto, de aplicar as normas contrárias a ele. No primeiro caso (Caso Almonacid Arellano y otros), a Corte defendeu que, na análise da convencionalidade das leis, os juízes nacionais devem ter em conta não apenas os tratados internacionais, “sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana[10]. No segundo caso (Caso Trabajadores Cesados del Congreso –Aguado Alfaro y otros), a CIDH reforçou a existência de um dever dirigido aos órgãos judiciais de exercer o controle de convencionalidade, inclusive de ofício, assinalando que “cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque el efecto útil de la Convención no se vea mermado o anulado por la aplicación de leyes contrarias a sus disposiciones, objeto y fin”. Desse modo, “los órganos del Poder Judicial deben ejercer no sólo un control de constitucionalidad, sino también ‘de convencionalidad’ ex officio entre las normas internas y la Convención Americana, evidentemente en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes[11]. Já em 2011, no caso Gelman v. Uruguai, a CIDH reconheceu que o controle de convencionalidade é função e tarefa de qualquer autoridade pública e não apenas do poder judiciário[12]. Nesses termos, todos os agentes estatais que, no âmbito interno, possuem a prerrogativa de exercer um controle de constitucionalidade das leis também têm o dever de, na mesma função, exercer o controle de convencionalidade, deixando de reconhecer validade jurídica aos atos e normas que sejam incompatíveis com os tratados internacionais de direitos humanos.

Nesses termos, foram lançadas as bases para o desenvolvimento da ideia de um controle de convencionalidade, a ser realizado nos dois níveis de incidência dos tratados: (a) no nível internacional, em que os órgãos internacionais verificam a compatibilidade das leis e práticas internas com os tratados, recomendando a sua revogação ou alteração quando incompatíveis[13]; (b) no nível nacional, em que os órgãos nacionais devem, inclusive de ofício, analisar a conformidade das leis e práticas com os tratados humanitários e dar preferência a estes, em caso de não-conformidade[14].

Em qualquer caso, é óbvio que a prevalência do tratado somente deve ocorrer quando a legislação interna for menos favorável aos direitos humanos. Do mesmo modo, as decisões da CIDH, interpretando os termos da convenção interamericana, somente devem prevalecer para ampliar a proteção. Quando a CIDH se autodeclara como a “intérprete última da convenção”, isso deve ser lido apenas como uma busca de auto-afirmação (ou talvez um pouco de arrogância), já que não há nada que garanta que a jurisprudência da CIDH seja necessariamente a mais favorável aos direitos humanos. De qualquer modo, não há dúvida de que a interpretação que a CIDH realiza em torno das cláusulas convencionais deve ser levada em conta pelos órgãos nacionais, seja de um modo mais direto e vinculante (em relação ao país envolvido no caso que gerou aquela interpretação), seja como vetor hermenêutico e argumentativo (em relação aos demais países). A rejeição de um precedente internacional humanitário exige um triplo esforço por parte do órgão interno:

(a) em primeiro lugar, um esforço de compreensão, a fim de tentar extrair a melhor interpretação possível da orientação firmada no nível internacional;

(b) em segundo lugar, um esforço argumentativo, para demonstrar eventuais pontos problemáticos na aplicação da solução proposta pela jurisdição internacional;

(c)  em terceiro lugar, um esforço de justificação, para tentar convencer os demais membros da comunidade internacional que existem alternativas de interpretação do direito humanitário mais favoráveis à dignidade do que aquela proposta pela jurisdição internacional[15].

A aceitação de um controle de convencionalidade, através do qual se exige a observância dos tratados internacionais de direitos humanos como pressuposto da validade jurídica de normas e práticas internas, induz, obviamente, à possibilidade de controle das omissões inconvencionais. Afinal, já se tornou consenso que as violações aos direitos humanos podem ocorrer tanto por ação quanto por omissão das autoridades nacionais. Isso porque as normas garantidoras dos direitos humanos, sejam de direitos civis e políticos, sejam de direitos econômicos, sociais e culturais, geram, para os estados, uma gama de deveres negativos (de abstenção/​não-fazer) e positivos (de ação/​fazer), que, se não forem cumpridos, podem acarretar a responsabilidade do Estado e, portanto, a sua condenação perante os organismos de proteção internacional. Assim, a responsabilidade internacional do Estado, por violação de um tratado, ocorre não apenas quando os agentes estatais praticam arbitrariedades ou abusos que violam os direitos das pessoas sob sua jurisdição (descumprindo, com isso, o dever de respeito - duty to respect), mas também quando o Estado não adota as medidas necessárias para proteger (duty to protect) e garantir/​promover (duty to fulfil) os direitos humanos. É justamente em razão da existência de obrigações positivas que emanam das normas de direitos humanos que surge o problema da omissão inconvencional: sempre que há um dever positivo (de ação), que não é cumprido pela falta de adoção de uma medida necessária e adequada, tem-se uma omissão inconvencional passível de gerar a responsabilidade internacional do estado.

No plano internacional, a correção das omissões inconvencionais pode incluir a condenação do estado ao pagamento de uma reparação financeira para a pessoa prejudicada pela inação estatal ou a imposição de medidas para que o problema seja remediado em um nível mais macro, inclusive com o reconhecimento de um dever de legislar. A esse respeito, não vigora mais, na prática da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a teoria da caixa-preta (black-box mode). De acordo com essa teoria, uma vez detectada a violação de direitos, o órgão internacional se limitava a emitir ordens ao Estado condenado, sem atribuir obrigações específicas aos órgãos nacionais. Desde o final dos anos 1990, a CIDH mudou sua forma de decidir, estabelecendo uma relação direta com os órgãos nacionais, incluindo o poder legislativo e os juízes nacionais. Assim, a CIDH tem emitido ordens para que o legislador nacional reforme, anule ou modifique uma determinada lei, tem solicitado que os juízes nacionais não apliquem uma lei, que concedam prevalência à convenção interamericana e até mesmo que modifiquem a jurisprudência nacional que não seja compatível com os tratados internacionais de direitos humanos (GÓNGORA MERA, 2010, p. 403/​430).

Em se tratando de violações sistemáticas de direitos humanos, a jurisdição internacional também tem desenvolvido modelos de soluções estruturais, a fim de forçar os órgãos nacionais responsáveis a reverem suas práticas e agirem em conformidade com os padrões humanitários estabelecidos pelos órgãos internacionais. Nesse sentido, por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem adotado, desde o caso Broniowski v. Polônia (2004), uma técnica denominada sentenças-piloto, que consiste em não apenas reconhecer um direito de compensação financeira ao indivíduo que teve seu direito violado, mas sobretudo monitorar o cumprimento da decisão em nível mais geral, acompanhando de perto a adoção das medidas necessárias à solução do problema em relação a todas as pessoas que eventualmente possam ser afetadas pelo descumprimento do tratado. A técnica se insere em uma tendência cada vez mais perceptível tanto na jurisdição internacional quanto nas jurisdições domésticas de tentar enfrentar as violações massivas e sistemáticas de direitos por meio de litígios ou demandas estruturais, em que a microjurisdição (de caráter individual, casuística e pontual) é complementada com uma preocupação macro (de caráter geral e abrangente), visando remover todos os obstáculos que causam o problema[16]. Trata-se de um tema complexo e interessante, mas não cabe aqui desenvolvê-lo em todos os seus pormenores[17]. O importante é perceber que, no plano da jurisdição internacional, existe uma compreensão consolidada de que a omissão inconvencional é uma violação de direitos humanos e é passível de controle e de correção pelos órgãos de proteção.

