A INTERSEÇÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: A NATUREZA HÍBRIDA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO INSTRUMENTO PARA SUPERAÇÃO DA SUMMA DIVISIO

Bruno Leonardo Câmara Carrá

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará

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Cid Marconi Gurgel de Souza

Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), Pernambuco

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Resumo: Os ordenamentos ocidentais foram construídos sobre a summa divisio entre o direito público e o privado. Com a teoria dos direitos fundamentais, essa diferença necessita ser redimensionada, pois ganha destaque uma postura de simbiose entre ambos. O problema de pesquisa é o seguinte: como a estrutura híbrida dos direitos fundamentais constitui uma superação à dialética da antiga tensão entre os direitos público e privado? A presente pesquisa justifica-se em razão de que, ao estudar aspectos históricos e evolutivos, facilita-se o alcance do estado da arte. A metodologia utilizada é predominantemente teórica, descritiva e qualitativa. A confluência entre as esferas pública e privada reflete o destaque que é dado à teoria dos direitos fundamentais, que passou a ser evocada também nas relações entre particulares. Quanto ao direito civil constitucional é preciso considerar que caso o Estado adote uma postura extremamente paternalista, bens e serviços podem ser onerados por parte do outro polo que compõe a relação jurídica, como uma forma de resguardar eventuais prejuízos.

Palavras-chave: Summa divisio; Direito público e privado; natureza híbrida; Direitos Fundamentais.

The intersection between public and private: the hybrid nature of fundamental rights as a tool to overcome the summa divisio

Abstract: Western legal systems were constituted over the summa divisio between public and private law. With fundamental rights theory, the difference needs to be transformed, because get emphasis a symbiosis posture between laws. The starting problem is the following: how fundamental rights’ hybrid structure constitute an overcome of old tension between public and private law? The present research is justified because the study of historical and evolutionary aspects facilitates to get the institute state of the art. The methodology used is predominantly theoretical, descriptive and qualitative. The confluence between public and private reflects the emphasis of fundamental rights theory, which started to be evoked also in private relations. As for constitutional civil law, it needs to consider that if the State embraces an extremely paternalist posture, goods and services may be encumbered by the other part of legal relation, as a way to guard possible damages.

Keywords: Summa divisio; Public and private Law; hybrid nature; Fundamental Rights.

Introdução

Os limites entre o direito público e o privado sempre foram objeto de grandes questionamentos na teoria geral do Direito. Até Roma, concebia-se o direito como fenômeno unitário. Com efeito, o Direito Romano, como os ordenamentos primitivos em geral, não fazia qualquer diferenciação entre um e outro. No ponto, realmente, é sabido que outros ordenamentos históricos, como o grego, nunca chegaram a realizar uma divisão precisa entre o que era relativo às pessoas enquanto indivíduos e o que concernia prioritariamente ao Estado, a exemplo do que formularia séculos depois Ulpiano tal como conservado na clássica passagem: “Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem.”[1].

A distinção teria como fundamento a hipertrofia do Estado bélico romano.[2] Primeira grande máquina de guerra estável da História ocidental, já que a experiência pontual da expansão helenística levada a efeito por Alexandre Magno resumiu-se ao próprio conquistador, a ascensão de seu império para além do Tibre levou a que se passasse a contemplar uma série de normas destinadas a regular o funcionamento do aparato estatal além de eventuais ofensas a sua estrutura. Como essa expansão solidificou-se no período republicano, naturalmente associou-se os interesses do Status romanae aos do próprio povo de Roma (res publica).[3] Assim, os romanos, embora tenham se notabilizado por seu legado no âmbito do direito privado, conceberam institutos de direito penal, tributário, processual e constitucional que até hoje são utilizados.[4]

Embora prática, contudo, a summa divisio sempre ofereceu desafios, deparando-se os juristas romanos não raras vezes com a superposição de regras de ius publicum e de ius privatum. (MOUSOURAKIS, 2014, p. 97). Para aqueles que colocam em dúvida a cientificidade da distinção, isso se explicaria exatamente diante de uma eventual deficiência teórica inerente a essa construção, imputada de artificial por muitos, como será exposto mais adiante. De Roma até aqui, entretanto, ela vem se mantendo constante e não apenas isso. Em certos momentos, como logo após a revolução francesa, foi particularmente festejada na medida em que foi, a partir de então, que se começou a se entabular o estudo sistêmico das, hoje, principais disciplinas de direito público, como o Direito Constitucional e Administrativo.

Nessa época, tratou-se de destacar que enquanto o Estado atuava frente seus administrados por meio de relações verticais, isto é, de subordinação, na esfera privada, os indivíduos, não tendo direito ao uso da força, salvo situações excepcionalíssimas, agiriam em coordenação de interesses, vale dizer, por meio de relações horizontais. Por decorrência, como demonstram dos princípios mais comezinhos da vida jurídica atual, demonstram a diferença de perspectiva entre um e o outro. Enquanto os ramos de direito público são presididos pelo princípio da legalidade, justamente para que haja o necessário controle do uso da coação pelo Estado, os particulares se regem pelo princípio da licitude, onde, como regra, prevalecem a liberdade e a autonomia.

Assim, embora com visões diferentes, o movimento constitucionalista do Século XVIII, ao preconizar a proteção do indivíduo frente ao Estado, terminou por valer-se da summa divisio entre os âmbitos jurídicos público e privado. Na realidade, nela fez construir a pedra angular dos ordenamentos ocidentais ao aprofundar a distinção de valores que orientam os indivíduos em conformidade com a modalidade de relação intersubjetiva em destaque. Desse modo, diante de cada revolução estatal, também se alterava, por conseguinte, a relação do homem com o público e o privado. A grande questão é que, atualmente, sob o marco dos direito fundamentais, essa diferença necessita ser uma vez mais redimensionada. A consagração de direitos fundamentais de segunda, terceira e mesmo quarta dimensões, se, por um lado, ainda torna necessária a presença de uma fronteira entre os interesses do Estado e os do particular, por outro, exige uma postura não mais de exclusão, mas de clara simbiose entre ambos.

É dentro desse contexto que nasce a preocupação em garantir a concretização dos direitos fundamentais, que são inerentes à própria condição de ser humano. Tais direitos, ao fim e ao cabo, atualmente, traduzem-se não como forma de exclusão, senão que de interseção entre o público e o privado, pois se situam exatamente em uma zona híbrida, que representa, ao mesmo tempo, interesses públicos e privados. No ponto, evolui-se ainda mais, porquanto passa-se a defender a aplicação dos direitos fundamentais não apenas em uma relação vertical – Estado vs. Homem – mas também em uma relação horizontal, ou seja, entre dois particulares.

