Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará
Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), Pernambuco
Resumo: Os ordenamentos ocidentais foram construídos
sobre a summa divisio entre o direito público e o privado. Com a teoria
dos direitos fundamentais, essa diferença necessita ser redimensionada, pois
ganha destaque uma postura de simbiose entre ambos. O problema de pesquisa é o
seguinte: como a estrutura híbrida dos direitos fundamentais constitui uma
superação à dialética da antiga tensão entre os direitos público e privado? A
presente pesquisa justifica-se em razão de que, ao estudar aspectos históricos
e evolutivos, facilita-se o alcance do estado da arte. A metodologia utilizada
é predominantemente teórica, descritiva e qualitativa. A confluência entre as
esferas pública e privada reflete o destaque que é dado à teoria dos direitos
fundamentais, que passou a ser evocada também nas relações entre particulares.
Quanto ao direito civil constitucional é preciso considerar que caso o Estado
adote uma postura extremamente paternalista, bens e serviços podem ser onerados
por parte do outro polo que compõe a relação jurídica, como uma forma de
resguardar eventuais prejuízos.
Palavras-chave: Summa divisio; Direito público e
privado; natureza híbrida; Direitos Fundamentais.
Abstract: Western legal
systems were constituted over the summa divisio between public and
private law. With fundamental rights theory, the difference needs to be
transformed, because get emphasis a symbiosis posture between laws. The
starting problem is the following: how fundamental rights’ hybrid structure
constitute an overcome of old tension between public and private law? The
present research is justified because the study of historical and evolutionary
aspects facilitates to get the institute state of the art. The methodology used
is predominantly theoretical, descriptive and qualitative. The confluence
between public and private reflects the emphasis of fundamental rights theory,
which started to be evoked also in private relations. As for constitutional
civil law, it needs to consider that if the State embraces an extremely
paternalist posture, goods and services may be encumbered by the other part of
legal relation, as a way to guard possible damages.
Keywords: Summa divisio; Public and private Law; hybrid
nature; Fundamental Rights.
Os limites entre o direito público e o privado sempre
foram objeto de grandes questionamentos na teoria geral do Direito. Até Roma,
concebia-se o direito como fenômeno unitário. Com efeito, o Direito Romano,
como os ordenamentos primitivos em geral, não fazia qualquer diferenciação
entre um e outro. No ponto, realmente, é sabido que outros ordenamentos
históricos, como o grego, nunca chegaram a realizar uma divisão precisa entre o
que era relativo às pessoas enquanto indivíduos e o que concernia
prioritariamente ao Estado, a exemplo do que formularia séculos depois Ulpiano
tal como conservado na clássica passagem: “Publicum jus est quod ad statum
rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem.”[1].
A distinção teria como fundamento a hipertrofia do Estado bélico romano.[2] Primeira grande máquina de guerra estável da História ocidental, já que a experiência pontual da expansão helenística levada a efeito por Alexandre Magno resumiu-se ao próprio conquistador, a ascensão de seu império para além do Tibre levou a que se passasse a contemplar uma série de normas destinadas a regular o funcionamento do aparato estatal além de eventuais ofensas a sua estrutura. Como essa expansão solidificou-se no período republicano, naturalmente associou-se os interesses do Status romanae aos do próprio povo de Roma (res publica).[3] Assim, os romanos, embora tenham se notabilizado por seu legado no âmbito do direito privado, conceberam institutos de direito penal, tributário, processual e constitucional que até hoje são utilizados.[4]
Embora prática, contudo, a summa divisio sempre ofereceu desafios, deparando-se os juristas romanos não raras vezes com a superposição de regras de ius publicum e de ius privatum. (MOUSOURAKIS, 2014, p. 97). Para aqueles que colocam em dúvida a cientificidade da distinção, isso se explicaria exatamente diante de uma eventual deficiência teórica inerente a essa construção, imputada de artificial por muitos, como será exposto mais adiante. De Roma até aqui, entretanto, ela vem se mantendo constante e não apenas isso. Em certos momentos, como logo após a revolução francesa, foi particularmente festejada na medida em que foi, a partir de então, que se começou a se entabular o estudo sistêmico das, hoje, principais disciplinas de direito público, como o Direito Constitucional e Administrativo.
