A eficácia incompleta das normas constitucionais: desfazendo um
mal-entendido sobre o parâmetro normativo das omissões inconstitucionais
The incomplete effectiveness of
constitutional rules: undoing a misunderstanding about the normative framework
of unconstitutional omissions
George Marmelstein*
RESUMO: A dogmática
constitucional sempre repete a ideia de que o parâmetro normativo capaz de
justificar o controle das omissões inconstitucionais deve envolver
necessariamente uma norma de eficácia limitada, que, na formulação canônica de
José Afonso da Silva, é aquela norma constitucional cuja eficácia plena depende de uma regulamentação posterior. Neste artigo,
demonstra-se o equívoco de referida afirmação para concluir que, em
determinadas circunstâncias, as chamadas normas de eficácia plena ou contida
também podem funcionar como parâmetro normativo para o controle da
inconstitucionalidade por omissão.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucional; Controle de
Constitucionalidade por Omissão; Omissão Inconstitucional; Normas de Eficácia
Plena, Contida e Limitada.
ABSTRACT: The Brazilian constitutionalists usually reproduce
the ideia that the normative framework able to justify judicial review of state
inaction (unconstitutionality
by omission) must necessarily involve a special type of constitutional rule called
"limited effectiveness" ("norma de eficácia limitada").
That type of rule, as explained José Afonso da Silva, can be described as a
constitutional provision whose full effectiveness depends on a supplementary
regulation. In this paper, it will be demonstrated the misconception of this
ideia. In certain circumstances, others types of rules, such as the ones
contained or plain effect, may also be used as a normative framework for judicial
review of state inaction (unconstitutionality by omission).
KEYWORDS: Constitutional; Judicial Review; State Inaction;
Unconstitutionality by Omission; Effectiveness of Constitutional Norms.
INTRODUÇÃO
Há certo
consenso na dogmática constitucional de que o parâmetro normativo
capaz de ensejar a inconstitucionalidade por omissão deve envolver
necessariamente uma norma de eficácia limitada. Essa ideia é repetida
continuamente, tanto em manuais jurídicos quanto em obras específicas sobre as
omissões inconstitucionais, desde os primeiros estudos da constituição de 1988
até as análises mais recentes[1].
O próprio
Supremo Tribunal Federal já se manifestou algumas vezes no sentido de que os
instrumentos processuais previstos para a solução das omissões legislativas
inconstitucionais não são adequados quando se está diante de normas de
aplicação imediata e eficácia plena. Assim, por exemplo, no MI 144/SP, julgado
em 1992, o STF firmou entendimento, seguido em vários pronunciamentos
posteriores, inclusive de 2015[2],
de que o interesse processual capaz de justificar a impetração do mandado de
injunção pressupõe uma norma de eficácia limitada. Por isso, não seria cabível
o mandado de injunção se se estivesse diante de normas de eficácia plena e
aplicabilidade imediata ou se se perante uma norma de eficácia limitada já
regulamentada[3].
Referida
ideia parece fazer sentido. Afinal, se a norma constitucional pode desde já
produzir os efeitos desejados, independentemente de uma regulamentação legal,
não haveria mesmo necessidade de uma ação judicial para instigar a produção de
uma lei regulamentadora.
Apesar
disso, será demonstrado neste artigo que referida ideia está equivocada, pois
se alicerça em uma concepção ultrapassada da eficácia das
normas constitucionais. Conforme ficará mais bem esclarecido ao longo do texto,
qualquer norma constitucional cujos efeitos estejam sendo frustrados por uma
omissão do Estado é passível de ensejar uma inconstitucionalidade por omissão,
independentemente de se tratar de norma de eficácia plena, contida ou limitada.
Como consequência, será defendido um modelo de correção das omissões
inconstitucionais que leve em conta o caráter expansivo, progressivo, aberto,
contínuo e inacabado do de proteção da dignidade e reconheça a multiplicidade
de deveres que emanam das normas de direitos fundamentais.
1 EFICÁCIA DAS NORMAS E OMISSÃO
INCONSTITUCIONAL
Afirmar que
o parâmetro do controle de constitucionalidade por omissão há de envolver
necessariamente uma norma constitucional de eficácia limitada significa, em
termos práticos, que não seria possível haver inconstitucionalidade por omissão
se (1) a norma constitucional "desrespeitada" pelo silêncio
legislativo fosse de eficácia plena ou contida ou se (2) a norma constitucional
fosse de eficácia limitada, mas já tivesse ocorrido uma regulamentação capaz de
permitir que a norma produza os seus efeitos. Na segunda hipótese, ainda
restaria a possibilidade de haver a omissão
inconstitucional se a regulamentação não fosse suficiente, o que poderia dar
azo ao problema da omissão parcial ou da proibição de insuficiência, que não será, contudo, objeto de
preocupação neste artigo. O que se analisa aqui é o equívoco da primeira hipótese,
ou seja, será defendida a posição segundo a qual até mesmo algumas normas
tradicionalmente classificadas como de eficácia plena ou contida poderão exigir
a adoção de medidas regulamentadoras passíveis de ensejar a omissão
inconstitucional.
A ideia de
que apenas as normas de eficácia limitada podem servir como parâmetro para o
controle de constitucionalidade por omissão pressupõe que algumas normas
constitucionais são autossuficientes para produzirem plenamente todos os seus
efeitos, podendo ser imediatamente aplicadas independentemente de qualquer
regulamentação posterior, e outras, pelo contrário, dependem de uma atuação
legislativa para alcançarem sua eficácia plena e serem aplicadas pelos órgãos
estatais.
Como se
sabe, tal proposta é uma decorrência direta da classificação triádica
desenvolvida por José Afonso da Silva, amplamente adotada até hoje pela dogmática
constitucional e pela jurisprudência do STF[4].
Referida classificação adota uma distinção, quanto à eficácia e aplicabilidade,
de três tipos de normas constitucionais: (a) normas que, por si, já reúnem
todos os elementos necessários para a produção de todos os efeitos desejados,
podendo ser desde já aplicadas plenamente, independentemente de qualquer
regulamentação futura (normas de
eficácia plena)[5];
(b) normas que, embora reúnam todos os elementos para a imediata produção de
seus efeitos, são passíveis de restrição/regulamentação por lei
infraconstitucional (normas de eficácia
contida)[6]
e (c) normas que dependem de uma regulamentação posterior que lhes complemente
a eficácia (normas de eficácia limitada)[7].