Diante disso, surgem os seguintes problemas de pesquisa: qual o caminho histórico-evolutivo da interseção entre o público e o privado até se chegar a uma estrutura híbrida dos direitos fundamentais? Como tal fenômeno se constitui como uma superação a dialética da antiga tensão entre o direito público e o direito privado?

Há de se destacar que o presente trabalho não pretende, de forma alguma, esgotar os aspectos evolutivos e os eventos históricos existentes até se alcançar o atual estágio de interseção entre o público e o privado. O que se pretende é apresentar, em linhas gerais, os acontecimentos que trouxeram modificações mais substanciais para as referidas esferas.

A presente pesquisa justifica-se em razão de que, não raro, ao estudar aspectos históricos e evolutivos, torna-se mais facilitado alcançar o denominado estado da arte de determinado instituto e, assim, compreende-lo melhor em todas as particularidades, para, a partir de então, criticá-lo construtivamente.

Feitas tais considerações, o trabalho tem como objetivo geral investigar os principais aspectos históricos e evolutivos da interseção entre o público e o privado até se chegar à efetivação dos direitos fundamentais, bem como a preocupação em aplica-los às relações privadas, especialmente com a concretização do direito civil constitucional. Para a consecução do objetivo geral, foram formulados os seguintes objetivos específicos: a) analisar a evolução da relação entre o público e o privado durante a Revolução Francesa, Estado Liberal e Estado Social; b) discorrer sobre os marco direitos fundamentais em conformidade com a atual teoria constitucional; c) destacar a natureza bifronte ou híbrida dos direitos fundamentais, bem como sua aplicação às relações privadas na contemporaneidade; d) explicar como esse fenômeno se constitui como superação dialética da antiga tensão excludente entre o direito público e o direito privado.

No que concerne à metodologia utilizada, a pesquisa será, fundamentalmente, teórica e descritiva, pois se dedicará a estudar fatores sociais, a saber: a relação do homem com as esferas pública e privada, bem como a existência de uma zona híbrida entre tais âmbitos, notadamente os direitos fundamentais. Além disso, contará com estudos bibliográficos e documentais, em que serão privilegiados autores clássicos e contemporâneos. Também a abordagem qualitativa faz-se presente em razão da preocupação com as mudanças sociais, ou seja, com a necessidade de se reestruturar a tese que propugna a divisão do direito entre público e privado em conformidade com o marco atual dos direitos fundamentais.

Por fim, este trabalho será estruturado em cinco seções, incluindo esta introdução. A segunda seção apresentará a perspectiva histórica das esferas pública e privada no Estado Liberal e no Estado Social. A terceira focará na concepção hodierna da teoria constitucional sobre os direitos fundamentais a fim de destacar sua função de optimização da dignidade humana perante todos os ramos do Direito. A quarta seção contemplará os direitos fundamentais, sua aplicação às relações privadas e os impactos do direito civil constitucional. A quinta e última seção apresentará as considerações finais da pesquisa.

1. A relação entre o público e o privado no Estado liberal e no Estado social

Roma concebeu a diferença entre o público e o privado, mas foi a Revolução Francesa que deu a feição mais contemporânea do âmbito de abrangência dessas duas esferas. E ambos os casos, procurou-se deixar claro as zonas de atuação do indivíduo sem necessidade de intervenção estatal. Porém, enquanto o romano concebida um estado forte, como por todos sabido, as revoluções liberais do Século XVIII buscaram diminuir a força do Leviatã. A esfera privada, em que pese seu inerente caráter também social, contemplaria o poder dos indivíduos em suas próprias relações, pelo que, de acordo com as concepções de Rosseau sobre o contrato social, necessitaria ser resguardada de ingerências externas. (FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 136-137).

Nada tendo de público em sua vida, não precisaria o particular em nada solicitar a autorização, ou o aval do Estado, embora pudesse postular seu amparo caso não houvesse o esperado cumprimento da obrigação. Do mesmo modo, o Estado deveria evitar imiscuir-se nas atividades próprias dos indivíduos, vale dizer, que concernissem a seus interesses. A revolução, conclamando as ideias da novel burguesia economicamente ascendente, pontificava o Estado mínimo, bem caracterizado pela conhecida frase de Quesnay: “laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même”. Não sem alguma razão: o Estado absolutista que a precedeu hipertrofiou-se sobre a esfera privada, quase que aniquilando o indivíduo frente ao rei, o qual, como anotam duas frases também referenciais das ideias em voga nesse outro período da História: jamais errava, ou cometia delitos, e confundia-se com o próprio Estado.[5]

A efetiva delineação das esferas pública e privada, com a prevalência desta sobre aquela, seria, a partir daí, uma fórmula para prevenir ou, pelo menos, reduzir abusos. A separação entre as mencionadas searas mostrava-se fundamental, assim, para a organização de uma nova sociedade, de um novo Estado e de um ordenamento jurídico capaz de disciplinar essa novel ordem. (BORGES, 2003, p. 740). Por isso mesmo, muito se valorizava os princípios da liberdade do indivíduo, da crença na superioridade da regulação espontânea da sociedade e da limitação da intervenção estatal. (ROTH, 2010, p. 16-17).

É nesse contexto que emerge um verdadeiro empenho para, novamente, se fincar esforços na diferenciação entre o direito público e o direito privado. Contudo, os conhecidos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que a inspiraram, forneceram o gérmen principiológico que iria, com o tempo, alterar essa dinâmica. Se é certo que a liberdade foi a causa eficiente para que se voltasse a enfatizar o distanciamento entre o ius publicum e o ius privatum, a igualdade e a fraternidade foram os vetores valorativos que passaram, com o tempo, a promover sua reaproximação mercê da doutrina das gerações de direitos fundamentais como adiante se buscará demonstrará.

A história é de todos conhecida: a sobreposição das ideias liberais sobre a crise social que se instalou no Século XIX conduziu a que se prestigiasse um sistema jurídico baseado nas relações privadas, sobretudo de manutenção da propriedade e dos grandes interesses da ascendente classe social capitalista. Com foco, portanto, no direito privado, deixou-se quase ao olvido qualquer possível intervenção pública para melhoria de tais condições. A situação em comentário é reproduzida por todos ou quase todos os constitucionalistas. A igualdade formal, claro, é a igualdade própria de um Estado que parte da abstração que todos seus súditos se equivalem. Fantasiosa, todas as críticas que já lhe foram proferidas ou ainda estão por ser levadas a termo cabem na acerba e não menos sarcástica frase de Anatole France: “a majestosa igualdade de leis, que proíbe tanto aos ricos como aos pobres de dormir debaixo das pontes, de mendigar e de roubar o pão”.[6]

Com efeito, o que historicamente se denominou de constitucionalismo moderno, ou seja, a série de revoluções feitas pela nova classe economicamente dominante, a burguesia, e que culminaram no aparecimento das primeiras constituições com o formato atual propagaram sobretudo os direitos do individualismo. Os direitos fundamentais desta fase são aqueles destinados a assegurar sobretudo as ditas liberdades individuais imprescindíveis ao Estado Liberal, como explica, por exemplo, Paulo Bonavides (2006, p. 563-564). Os direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão, portanto, protegiam o indivíduo do Estado.