Nessa época, tratou-se de destacar que enquanto o Estado atuava frente seus administrados por meio de relações verticais, isto é, de subordinação, na esfera privada, os indivíduos, não tendo direito ao uso da força, salvo situações excepcionalíssimas, agiriam em coordenação de interesses, vale dizer, por meio de relações horizontais. Por decorrência, como demonstram dos princípios mais comezinhos da vida jurídica atual, demonstram a diferença de perspectiva entre um e o outro. Enquanto os ramos de direito público são presididos pelo princípio da legalidade, justamente para que haja o necessário controle do uso da coação pelo Estado, os particulares se regem pelo princípio da licitude, onde, como regra, prevalecem a liberdade e a autonomia.
Assim, embora com visões diferentes, o movimento
constitucionalista do Século XVIII, ao preconizar a proteção do indivíduo
frente ao Estado, terminou por valer-se da summa divisio entre os
âmbitos jurídicos público e privado. Na realidade, nela fez construir a pedra
angular dos ordenamentos ocidentais ao aprofundar a distinção de valores que
orientam os indivíduos em conformidade com a modalidade de relação
intersubjetiva em destaque. Desse modo, diante de cada revolução estatal,
também se alterava, por conseguinte, a relação do homem com o público e o
privado. A grande questão é que, atualmente, sob o marco dos direito
fundamentais, essa diferença necessita ser uma vez mais redimensionada. A
consagração de direitos fundamentais de segunda, terceira e mesmo quarta
dimensões, se, por um lado, ainda torna necessária a presença de uma fronteira
entre os interesses do Estado e os do particular, por outro, exige uma postura
não mais de exclusão, mas de clara simbiose entre ambos.
É dentro desse contexto que nasce a preocupação em garantir a concretização dos direitos fundamentais, que são inerentes à própria condição de ser humano. Tais direitos, ao fim e ao cabo, atualmente, traduzem-se não como forma de exclusão, senão que de interseção entre o público e o privado, pois se situam exatamente em uma zona híbrida, que representa, ao mesmo tempo, interesses públicos e privados. No ponto, evolui-se ainda mais, porquanto passa-se a defender a aplicação dos direitos fundamentais não apenas em uma relação vertical – Estado vs. Homem – mas também em uma relação horizontal, ou seja, entre dois particulares.
Diante disso, surgem os seguintes problemas de pesquisa:
qual o caminho histórico-evolutivo da interseção entre o público e o privado
até se chegar a uma estrutura híbrida dos direitos fundamentais? Como tal
fenômeno se constitui como uma superação a dialética da antiga tensão entre o
direito público e o direito privado?
Há de se destacar que o presente trabalho não pretende, de
forma alguma, esgotar os aspectos evolutivos e os eventos históricos existentes
até se alcançar o atual estágio de interseção entre o público e o privado. O
que se pretende é apresentar, em linhas gerais, os acontecimentos que trouxeram
modificações mais substanciais para as referidas esferas.
A presente pesquisa justifica-se em razão de que, não
raro, ao estudar aspectos históricos e evolutivos, torna-se mais facilitado
alcançar o denominado estado da arte de determinado instituto e, assim,
compreende-lo melhor em todas as particularidades, para, a partir de então,
criticá-lo construtivamente.
Feitas tais considerações, o trabalho tem como objetivo geral
investigar os principais aspectos históricos e evolutivos da interseção entre o
público e o privado até se chegar à efetivação dos direitos fundamentais, bem
como a preocupação em aplica-los às relações privadas, especialmente com a
concretização do direito civil constitucional. Para a consecução do objetivo
geral, foram formulados os seguintes objetivos específicos: a) analisar a
evolução da relação entre o público e o privado durante a Revolução Francesa,
Estado Liberal e Estado Social; b) discorrer sobre os marco direitos
fundamentais em conformidade com a atual teoria constitucional; c) destacar a
natureza bifronte ou híbrida dos direitos fundamentais, bem como sua aplicação
às relações privadas na contemporaneidade; d) explicar como esse fenômeno se
constitui como superação dialética da antiga tensão excludente entre o direito
público e o direito privado.
No que concerne à metodologia utilizada, a pesquisa será,
fundamentalmente, teórica e descritiva, pois se dedicará a estudar fatores
sociais, a saber: a relação do homem com as esferas pública e privada, bem como
a existência de uma zona híbrida entre tais âmbitos, notadamente os direitos
fundamentais. Além disso, contará com estudos bibliográficos e documentais, em
que serão privilegiados autores clássicos e contemporâneos. Também a abordagem
qualitativa faz-se presente em razão da preocupação com as mudanças sociais, ou
seja, com a necessidade de se reestruturar a tese que propugna a divisão do
direito entre público e privado em conformidade com o marco atual dos direitos
fundamentais.