Assim, de
acordo com essa classificação, apenas as normas que não podem ser imediatamente
aplicadas, por dependerem de uma regulamentação posterior que lhes complemente
a eficácia, poderiam causar uma situação de inconstitucionalidade por omissão,
bastando para tanto que o órgão responsável pela regulamentação ficasse inerte,
ou seja, não cumprisse o seu dever constitucional de aprovar a respectiva norma
regulamentadora. A inércia regulamentar impediria que a norma produzisse efeitos,
justificando a adoção de mecanismos judiciais de superação da omissão
inconstitucional.
De um modo
geral, as normas constitucionais de eficácia limitada adotam uma estrutura
condicionada, remetendo à lei a tarefa de preencher o seu sentido normativo.
Assim, por exemplo, quando o Texto Constitucional estabelece que "a lei disporá
sobre..." ou "o direito X será exercido conforme dispuser a lei"
ou "o Congresso Nacional deverá regulamentar, no prazo de X dias, o
direito Y" etc.,
está-se diante de uma típica norma de eficácia limitada apta a produzir, pela
visão canônica, a omissão inconstitucional.
Nas linhas
seguintes, serão expressas algumas críticas, visando a justificar, senão o
abandono total da classificação de José Afonso da Silva, pelo menos, uma
reformulação crítica de sua proposta original. Se ficar evidente que referida
classificação não é totalmente adequada para bem compreender o fenômeno da
eficácia das normas constitucionais, será percebido o fato de ser um equívoco
afirmar que apenas as normas de eficácia limitada podem produzir omissões
inconstitucionais.
2 A SUPERAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO DE JOSÉ AFONSO DA SILVA
José Afonso
da Silva escreveu a sua famosa proposta de taxinomia das normas constitucionais
em 1966, numa época em que o constitucionalismo padecia de grave crise de
efetividade, já que se vivia em um regime de exceção. Nessa
conturbada realidade, José Afonso da Silva conseguiu uma proeza: obteve
reconhecimento por uma teoria que tratava justamente da eficácia das normas
constitucionais[8].
Sua teoria atingiu tal nível de aceitação no centro jurídico brasileiro que,
ainda hoje, passados 40 anos, é adotada pelo Supremo Tribunal Federal em alguns
casos[9].
Várias foram as tentativas de refutação da teoria desde a sua formulação
original, mas poucas alcançaram o nível de precisão
daquelas lançadas por Virgílio Afonso da Silva no texto "Eficácia das
Normas Constitucionais" (SILVA, 2010). Com base nelas, podem ser apontados
pelo menos três aspectos que justificam a superação da classificação de JAS.
Esses três aspectos podem ser sintetizados da seguinte forma:
(1) a
proposta de José Afonso da Silva desvaloriza as normas de eficácia limitada,
dificultando que delas se extraia a sua máxima eficácia;
(2) a
proposta de José Afonso da Silva trata as normas de eficácia plena como normas
irrestringíveis, o que não é condizente com a compreensão do caráter
necessariamente relativo dos direitos;
(3) a
proposta de José Afonso da Silva trata algumas normas (em particular, as de
eficácia plena e as de eficácia contida) como "bastantes em si",
reconhecendo-lhes uma autossuficiência que pode prejudicar o seu
desenvolvimento normativo e consequentemente sua eficácia.
Vejamos, de
per si, cada uma dessas críticas, verificando como elas interferem no problema
das omissões inconstitucionais.
Em primeiro
lugar, a ideia de norma de eficácia
limitada pode levar a um esvaziamento normativo da constituição, na medida
em que se cria um pretexto para negar aplicação a uma norma constitucional até
que o legislador resolva regulamentá-la. Não é à toa que o conceito, em geral,
é mobilizado, ainda que de forma distorcida de sua formulação original, para
negar eficácia à norma constitucional, como se as normas de eficácia limitada
fossem normas sem eficácia alguma[10].
O curioso é
que José Afonso da Silva, ao desenvolver o conceito de norma de eficácia
limitada, pretendia oferecer uma tipologia capaz de superar a velha concepção
de norma constitucional não-auto-aplicável. Para isso, defendeu que toda norma
constitucional possuiria algum nível de eficácia imediata, funcionando, no
mínimo, como parâmetro para a revogação
das regras preexistentes que lhes sejam contrárias, para o controle de
constitucionalidade e para a interpretação jurídica. Ou seja, mesmo as
normas constitucionais com o menor grau de eficácia poderiam ter a força de
revogar e anular a legislação contrária ao seu sentido normativo e poderiam
auxiliar a compreensão de outras normas jurídicas como vetores interpretativos. É o que ele denominava de eficácia negativa das normas
constitucionais[11].
Embora a ideia de que todas as normas constitucionais possuem uma
"eficácia negativa" tenha sido um avanço na época em que foi
desenvolvida, hoje se pode dizer que a eficácia das normas de eficácia limitada
não se esgota nisso. Afinal, foram desenvolvidos mecanismos de superação das
omissões inconstitucionais para além da chamada "eficácia
negativa" para se permitir, em muitas ocasiões, a correção judicial da
ausência de norma regulamentadora, inclusive ao ponto de se admitir a
construção de soluções normativas pelo próprio Poder Judiciário.
Além disso,
algumas obrigações jurídicas podem ser, em determinadas circunstâncias,
diretamente extraídas dos princípios que emanam das normas de eficácia
limitada, com uma força normativa que vai muito além da mera eficácia negativa.
De qualquer modo, nesse ponto, a mobilização do conceito de eficácia limitada não gera tanto
problema para a compreensão do fenômeno da omissão inconstitucional, pois,
mesmo que se reconheça algum nível de eficácia a essas normas, o que se está a
defender é que, para a produção de alguns efeitos importantes, a eficácia da
norma depende de uma regulamentação normativa. E é justamente a ausência dessa
regulamentação normativa que cria um obstáculo para a realização plena do
direito, caracterizando a omissão inconstitucional[12].