Tais prerrogativas frente ao Poder Público resultaram, como já destacado, de um momento histórico onde foi necessário combater a tirania e os abusos cometidos pelos representantes da nação, vale dizer, de regra a nobreza que secularmente espoliava seu próprio povo. Sua lógica de atuação envolve um juízo mais sumário e que se expressa pela impossibilidade, em regra, de intervenção do Estado nessa seara, ou, como diz Virgílio Afonso da Silva: “se essa intervenção não é suficientemente fundamentada, deve ocorrer a consequência jurídica da liberdade, que é a exigência da abstenção estatal”. (2010, p. 76).

Não é sem razão que o grande primado normativo da revolução de 1789 ter sido o Código Civil de 1804 ao invés de qualquer texto constitucional produzido nesse período. Eventualmente, a Déclaration des droit já era, como hoje ainda o é, festejada, porém não raro mais como uma pauta de aspirações filosóficas e políticas que propriamente um diploma normativo. Tanto assim que os os constitucionalistas recém encardinados como catedráticos de um novo e autônomo ramo da ciência do Direito estavam sempre às voltas diante da dificuldades de conceituar suas normas já que muitas delas não aparentavam possuir grau visível de eficácia jurídica.[7] A solução, como bem se sabe, foi dada por meio da fórmula norte-americana que dividia as normas constitucionais em dois tipos: autoexecutáveis e não autoexecutáveis.

Diferentemente disso, a supremacia do Code como geratriz operacional de todo o ordenamento normativo era motivo de gáudio para os civilistas do Século XIX. Proclama-se a superioridade ontológica do Direito Civil, bem como de todo o Direito Privado sobre o Público, sendo este nada mais, nada menos que um caminho para se chegar aos objetivos daquele, encarnação jurídica do próprio Estado Liberal. (VASCONCELOS, 2002, p. 216). Os direitos fundamentais, considerados conforme já dito anteriormente como pontos de limitação para a atuação abusiva do Estado, destinavam-se a conter o mal necessário que era o próprio Estado com o objetivo de assegurar a plena realização do ordenamento privado. Nada muito para além disso.

A suspeição do Estado começa a ser revertida por meio da consolidação dos direitos de caráter social. Por sinal, não faltou quem, justamente ao final do Século XIX e começos do Século XX, começasse a demonstrar a necessidade de uma revisão dos termos da summa divisio ao preciso argumento de que muito do que até então se considerava alheio à atenção do Estado deveria ser normatizado, porém, não raro, sob as vestes mesmo da legislação privada, pois concernente ainda às relações entre particulares. Um dos primeiros a falar de uma categoria de superação entre o público e o privado por meio de um Direito Social foi Enrico Cimbali.

Sem abrir mão dos postulados fundamentais da economia capitalista, antes rendendo elogios a sua capacidade de trazer prosperidade, o civilista peninsular, atento as mudanças ocorridas pela Revolução Industrial, conclama a que tais fatos “interamenti nuovi ed asslutamenti ignoti alle legislazioni civile vigenti” passassem a ser disciplinados pelo que seria um diritto privato sociale, onde seria possível perceber uma maior presença do Estado. (CIMBALI, 1885, p. 39-41). Exemplos que iriam da criação do Direito do Trabalho como disciplina autônoma de estudos, embora derivada do clássico contrato de prestação de serviços já disciplinado pelo Direito Romano (locatio conductio operarum) à disciplina da propriedade privada para afastar seu uso abusivo ou antissocial, com forte interferência do poder público para para coibir seu uso nocivo demonstram o giro copernicano que logo também entusiasmaria a fina flor dos juristas e cientistas sociais franceses a exemplo de Augusto Comte, Émile Durkheim, Léon Duguit, Gaston Morin, Georges Ripert e René Savatier. (VASCONCELOS, 2002, p. 220).[8]

Não foi apenas no âmbito da legislação ordinária que se fez sentir a mudança que, ao fim e ao cabo, indicava a superação do modelo dialético entre o Direito Público e o Privado, pelo menos do modo como era concebida. As pautas sociais que varreram Europa e América a fim de minorar as desigualdades sociais já referidas deram o substrato igualmente a uma segunda fase geracional dos direitos fundamentais. Sabe-se que foi a Constituição mexicana de 1917, ainda hoje vigente naquele país, o primeiro documento jurídico a introduzi-los e não é sem razão que seus antecedentes históricos estejam ligados precisamente à revolução iniciada em 1910 (BURGOA, 1984, pp. 315-316). Mantendo o teor liberal, caracterizou-se todavia por implementar em nível constitucional institutos como a reforma agrária e o reconhecimento de direitos de propriedade aos povos indígenas originários (art. 23), além de disciplinar as relações de trabalho com regras, naquele então, quase idênticas às que constam, por exemplo, do vigente art. 7º da Constituição brasileira de 1988.

Após, seguiu-se a não menos prestigiosa Constituição de Weimar. Seu fracasso enquanto experiência histórica em nada lhe retira o mérito de haver sido o primeiro documento europeu, e, consoante a historiografia oficial, o segundo do mundo, a entabular uma pauta de direitos sociais. Diferentemente, contudo, da relação de direitos advinda do liberalismo, não havia simplesmente uma enunciação tout court de direitos, senão que a apresentação de um programa. Como diz Jeff King, não se tratou do reconhecimento abstrato de direitos, mas sim de dar concreção institucional específica a políticas sociais específicas. Os direitos fundamentais de segunda geração buscam, assim, não somente proteger o indivíduo do Estado, mas também fazer com que o Estado se engaje na proteção dos indivíduos, assegurando-lhe o dito mínimo existencial, do qual, inclusive, não se pode mais o Estado se afastar mercê do já enunciado princípio de vedação ao retrocesso.