No âmbito nacional (e tendo como base a realidade brasileira), o problema ganha um pouco mais de complexidade, dado o caráter híbrido dos tratados internacionais e a falta de uma solução satisfatória sobre o status jurídico dos direitos humanos (previstos em convenções já internalizadas). A realidade é que ainda não assimilamos o funcionamento de um sistema multinível de proteção dos direitos. Ainda temos uma tendência de pensar no ordenamento jurídico como um sistema unitário de normas validadas por autoridades estatais, estruturadas de forma escalonada na forma de pirâmide. Em um modelo assim, a hierarquia jurídica de uma determinada norma depende de seu processo de institucionalização e não de sua importância axiológica, o que parece ser de todo incompatível com um modelo normativo que trata a dignidade como fundamento de validade do sistema. Afinal, se o núcleo fundamental do direito é a dignidade, o teste de validação das normas jurídicas necessariamente deveria incorporar um elemento material que há de preponderar sobre o aspecto formal na análise da validade jurídica. Dito do modo mais direto: para saber a posição hierárquica de uma determinada norma dentro do sistema deveria ser mais importante analisar a sua conformidade com os princípios fundamentais do direito do que a sua origem ou fonte de produção.

Seria possível dar um passo além (talvez pragmaticamente desnecessário, mas simbolicamente importante) para defender uma autonomia jurídica da dignidade perante a constituição. Vale dizer: talvez seja um equívoco afirmar que a dignidade é o fundamento do direito porque assim diz o texto constitucional. Na verdade, a dignidade deve ser o fundamento do direito independentemente do que diz o texto constitucional. A lógica deveria ser invertida: não é a dignidade que precisa da constituição para ganhar validade; pelo contrário, é a constituição que precisa da dignidade para merecer ser respeitada. Dito de modo mais claro: a constituição somente é digna de ser tratada como a fonte de validade do sistema normativo se for capaz de estabelecer um sistema de proteção da dignidade que efetivamente funcione. Desse modo, não é a constituição que dá validade aos direitos fundamentais, mas, ao contrário, são os direitos fundamentais que dão validade à constituição[18]!

O que foi dito acima não precisa ser lido como uma ruptura absoluta e inconciliável com as crenças que alicerçaram a construção do constitucionalismo contemporâneo. O entrosamento bem sucedido entre os direitos fundamentais e a constituição indicam que o melhor caminho é mesmo aproximar esses dois conceitos numa rede de apoio mútuo: os direitos fundamentais elevando força axiológica da constituição, e a constituição elevando a força institucional dos direitos fundamentais. Assim, as principais ferramentas desenvolvidas com base na ideia de supremacia constitucional, sobretudo os mecanismos de controle e limitação do poder, podem ser aproveitadas e adaptadas para a construção de um modelo jurídico que adota a dignidade como fundamento de validade do direito e se estrutura com base no pressuposto da supremacia dos direitos fundamentais. Em outras palavras: mesmo que se parta do princípio de que o fundamento da juridicidade não se esgota na ideia de constitucionalidade (ou seja, na positivação constitucional), não se pode negar que boa parte do conteúdo da juridicidade encontra-se institucionalizado, formalmente, na constituição, especialmente quando se tem uma constituição que prevê explicitamente a dignidade como fundamento do estado, que contempla um rol bastante generoso de direitos fundamentais e ainda estabelece cláusulas de abertura e expansão para permitir o reconhecimento de direitos para além do texto constitucional. Isso demonstra que a própria constituição assume a existência de uma base material de juridicidade que ultrapassa o conceito formal de constituição, integrando aquilo que tem sido denominado do bloco de constitucionalidade[19].

3  O bloco de constitucionalidade (ou de juridicidade) e as omissões inconvencionais

A noção de “bloco de constitucionalidade” surgiu na Europa e teve uma função inicial de expandir o conceito de constituição para além do texto constitucional escrito, mediante a inclusão de outras normas não contidas no texto constitucional, no intuito de permitir a sua interpretação sistemática com outras normas constitucionais. Posteriormente, o conceito evoluiu para permitir que as normas que compõe o “bloco de constitucionalidade” pudessem servir como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis.

A expansão do conceito de constituição pela teoria do “bloco de constitucionalidade” pode ocorrer em vários sentidos. Pode ser, por exemplo, uma expansão principiológica, em que alguns valores decorrentes dos princípios fundamentais do direito são elevados à categoria de normas constitucionais por expressa determinação constitucional[20] ou por construção jurisprudencial[21]. Pode ainda decorrer de uma elevação da normatividade jurídica de algumas leis que passam a ser tratadas como normas materialmente constitucionais, apesar de serem formalmente infraconstitucionais[22]. Mas a principal fórmula de expansão é precisamente a que ocorre por uma assimilação do direito internacional como parte do direito constitucional. É justamente nesse último sentido, que a noção de bloco de constitucionalidade permitirá a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no nível fundamental do sistema jurídico nacional, gerando, pelo menos, os seguintes efeitos:

(1) os tratados de direitos humanos prevalecem, em caso de conflito, sobre a legislação interna;

(2) os tratados de direitos humanos podem ser considerados como parâmetro do controle de constitucionalidade;

(3) os direitos humanos podem ser protegidos por meio das ações constitucionais destinadas à proteção dos direitos fundamentais (GÓNGORA MERA, 2014, p. 301/​328).

A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao “bloco de constitucionalidade” pode ocorrer pela via material ou pela via institucional.

Pela via material, os tratados internacionais de direitos humanos podem integrar o nível fundamental do sistema, independentemente do seu posicionamento no ordenamento escalonado de normas, pelo simples fato de serem densificações normativas da ideia de dignidade. Nesse sentido, há um certo consenso de que o jus cogens – que contempla um conjunto de normas com um forte componente humanitário reconhecidas como imperativas e universais pela comunidade internacional – está no patamar mais elevado do sistema normativo, mesmo que a constituição seja silente a respeito disso[23]. Afora isso, há um movimento político e acadêmico de valorização do direito internacional humanitário, que defende que o mesmo tratamento jurídico seja estendido também aos demais tratados internacionais de direitos humanos, mesmo que não integrem o jus cogens, como aqueles aprovados nos níveis regionais de proteção (sistema interamericano ou europeu, por exemplo).

Os argumentos que acima foram expostos a respeito da dignidade como fundamento do direito justificam, sem dúvida, a aceitação da referida tese. Ocorre que, infelizmente, a mentalidade jurídica ainda é fortemente marcada pela síndrome das fontes institucionais, a exigir que toda norma jurídica, para ser incorporada ao sistema, precisa passar por um processo de validação estatal que irá definir não só o momento inicial de sua vigência, mas também o seu status jurídico. Por isso, normalmente os tratados internacionais de direitos humanos têm sido incorporados ao sistema jurídico doméstico sobretudo pela via institucional. Nesse contexto, a integração dos tratados de direitos humanos ao nível constitucional poderia ocorrer de forma explícita, através do reconhecimento pela própria constituição nacional de que os tratados de direitos humanos possuiriam uma hierarquia constitucional[24] ou por meio de uma construção jurisprudencial, em que determinadas cláusulas de abertura previstas na constituição seriam interpretadas para permitir a incorporação dos tratados internacionais no “bloco de constitucionalidade”[25].

Mirando especificamente a realidade brasileira, a solução foi, em parte, estabelecida na constituição (com o reconhecimento da possibilidade da incorporação dos tratados de direitos humanos como norma constitucional – artigo 5º, § 3º, da CF/​88), mas ainda há alguns pontos não claramente resolvidos, especialmente envolvendo os tratados anteriores à Emenda Constitucional n. 45/​2004.