O segundo
ponto problemático na proposta de José Afonso da Silva envolve a distinção
entre norma de eficácia plena e norma de eficácia contida. A rigor, não
haveria diferença substancial entre essas duas espécies normativas, já que
ambas teriam, no primeiro momento, eficácia plena e aplicabilidade imediata. A
diferença ocorreria não no âmbito da aplicação ou da eficácia, mas da possibilidade
de restrição, pois se pressupõe que existem algumas normas constitucionais
irrestringíveis (de eficácia plena) e algumas delas passíveis de restrição (de
eficácia contida[13]).
Então, as normas de eficácia plena e contida possuiriam o mesmo nível de
aplicação e eficácia, não havendo sentido distingui-las quanto a esses aspectos
que são aqueles centrais do modelo triádico. Em verdade, normas de eficácia
plena e normas de eficácia contida são duas espécies de norma de eficácia plena
e aplicabilidade imediata: as primeiras são normas de eficácia plena e
aplicabilidade imediata não passíveis de restrição, ao
passo que as outras são normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata
passíveis de restrição.
Além disso,
mesmo naquilo em que supostamente as diferencia (possibilidade de restrição), é
bastante difícil sustentar a dicotomia de um modo relevante, pois a ideia de
norma irrestringível depende de alguns pressupostos muito difíceis de sustentar[14].
Basta dizer que, no campo dos direitos fundamentais, em que a carga de
importância axiológica da norma constitucional é bastante elevada, são raros os
autores que defendem a existência de direitos ilimitados e absolutos[15].
Nesse âmbito, até mesmo as normas de eficácia plena seriam passíveis de
restrições, o que justificaria a superação da dicotomia. Também nesse ponto, entretanto,
o abandono da classificação de José Afonso da Silva não ocasiona maiores
dificuldades de compreensão das omissões inconstitucionais, pois, em geral,
quando se fala em inconstitucionalidade por omissão, o foco da análise se volta
precipuamente para o âmbito de proteção
dos direitos fundamentais e não para o nível
de intervenção ou restrição, algo que, em tese, diminuiria o âmbito de
proteção; ou seja, em princípio, a ausência de uma normatização sobre as
restrições ao direito fundamental não ocasionaria uma inconstitucionalidade por
omissão, pois não seria um obstáculo capaz de inviabilizar o imediato exercício
do referido direito[16].
Há o
terceiro ponto, contudo, intimamente relacionado ao que se discutiu no
parágrafo antecedente, que justifica uma reavaliação da tese de que apenas as
chamadas normas de eficácia limitada são passíveis de possibilitar a omissão
inconstitucional. É que o conceito de normas
de eficácia plena se baseia numa
falsa crença de autossuficiência de determinadas normas constitucionais que,
além de equivocada, é perigosa. De acordo com essa crença, o dever do Estado,
em matéria de legislação, estaria plenamente cumprido com a mera positivação
constitucional da norma; ou seja, se a norma é de eficácia plena e de aplicação
imediata, não há mais nada a ser feito no nível legislativo, já que a norma é
"bastante em si"[17],
sendo inadequado falar-se em omissão inconstitucional pela ausência da
regulação da referida norma. É justamente esse ponto que merece ser explorado
para justificar uma reavaliação da afirmação de que apenas as normas de
eficácia limitada são passíveis de ensejar a omissão inconstitucional. Conforme
será demonstrado, até mesmo as normas de eficácia plena e aplicabilidade
imediata podem exigir a adoção de alguma medida legislativa capaz de lhe dar
ainda mais eficácia[18].
3 NORMAS DE EFICÁCIA PLENA (OU CONTIDA) E OMISSÃO INCONSTITUCIONAL
O conceito
de norma de eficácia plena, da forma
como é exposta tradicionalmente, negligencia a multiplicidade de deveres
decorrentes das normas constitucionais. Tomando como parâmetro as normas
constitucionais que definem direitos fundamentais, percebe-se facilmente que
tais normas impõem ao Estado um complexo variado de tarefas, que vão muito além
do mero agir em conformidade com a norma constitucional. Além do dever de
respeito (não violar a norma ou cumprir o que ela determina), também existem
deveres de proteção, promoção, organização etc., que, em geral, exigem
complementação normativa para alcançarem os resultados desejados[19].
Esses deveres que emanam das normas de direitos fundamentais (e de direitos
humanos) não dependem da forma textual em que a norma é expressa. A existência
ou não de reserva legal ou de uma ordem explícita dirigida aos agentes estatais
não é o mais relevante para extrair todas as ações a serem adotadas para a
máxima efetivação da norma[20].
O que importa é o fundamento de valor que emana da norma, e o tipo de
comportamento que pode ser exigido com suporte naquele.
O pleno
cumprimento da igualdade, por exemplo, não se restringe a um respeito estatal
ao mandamento de não discriminação (dever
de respeito). É fundamental, do mesmo modo, que o Estado desenvolva
mecanismos para evitar que as pessoas pratiquem a discriminação, devendo ser
criada uma estrutura jurídico-institucional de combate ao preconceito (dever de proteção) e adotadas medidas
para reduzir as desigualdades socioeconômicas da sociedade, inclusive mediante
a previsão de mecanismos de ação afirmativa (dever de promoção da igualdade). Assim, para que o ideal de
igualdade seja plenamente alcançado, são necessárias, sem dúvida, intervenções
legislativas e administrativas que proporcionem maior densificação do
mandamento constitucional e, para isso, é preciso aprovar normas de combate ao
racismo ou de favorecimento de grupos vulneráveis (ações afirmativas), entre
outras medidas semelhantes[21].
Outro
exemplo pode ser desenvolvido focando no direito à integridade moral e física.
A norma veda, independentemente de regulamentação, uma série de atos estatais
que seriam violadores da integridade, como, por exemplo, a prática de tortura a
um interrogando ou de maus-tratos a presos. Para isso, obviamente, não há
qualquer necessidade de uma ação judicial visando a suprir uma suposta omissão
legislativa ou algo do gênero. Há, entretanto, alguns efeitos da norma que
dependem sim de regulamentação. Basta ver que a imputação da responsabilidade
internacional do Brasil no caso Maria da Penha (com posterior aprovação da lei
respectiva - Lei 11.340/2006) foi justamente pela ausência de um sistema
eficiente de proteção das mulheres contra violência doméstica.