É justamente dentro dessa perspectiva de expansão da pauta de demandas das classes menos assistidas e, em especial, de seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico que nasce o Estado Social, também denominado de Estado Providência ou Welfare State.[9] Reduziu-se, como sabido, o poder de autodeterminação dos privados para se autorregularem e, sem romper com o sistema capitalista, aceitou-se uma expressiva capacidade interventiva do Estado na economia e também nas relações até então eminentemente privadas, visivelmente alterando a ideia de que o Direito Público diria respeito aos interesses da coletividade, personificada no Estado e o Privado apenas regularia os interesses dos indivíduos

O que merece papel de destaque é que o Estado Social pode ser visualizado como um instrumento utilizado para – pelo menos, tentar – controlar as distorções causadas pelo sistema capitalista. Evidentemente, ao assumir esse papel não pretende o Estado simplesmente eliminar o referido sistema, na verdade, muito pelo contrário, porquanto o que deseja realmente o Estado Providência é proteger os direitos dos individuais sem ter que abdicar, necessariamente, do desenvolvimento econômico. Com efeito, o que houve, no período, foi uma nítida fixação de contornos para o espaço de atuação do Estado dentro do espaço reservado aos direitos individuais. (LUDWIG, 2002, p. 96-97). Assim, em razão, principalmente, da postura negativista do Estado de verdadeira abstenção de atuação diante de situações que se referem a aspectos privados da vida do indivíduo a distinção entre o público e o privado ficou consagrada em definitivo pelo critério subjetivo em conformidade com a teoria tradicional proposta por Ulpiano e aprofundada após o constitucionalismo liberal.

Contudo, na medida em que nasce o Estado Social e, com ele, se abandona a ideia de abstencionismo do poder público nas relações transindividuais. A partir de então, o que se tem é um período de efetiva intervenção estatal em pontos considerados estratégicos diante do déficit de capacidade dos particulares em conseguirem obter soluções próprias para que se atinja a esperada paz ou estabilidade social almejada pelo Direito.[10] Tanto é assim que a lista inicialmente concebida por Cimbali, de novas matérias que deveriam ser disciplinadas pelo tal direito privado social só fez aumentar com o tempo.

As mudanças de perspectiva que consubstanciaram a passagem do Estado Liberal para o Social, no bojo do qual também assomaram-se as subsequentes ondas de direitos fundamentais de segunda e terceira gerações importou a impossibilidade de se estabelecer limites precisos para o que no começo do constitucionalismo oitocentista se supunha ser as fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado. Na verdade, tais espaços possuem, cada vez mais, uma ampla zona de interseção, o que, dificultando, senão impedindo mesmo a identificação segura de seus contornos, abre o caminho para a própria superação epistemológica da summa divisio. (ZANINI, 2018, p. 211). Para tanto, será decisivo observar o papel dos direitos fundamentais em conformidade com a hodierna teoria dos direitos fundamentais, o que será levado a efeito a seguir.

2. Os direitos fundamentais na teoria constitucional hodierna

Como se mencionou na introdução do presente trabalho, seu objetivo é demonstrar como a summa divisio entre o direito público e o privado deve ser redimensionada. Embora persistindo para fins mais práticos que teóricos, é alcançada pela nova dinâmica que entabulou um sentimento movimento não mais de exclusão senão que de cooperação entre as esferas pública e privada, sendo os direitos fundamentais um dos elementos catalizadores desse processo. Visto que até o momento se cuidou da evolução histórica que alterou a própria percepção do Estado, de liberal para social, é imprescindível focar, agora, numa análise, ainda que limitada, sobre o conceito de direitos fundamentais em consonância com a teoria constitucional vigente.

De forma lata, a expressão sugere a criação e a manutenção dos “pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”; de forma restrita, adquirem uma conformação estritamente normativa, onde se os considera como “aqueles direitos que o direito vigente classifica como tais”. (BONAVIDES, 2006, p. 560). Na realidade, essa classificação toma por base distinção formulada por Konrad Hesse, o qual, nada obstante, alerta para a inevitável dificuldade de inseri-los em uma estrutura coesa e harmônica, pois a própria Constituição muitas vezes faz menção a vários direitos que, mesmo não tendo sido chamados de fundamentais, outra coisa não são que tais. (1998, p. 225).

Vale dizer, os direitos fundamentais devem ser considerados sob dois aspectos, a saber, no âmbito formal e material. “A fundamentalidade formal dos Direitos Fundamentais resulta de seu posicionamento no ordenamento jurídico, gerando efeito vinculante tanto para o Executivo, Legislativo quanto para o Judiciário, enquanto a fundamentalidade material está ligada à ideia de normas que constituem estruturas básicas do Estado e da Sociedade.” (PANSIERI, 2012, p. 41). Contudo, pode-se dizer, como acima salientado, que o aspecto formal prepondera, de modo que a destacada eficácia jurídica diferenciada decorre não de seu espectro substancial, mas sim do normativo.

Considerada sob esse seu aspecto material, portanto, a noção de direitos fundamentais toma como ponto de partida o conceito de dignidade da pessoa humana. Não por outra razão que a vigente Constituição alemã, certamente o mais expressivo documento jurídico firmado naquele país após a tragédia nazista, inicia com seu clássico: a dignidade do homem é intocável (No original: “Die Würde des Menschen ist unantastbar”). Como explica Jorge de Miranda, realmente, tal conexão apenas surge com o pós-guerra por meio desses grandes documentos que procuraram, cada qual a seu modo, tentar redimir a humanidade das atrocidades do conflito armado encerrado em 1945, e, por meio dela: “a Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais” (2010, p. 362).

Ao se predicar que a dignidade do homem é a base de qualquer pressuposto constitucional se está, por derradeiro, afirmando que ela é também o fim último de qualquer forma de associação humana, incluído naturalmente o Estado e a todo o ordenamento jurídico.

Nada obstante, por ser demasiada aberta a noção de dignidade da pessoa humana, é difícil captar sua essência por meio de um conceito apriorístico. É claro que a compreensão de vida digna é por demais importante para caber em qualquer fórmula jurídica artificialmente criada. Por outro lado, corre-se sempre o risco de impor limites prévios que poderiam privá-lo de eficácia ou operacionalidade em muitas situações. Desse modo, como destacou Gilmar Ferreira Mendes: “Esses limites são definidos com auxílio do desenvolvimento histórico-cultural da sociedade e de seus valores.” (2013, p. 89).

Não quer isso dizer, todavia, que não exista um conceito minimamente universal, pelo qual se consegue dar a entender que a dignidade humana em última análise representa a busca por uma co-humanidade no sentido de contínuo respeito ao próximo, inclusive, mais que nunca, às gerações que estão porvir (MENDES, 2013, p. 89). Ver-se-á mais adiante, por sinal, que a própria ideia de gerações de direitos fundamentais importa o reconhecimento de que há uma nítida historicidade de seu conteúdo e, de conseguinte, que o conteúdo da dignidade da pessoa humana é igualmente cambiante. Bem entendido: se por cambiante se compreende uma continuidade evolutiva que sempre lhe agregue valores, vale dizer, sem que haja retrocessos.