A verdade é que o processo de reconhecimento da importância jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos é bastante recente e ainda não está bem amadurecida. Até bem pouco tempo, o tema era pobremente estudado nas faculdades de direito e, na prática forense, a mobilização de tratados internacionais quase sempre era feita em um contexto meramente retórico, geralmente como um reforço de legitimidade para apoiar uma determinada solução jurídica já prevista nas leis ou na constituição. Em alguma medida, o direito humanitário foi ofuscado pela exaltação constitucional ocorrida desde a aprovação da Constituição de 1988. O sentimento parecia ser o de que a constituição, com sua proteção abrangente dos direitos fundamentais, já seria suficiente para proteger a dignidade, tornando-se desnecessário apelar para outros instrumentos normativos que, na maior parte das vezes, apenas reproduziam os direitos que já estavam contemplados no texto constitucional.

Durante os anos 1990, os entusiastas do direito internacional não conseguiram sensibilizar a comunidade jurídica a voltar os olhos para os tratados de direitos humanos, mesmo porque os poucos casos que apresentavam não pareciam justificar uma mudança na cultura jurídica[26]. Em face disso, o entendimento que prevaleceu, no início do debate, foi no sentido de que os tratados de direitos humanos tinham uma força equivalente ao das leis ordinárias[27].

Tal entendimento foi alvo de inúmeras críticas por enfraquecer o sistema de proteção dos direitos humanos que emergia com bastante força no âmbito interamericano, fazendo com que houvesse uma mobilização para a aprovação do § 3°, do art. 5°, da CF/​88, por meio da EC 45/​2004, possibilitando a incorporação de um tratado internacional como emenda constitucional[28].

O quadro, desde então, pode ser assim resumido:

(a) em relação aos tratados aprovados após a EC 45/​2004, seguindo o procedimento do § 3°, do art. 5°, não há dúvida de que eles possuem status constitucional e, portanto, compõem formal e materialmente o bloco de constitucionalidade, servindo como parâmetro do controle de constitucionalidade por ação e por omissão, sendo-lhes aplicável os instrumentos processuais de proteção da constituição[29];

(b) em relação aos tratados aprovados antes da EC 45/​2004, houve uma alteração do entendimento anterior (que os colocava no mesmo nível das leis ordinárias) para elevar a sua hierarquia jurídica, tendo sido superada a tese da força da lei meramente ordinária, mas ainda sem uma definição precisa quanto ao seu real status.

Esse segundo ponto é o mais relevante para o debate aqui enfrentado. Como se sabe, surgiram duas teses sobre a força jurídica dos tratados internacionais aprovados antes da EC 45/​2004: a da supralegalidade e a da constitucionalidade[30]. De acordo com a tese da supralegalidade, os tratados internacionais incorporados antes da EC 45/​2004 foram recepcionados como normas de caráter supralegal, estando abaixo da constituição, mas com força suficiente para paralisar a eficácia de qualquer norma infraconstitucional anterior ou posterior à sua incorporação. Por sua vez, a tese da constitucionalidade advoga que os tratados internacionais de direitos humanos possuem uma fundamentalidade material que os coloca no nível máximo do ordenamento jurídico, ou seja, no nível constitucional. Assim, os direitos humanos anteriores a EC 45/​2004, já incorporados ao sistema normativo, integrariam o bloco de constitucionalidade, mesmo que, na sua incorporação ao sistema nacional, não tenha sido observado o procedimento especial do § 3°, do art. 5°, que não era exigido até então.

Esse debate tem, pelo menos, duas consequências práticas. Em primeiro lugar, a depender da tese adotada, a solução de uma eventual antinomia entre uma norma do tratado e uma norma da constituição terá resultados diferentes. Pela tese da supralegalidade, a colisão entre uma norma da constituição e uma norma prevista em tratado é resolvida a favor da constituição, mesmo que, eventualmente, o tratado contenha uma proteção mais abrangente da dignidade. Pela tese da constitucionalidade, a colisão entre direitos fundamentais (previstos na constituição) e direitos humanos (previstos em tratados internacionais) é solucionada por meio de uma ponderação, em que o critério preponderante é o da primazia da dignidade. Assim, não haveria uma hierarquia absoluta da constituição sobre o tratado, nem do tratado sobre a constituição. Tudo dependerá da solução normativa proposta por cada instrumento jurídico, devendo “vencer” aquela proposta que estabelecer a proteção mais expansiva da dignidade[31].

É óbvio que a primazia da dignidade não deve ser tratada como uma varinha de condão para justificar qualquer escolha entre normas conflitantes, ao gosto das próprias preferências do intérprete. Em muitas situações, é extremamente difícil saber qual a norma que melhor protege a dignidade, mesmo porque o conceito de dignidade é multidimensional, e as várias dimensões da dignidade nem sempre são compatíveis entre si. Assim, será preciso sempre colocar a questão em uma rede mais ampla de valores e práticas, a fim de analisar, em conjunto com todos os demais fatores relevantes, qual a solução que, naquelas circunstâncias, protege melhor a dignidade como um todo. Por mais que haja, nesse processo, um risco de arbitrariedade (e subjetividade), típica de qualquer ponderação de valores, resta o consolo de que a solução adotada sempre terá um suporte normativo de alto nível (ou constitucional ou convencional) e poderá ser amadurecida/​densificada por experimentação. Além disso, é preciso ficar claro que mesmo os adeptos da tese da supralegalidade não escapam da necessidade de se buscar a solução mais favorável aos direitos humanos, pois, havendo um conflito entre uma lei e um tratado, a lei poderá prevalecer se o seu âmbito de proteção aos direitos humanos for mais amplo do que aquele estabelecido pelo tratado, tendo em vista o princípio interpretativo que veda a mobilização das normas internacionais para prejudicar a proteção humanitária. A mera ideia de supralegalidade não significa, portanto, a primazia tout court do tratado internacional sobre toda e qualquer lei interna. Do mesmo modo, quando há um conflito entre dois tratados de direitos humanos, a solução segue a lógica da norma mais favorável e não o princípio temporal. Assim, não necessariamente um tratado posterior revogará um tratado anterior, pois, se o tratado anterior for mais favorável à dignidade, é ele quem deverá prevalecer. Ou seja, deixar de aplicar uma norma convencional menos benéfica aos direitos humanos é uma imposição do próprio tratado, de modo que o princípio pro homine há de ser observado mesmo pelos adeptos da tese da supralegalidade.

Outra consequência prática da adoção da tese da constitucionalidade refere-se à possibilidade de mobilização dos instrumentos do controle de constitucionalidade para a proteção dos tratados internacionais de direitos humanos (controle de convencionalidade). Adotando-se a tese da constitucionalidade, todas as ferramentas existentes para o combate às inconstitucionalidades também poderão ser utilizadas para o combate às inconvencionalidades, inclusive as ferramentas do controle concentrado. Por sua vez, a tese da supralegalidade estreita as possibilidades de proteção judicial em caso de violação de tratados, pois, interpretado estritamente, pode retirar o debate do plano constitucional, dificultando a aplicação aos direitos humanos de todo o arsenal de práticas, ações e conhecimentos desenvolvidos pela jurisdição constitucional para a proteção dos direitos fundamentais.