No caso, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos constatou que o problema não se
restringia àquela vítima em particular e, portanto, a solução estrutural do
problema demandaria a adoção de uma política pública mais integral de combate à
violência doméstica, visando a conceder plena eficácia ao dever de proteção que
emana da norma garantidora da integridade. Nas palavras da Comissão, a "violação
segue um padrão discriminatório com respeito a
tolerância da violência doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da
ação judicial", razão pela qual o Brasil deveria, além de apurar as
responsabilidades daí decorrentes, reparar pronta e efetivamente a vítima da
violência, bem como adotar "medidas, no âmbito nacional, para eliminar
essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres"[22].
A mesma
lógica pode ser adotada em relação à liberdade de expressão. Uma norma que, na classificação de José
Afonso da Silva, seria tipicamente de eficácia plena e, em tese, não estaria
submetida a nenhum tipo de reserva legal explícita que justificasse,
formalmente, a sua restrição. Sem dúvida, alguns efeitos produzidos pela
referida norma constitucional independem de regulamentação, sobretudo aqueles
relacionados ao dever de respeito (não censurar, por exemplo). Algumas
intervenções legislativas, entretanto, poderiam ser necessárias ou, pelo menos,
úteis para que alguns efeitos fossem alcançados plenamente, sobretudo se o que
se intenta é um ambiente de circulação de ideias livre, plural e democrático
(aqui o exemplo é de Virgílio Afonso da Silva). Considere-se, por exemplo, a
necessidade de regulação da Internet, visando, entre outras coisas, a garantir
a neutralidade estatal no controle das informações transmitidas, ou então
proporcionar, por meio de políticas públicas, o pleno acesso a grupos
desfavorecidos aos meios tecnológicos (inclusão digital).
Se
incluirmos o financiamento da cultura ou o direito à informação e à educação
como pressupostos para o exercício da liberdade de expressão, também teríamos
um vasto campo onde seria importante haver normas regulamentadoras capazes de
proporcionar a promoção de um amplo e plural "mercado de ideias";
isto é, é equívoco pensar que a proteção normativa da liberdade de expressão
está plenamente garantida com a mera positivação constitucional e com o
cumprimento do chamado dever de respeito com teor negativo (de abstenção ou de
defesa).
Além da não
intervenção do Estado na livre circulação de ideias, o Ente estatal deve adotar
diversas medidas para garantir a manifestação de pensamento de grupos "sem
voz política" ou então para reduzir a concentração de poder dos meios de
comunicação coletiva ou para evitar que os particulares impeçam outros
particulares de se manifestarem ou para punir o abuso do exercício etc.
Além disso,
não se pode descartar a possibilidade de ocorrer uma omissão inconstitucional
pela ausência de uma regulamentação das restrições a direitos fundamentais[23].
Esse ponto precisa ser bem entendido, pois parece ser contraditório em relação
à própria ideia de omissão inconstitucional. Afinal, uma restrição, como é óbvio, limita o âmbito de proteção e, consequentemente, a
eficácia do direito fundamental restringido. Logo, como o instituto da omissão
inconstitucional surge justamente em face da ineficácia do direito pela
ausência de uma regulação, o direito, em princípio, estaria mais bem protegido
se não existissem restrições. O problema aqui envolve dois aspectos sobre as
restrições que justificam uma abordagem que não elimine, de antemão, a
possibilidade de ocorrência de omissão inconstitucional pela não regulamentação
das restrições.
O primeiro
é que a restrição a um determinado direito fundamental também pode ser, em
muitas ocasiões, instrumento de proteção
e promoção de outros direitos fundamentais, que podem ser ameaçados com o
exercício ilimitado do direito restringido. Assim, é possível que um
determinado direito fundamental seja aniquilado pela ausência de restrições
normativas de outro direito fundamental. Por exemplo, a ausência de uma
delimitação minimamente precisa do âmbito de proteção da liberdade de expressão
pode deixar os direitos de personalidade sem proteção. Do mesmo modo, sem a
imposição de limites ao discurso de ódio, a liberdade de expressão pode
funcionar como um instrumento de violação da igualdade (combate à
discriminação), que também é um valor constitucionalmente relevante[24].
Na mesma linha, a ausência de restrições à propaganda de produtos nocivos pode
submeter a risco a saúde dos consumidores e a proteção ao meio ambiente[25].
O segundo
ponto é que a ausência de restrições bem definidas pode ensejar um risco para a
eficácia do próprio direito fundamental a ser restringido. É fácil entender se
se tiver a ideia de que as restrições aos direitos fundamentais podem ser
estabelecidas, com base na proporcionalidade, também por meio de decisões
judiciais. Assim, sem parâmetros bem definidos a balizar o juízo de ponderação,
há sempre o perigo de arbítrio/abuso judicial na restrição de direitos
fundamentais, que pode se tornar sistemática se houver a estabilização da
jurisprudência permitindo a restrição arbitrária. Nessas situações, a
regulamentação das restrições pode ser útil para impedir o abuso judicial,
podendo contribuir para o aumento da eficácia do direito em jogo[26].
Assim, por
exemplo, a ausência de uma delimitação precisa do âmbito de proteção da
liberdade de expressão pode acarretar limitações arbitrárias ao referido
direito fundamental, na medida em que os juízes poderão se sentir
livres para relativizá-lo por motivos banais[27].
Do mesmo modo, a falta de uma definição exata do âmbito de proteção e das zonas
de restrição da liberdade político-partidária pode ensejar uma proibição
abusiva do exercício do direito, ao ponto, por exemplo, de se cassar
arbitrariamente o direito de funcionamento de um partido político, tal como já
ocorreu em relação ao Partido Comunista.
Outro
exemplo ilustrativo pode ser desenvolvido com amparo na norma constitucional, a
qual que prevê a liberdade profissional, que, na classificação de José Afonso
da Silva, seria uma típica norma de eficácia contida ("Artigo 5o,
inc. XIII - é livre o exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer"). A leitura canônica da referida norma induz a se
acreditar que a ausência de uma legislação definindo as "qualificações
profissionais" necessárias ao exercício de uma determinada profissão nunca
poderia ser considerada como um empecilho à liberdade. Afinal, em se tratando
de uma norma de eficácia contida, a norma produziria imediatamente todos os
seus efeitos, enquanto não fosse aprovada a legislação regulamentadora,
equiparando-se a uma norma de eficácia plena. Assim, não seria necessária uma
ação judicial para obrigar o legislador a regulamentar determinada profissão ou
para suprir judicialmente a falta de norma regulamentar, uma vez que, na
ausência de lei, o exercício daquela profissão não regulamentada seria livre e
ilimitado.