Nesses termos, é a dignidade humana, de fato, a geratriz dos direitos fundamentais. É que, embora a dignidade humana até se faça acompanhar por um listado de direitos (fundamentais) que são suficientemente capazes de fornecer uma proteção adequada aos indivíduos, é necessário resguardar sua função principiológica de constantemente relembrar a razão de ser de todo o ordenamento estatal (Rechtsstaat). De aí se cunha a ideia de que ela, em última análise, constitui o direito de ter direitos (ENDERS, 2010, p. 2). Por esse aspecto, portanto, direitos fundamentais são: “normas constitucionais de caráter principiológico, que visam proteger diretamente a dignidade humana nas suas diferentes manifestações e objetivam legitimar a atuação do poder jurídico-estatal e dos particulares”. (LOPES, 2001, p. 35). Ainda assim, as definições até agora colocadas são ou meramente formais, ou materialmente tão vagas que impedem precisar o que poderia ser configurado dentro dessa pauta de posições jurídicas tão essencial para os ordenamentos ocidentais.

Eis o grande problema: se por uma lado diz-se que se constituem como direitos básicos na ordem jurídico constitucional, não se consegue precisar a priori seu conteúdo material. Eles possuem um conteúdo variável, fruto da evolução histórica que lhes é inerente e que, mais adiante, será confirmada por meio das já referidas gerações, ou dimensões, de direitos fundamentais. Essa impossibilidade de prévia estruturação de um âmbito material para os direitos fundamentais fez com que a doutrina constitucional tenha concentrado suas investigações mais numa acepção formalista que substancial destes direitos.

Assim, observa-se que a causa eficiente para se considerar tal ou qual direito como sendo fundamental em determinado ordenamento jurídico é, ao fim e ao cabo, não seu conteúdo essencial, mas sua inserção naquele núcleo de matérias que, por estarem inseridos em uma Constituição rígida, contam com proteção diferenciada em relação aos demais direitos constantes desse mesmo ordenamento. Em outras situações, recorde-se, essa proteção vai ao extremo da imutabilidade, convertendo-se nas denominadas cláusulas pétreas. Como conclusão, decorre a afirmação de que só faz sentido falar em direitos fundamentais em uma Constituição formal (SILVA, 2010, p. 24). Isso, por si somente, já representa uma nítida mudança de perspectiva em relação ao critério para definição do que considera como Direito Público e Direito Privado.

O papel de destaque dos direitos fundamentais e sua perspectiva de cimeira no ordenamento jurídico, com efeito, altera a perspectiva até então narrada. Como destacado no capítulo anterior, as constituições, ou mesmo declarações de direito do liberalismo oitocentista projetaram em seus códigos civis seus capolavori. Foi assim com o Código Civil dos franceses de 1804 até o Código Civil alemão de 1901 (Bürgerliches Gesetzbuch). A lógica, agora, é outra e por ela já não é mais a legislação privada que outorga a primazia das normas de direito positivo, senão que as disposições constantes da Constituição mesma, especialmente quando se projeta o papel de destaque dos direitos fundamentais.

Dentro desse contexto, ao considerar a dicotomia entre público e privado, os direitos fundamentais, atualmente uma das principais vigas de sustentação do próprio Direito Público, coloca-se em xeque a idéia de que a função do Direito Privado venha a ser basicamente proteger a autonomia da vontade. (SARMENTO, 2006, p. 12-13). A segunda dimensão dos direitos fundamentais, mercê de seus compromissos com a igualdade material, buscou - e ainda busca - a concretização do princípio da justiça social, como já assinalado, através do próprio Estado a fim de proteger grupos sociais desfavorecidos, seja por meio de um maior dirigismo sobre o legislador, inclusive no âmbito das relações privadas, seja mesmo pela enunciação de direitos prestacionais a cargo do poder público, os quais, até então, se viam sob o âmbito de incidência das relações entre particulares. (SARLET, 2007. p. 50).

Veja-se o caso, por exemplo, do direito à saúde. Visto tanto como um direito fundamental de primeira como de segunda geração, ele vem frequentando cada vez mais os textos das constituições européias e americanas. Embora geralmente franqueado o fornecimento de serviços de saúde à iniciativa privada, o que, no caso brasileiro encontra-se previsto no art. 199 da Constituição Federal, a atividade estatal ela é, essencialmente, “um dever do Estado, o qual deve garanti-la mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, bem como “sua regulamentação, fiscalização e controle” (arts. 196 e 197). O fenômeno se repete em quase todos os demais direitos sociais enunciados no art. 6º da Carta de 1988 tais como a educação a moradia, o transporte, a segurança, a previdência social.[11]

Até mesmo, ou principalmente, o direito à propriedade, tão caro ao Estado Liberal, hoje se vê bastante limitado pela preocupação com o social e com o coletivo. Por exemplo, o artigo 182, §2º, da Constituição Federal dispõe que a propriedade urbana deve atender as exigências contidas no plano diretor; no mesmo sentido, o artigo 186 da Constituição Federal elenca requisitos que devem ser efetivamente cumpridos pela propriedade rural.

Feitas tais considerações, tem-se que os direitos fundamentais efetivamente criam, ou intensificam a zona cinzenta já percebida, de interseção existente entre as esferas pública e a privada, cuja demarcação era vista como algo facilmente inferível em um passado não tão distante por força de se considerar o Estado como mínimo. Ora, ao se predicar um modelo estatal com poucas atribuições sociais, como foram, a propósito, o romano e liberal oitocentista, constituir-se-ia tarefa não tão hercúlea realmente traçar as fronteiras de um e do outro. Nada obstante, a passagem para um padrão de Estado que se agiganta na tarefa de diminuir desigualdades a partir do controle da economia e da entrega por ele próprio de determinadas prestações, por natural, rompe essa calmaria dogmática quer era fruto do absenteísmo ideológico.

Se, inicialmente, os direitos fundamentais surgiram como uma forma de reger e limitar as relações inseridas no âmbito público, ou seja, tinha-se efetivamente a presença do Estado, o Século XIX, colocou em perspectiva que opressões e os abusos podem decorrer não apenas do Estado, mas também de outros particulares. (SARMENTO, 2008, p. 193-194). Em o fazendo, terminar-se-ia chegando à revisão da summa divisio. A novel configuração do Estado, no que fora fortemente impulsionada inclusive pela chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais levou à perceção de que, como diz Cláudio Ari Mello, há “um lócus de encontro entre as duas esferas do universo jurídico”. (2003, p. 81). É isso que melhor se compreenderá a seguir.