Por fim, este trabalho será estruturado em cinco seções,
incluindo esta introdução. A segunda seção apresentará a perspectiva histórica
das esferas pública e privada no Estado Liberal e no Estado Social. A terceira
focará na concepção hodierna da teoria constitucional sobre os direitos
fundamentais a fim de destacar sua função de optimização da dignidade humana
perante todos os ramos do Direito. A quarta seção contemplará os direitos
fundamentais, sua aplicação às relações privadas e os impactos do direito civil
constitucional. A quinta e última seção apresentará as considerações finais da
pesquisa.
Roma concebeu a diferença entre o público e o privado, mas foi a Revolução Francesa que deu a feição mais contemporânea do âmbito de abrangência dessas duas esferas. E ambos os casos, procurou-se deixar claro as zonas de atuação do indivíduo sem necessidade de intervenção estatal. Porém, enquanto o romano concebida um estado forte, como por todos sabido, as revoluções liberais do Século XVIII buscaram diminuir a força do Leviatã. A esfera privada, em que pese seu inerente caráter também social, contemplaria o poder dos indivíduos em suas próprias relações, pelo que, de acordo com as concepções de Rosseau sobre o contrato social, necessitaria ser resguardada de ingerências externas. (FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 136-137).
Nada tendo de público em sua vida, não precisaria o particular em nada solicitar a autorização, ou o aval do Estado, embora pudesse postular seu amparo caso não houvesse o esperado cumprimento da obrigação. Do mesmo modo, o Estado deveria evitar imiscuir-se nas atividades próprias dos indivíduos, vale dizer, que concernissem a seus interesses. A revolução, conclamando as ideias da novel burguesia economicamente ascendente, pontificava o Estado mínimo, bem caracterizado pela conhecida frase de Quesnay: “laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même”. Não sem alguma razão: o Estado absolutista que a precedeu hipertrofiou-se sobre a esfera privada, quase que aniquilando o indivíduo frente ao rei, o qual, como anotam duas frases também referenciais das ideias em voga nesse outro período da História: jamais errava, ou cometia delitos, e confundia-se com o próprio Estado.[5]
A efetiva delineação das esferas pública e privada, com a
prevalência desta sobre aquela, seria, a partir daí, uma fórmula para prevenir
ou, pelo menos, reduzir abusos. A separação entre as mencionadas searas
mostrava-se fundamental, assim, para a organização de uma nova sociedade, de um
novo Estado e de um ordenamento jurídico capaz de disciplinar essa novel ordem.
(BORGES, 2003, p. 740). Por isso mesmo, muito se valorizava os princípios da
liberdade do indivíduo, da crença na superioridade da regulação espontânea da
sociedade e da limitação da intervenção estatal. (ROTH, 2010, p. 16-17).
É nesse contexto que emerge um verdadeiro empenho para, novamente, se fincar esforços na diferenciação entre o direito público e o direito privado. Contudo, os conhecidos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que a inspiraram, forneceram o gérmen principiológico que iria, com o tempo, alterar essa dinâmica. Se é certo que a liberdade foi a causa eficiente para que se voltasse a enfatizar o distanciamento entre o ius publicum e o ius privatum, a igualdade e a fraternidade foram os vetores valorativos que passaram, com o tempo, a promover sua reaproximação mercê da doutrina das gerações de direitos fundamentais como adiante se buscará demonstrará.