Apesar
disso, basta ver o tratamento conferido à prostituição para verificar que a situação
não é tão simples quanto se imagina. A ausência de uma norma regulamentando a
prostituição enseja restrições arbitrárias de direitos (sobretudo
previdenciários e trabalhistas) e, no extremo, serve de pretexto para a prática
de violência moral e física contra as prostitutas, inclusive por agentes
estatais.
Nota-se,
neste caso, é que uma regulamentação desse ofício poderia elevar a dignidade do
grupo estigmatizado, reforçando direitos que, em tese, já são garantidos, mas,
na prática, são desrespeitados, e possibilitando, de modo muito mais pleno e
efetivo, o exercício daquela liberdade profissional. Assim, não se deveria
descartar de plano a adequação e necessidade de uma ação judicial visando a corrigir
essa lacuna normativa, sobretudo ante a notória má vontade parlamentar de
reconhecer os direitos decorrentes da prática da prostituição e imperiosa
necessidade de se criar uma rede de proteção jurídica para esse grupo
marginalizado.
Pode-se,
com efeito, concluir, que, em determinadas situações, quando a ausência de uma
norma regulamentadora está a dificultar a plena efetivação de um direito, é
razoável tratar o problema como um caso de omissão
inconstitucional. Isso permitirá que se desenvolvam soluções que
ultrapassam os inúteis "apelos" ao legislador e reforçará a ideia de
que a efetivação dos direitos é algo sempre inacabado, a exigir um contínuo
esforço de densificação e concretização por parte de todos os agentes estatais.
CONCLUSÃO
Ao longo
deste estudo, tentou-se demonstrar que o parâmetro normativo do controle das
omissões inconstitucionais pode envolver até mesmo normas constitucionais que,
na aparência, estão plenamente aptas a produzirem todos os seus efeitos. Ao
contrário do que é reproduzido pela dogmática constitucional, não são apenas as
normas de eficácia limitada que podem dar azo às omissões inconstitucionais. Sempre
que a pretensão normativa da Constituição é frustrada por uma inação estatal
tem-se um caso de omissão inconstitucional. Logo, o parâmetro normativo para
verificar se há ou não uma inconstitucionalidade por omissão está nas normas constitucionais que impõem deveres de ação, inclusive as assim
denominadas normas de eficácia plena ou contida.
De modo mais
específico, pode-se afirmar o seguinte: todas as
normas constitucionais produzem alguns efeitos que independem de regulação
normativa e, consequentemente, em relação a tais efeitos, não há sentido em
falar em omissão inconstitucional. É possível, todavia, existirem alguns
efeitos que somente podem ser produzidos ou seriam mais bem produzidos se
houvesse uma regulamentação normativa. Em situações assim, é possível falar em
omissão inconstitucional mesmo em se tratando de normas que, tradicionalmente,
são classificadas como normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
Esse debate,
embora primariamente situado no plano da dogmática constitucional, envolve uma
preocupação axiológica consistente em reconhecer o caráter sempre incompleto da
proteção dos direitos fundamentais, visando a estabelecer um modelo de
jurisdição constitucional que tenha plena consciência da dimensão expansiva da
dignidade e da justiça.
Ter
consciência da dimensão expansiva da dignidade e da justiça significa perceber
que a efetivação dos direitos é um contínuo que acompanha
a acumulação do conhecimento, a aprendizagem sempre enriquecida pela
experiência e a mudança de consciência que o amadurecimento intelectual produz.
Também conduz a que nunca se esteja conformado com o estado de coisas, nem acreditar
que já se atingiu o estádio final da evolução cultural. É preciso estar sempre
aberto para o porvir e para o devir.
Considerar que a
declaração em tom generalista e grandiloquente de um direito fundamental, por
si, é bastante para garantir sua máxima efetividade é uma ingenuidade que não
pode ser aceita. Pior ainda: acreditar que as gerações futuras não serão
capazes de ampliar o nível de proteção institucional dos direitos fundamentais
não é apenas um sinal de arrogância, mas, sobretudo, de ignorância quanto à
própria história da humanidade. Ainda que se tenha a mais bela declaração de direitos já imaginada pelo ser humano (o que certamente não
é o caso), nunca se poderá assinalar que se atingiu algo como a justiça
absolutamente perfeita. Por isso, é preciso se abrir para o futuro e reconhecer
o caráter sempre incompleto, contínuo e expansivo da dignidade e da justiça, o
que pressupõe, por óbvio, tratar as normas constitucionais como um ponto de partida
de um projeto em elaboração, jamais como ponto final de uma obra acabada.
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* Doutor em Direito pela Universidade de
Coimbra, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará,
professor de Direito Constitucional, juiz federal no Ceará. E-mail: [email protected].
Data de recebimento do artigo: 18/01/2016 –
Data de avaliação: 29/01/2016 e 01/02/2016.
[1] A título de exemplos:
"Não é a falta de atuação administrativa que possibilita a impetração do
mandado de injunção, mas a falta de norma regulamentadora de normas
constitucionais de eficácia limitada. (Normas constitucionais de eficácia
limitada, justamente porque não reúnem condições para, sozinhas, produzirem os
efeitos que a Constituição quer). Noutro giro verbal, não cabe mandado de
injunção contra comissões de órgãos administrativos. Só contra omissão do Poder
Legislativo. E omissões que impedem o cabal cumprimento de normas
constitucionais de eficácia limitada". (CARRAZZA, 1993). "Assim, em
conformidade com a classificação apresentada por José Afonso da Silva, só as
normas de eficácia limitada podem servir de parâmetro para a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão. [...] Para uma delimitação conceitual da
omissão inconstitucional, é preciso que se deixe claro, desde logo, que só
haverá essa omissão no domínio das chamadas normas constitucionais de eficácia
limitada, pois são as únicas que dependem ora de providências normativas do
Poder Legislativo, ora de prestações positivas do Poder Executivo. Vale dizer,
a omissão inconstitucional está relacionada com as normas constitucionais de
eficácia limitada. Isso significa que, por óbvio, se todas as normas detivessem
eficácia plena, não haveria lugar para a omissão inconstitucional". (CUNHA
JÚNIOR, 2004). "Não há que se falar em omissão legislativa
inconstitucional diante de normas constitucionais autoaplicáveis [...], de
forma que toda norma constitucional diretamente aplicável exclui uma omissão
juridicamente relevante". (CAMPOS, 2011, p. 51). “O mandado de injunção é
destinado às normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, não
possuidoras de normatividade suficiente para, de imediato, gerarem seus
efeitos, necessitando de legislação infraconstitucional”. (FARIA, 2001).