3. A hibridez dos direitos fundamentais e sua aplicação ao direito privado

Acreditava-se, até por força das implicações ideológicas já mencionadas anteriormente, que o distanciamento ontológico entre o Direito Público e o Privado seria dado por contrários lógicos, o que implicaria a regra do terceiro excluído, a qual enuncia que entre dos proposições lógicas que, juntas, formam una contradição não há uma terceira posibilidade (tertium exclusum ou tertium no datur; inter duo contradictoria non este médium). Na realidade, o que se percebeu é que eles poderiam conviver perfeitamente como contrários, não sendo contraditórios, ou seja, não eram em si mesmos excludentes. Os contrários, com efeito, permitem uma zona de interseção, como o claro, o escuro e o gris, enquanto que os contraditórios, por se referirem a juízos díspares jamais poderiam conceber uma zona intermédia.[12]

Ao se advogar, como se fazia anteriormente, que o privado e o público consagrariam interesses antagónicos os estritos limites que os separavam jamais poderia ser rompido. Nada obstante, como antes destacado, esses ramos não são assim tão explicitamente delineados, operando uma nítida simbiose entre eles, podendo-se afirma que, muitas vezes, a relação jurídica que se está averiguando mesma situação pode ser considerada por uma perspectiva híbrida. Ou seja, um mesmo fato pode, ao mesmo tempo, interesses públicos e privados. De fato, existem direitos que transitam em uma zona intermediária, cinzenta, atualmente perceptível entre o público e privado. (PERLINGIERI; FEMIA, 2004, p. 53).

Por tudo isso é que se fala em privatização do direito público e publicização do direito privado, fenômeno particularmente percebido pelos civilistas italianos do pós-guerra. É que não apenas interesses não tão gerais, mas de menor escala, como associados a comunidades, grupos e categorias, passam a ser levados em consideração e, desse modo, tornam-se objeto de regulamentação estatal, como, para o fazer de melhor modo, não raro o Estado se vale de formas e meios (institutos) de Direito Privado. (BIANCA, 1990, p. 41).

Não se está dizendo, por certo, que a novel que o descrédito da milenar summa divisio teve seu início com a doutrina dos direitos fundamentais. A mesma crítica que ora se lhe a faz, por exemplo, pode ser encontrada em Hans Kelsen com fundamentação puramente epistêmica. (1992, p. 201-206). O ponto que se que destacar aqui, como já mencionado no tópico anterior, é que a releitura dada aos direitos fundamentais com eficácia também aos particulares, ou seja, a compreensão de sua hibridez para ser aplicado tanto às relações jurídicas envolvendo tanto a presença do Estado como aquelas envolvendo tão somente os particulares parece ter jogado derradeira pá de cal no problema.

A questão, como é sabido, apresentou especial importância na Alemanha e veio a ser o pano de fundo, através do caso Lüth para o desenvolvimento da força vinculante e a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas (Drittwirkung). Se eventuais críticas, a nosso sentir corretas, lhe podem ser dirigidas em razão dos excessos metodológicos que se vem verificando mais recentemente no Brasil, não se nega que possa existir uma comunicação virtuosa entre o Direito Constitucional e o Privado, em Civil. Atente-se, contudo, para o fato de que o movimento deve ser de mão dupla de modo que o Direito Privado, que desenvolveu ao longo de quase dois mil anos de total independência bases metodológicas próprias, também poder influenciar a leitura das normas constitucionais, o que muitas vezes é desprezado pelos publicistas nacionais.[13]

Drittwirkung e Wechselwirkung[14] passam a ser consideradas como ferramentas hermenêuticas resultantes de uma nova teoria constitucionalista, são reiteradamente destacadas quando se fala do caso Lüth, o qual, como sabido, tratou de garantir a incidência, num contexto entre privados, do direito fundamental de liberdade de expressão. A partir da famosa decisão, a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais ganhou corpo ao defender que eles tanto servem em face do Estado, para evitar abusos e arbitrariedades, mas também podem fazer uso nas relações jurídicas essencialmente privadas. (VIEIRA DE ANDRADE, 2007, p. 262).

É justamente dentro desse contexto que merece destaque a ascensão do que se chama atualmente de Direito Civil Constitucional, que demonstra já não ser tão maciça a antiga disjunção existente entre os âmbitos público e privado, o qual é resultado da conjugação de dois movimentos: o primeiro, é o crescimento da importância das Constituições nas ordens jurídicas das democracias ocidentais contemporâneas; o segundo, é a perda de protagonismo do Código Civil nos termos em que o Século XIX concebeu sua importância para os ordenamentos jurídicos. (LEAL, 2015, p. 126). Desse modo, a discussão envolvendo os direitos fundamentais se desenvolve lado a lado com a constitucionalização do Direito Civil, de modo que este passa a abarcar, cada vez mais, princípios eminentemente constitucionais e que eram aplicados, até então, em um contexto publicista. Nesse sentido, esclarece Fernando Leal:

O direito civil constitucional endossa uma teoria da Constituição. Essa teoria se assenta sobre a afirmação da supremacia e da normatividade da Constituição, a centralidade dos direitos fundamentais como sistema de referência da ordem constitucional, a concepção de que as Constituições encarnam os valores ético-políticos fundamentais da comunidade que pretende reger e o reconhecimento de que os comandos constitucionais e os compromissos valorativos assumidos pelo constituinte funcionam fundamentalmente como limites e programas que condicionam a atuação de atores públicos e privados, na medida em que é a Constituição e, no seu centro, a sua “tábua axiológica”, que garantem a unidade do ordenamento jurídico. (2015, p. 128).

Nessa perspectiva, o Direito Civil Constitucional desenvolve valores que, estavam fora da agenda do Direito Privado concebido no Code, tais como a dignidade da pessoa humana, função social dos contratos, função social da propriedade, dentre outros. Esse novo viés do Direito Civil se preocupou com problemas da sociedade contemporânea, abrindo-se para todas essas questões e preocupando-se com grupos minoritários. (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 20). Não poucas vezes, esses grupos não são numericamente contramajoritários, bem ao contrátio, mas são economicamente débeis, buscando a legislação tentar minimamente colocar em situação de paridade os particulares separados pela desproporção entre suas riquesas.

Um recente exemplo dessa perspectiva foi a promulgação da Lei 12.181, de 1 de julho de 2021, que tratou da prevenção e controle do superendividamento. Dentre seus vários artigos, acrescentou-se o art. 54-A ao Código de Defesa do Consumidor, cujo § 1º tem a seguinte redação: “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.” O ponto que se quer demonstrar, observe-se é a correlação entre a metodologia jurídica privada, com a remessa a conceitos como boa-fé, obrigações vincendas por um lado e, do outro, termos próprios do Direito Constitucional como mínimo existencial.