Diante disso, há inúmeras razões práticas e estratégicas que justificam a inclusão de todos os tratados internacionais de direitos humanos, inclusive os que foram aprovados antes da Emenda Constitucional 45/​2004, no bloco de constitucionalidade. Isso proporcionaria, em primeiro lugar, uma maior coerência sistemática entre os tratados de direitos humanos, evitando que normas de natureza semelhante tenham força jurídica distinta (alguns, aprovados após a EC 45/​2004, seriam normas constitucionais; outros, pelo mero fato de terem sido aprovados antes da EC 45/​2004, seriam normas infraconstitucionais). Dentro dessa mesma lógica, evitaria que convenções que são consideradas a Alma Mater dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, como o Pacto de San Jose da Costa Rica ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, bem como outros instrumentos internacionais de igual natureza, que compõem o chamado corpus iuris do direito humanitário, sejam consideradas normas jurídicas hierarquicamente inferiores às normas internacionais delas decorrentes, de caráter mais específico, apenas por terem sido internalizadas em momentos distintos[32]. Além disso, garantiria uma melhor proteção da dignidade, evitando que a constituição funcione como um empecilho para a ampliação dos direitos, o que configuraria uma verdadeira distorção de seu autêntico sentido, já que o propósito de qualquer declaração de direitos, inclusive de nível constitucional, é funcionar como um piso de proteção mínima e não como um rol exclusivo, exaustivo, fechado e bloqueador da expansão da dignidade. Por fim, e igualmente importante, todos os instrumentos da jurisdição constitucional poderiam ser aplicados integralmente para a proteção dos direitos humanos, inclusive os de natureza objetiva. E não apenas os instrumentos processuais (ações constitucionais) poderiam ser úteis à proteção do direito humanitário. Também as técnicas interpretativas/​argumentativas desenvolvidas para a solução de problemas envolvendo os direitos fundamentais (máxima efetividade, proporcionalidade, concordância prática, dimensão subjetiva e objetiva, eficácia horizontal etc.) poderiam funcionar a favor dos direitos humanos[33]. Aliás, na maioria das vezes, o descumprimento ao tratado internacional terá reflexos diretos na própria estrutura constitucional da dignidade humana e dos direitos fundamentais, o que, ao fim e ao cabo, justifica ainda mais intensamente que as violações dos direitos humanos também sejam tratadas como um problema constitucional.

O argumento normativo geralmente mobilizado para justificar a tese da supralegalidade, com a prevalência da constituição sobre o tratado, é a possibilidade de controle de constitucionalidade dos tratados, prevista no artigo 102, inc. III, “b”[34]. Veja-se, contudo, que não se trata de um argumento decisivo, pois a tese da constitucionalidade dos tratados também permite a declaração de inconstitucionalidade de tratados de direitos humanos, desde que estes sejam menos favoráveis à dignidade. Além disso, na medida em que a constituição contempla formalmente a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inc. III), a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (artigo 4º, inc. II), uma cláusula de abertura reconhecendo a jusfundamentalibilidade dos direitos previstos em tratados internacionais de direitos humanos, de modo que o reconhecimento dos direitos fundamentais não pode ser interpretado como um obstáculo para o reconhecimento de outros direitos não previstos na constituição (artigo 5º, § 2º), a possibilidade de incorporação formal dos tratados humanitários no bloco de constitucionalidade estrito (artigo 5º, § 3º), a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional (artigo 5º, § 4º), a importância de se assegurar o cumprimento das obrigações humanitárias assumidas internacionalmente (artigo 109, § 5º), a intenção de se criar um tribunal internacional de direitos humanos (artigo 7º, do ADCT), há também diversos argumentos normativos para se justificar a recepção constitucional do direito humanitário[35].

De qualquer modo, mesmo que os tratados internacionais de direitos humanos anteriores à EC 45/​2004 sejam situados no plano da supralegalidade, como tem sido a mais recente tendência jurisprudencial com a conivência da doutrina majoritária, não há dúvida de que a não-observância de uma prescrição contida em um tratado pode gerar consequências jurídicas não só no plano internacional, mas também no plano nacional. Isso porque os tratados internacionais possuem uma pretensão normativa e contém prescrições que devem ser observadas pelos agentes estatais. A não-observância do que o tratado estabelece é um comportamento juridicamente censurável e, portanto, passível de proteção judicial. E isso não depende do seu status jurídico. Tanto um tratado com força supralegal (ou até mesmo legal!) quanto um tratado com força constitucional gerará, para os agentes estatais, o dever jurídico de agir em conformidade com os seus preceitos. O comportamento contrário ao tratado - por ação ou por omissão - é juridicamente inválido e, portanto, passível de correção judicial. O que poderá variar, conforme já dito, é o remédio processual para corrigir a violação ao tratado e a solução de uma eventual antinomia que possa existir entre o direito interno e os tratados.

Observe que o controle de convencionalidade é uma exigência da própria força normativa dos tratados de direitos humanos. Mesmo que referidos tratados não sejam incluídos no bloco de constitucionalidade, ainda assim há a necessidade de verificar se a legislação infraconstitucional é compatível com os seus preceitos. Uma norma que contenha um nível de proteção prejudicial aos direitos humanos perde a sua eficácia, ainda que se adote a tese da supralegalidade. Pela mesma razão, se um tratado internacional de direitos humanos estabelece algum tipo de dever de agir, a inércia estatal resultará em uma inconvencionalidade por omissão, a ser detectada e corrigida não apenas pelos órgãos internacionais de proteção, mas também pelos órgãos nacionais, especialmente da jurisdição constitucional, inclusive se a força jurídica do tratado for supralegal.

Assim, independentemente da tese adotada, pode-se concluir que os direitos humanos, previstos em tratados internacionais:

(a) compõem, ao lado dos direitos fundamentais, um sistema de valores humanitários, que se irradiam por todos os ramos do ordenamento, possuindo, portanto, uma dimensão objetiva, a justificar a interpretação das leis em conformidade com tais valores ou à luz dos direitos humanos;

(b) gozam de uma força normativa privilegiada, com pretensão de vincular agentes públicos e, em alguns casos, também particulares, gerando deveres de respeito, proteção, promoção, organização etc. que, uma vez desobedecidos, acarretam sanções jurídicas em relação àqueles que tinham o dever de velar pelo cumprimento do tratado;

(c)  respeitado o princípio da primazia da norma mais favorável à dignidade, possuem uma superioridade jurídica em relação a todas as leis do sistema jurídico, sendo capaz de barrar, suspender ou paralisar a eficácia das normas que os contrariam, por meio do controle de convencionalidade;

(d) uma vez incorporados ao ordenamento jurídico, estão aptos a produzirem diversos efeitos de forma direta e imediata, inclusive exigíveis na via judicial, possuindo assim uma dimensão subjetiva semelhante àquela que emana dos direitos fundamentais, a justificar até mesmo a busca da máxima efetividade;

(e)  em relação aos efeitos que dependam de uma integração normativa (geralmente relacionados aos deveres de proteção, promoção, organização etc.), a falta de medidas estatais capazes de viabilizar o exercício do direito pode gerar uma omissão inconvencional, passível de ser, em dadas circunstâncias e respeitadas as regras de divisão de competência, corrigida judicialmente.

As afirmações acima são consequências comuns do reconhecimento da força normativa dos direitos humanos, independentemente de se tratar de uma força supralegal ou constitucional.

Uma das principais vantagens de se admitir a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no bloco de constitucionalidade é permitir que os instrumentos do direito constitucional, em particular do controle de constitucionalidade, sejam mobilizados em favor do direito humanitário. Porém, a aceitação da tese da supralegalidade também não deveria servir de empecilho absoluto para a inclusão dos tratados de direitos humanos no bloco de constitucionalidade, para fins de adoção dos instrumentos de proteção constitucional em favor do direito humanitário. É que o conceito de bloco de constitucionalidade também pode admitir a existência de normas materialmente constitucionais situadas em níveis formalmente infraconstitucionais que podem funcionar como parâmetro para o controle de constitucionalidade e vetor interpretativo para as demais normas do sistema. Nesse ponto, é útil assimilar uma distinção realizada pela Corte Constitucional da Colômbia entre bloco de constitucionalidade em sentido estrito e bloco de constitucionalidade em sentido amplo.