"Somente as normas constitucionais de eficácia limitada podem ser objetos
da ação de inconstitucionalidade por omissão, pois somente estas dependem de
normas infraconstitucionais para sua efetividade". (FOLADOR, 2015).
"O parâmetro do controle abstrato [por omissão] consiste em norma
constitucional de eficácia limitada, declaratória de princípio institutivo ou
princípio programático, que tenha imposto o dever de legislar violado".
(PEÑA DE MORAES, 2012, p. 260). "Se o seu caráter é o de suprir omissão
legislativa, descabe o mandado se a norma, justamente por conter aplicabilidade
imediata, desnecessitar de regulamentação". (SLAIBI FILHO, 2006, p. 435).
"A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão é o instituto jurídico
criado pelo Poder Constituinte Originário para sanar,
em sede de controle de constitucionalidade abstrato e com eficácia erga
omnes, a ausência de norma infraconstitucional suplementar de dispositivo
constitucional de eficácia limitada ou restrita". (SILVA, 2012). "Não
é a mera omissão legislativa que permite a injunção. É necessário que a
ausência da norma torne inviável o exercício de direitos, liberdades e
prerrogativas. Portanto, quando a Constituição contiver toda a normação
necessária para a eficácia de sua disposição, seu desrespeito não será atacado
por injunção, mas pelos remédios comuns, como o mandado de segurança, mesmo que
inexista lei complementando as disposições constitucionais. A injunção não é um
modo de tornar de fato respeitadas as normas de eficácia plena, mas sim de
tornar plenamente eficazes as de eficácia limitada. Assim, é fundamental que a
norma constitucional cuja regulamentação é omitida seja de eficácia limitada, é
dizer, seja daquelas que 'não receberam, do constituinte, normatividade
suficiente para sua aplicação, o qual deixou, para o legislador ordinário, a
tarefa de completar a regulamentação da matéria nelas traçada em princípio ou
esquema”. (SUNDFELD, 2011). "Não se pode olvidar o telos do mandado de injunção, qual seja, o de viabilizar o
exercício de um direito concedido por norma constitucional de eficácia
limitada". (QUEIROZ, 1998).
[2] STF,
MI 833, rel. Min. Carmen Lúcia (rel. para acórdão: Min. Roberto Barroso), j.
11/6/2015. No referido julgado, o voto da Min. Carmen Lúcia iniciou-se com a
seguinte afirmação: "O mandado de injunção é ação constitucional de
natureza mandamental, destinada a integrar a regra constitucional limitada, em
sua eficácia, pela ausência de norma que assegure a ela o
vigor pleno".
[3]"É
impróprio o uso do mandado de injunção para o exercício de direito decorrente
de norma auto-aplicável" (STF, MI 97/MG, rel. Min. Sidney Sanches, j.
10/2/1990); "Não há interesse processual necessário à impetração de
mandado de injunção, se o exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa
constitucional da requerente não está inviabilizado pela falta de norma
infraconstitucional, dada a recepção de direito ordinário anterior" (STF,
MI 144, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence,
Tribunal Pleno, julgado em 03/08/1992). "A jurisprudência desta Suprema
Corte firmou-se no sentido de que o art. 37, X, da Magna Carta já foi objeto de
regulamentação, no âmbito federal, pela Lei 10.331/2001, com as alterações
promovidas pela Lei 10.697/2003. Dessa forma, à míngua de norma constitucional
de eficácia limitada pendente de regulamentação, não há lastro para a concessão
da pretendida ordem injuncional coletiva. Precedentes do Plenário: MI 5313 ED,
Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 13.6.2014; MI 5085 ED,
Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 06.6.2014; MI 4265 AgR, Rel. Min. Gilmar
Mendes, DJe de 02.6.2014; e MI 4831 AgR, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe de
28.08.2013" (STF, MI 2411 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal
Pleno, julgado em 01/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-165 DIVULG 26-08-2014
PUBLIC 27-08-2014).
[4] O
livro de referência aqui adotado é: SILVA, 1998.
[5] Nas
palavras do próprio autor: "Aquelas que, desde a entrada em vigor da
constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos
essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o
legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular". (SILVA,
1998, p. 101).
[6]"Aquelas
em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses
relativos à determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte
da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei
estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados" (SILVA,
1998, p. 116).
[7]"Através
das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e
atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário
os estruture em definitivo, mediante lei" (SILVA, 1998, p. 126).
[8] Como
explica Virgílio Afonso da Silva, "embora o título do livro de José Afonso
da Silva seja Aplicabilidade das Normas Constitucionais, o conceito mais
importante de seu trabalho é a eficácia das normas constitucionais" (Op. cit., p. 210).
[9] Tal
incorporação da teoria à prática jurisprudencial, contudo, não é totalmente
coerente. Além de haver, com certa frequência, equívocos de nomenclatura
(confundindo, por exemplo, as normas de
eficácia contida com as normas de
eficácia limitada), o conceito "normas de eficácia limitada"
quase sempre é mobilizado para esvaziar o significado normativo da norma, como
se as referidas normas fossem desprovidas de qualquer eficácia, o que não
corresponde ao que José Afonso da Silva defendia.
[10] Em
geral, a jurisprudência do STF invoca o conceito de norma de eficácia limitada
como sinônimo de norma não-auto-aplicável. Confiram-se
alguns exemplos: "O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido
de que o artigo 37, I, da Constituição do Brasil [redação após a EC 19/98],
consubstancia, relativamente ao acesso aos cargos públicos por estrangeiros,
preceito constitucional dotado de eficácia limitada, dependendo de
regulamentação para produzir efeitos, sendo assim, não auto-aplicável.
Precedentes. Agravo regimental a que se dá provimento" (STF, RE 544655 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, j. 09/09/2008).