Um direito privado constitucional propicia, assim, novos rumos ao que, anteriormente, era considerado puramente Direito Civil, Comercial etc., porquanto passa a considerar a dignidade como elemento basilar da relação jurídica. Dessa maneira, o que o Direito Civil constitucional objetiva, em princípio, é capturar o valor axiológico da norma, ou seja, o seu sentido mais aproximado da ideia de justiça e em conformidade com predefinições do que é socialmente adequado ou que atenda, ao máximo, o bem-comum e a dignidade da pessoa humana. Assim, na prática, observam-se três intuitos principais, são eles: a) proteção das minorias; b) justiça distributiva; e c) ruptura, no campo dos costumes e da organização familiar, de tradições religiosas ou morais. (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 24).

Com efeito, não se nega que as premissas inerentes ao Direito Civil constitucional são importantes e representam um grande avanço social, pois intentam, em maior ou menor grau, uma sociedade marcada pela preocupação com a igualdade material – e não puramente formal, como no Estado Liberal, tendo sido este, repita-se, um dos motivos de sua crise. No entanto, é de se ressaltar que existe, também, o outro lado da moeda, composto por aspectos negativos, porquanto a utilização exacerbada do Direito Civil constitucional pode, no longo prazo, reverberar contra os próprios cidadãos.

No pertinente, são duas as características que merecem papel de destaque. A primeira é a eventual desconsideração de textos legais – e, até mesmo, constitucionais – explícitos e completos, que, em outra situação, não implicaria nenhuma dúvida ao intérprete. Já a segunda é a utilização do Direito com a finalidade precípua de favorecer impreterivelmente os hipossuficientes. Ao fazer a sobreposição de tais particularidades, o resultado pode se traduzir em verdadeira inconsistência, porquanto é possível que determinada norma seja “simplesmente” desconsiderada para favorecer algum segmento social e efetivar a justiça distributiva, o que acaba por abalar, de certo modo, a segurança jurídica que deve ser inerente à dogmática jurídica.

Por exemplo, considere-se a seguinte situação hipotética: o julgador, sem nenhuma causa jurídica relevante, determina a revisão de um contrato ou a desconsideração de uma de suas cláusulas, justamente com o objetivo de favorecer um grupo socialmente desfavorecido. O cerne da questão é que, realmente, no caso que se julgou, houve um benefício para o indivíduo especificamente ou para o grupo de indivíduos, no entanto, a vantagem será estritamente pontual, já que, a partir de então, o outro polo do negócio jurídico poderá – e. não raro, isso, de fato, acontece – incrementar custos contratuais, aumentar a taxa de juros, etc.

Assim, o que deve ser especialmente considerado é que a própria sociedade pode vir a pagar custos pela intervenção, embora em um primeiro momento fosse considerado como algo essencialmente positivo, já que se aproximava bastante da ideia de justiça social. Contudo, o lado oposto da relação jurídica poderá onerar os próximos bens ou serviços simplesmente pelo risco de que o mesmo venha a ser alterado pelo Poder Judiciário. (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 31). Vale dizer, ao se advogar a superação epistêmica da summa divisio não se está fornecendo um documento em branco ao juiz para suplantar a metodologia que é própria dos institutos de direito privado por meio de outros tantos oriundos do direito público.

O que se pretende, como também reiteradamente aqui pronunciado, nem tão inédito é, tanto assim que pode ser perfeitamente reproduzido pela boca de Carlos Cossio: “no puede haber ninguna figura concreta del Derecho positivo que sea puro derecho público o puro derecho privado, sino que siempre Han de ser ambas cosas en mayor o menor proporción.” (1964, P. 455). Alcançada pelo marco da teoria atual dos direitos fundamentais, o antigo fosso conceitual é preenchido por uma fértil zona a ser arada. Uma zona de interseção, de simbiose, de cooperação que, como destacado pelo autor da teoria egológica, será orientada, a depender da situação, mais para um lado, ou mais para o outro, mas nunca totalmente apenas para um deles, na busca da aplicação óptima daqueles direitos cujo substrato primeiro é a dignidade do homem.

Conclusão

As revoluções estatais contribuiram para que o homem alterasse sua relação com o direito público e o privado. O que havia, em princípio, era um afastamento, ou mesmo uma separação, entre os âmbitos jurídicos, de modo que Estado devia evitar interferir em atividades próprias dos indivíduos. Na medida em que essa dicotomia sofreu mitigações, o direito público e o privado encontraram um ponto de confluência, passando a existir uma retroalimentação entre ambos. Assim, fomentou-se o interesse – e a necessidade – em construir um caminho que interligasse os âmbitos, tendo em vista que, conjuntamente, poderiam potencializar a concretização de direitos.

É nesse contexto que ganha força a teoria dos direitos fundamentais. Tais direitos, justamente por refletirem uma forma de resguardar os indivíduos de atos tirânicos e abusivos por parte do Estado, devem ser visualizados como inerentes a própria condição de ser humano e, por isso mesmo, devem, naturalmente, ser garantidos e respeitados. É de se destacar que, inicialmente, os direitos fundamentais surgem como uma proteção inserida, muito especialmente, na relação dos indivíduos com o direito público, como um verdadeiro trunfo contra o Estado.

Ocorre que o âmbito de aplicação dos direitos fundamentais aumenta consideravelmente, pois passam a ser vistos não mais como um instrumento aplicado apenas no âmbito público, mas também como um mecanismo utilizado nas relações entre privados, de modo que se passa a proteger um particular de arbitrariedades de outro particular.

Desse modo, nada obstante os direitos fundamentais tenham sido criados como forma de proteção às arbitrariedades do Estado, os citados direitos passaram a ser evocados também no âmbito privado, notadamente nas relações entre particulares. A partir daí, fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que possibilitou concretizar, por sua vez, a constitucionalização do Direito Civil, ramo do direito que classicamente cuidava de relações essencialmente privadas.

Por derradeiro, não se nega que a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privados demonstra e concretiza a preocupação da sociedade em proteger as minorias historicamente prejudicadas e em propiciar uma maior igualdade material, e não puramente formal. No entanto, é preciso que se tenha uma visão sistêmica de tal aplicação, que muitas vezes ocorre por meio do direito civil constitucional. É que caso o Estado adote uma postura extremamente ingerente, pode acontecer de o próprio segmento social que se buscava proteger sofrer com a oneração de diversos bens e serviços, sendo justamente esta uma forma encontrada pela parte adversa para se resguardar de eventuais prejuízos gerados pela intervenção.

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Submetido em: 28 abr. 2022.

Aceito em: 27 dez. 2022.

 



[1]    Em tradução livre: “O direito público diz respeito ao estado das coisas públicas (romana); o privado à utilidade dos particulares”. (Digesto, 1.1.1.2).