4  Bloco de constitucionalidade em sentido estrito e bloco de constitucionalidade em sentido amplo

O jurista colombiano Rodrigo Uprimy, no artigo El Bloque de Constitucionalidad en Colombia, analisou a prática jurisprudencial da Corte Constitucional colombiana sobre a força jurídica dos tratados internacionais e tentou, a partir daí, elaborar um quadro sistemático sobre o significado de bloco de constitucionalidade que pode ser extremamente útil para os fins aqui pretendido. Em verdade, ele identificou pelo menos três sentidos que a expressão bloco de constitucionalidade pode tomar, a depender de seu uso. O primeiro sentido refere-se ao conjunto de standards que possuem inegavelmente status constitucional em sentido formal e material. O segundo refere-se ao conjunto de standards jurídicos, constitucionais ou não, que podem servir como parâmetro do controle de constitucionalidade das leis. O terceiro diz respeito aos standards, constitucionais ou não, que são constitucionalmente relevantes para solucionar um caso específico (UPRIMY, 2005).

O primeiro sentido (standards com status constitucional) comporia o bloco de constitucionalidade em sentido estrito e a sua identificação dependeria de uma análise do texto constitucional para verificar o que a própria constituição considera como constitucional. Assim, apenas aqueles standards incluídos pela própria constituição no bloco de constitucionalidade em sentido estrito poderiam ser tratados como normas com status constitucional. Note-se que esse bloco não é formado apenas pelo texto constitucional, mas por todas as normas que a própria constituição atribui status constitucional, seja de forma direta, seja por mecanismos de remissão ou reenvio. Nesse sentido, no modelo colombiano, fazem parte do bloco de constitucionalidade estrito o preâmbulo, o texto constitucional, os tratados dos limites territoriais ratificados pela Colômbia[36] e os tratados internacionais de direitos humanos, pois a Constitución Política de Colômbia, de 1991, confere hierarquia constitucional aos referidos tratados[37]. (Vale ressaltar que a Corte Constitucional colombiana também atribui hierarquia constitucional não apenas aos tratados de direitos humanos propriamente ditos, mas também à interpretação desses tratados realizada pelos tribunais internacionais).

Esse bloco de constitucionalidade em sentido estrito cumpriria as funções geralmente associadas às normas com status constitucional. Assim, elas somente poderiam ser alteradas por normas de igual hierarquia e serviram como parâmetro para o controle de constitucionalidade e vetor interpretativo das demais normas do sistema jurídico.

Para além desse sentido estrito, haveria também um conceito de constitucionalidade em sentido amplo, que abarcaria, além do bloco estrito, algumas leis estatutárias e algumas leis orgânicas, naquilo que fosse constitucionalmente relevante. Essas normas (infraconstitucionais) seriam agregadas ao bloco de constitucionalidade apenas para o fim de auxiliar o controle de constitucionalidade e a interpretação das demais leis do sistema, sem que seu status (de normas infraconstitucionais) fosse alterado. Isso significa dizer que elas estão abaixo da constituição, mas em um nível acima das leis, cumprindo ora uma função de lei propriamente dita, ora uma função de norma constitucional em sentido material.

No Brasil, a jurisprudência sobre bloco de constitucionalidade é bastante precária e se resume a alguns comentários, mencionados em obiter dictum pelo Min. Celso de Mello, sem que o problema de fundo seja a inclusão de tratados de direitos humanos no parâmetro para o controle de constitucionalidade, mas apenas a impossibilidade de se realizar um controle de constitucionalidade quando a norma constitucional tida como paradigma foi revogada[38]. Se isso, por um lado, dificulta a compreensão do que, de fato, significa o bloco de constitucionalidade à luz da jurisprudência da Suprema Corte brasileira, por outro lado, amplia as possibilidades de construir um conceito mais próximo do direito humanitário, já que, pelo menos no campo retórico, tem havido cada vez mais uma preocupação de valorizar os tratados internacionais.

Assim, com algumas adaptações, as mesmas ideias desenvolvidas pela Corte Constitucional colombiana e sistematizas por Rodrigo Uprimy poderiam ser adotadas aqui no Brasil a fim de ampliar o bloco de constitucionalidade para incluir também os tratados internacionais de direitos humanos, caso não houvesse a superação da tese da supralegalidade. Nesse sentido, haveria algumas normas que

(1) teriam um status constitucional e funcionariam como parâmetro para o controle de constitucionalidade e como vetor interpretativo (bloco de constitucionalidade em sentido estrito), e outras normas que

(2) poderiam desempenhar essas mesmas funções, mesmo sem possuir o status constitucional (bloco de constitucionalidade em sentido amplo).

Assim, seria possível afirmar, com elevado grau de certeza, que os seguintes standards comporiam o bloco estrito de constitucionalidade, ocupando o nível mais elevado do sistema à luz da constituição brasileira: o texto constitucional, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as emendas constitucionais e os tratados de direitos humanos aprovados conforme o procedimento do artigo 5º, § 3º, da CF/​88. Haveria uma zona de incerteza em relação aos tratados humanitários anteriores à EC 45/​2004, pois enquanto a tese da constitucionalidade admite a sua integração no bloco estrito de constitucionalidade, a tese da supralegalidade a rejeita.

Por sua vez, para além desse bloco estrito, seria possível desenvolver também um conceito mais amplo, especificamente com a finalidade de orientar ou auxiliar o controle de constitucionalidade e servir como diretriz hermenêutica. Nesse bloco expandido, além das normas integrantes do bloco estrito, poderiam ser incluídos, por exemplo, o preâmbulo constitucional[39], alguns princípios constitucionalmente relevantes decorrentes do artigo 5º, § 2º, ou, para os que adotam a tese da supralegalidade, os tratados internacionais de direitos humanos aprovados antes da EC 45/​2004, bem como outros tratados aprovados fora do procedimento do artigo 5º, § 3º, mas que possuam uma inegável relevância constitucional.

O importante é que se perceba que o status constitucional não é um pressuposto necessário para que uma norma seja incluída no bloco de constitucionalidade em sentido amplo. Em alguns modelos jurídicos, até mesmo leis orgânicas ou estatutárias são tratadas como normas de relevância constitucional, funcionando como parâmetro do controle de constitucionalidade e vetor interpretativo, sem perderem a sua natureza infraconstitucional. Portanto, nada impede que uma norma com força supralegal possa também ser integrada ao bloco de constitucionalidade, sobretudo quando tal norma faz parte de um sistema humanitário de proteção de direitos valorizado pela constituição brasileira. Se o propósito dessa integração também for permitir o uso dos instrumentos do direito constitucional para a proteção dos direitos humanos, certamente não há qualquer argumento forte que justifique uma posição em sentido contrário.

Em síntese: embora o parâmetro normativo do controle de constitucionalidade seja, prima facie, uma norma constitucional violada por ação ou por omissão, também pode abranger, por “arrastamento”, outras normas jurídicas de diferentes níveis, cujo descumprimento seja capaz de afetar alguns valores fundamentais do sistema, sobretudo aqueles mais relacionados à proteção da dignidade. Assim, a rigor, é possível, em qualquer caso, admitir a mobilização das ferramentas do controle de constitucionalidade para a proteção dos tratados internacionais, inclusive para fins de correção das omissões inconvencionais.

5  O caso das audiências de custódia

Um exemplo paradigmático do que acima foi dito ocorreu com a chamada “audiência de custódia”, prevista no artigo 7º, item 5, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos[40] e no artigo 9º, item 3, do Pacto de Direitos Civis e Políticos[41]. Embora o debate judicial que se desenvolveu sobre o tema não tenha sido focado sobre omissões inconstitucionais ou inconvencionais, a solução que foi dada é uma demonstração clara da existência de uma interconexão entre o plano convencional e o plano constitucional, a exigir o enfrentamento comum e simultâneo das violações sistemáticas de direitos, estejam eles previstos em tratados ou na própria constituição.