"A regra inscrita no art. 192, § 3º, da Carta Política - norma
constitucional de eficácia limitada - constitui preceito de integração que
reclama, em caráter necessário, para efeito de sua plena incidência, a mediação
legislativa concretizadora do comando nela positivado. O Congresso Nacional desempenha,
nesse contexto, a relevantíssima função de sujeito concretizante da vontade
formalmente proclamada no texto da Constituição. Sem que ocorra a interpositio legislatoris, a norma
constitucional de eficácia limitada não produzirá, em plenitude, as consequências
jurídicas que lhe são pertinentes. Ausente o ato legislativo reclamado pela
Constituição, torna-se inviável pretender, desde logo, a observância do limite
estabelecido no art. 192, § 3º, da Carta Federal" (STF, RE 168501, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, j. 28/09/1993).
[11] Para
José Afonso da Silva, a “eficácia negativa”, inerente a toda norma
constitucional, implica o reconhecimento de uma eficácia jurídica imediata,
direta e vinculante na medida em que: I – estabelece um dever para o legislador
ordinário; II – condiciona a legislação futura, com a consequência de serem
inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informa a concepção do
Estado e da sociedade e inspira a sua ordenação jurídica, mediante a atribuição
de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos
componentes do bem comum; IV – constitui sentido teleológico para a
interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a
atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI – cria situações
subjetivas, de vantagem ou desvantagem.
[12] Assim,
por exemplo, o Texto Constitucional que dispõe que "a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (artigo
5º, inc. XLI) contém um nível de eficácia desde já verificável, mas a produção
plena de seus efeitos dependerá de uma ação legislativa que estabeleça as
condições para a punição constitucionalmente pretendida, dando ensejo à
configuração da omissão inconstitucional.
[13]
Virgílio Afonso da Silva critica a denominação "norma de eficácia
contida", por entender que não faz sentido denominar como contida a norma
cuja eficácia possa ser restringida, já que o termo expressa algo já realizado,
e não apenas potencial. Por essa razão, é preferível usar o termo
"contível" ou "restringível". (Op. cit., p. 220-221).
[14] Há
alguns artigos constitucionais que poderiam se encaixar de um modo muito
preciso no conceito de norma de eficácia plena na forma pretendida por José
Afonso da Silva, ou seja, normas que produzem todos os seus efeitos,
independentemente de regulação, e que não são passíveis de restrição normativa,
mas dificilmente tais artigos podem ser considerados como normas propriamente
ditas. Assim, por exemplo, o §1º, do art. 18, da CF/88, ao estabelecer que
“Brasília é a capital federal” ou o artigo que estabelece que "a língua
portuguesa é a língua oficial da República Federativa do Brasil" (art. 13)
são típicos exemplos de norma constitucional de eficácia plena e não são passíveis
de restrições. Há dois fatores, porém, que justificam a manutenção do que foi
expresso acima, ou seja, mesmo as normas de eficácia plena seriam
restringíveis. Primeiro, porque dificilmente esses artigos podem ser encaixados
em um conceito estrito de norma jurídica. Em rigor, são fatos
institucionalizados constitucionalmente e não regras de conduta ou diretrizes
de ação. Sua linguagem não é prescritiva, mas impositiva, situada no plano do
ser e não do dever-ser. Em segundo lugar, o conceito adotado por José Afonso da
Silva abrange até mesmo alguns direitos fundamentais (liberdade de expressão,
por exemplo) e é justamente esse tipo de inclusão que enseja o problema
assinalado no texto, vale dizer: dificilmente seria possível cogitar na
existência de um direito fundamental ilimitado. A única forma de se pensar em
direitos fundamentais absolutos seria com a adoção da teoria dos limites imanentes,
discussão esta que foge aos escopos deste estudo. Sobre isso: Silva, 2006, p.
23-51.
[15] A
afirmação de que não existem direitos absolutos já se tornou um lugar-comum no
discurso constitucional, mas precisa ser analisada com cautela. Embora essa
afirmação possa ser correta, a forma banalizada e distorcida com que se
reproduz esse pensamento está dando margem ao surgimento de um discurso pouco
comprometido com os direitos fundamentais, ameaçando concretamente a ideia de
dignidade humana. Por isso, é preciso deixar claro que a limitação de um
direito fundamental somente se justifica em circunstâncias especiais, atendidos
diversos requisitos formais e materiais, sem os quais a relativização se torna
juridicamente inválida.
[16] Conforme
se verá mais à frente, essa ideia deve ser vista com temperamentos, pois, em
algumas circunstâncias, a regulação da restrição pode ser útil para aumentar a
eficácia do direito fundamental. Além disso, existem algumas normas
constitucionais que impõem deveres de legislar em matéria de restrição de
direitos. É o caso, por exemplo, do dever constitucional dirigido ao legislador
de restringir a propaganda comercial de "tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias" (artigo 220, §4°, da CF/88) ou então
de criminalizar o racismo (artigo 5°, inc. XLII), entre vários outros.
[17] A
expressão é de Pontes de Miranda, conforme citado por Virgílio Afonso da Silva
(Op. cit., p. 229).
[18] Como
assinala Virgílio Afonso da Silva: (1) toda norma que garante direitos
fundamentais pode ser restringida; (2) toda norma que garante direitos
fundamentais pode (às vezes, deve) ser regulamentada (Op. cit., p. 230). E, citando Konrad Hesse, assinala: "Para
produzir efeitos, a maioria dos direitos fundamentais depende de uma
regulamentação jurídica das relações e dos âmbitos da vida que eles devem
garantir. Essa regulamentação é, em primeira linha, tarefa do legislador ordinário.
Ela pode se basear em uma exigência constitucional expressa [...]. Mas ela pode
também se mostrar necessária independentemente desse tipo e exigência" (Op. cit., p. 246).
[19] Sobre
isso: MARMELSTEIN, 2008, p. 284-289, onde se explica que todo direito fundamental
gera, para o estado, um dever de respeito, proteção e promoção, ou seja, o Estado
tem o dever de respeitar (não violar o direito), proteger (não deixar que o
direito seja violado) e promover (possibilitar que todos usufruam) esses
direitos. Assim, o dever de respeito, proteção e promoção, inerente a qualquer
direito fundamental, impõe uma multiplicidade de tarefas ao poder público, de
modo que a concretização plena dessas normas não se esgota em um mero agir ou
não agir do Estado.