A história é de todos conhecida: a sobreposição das ideias liberais sobre a crise social que se instalou no Século XIX conduziu a que se prestigiasse um sistema jurídico baseado nas relações privadas, sobretudo de manutenção da propriedade e dos grandes interesses da ascendente classe social capitalista. Com foco, portanto, no direito privado, deixou-se quase ao olvido qualquer possível intervenção pública para melhoria de tais condições. A situação em comentário é reproduzida por todos ou quase todos os constitucionalistas. A igualdade formal, claro, é a igualdade própria de um Estado que parte da abstração que todos seus súditos se equivalem. Fantasiosa, todas as críticas que já lhe foram proferidas ou ainda estão por ser levadas a termo cabem na acerba e não menos sarcástica frase de Anatole France: “a majestosa igualdade de leis, que proíbe tanto aos ricos como aos pobres de dormir debaixo das pontes, de mendigar e de roubar o pão”.[6]
Com efeito, o que historicamente se denominou de constitucionalismo moderno, ou seja, a série de revoluções feitas pela nova classe economicamente dominante, a burguesia, e que culminaram no aparecimento das primeiras constituições com o formato atual propagaram sobretudo os direitos do individualismo. Os direitos fundamentais desta fase são aqueles destinados a assegurar sobretudo as ditas liberdades individuais imprescindíveis ao Estado Liberal, como explica, por exemplo, Paulo Bonavides (2006, p. 563-564). Os direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão, portanto, protegiam o indivíduo do Estado.
Tais prerrogativas frente ao Poder Público resultaram,
como já destacado, de um momento histórico onde foi necessário combater a
tirania e os abusos cometidos pelos representantes da nação, vale dizer, de
regra a nobreza que secularmente espoliava seu próprio povo. Sua lógica de
atuação envolve um juízo mais sumário e que se expressa pela impossibilidade,
em regra, de intervenção do Estado nessa seara, ou, como diz Virgílio Afonso da
Silva: “se essa intervenção não é suficientemente fundamentada, deve ocorrer a
consequência jurídica da liberdade, que é a exigência da abstenção estatal”.
(2010, p. 76).
Não é sem razão que o grande primado normativo da
revolução de 1789 ter sido o Código Civil de 1804 ao invés de qualquer texto
constitucional produzido nesse período. Eventualmente, a Déclaration des
droit já era, como hoje ainda o é, festejada, porém não raro mais como uma pauta
de aspirações filosóficas e políticas que propriamente um diploma
normativo. Tanto assim que os os constitucionalistas recém encardinados como
catedráticos de um novo e autônomo ramo da ciência do Direito estavam sempre às
voltas diante da dificuldades de conceituar suas normas já que muitas delas não
aparentavam possuir grau visível de eficácia jurídica.[7] A
solução, como bem se sabe, foi dada por meio da fórmula norte-americana que
dividia as normas constitucionais em dois tipos: autoexecutáveis e não autoexecutáveis.
Diferentemente disso, a supremacia do Code como
geratriz operacional de todo o ordenamento normativo era motivo de gáudio para
os civilistas do Século XIX. Proclama-se a superioridade ontológica do Direito
Civil, bem como de todo o Direito Privado sobre o Público, sendo este nada
mais, nada menos que um caminho para se chegar aos objetivos daquele,
encarnação jurídica do próprio Estado Liberal. (VASCONCELOS, 2002, p. 216). Os
direitos fundamentais, considerados conforme já dito anteriormente como pontos
de limitação para a atuação abusiva do Estado, destinavam-se a conter o mal necessário
que era o próprio Estado com o objetivo de assegurar a plena realização do
ordenamento privado. Nada muito para além disso.
A suspeição do Estado começa a ser revertida por meio da consolidação dos direitos de caráter social. Por sinal, não faltou quem, justamente ao final do Século XIX e começos do Século XX, começasse a demonstrar a necessidade de uma revisão dos termos da summa divisio ao preciso argumento de que muito do que até então se considerava alheio à atenção do Estado deveria ser normatizado, porém, não raro, sob as vestes mesmo da legislação privada, pois concernente ainda às relações entre particulares. Um dos primeiros a falar de uma categoria de superação entre o público e o privado por meio de um Direito Social foi Enrico Cimbali.