Na ADI 5240/​SP, o STF declarou a constitucionalidade de um provimento do Tribunal de Justiça de São Paulo que estabeleceu a obrigatoriedade do procedimento da audiência de custódia, mesmo não havendo uma regulamentação legal sobre o assunto. A decisão reconheceu que a norma contida nos tratados internacionais antes citados, além de suspenderem a eficácia de todas as normas internas com ela incompatível (dada a sua força supralegal, que foi adotada no referido julgamento), deveria ser observada no plano interno independentemente de lei (dada a sua autoaplicabilidade). Foi dado assim o primeiro passo para reconhecer que o dever de agir estabelecido em um tratado internacional (conduzir o réu preso, sem demora, à presença de um juiz) contém um mandamento que pode ser observado imediatamente pelas autoridades nacionais mesmo não havendo legislação regulamentadora.

O passo seguinte foi dado na ADPF 347-MC/​DF, em que se analisou a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” diante da violação sistemática de direitos no sistema penitenciário brasileiro e se debateu, em caráter liminar, uma séria de providências estruturais com o objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos poderes públicos (v. informativo 796 do STF). O caso é complexo e não precisa ser detalhado aqui. Basta saber que o STF foi além do mero reconhecimento da possibilidade de adoção da audiência de custódia pelos órgãos nacionais, determinando também que o Conselho Nacional de Justiça, no prazo de 90 dias, regulamentasse o assunto com efeito normativo geral para todos os tribunais do país, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão.

A solução é emblemática na medida em que um instituto tipicamente de proteção constitucional (ADPF) foi adotado para a implementação de um direito originalmente previsto em tratado internacional, funcionando claramente como um remédio judicial contra uma omissão normativa (mais precisamente, uma omissão inconvencional). Em termos práticos, o STF reconheceu a necessidade de se implementar um direito previsto em um tratado internacional de direitos humanos, identificou os órgãos estatais que poderiam solucionar o problema, delimitou o âmbito de proteção mínimo do direito a ser implementado e estabeleceu um prazo para a correção daquela situação de inconvencionalidade, prazo este que foi devidamente cumprido pelo Conselho Nacional de Justiça. De fato, em 15 de dezembro de 2015, foi aprovada, pelo Conselho Nacional de Justiça, a resolução que regulamenta os procedimentos a serem adotados para dar cumprimento ao tratado internacional, detalhando com maior especificidade o papel do juiz durante a audiência de custódia[42].

Conclusão

Ao longo deste estudo, defendeu-se um modelo de proteção jurídica que possa adotar as diversas ferramentas do direito constitucional, sobretudo aquelas desenvolvidas para o controle de constitucionalidade por omissão, com o propósito de superar as chamadas omissões inconvencionais.

Há duas formas básicas de defender essa proposta. A primeira, mais simples e mais conveniente, seria aderir à teoria da força constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, a fim de facilitar a incorporação do direito humanitário no chamado “bloco de constitucionalidade”. Com isso, as normas internacionais mais favoráveis à dignidade seriam colocadas no plano da constitucionalidade, sendo-lhes aplicadas todas as ferramentas práticas e teóricas, processuais e materiais, já desenvolvidas para a proteção dos direitos fundamentais.

Contudo, mesmo que se adote a tese da supralegalidade, também seria possível defender que os tratados internacionais de direitos humanos “supralegais” poderiam, para esse fim específico, compor o bloco de constitucionalidade em sentido amplo, junto com as demais normas que integram o chamado bloco de constitucionalidade em sentido estrito. Assim, a única diferença substancial que ainda persistiria entre a tese da constitucionalidade e a tese da supralegalidade se daria no nível das antinomias entre os tratados e a constituição que é, afinal, o principal ponto que leva os adeptos da tese da supralegalidade a não abrirem mão de suas ideias, em razão da crença na supremacia constitucional. Ou seja, aderindo-se à tese da supralegalidade, seria aplicado aos tratados humanitários o mesmo regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, salvo se houvesse um choque entre o tratado e a constituição, ocasião em que, pela referida tese, a constituição prevaleceria sobre o tratado, mesmo que o tratado fosse mais favorável à dignidade. Já pela tese da constitucionalidade, o regime jurídico-constitucional aplicado aos direitos fundamentais também seria aplicado aos tratados humanitários, mesmo se houvesse um choque entre o tratado e a constituição, ocasião em que será dado preferência para o melhor sistema de proteção da dignidade. O importante, em qualquer caso, é que a base de proteção constitucional dos direitos fundamentais também possa servir para a proteção dos direitos humanos.

Isso seria particularmente relevante para o controle judicial das omissões inconvencionais, tendo em vista que os instrumentos processuais previstos na constituição para a correção das omissões inconstitucionais (Mandado de Injunção, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e, sobretudo, Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental) têm sido extremamente valiosos para a efetivação dos direitos fundamentais e poderiam igualmente auxiliar a efetivação dos direitos humanos, a exemplo do que ocorreu no caso da audiência de custódia.

Tal solução pode ser justificada, conforme se viu, não apenas por razões estritamente técnico-jurídicas, mas também axiológicas e estratégicas. Para fins de proteção dos direitos humanos, é extremamente vantajoso aproveitar todo arsenal de instrumentos já desenvolvidos pelo direito constitucional. Por sua vez, o constitucionalismo seria igualmente enriquecido não apenas com a ampliação do rol de direitos, mas também com a abertura de horizontes que o diálogo multinível proporciona. Teríamos assim um novo patamar de proteção da dignidade, muito mais forte, muito mais plural e muito mais expandido.

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. Recebido em: 3 abr. 2017. Avaliado em: 09 e 14 maio 2017.

[1]  O sistema multinível é, certamente, mais complexo, pois envolve, em alguns casos, a existência de níveis supranacionais, transnacionais e subnacionais. Para os fins do presente estudo, é suficiente mirar os dois níveis mais relevantes - e impactantes - para a proteção dos direitos na América Latina: o nível nacional/​constitucional e o nível internacional/​interamericano.

[2]  Sobre esse tema, tratando especificamente sobre o choque de jurisdições: SILVA, 2010, p. 101-112. No referido texto, Virgílio Afonso da Silva apresenta algumas reflexões iniciais sobre como solucionar um conflito entre jurisdições, na perspectiva do direito constitucional. Na sua ótica, a questão não deveria ser resolvida como se fora um “jogo binário de prevalências”, mas sim no plano do ônus de argumentação e de racionalidade. Assim, o valor das decisões de tribunais internacionais seria sobretudo um valor argumentativo, devendo ser levado em consideração em âmbito nacional e somente poderia ser afastado de forma fundamentada. Ou seja, para deixar de seguir um precedente internacional, o órgão jurisdicional deverá enfrentar o ônus argumentativo de superá-lo: “rejeitar decisões supranacionais é possível, mas o ônus argumentativo é enorme”.

[3]  “[…] na medida em que não há hierarquia ou supremacia entre as diferentes ordens normativas, uma forma de entender a interação é a metáfora do diálogo entre tribunais nacionais e internacionais. Esta abordagem tem a virtude de permitir que os tribunais nacionais deixem de ser meros seguidores da jurisprudência internacional, e possam participar de igual para igual num diálogo transnacional no qual seja criada uma visão discutida e compartilhada do regime dos direitos humanos. Assim, a legitimidade da defesa dos direitos humanos como um todo seria aumentada, porque a participação dos interessados seria garantida. Além disso, o diálogo permitiria que os diferentes tribunais envolvidos no diálogo adotassem melhores decisões, contribuíssem para a criação de uma verdadeira identidade da comunidade interamericana, para além das fronteiras nacionais” (UREÑA, 2014, p. 38)

[4]  “Uma segunda agenda de diálogos judiciais transnacionais é o estudo da interação entre juízes. Aqui, os juízes se tornam personagens cosmopolitas, que pertencem a redes globais de intercâmbio de informação e influência e é influenciado por seus colegas em diferentes lugares do mundo” (idem, ibidem, p. 39).