[20] Sobre
isso, tentando desfazer um mal-entendido sobre o papel das reservas legais dos
direitos fundamentais no sistema jurídico brasileiro: Silva, 2009, p. 605-618.
No referido artigo, Virgílio Afonso da Silva demonstra que, no Brasil, não há
diferença substancial, quanto à possibilidade de restringibilidade ou quanto à
liberdade de conformação do legislador, entre direitos fundamentais submetidos a reserva legal e direitos fundamentais não submetidos a
reserva legal. Não há, assim, um sistema de reserva legal na Constituição brasileira
que justifique algum tipo de diferenciação forte entre os direitos submetidos a
reserva legal e os direitos não submetidos a reserva
legal.
[21] A
esse respeito, tramita, no STF, o MI 4.733/DF, em que se pretende reconhecer a
omissão legislativa em decorrência da não criminalização da homofobia. Embora o
debate envolva questões mais complexas sobre, por exemplo, a existência ou não
de um dever constitucional de criminalizar a homofobia ou, o que é ainda mais
complicado, a possibilidade ou não de uma colmatação judicial da mora
legislativa (de modo a permitir a criação judicial de tipos penais com as
respectivas sanções), parece óbvio que o principal parâmetro normativo capaz de
justificar a impetração do mandado de injunção é a igualdade (não discriminação),
especificamente o dever de proteção da igualdade, que, mesmo direitos
fundamentais, "de aplicação direta e imediata", são capazes de
ensejar omissões inconstitucionais.
[22]
CIDH, Relatório 54/01, Caso 120.51 Maria da Penha Maia Fernandes v. Brasil, j. 4 de abril de 2001. Em um caso posterior, decidido não no
âmbito da Comissão, mas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH,
Caso González y otras (Campo Algodonero) vs. México. j. 16 de noviembre de
2009), foi desenvolvido com precisão o sentido do dever estatal de proteção em
relação à violência contra as mulheres, sobretudo em razão de padrões
estruturais de violações de direitos. Para a Corte, “los Estados deben adoptar medidas integrales para cumplir con debida
diligencia en casos de violencia contra las mujeres. En particular, deben
contar con un adecuado marco jurídico de protección, con una aplicación
efectiva del mismo, con políticas de prevención y
prácticas que permitan actuar de una manera eficaz ante las denuncias".
[23] Registre-se o fato de que,
no paradigmático caso da greve dos servidores públicos (mandados de injunção
670/ES, 708/DF e 712/PA), onde houve a guinada jurisprudencial sobre a função
do mandado de injunção, foi ressaltada no julgamento a importância de se
regulamentar aquele direito não apenas como forma de garantir aos servidores
uma ferramenta de reivindicação prevista constitucionalmente, mas também para
evitar abusos no exercício do direito de greve, sobretudo envolvendo atividades
públicas essenciais; isto é, a intervenção judicial de correção da mora
legislativa foi justificada tanto para possibilitar o exercício do direito
constitucional "de eficácia limitada" quanto para delimitar com precisão
o seu âmbito de proteção e suas zonas de restrição. De certo modo, ante o caos
jurídico provocado pela falta de uma lei regulamentadora do direito de greve, a
solução dada pelo Supremo Tribunal Federal, supostamente favorável aos
servidores, foi, em certo sentido, até mesmo prejudicial, pois criou condições
muito mais restritas para o exercício daquele direito.
[24] A
esse respeito, o artigo 13, item 5, do Pacto de San
Jose da Costa Rica, contém um dever de legislar especificamente sobre o hate speech, adotando uma estrutura
normativa típica das normas de eficácia limitada: "a lei deve proibir toda
propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial
ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime
ou à violência".
[25] Há,
nesse caso, um verdadeiro dever constitucional de legislar, na medida em que há
uma previsão constitucional prevendo a competência federal para legislar sobre
"propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à
saúde e ao meio ambiente" (Artigo 220, §3°, da CF/88), e um dispositivo
estabelecendo que "a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos
termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de
seu uso" (Artigo 220, §4°, da CF/88).
[26]
Obviamente, em tais situações, quando a jurisprudência tiver se estabilizado no
sentido de enfraquecer o âmbito de proteção de um determinado direito
fundamental, admitindo restrições arbitrárias ao seu conteúdo, dificilmente o
uso de instrumentos processuais típicos do controle das omissões
constitucionais será útil, a não ser que se imagine um controle de
convencionalidade das omissões no nível internacional.
[27] Exemplo
ilustrativo pode ser extraído do Caso "La
Última Tentación de Cristo" vs. Chile, julgado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em 2001. Os fatos que levaram à condenação
do Chile foram motivados por uma ordem judicial, das cortes chilenas,
determinando a censura ao filme "A Última Tentação de Cristo", com
base na ideia de que blasfêmias não estariam inseridas no âmbito de proteção da
liberdade de expressão e, portanto, poderiam ser previamente censuradas
(obviamente, há várias nuances do caso, diante das peculiaridades do modelo institucional
e normativo daquele País, que, embora relevantes, não interferem na ideia
central contida nesta nota). Nesse caso, embora a violação da liberdade de
expressão tenha sido praticada por um ato comissivo do Poder Judiciário, com
base em normas que autorizavam a censura prévia, a Corte reconheceu que, além
da medida usual de anulação do ato violador ao direito (típica dos casos de
correção de inconstitucionalidades e inconvencionalidades por ação), haveria
também a necessidade de mudanças no sistema normativo chileno, a fim de
eliminar a possibilidade de se estabelecerem restrições arbitrárias em
situações semelhantes (algo que é mais comum de ocorrer quando a violação do
direito decorre de uma omissão). De certo modo, a decisão corrobora o que foi
dito: às vezes, a regulação das restrições dos direitos fundamentais pode
ampliar o âmbito de proteção do direito, evitando interpretações
desproporcionais. Em outras palavras: mesmo que as normas que autorizem a
censura prévia em violação à liberdade de expressão fossem anuladas, a violação
poderia continuar sendo praticada se a interpretação restritiva quanto ao
âmbito de proteção do direito fundamental não fosse mudada. E uma das soluções
para isso seria por via da regulação das restrições na via legislativa.