[2]    Nada obstante, autores como Foustel de Coulanges parecem sugerir que, já em uma etapa posterior das instituições político-jurídicas de Atenas, especialmente após as reformas introduzidas por Sólon no Século VI A.C., bem como no início de Roma, ainda com a Lei das XII Tábuas, já seria possível observar uma separação entre as tradicionais regras religiosas, que davam a conformação unitária do Direito até então, e traços de uma nova moralidade pública, a qual seria dominada mais pelos interesses da pólis como elemento a parte - e muitas em colisão - com os de seus habitantes. Cf. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução: Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Edameris, 1961, p. 217-218.

[3]    De fato, o ius civile, ou quiritário, embora entabulando a quebra entre as leis da natureza e as leis da cidade, vinham nestas um todo unitário. Porém, “quando o poder estatal se fortalece e se agiganta, somando poderes para a dominação internacional, é que ocorre o divórcio entre os interesses do Estado e do indivíduo, daí surgindo a tensão entre a liberdade e a autoridade. (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 214)

[4]    Apenas como exemplo do que se disse acima, cf.: MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. Direito Tributário Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

[5]    Não por acaso que ambas foram pronunciadas por nada menos que dois soberanos absolutistas. A primeira, no original, The King can do no wrong, dita por Carlos I da Inglaterra quando da ocasião do julgamento que lhe custou a vida. A segunda, talvez ainda mais conhecida, dada por Luiz XIV: L’État c’est moi.

[6]    Tradução livre do original: “la majestueuse égalité des lois, que interdit aux riches comme aux pauvres de coucher sous les ponts, de mendier dans la rue et de voler du pain”. (FRANCE, Anatole. Le lys rouge. Paris: Calmann Lévy, 1894, p. 81). Em termos mais jurídicos que literários pode-se dizer que as condições que se revelaram no contexto fático do Estado Liberal ocasionaram o agravamento das desigualdades sociais, na media em que a evocação do Direito Privado de raiz iluminista era pautada apenas numa igualdade meramente formal entre a população, especificamente entre empregados e empregadores. Cf.: BONAVIDES, Paulo. O Estado Social e a tradição política liberal do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 53, p. 63-90, 1981, p. 67.

[7]    Sobre a História do Direito Constitucional enquanto disciplina jurídica, cf.: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo : Editora Malheiros, 2006. p. 35-41.

[8]    Desnecessário acrescentar que o Código Civil italiano de 1942 ainda em vigor constitui-se como fruto direto dessas ideias, tendo ele próprio aglutinado, como sabido, vários ramos do Direito Privado, como o Civil, o então Comercial e o do Trabalho, naquilo que passou a ser conhecido como uniformização do Direito Obrigacional.

[9]    Sobre o assunto, a obra referencial no Direito nacional é o trabalho do professor Paulo Bonavides Do Estado Liberal ao Estado Social ao qual se remete o leitor: BONAVIDES, Paulo Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

[10]  Aqui cabe uma importante explicação, até agora não mencionada porque se a considerava implicitamente mencionada. Quando se diz Direito Privado como ramo onde prevalece o absenteísmo estatal, pode-se excogitar do seguinte paradoxo: mas, afinal, se há intervenção legislativa por parte do Estado em setores, por exemplo, como obrigações, contratos e a propriedade privada, não se estaria, de todo modo, impondo a vontade do Estado sobre a vida interna dos particulares? A resposta pode ser negativa se se considera que aquilo que se denomina de Direito Privado, como esclareceu Hans Kelsen numa das primeiras e mais contundentes críticas feitas no Século XX sobre a summa divisio, nada mais seria que de “antagonismo entre autonomia e heteronomia”, assim entendidas, a primeira, como a capacidade de as partes obterem “a norma secundária, cuja violação é uma condição da sanção, (ser) criada por uma transação jurídica”, ou seja, por meio do princípio de autonomia que é corolário da liberdade. Seriam as normas tradicionalmente chamadas de dispositivas (ius dispositivum), vale dizer, aplicáveis apenas quando no silêncio de previsão específica por parte dos interessados em sentido contrário. Relembre-se, entretanto, que na concepção teórica do mestre de Viena, as normas primárias, definidoras da sanção, seriam sempre emanadas do Estado, pelo que, em última análise, sempre existiria um componente de direito estatal. De todo modo, no Direito Público até as normas secundárias seriam disciplinadas pelo Estado, daí porque se falar em heteronomia. Ao assunto, todavia, se voltará mais adiante quando se mencionar a fragilidade tanto teórica. Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 204-205.

[11]  Com o advento dos direitos fundamentais de terceira dimensão, o princípio que restou consagrado foi o da solidariedade ou da fraternidade. Existe, no mencionado período, uma preocupação com direitos que não se destinam à proteção especificamente de um indivíduo, mas sim de um grupo ou, até mesmo, de determinado estado. Realmente, o destinatário é o gênero humano. Cf.: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo : Editora Malheiros, 2006, p. 569. Contudo, não é necessário aprofundar o conceito de direitos fundamentais de terceira geração na medida em que, para os fins do presente artigo, concentra-se na mudança de perspectiva levada a efeito pelos direitos de segunda dimensão.

[12]  Dos posiciones son contradictorias entre sí cuando una equivale a la negación de la otra, de tal modo que no pueden ser las dos verdaderas ni las dos falsas: llueve” y no llueve”; hace frío” y no hace frío”. En cambio, dos proposiciones son contrarias cuando son incompatibles (es decir, no peuden ser ambas verdareras) pero dejan entre ellas un espacio para otras posibilidades. Así, contraria de la pared es blanca” sería la pared es negra”; pero contradictoria es la pared no es blanca” [...] Dos proposiciones contrarias pueden ser ambas falsas, pero entre dos proposiciones contradictorias (es decir, entre una proposición y su negación lisa y llana) alguna tiene que se verdadera. La pared es blanca o bien no lo es (por ser negra, girs, verde o de cualquier otro color).” (ECHAVÈ, Delia Teresa; GUIBOURG, Ricardo A.; URQUIJO, Maria Eugenia. Lógica, Proposición y Norma. Buenos Aires, Astrea, 2002. p. 86-87).

[13]  Sobre o assunto cf.: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019.

[14]  Que poderia ser traduzida ao pé da letra como efeito de troca. No caso, isso vem a significar a interação dialética entre tais leis gerais, quando estipulam limites ao direito fundamental, em especial para preservar o teor do dispositivo constitucional, e a legitimação, decorrente de um processo interpretativo-constitucional, que deve existir para que haja o reconhecimento do significado axiológico deste direito. Ou seja, pela noção de Wechselwirkung se coloca que a legislação ordinária, inclusive a privada, precisa ser interpretada, sempre e quando venha a limitar um direito fundamental, de tal forma a garantir que, de algum modo, prevaleça o conteúdo axiológico deste direito.