[5]  Nesse sentido, a Constituição da África do Sul estabelece, no seu artigo 39, que os juízes sul-africanos, ao interpretarem a declaração de direitos “(a) must promote the values that underlie an open and democratic society based on human dignity, equality and freedom; (b) must consider international law; and (c) may consider foreign law”, estabelecendo, portanto, que a jurisprudência dos tribunais internacionais é obrigatória e a jurisprudência estrangeira pode ser observada sempre que possível.

[6]  “Definimos a heurística da disponibilidade como o processo de julgar a frequência pela ‘facilidade com que os exemplos vêm à mente’” (KAHNEMAN, 2012, p. 176/​177).

[7]  No Pacto de San José da Costa Rica, a cláusula da auto-restrição internacional em favor da melhor proteção nacional está explicitada no artigo 29: “nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza”.

[8]  Deixamos de considerar aqui uma terceira hipótese, mais problemática, que ocorre quando os órgãos nacionais entendem que o seu sistema doméstico de proteção é mais favorável à pessoa humana do que o sistema internacional, mas os órgãos internacionais discordam dessa avaliação. Em uma situação assim, há uma divergência de juízo que somente pode ser solucionada apelando-se para uma terceira instância ou então mediante um solução de autoridade, a exigir um aprofundamento temático que foge ao escopo do presente trabalho.

[9]  De acordo com Víctor Bazán, o juiz Sergio García Ramírez teria sido o primeiro juiz da CIDH a utilizar a expressão “control de convencionalidad” em um voto concorrente proferido no caso Myrna Mack Chang v. Guatemala, de 2003 (2011). O próprio Sérgio García Ramírez reconheceu que tal fato (2011, p. 144).

[10] CIDH. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile (2006). No caso concreto, a CIDH considerou que o poder judiciário do Chile deveria ter exercido o controle de convencionalidade de uma norma interna (leis de anistia) que gerou a impunidade dos responsáveis pela morte do Senhor Almonacid Arellano.

[11] CIDH. Caso Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú (2006).

[12] CIDH. Caso Gelman vs. Uruguai, (2011).

[13] Sergio García Ramírez designa esse controle de próprio, original ou externo, a recair sobre um tribunal supranacional chamado a exercer um juízo de compatibilidade entre os atos domésticos e as disposições convencionais (2011, p. 126).

[14] Este seria o controle de convencionalidade interno, que, em princípio, é exercido pelas autoridades judiciais (controle judicial), mas eventualmente pode ser exercido por qualquer autoridade incumbida de promover, respeitar, proteger e garantir os direitos humanos (idem, ibdem, p. 126).

[15] Nesse ponto, não se pode aderir à proposta de Sérgio García Ramirez, que defende que os órgãos judiciais internos, no exercício do controle de convencionalidade, somente podem formular interpretações próprias das normas internacionais se não houver jurisprudência da Corte Interamericana sobre a norma em questão (RAMÍREZ, 2011, p. 139). A rigor, se a proteção internacional é o “piso” e não o “teto”, o que os órgãos nacionais não podem fazer é interpretar a norma convencional para aquém do piso. Mas nada impede que outras soluções, igualmente humanitárias, sejam formuladas com base na mesma norma já interpretada pela CIDH, bastando para tanto que se observem os esforços de compreensão, argumentação e justificação antes mencionados.

[16] Para uma visão panorâmica, voltada à recente atuação da CIDH: ABRAMOVICH, 2009, p. 7/​39.

[17] Uma análise prática do problema, analisando diversas fórmulas para o enfrentamento das violações estruturais de direitos, pode ser lida em: GARAVITO, & KAUFFMAN, 2014.

[18] Obviamente, o conceito de validade aqui adotado é de caráter substancial e não formal. Aproxima-se, sem dúvida, do conceito de legitimidade, mas não pretende ser uma validade destituída de juridicidade. Pelo contrário. É uma validade jurídica, bastando ter em mente que o conceito de juridicidade não se confunde com o conceito de legalidade. O referencial teórico, nesse ponto, busca inspiração no jurisprudencialismo de Castanheira Neves, que defende que não é a positividade que constitui a juridicidade, mas a juridicidade que dá sentido à positividade.

[19] Em verdade, melhor seria chamar esse bloco de constitucionalidade de bloco de juridicidade, já que se trata de algo que pretende traduzir o próprio fundamento axiológico do direito. Mas não é preciso aprofundar a discussão. Basta saber que aquilo que se tem chamado de bloco de constitucionalidade compreende todas as normas que funcionam como parâmetro de validade material do ordenamento jurídico, estejam ou não expressas no texto constitucional. Como uma das funções do bloco de constitucionalidade é ampliar o parâmetro normativo do controle de constitucionalidade (inclusive das omissões inconstitucionais), sua utilidade para os fins aqui pretendidos é inquestionável.

[20] Nesse sentido, na França, o conceito de “bloco de constitucionalidade” foi adotado originalmente para permitir que a Declaração de Direitos dos Homens e dos Cidadãos, de 1789, bem como os princípios consagrados no preâmbulo da constituição anterior (de 1946), fossem incluídos dentro do parâmetro do controle de constitucionalidade. Sobre isso, explicando a evolução ocorrida na jurisprudência do Conselho Constitucional francês sobre o conceito de “bloco de constitucionalidade” e realizando uma análise estatística de casos onde o conceito foi mobilizado: FAVOREAU, 1990, p. 45/​67.

[21] Há vários princípios que fundamentam o direito constitucional contemporâneo que foram elevados à condição de princípio constitucional por meio de soluções judiciais. Assim, o princípio da proporcionalidade, que hoje tem sido um princípio quase universal da jurisdição constitucional, nasceu não de uma norma expressa, mas do desenvolvimento jurisprudencial realizado pela Corte Constitucional alemã. Antes disso, o due process of law, em seu sentido material, também se originou de decisões da Suprema Corte norte-americana que apenas com muita boa-vontade poderia ser considerado como um princípio derivado do texto constitucional.

[22] Assim, por exemplo, na Espanha, o conceito de “bloco de constitucionalidade” surgiu como um mecanismo de solução de conflitos de competência entre os estados e as comunidades autônomas, reconhecendo que as leis orgânicas reguladoras da distribuição de competências entre as ordens territoriais fossem considerados como parte do “bloco de constitucionalidade”. Do mesmo modo, na Itália, o conceito de “bloco de constitucionalidade” foi associado ao conceito de “norma interposta”, a fim de permitir que algumas leis ordinárias que limitam outras normas pudessem ser adotadas como parâmetro do controle de constitucionalidade. Nesse caso, seriam leis ordinárias “com valor constitucional” (GÓNGORA MERA, 2014, p. 301/​328).

[23] Vale ressaltar que mesmo a Alemanha, que é um país que costuma ser resistente ao reconhecimento da força constitucional dos tratados internacionais, aceita que o jus cogens integra o bloco de constitucionalidade. Nesse sentido, Roland Bank informa que a prática jurídica alemã é bastante “introvertida”, mas, apesar disso, a Corte Constitucional admite que as normas de jus cogens integram a constituição em sentido material e formal, por força do artigo 25 da Lei fundamental de 1949, que estabelece que “as regras gerais do direito internacional público são parte integrante do direito federal. Sobrepõem-se às leis e constituem fonte direta de direitos e obrigações para os habitantes do território federal”. Ressalte-se, contudo, que o conceito de “regras gerais do direito internacional público” não se refere a todas as normas comunitárias (da União Europeia), mas apenas as normas que possam ser tratadas como universais (BANK, Roland. Tratados Internacionales de Derechos Humanos Bajo el Ordenamiento Jurídico Alemán. In: Ius et Praxis v. 9, n. 1, 2003).

[24] Na América Latina, a Argentina, Venezela e Bolívia adotaram, por meio de reformas constitucionais, esse entendimento (cf. GÓNGORA MERA, 2014, p. 301/​328).

[25] As cortes constitucionais da Bolívia, Colômbia, Equador e Peru chegaram a esta conclusão. No Brasil, Flávia Piovesan defende, desde os anos 1990, que o artigo 5º, § 2º, da CF/​88, seria suficiente para conferir aos tratados internacionais de direitos humanos um status constitucional, mas a tese não tem prevalecido, conforme se verá.

[26] A propósito, o célebre problema da prisão civil do depositário infiel nem era um caso humanitário típico, nem tinha uma abrangência muito ampla, afetando uma quantidade muito pequena de pessoas. Além disso, a solução proposta pelo direito humanitário (proibição da prisão civil) não era tão óbvia sob ótica da primazia dos direitos. O debate foi montado como se fora um mero conflito entre propriedade e liberdade, mas havia muito mais em jogo, como a quebra do dever de confiança, a efetividade das execuções judiciais e a proteção do credor, que também é titular de direitos fundamentais. Curiosamente, um dos principais beneficiários da proibição da prisão civil dos depositários infiéis foram os devedores de dívidas trabalhistas e não os oprimidos propriamente ditos, o que demonstra que há uma ambivalência nessa questão que não foi devidamente enfrentada no debate.

[27] Na prática, a força jurídica dos tratados nem chegava a tanto. Afinal, mesmo na questão da prisão civil do depositário infiel, se o Pacto de San Jose da Costa Rica (PISJCR) fosse tratado como lei ordinária, ele teria sido capaz, já na sua origem, de revogar as normas legais que autorizavam referida modalidade de prisão. Mas não foi isso que foi decidido. Naquele primeiro momento, a prisão civil do depositário infiel foi aceita, apesar do pacto.

[28] O artigo foi festejado como uma grande vitória do direito internacional, mas a rigor é uma norma tautológica. O que ela estabelece é que, se um tratado internacional de direitos humanos for aprovado como emenda constitucional (com o mesmo quorum e procedimento), terá a força de emenda constitucional. Ora, em tese, qualquer projeto normativo, até mesmo a portaria de um condomínio, se tornará uma emenda constitucional caso observe o procedimento de aprovação das emendas constitucionais! Assim, não houve propriamente uma inovação radical, mas apenas uma fórmula de incorporação contaminada pela síndrome das fontes institucionais, a exigir mecanismos fundados menos na força axiológica dos direitos em jogo e mais na técnica ou procedimento de aprovação.

[29] A esse respeito o Decreto 6.949/​2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu protocolo facultativo, aprovado na forma do artigo 5°, § 3°, da CF/​88, possui inegável status constitucional, já reconhecido pelo STF, ainda que em decisão monocrática do min. Edson Fachin: “A edição do decreto seguiu o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição da República, o que lhe confere status equivalente ao de emenda constitucional, reforçando o compromisso internacional da República com a defesa dos direitos humanos e compondo o bloco de constitucionalidade que funda o ordenamento jurídico pátrio” (STF, ADI 5357 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, julgado em 18/​11/​2015).

[30] Seria possível cogitar uma terceira tese: a da supraconstitucionalidade, pela qual os tratados internacionais teriam uma primazia absoluta. Tal tese, contudo, não tem sido defendida de modo consistente por nenhum jurista brasileiro.

[31] O critério da norma mais favorável, independente da hierarquia, já é adotada em outros campos da juridicidade. Assim, por exemplo, no direito trabalhista, uma portaria de uma empresa pode prevalecer sobre a constituição se contiver um sistema de proteção mais favorável ao trabalhador.

[32] O sistema internacional de proteção aos direitos humanos é composto de diversos instrumentos normativos de proteção que compõem uma espécie de “bloco de convencionalidade” ou, para usar a expressão de Sérgio Ramirez, um “corpus juris” convencional dos direitos humanos (RAMÍREZ, 2011). Esse “bloco de convencionalidade” é composto por normas distintas sem hierarquia formal entre si. O único tipo de hierarquia que poderia ser cogitado entre as normas que compõem o sistema humanitário seria a hierarquia axiológica, a dar prevalência, em qualquer situação, à norma que melhor protege a dignidade, independentemente de sua fonte institucional.

[33] Sobre isso, mencionando especificamente a proporcionalidade: URUEÑA, 2010.

[34] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

[35] Obviamente, a mobilização desse tipo de argumento, fundado na força das normas constitucionais positivadas, já pressupõe a aceitação da tese de que a constituição é a fonte de validade de todo o sistema jurídico, tese esta que costuma ser aceita pelos adeptos da tese da supralegalidade dos tratados, na medida em que se apegam à supremacia constitucional sobre os tratados, mas não é necessariamente aceita pelos adeptos da primazia da dignidade, que acreditam em fontes de validade jurídica fora da constituição. De qualquer modo, o argumento foi desenvolvido apenas para mostrar que, mesmo quem se apega à supremacia da constituição de um modo forte, tem razões para acreditar que o direito constitucional se abre para um sistema internacional de proteção dos direitos, com todas as consequências que tal abertura exige, inclusive uma limitação da soberania e das possibilidades do direito interno.

[36] Isso decorre de uma expressa previsão constitucional: “Art. 101. Los límites de Colombia son los establecidos en los tratados internacionales aprobados por el Congreso, debidamente ratificados por el Presidente de la República, y los definidos por los laudos arbitrales en que sea parte la Nación. Los límites señalados en la forma prevista por esta Constitución, sólo podrán modificarse en virtud de tratados aprobados por el Congreso, debidamente ratificados por el Presidente de la República. […]”.

[37] São várias as normas de remissão, previstas na constituição colombiana, que justificam o reconhecimento do status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos. Por exemplo: “Art. 93. Los tratados y convenios internacionales ratificados por el Congreso, que reconocen los derechos humanos y que prohíben su limitación en los estados de excepción, prevalecen en el orden interno. Los derechos y deberes consagrados en esta Carta, se interpretarán de conformidad con los tratados internacionales sobre derechos humanos ratificados por Colombia”; “Art. 214, item 2: No podrán suspenderse los derechos humanos ni las libertades fundamentales. En todo caso se respetarán las reglas del derecho internacional humanitario. Una ley estatutaria regulará las facultades del Gobierno durante los estados de excepción y establecerá los controles judiciales y las garantías para proteger los derechos, de conformidad con los tratados internacionales. Las medidas que se adopten deberán ser proporcionales a la gravedad de los hechos”.

[38] Assim, por exemplo: “A definição do significado de bloco de constitucionalidade - independentemente da abrangência material que se lhe reconheça - reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política. A superveniente alteração/​supressão das normas, valores e princípios que se subsomem à noção conceitual de bloco de constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro constitucional de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato, situação configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando, desse modo - ainda que mediante decisão monocrática do Relator da causa (RTJ 139/​67) – a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade” (ADI 595, rel. Min. CELSO DE MELLO, julgado em 18/​02/​2002).

[39] O Supremo Tribunal Federal, em pelo menos uma ocasião, assinalou que o preâmbulo constitucional não deve ser considerado como norma constitucional em sentido estrito. Confira-se: “O preâmbulo […] não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. É claro que uma Constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local.” (STF, ADI 2.076, voto do Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002)

[40] “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”. A Convenção Americana de Direitos Humanas, também conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica, foi incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.

[41] “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença”. Referido Pacto foi incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto 592, de 6 de julho de 1992.

[42] CNJ, Resolução 213/​2015.