Sem abrir mão dos postulados fundamentais da economia
capitalista, antes rendendo elogios a sua capacidade de trazer prosperidade, o
civilista peninsular, atento as mudanças ocorridas pela Revolução Industrial,
conclama a que tais fatos “interamenti nuovi ed asslutamenti ignoti alle
legislazioni civile vigenti” passassem a ser disciplinados pelo que seria
um diritto privato sociale, onde seria possível perceber uma maior
presença do Estado. (CIMBALI, 1885, p. 39-41). Exemplos que iriam da criação do
Direito do Trabalho como disciplina autônoma de estudos, embora derivada do clássico
contrato de prestação de serviços já disciplinado pelo Direito Romano (locatio
conductio operarum) à disciplina da propriedade privada para afastar seu
uso abusivo ou antissocial, com forte interferência do poder público para para
coibir seu uso nocivo demonstram o giro copernicano que logo também
entusiasmaria a fina flor dos juristas e cientistas sociais franceses a exemplo
de Augusto Comte, Émile Durkheim, Léon Duguit, Gaston Morin, Georges Ripert e
René Savatier. (VASCONCELOS, 2002, p. 220).[8]
Não foi apenas no âmbito da legislação ordinária que se fez sentir a mudança que, ao fim e ao cabo, indicava a superação do modelo dialético entre o Direito Público e o Privado, pelo menos do modo como era concebida. As pautas sociais que varreram Europa e América a fim de minorar as desigualdades sociais já referidas deram o substrato igualmente a uma segunda fase geracional dos direitos fundamentais. Sabe-se que foi a Constituição mexicana de 1917, ainda hoje vigente naquele país, o primeiro documento jurídico a introduzi-los e não é sem razão que seus antecedentes históricos estejam ligados precisamente à revolução iniciada em 1910 (BURGOA, 1984, pp. 315-316). Mantendo o teor liberal, caracterizou-se todavia por implementar em nível constitucional institutos como a reforma agrária e o reconhecimento de direitos de propriedade aos povos indígenas originários (art. 23), além de disciplinar as relações de trabalho com regras, naquele então, quase idênticas às que constam, por exemplo, do vigente art. 7º da Constituição brasileira de 1988.
Após, seguiu-se a não menos prestigiosa Constituição de
Weimar. Seu fracasso enquanto experiência histórica em nada lhe retira o mérito
de haver sido o primeiro documento europeu, e, consoante a historiografia
oficial, o segundo do mundo, a entabular uma pauta de direitos sociais.
Diferentemente, contudo, da relação de direitos advinda do liberalismo, não
havia simplesmente uma enunciação tout court de direitos, senão que a
apresentação de um programa. Como diz Jeff King, não se tratou do
reconhecimento abstrato de direitos, mas sim de dar concreção institucional
específica a políticas sociais específicas. Os direitos fundamentais de segunda
geração buscam, assim, não somente proteger o indivíduo do Estado, mas também
fazer com que o Estado se engaje na proteção dos indivíduos, assegurando-lhe o
dito mínimo existencial, do qual, inclusive, não se pode mais o Estado
se afastar mercê do já enunciado princípio de vedação ao retrocesso.
É justamente dentro dessa perspectiva de expansão da pauta
de demandas das classes menos assistidas e, em especial, de seu reconhecimento
pelo ordenamento jurídico que nasce o Estado Social, também denominado de
Estado Providência ou Welfare State.[9]
Reduziu-se, como sabido, o poder de autodeterminação dos privados para se autorregularem
e, sem romper com o sistema capitalista, aceitou-se uma expressiva capacidade
interventiva do Estado na economia e também nas relações até então eminentemente
privadas, visivelmente alterando a ideia de que o Direito Público diria
respeito aos interesses da coletividade, personificada no Estado e o Privado
apenas regularia os interesses dos indivíduos
O que merece papel de destaque é que o Estado Social pode
ser visualizado como um instrumento utilizado para – pelo menos, tentar –
controlar as distorções causadas pelo sistema capitalista. Evidentemente, ao
assumir esse papel não pretende o Estado simplesmente eliminar o referido
sistema, na verdade, muito pelo contrário, porquanto o que deseja realmente o
Estado Providência é proteger os direitos dos individuais sem ter que abdicar,
necessariamente, do desenvolvimento econômico. Com efeito, o que houve, no
período, foi uma nítida fixação de contornos para o espaço de atuação do Estado
dentro do espaço reservado aos direitos individuais. (LUDWIG, 2002, p. 96-97).
Assim, em razão, principalmente, da postura negativista do Estado de verdadeira
abstenção de atuação diante de situações que se referem a aspectos privados da
vida do indivíduo a distinção entre o público e o privado ficou consagrada em
definitivo pelo critério subjetivo em conformidade com a teoria tradicional
proposta por Ulpiano e aprofundada após o constitucionalismo liberal.
Contudo, na medida em que nasce o Estado Social e, com
ele, se abandona a ideia de abstencionismo do poder público nas relações
transindividuais. A partir de então, o que se tem é um período de efetiva
intervenção estatal em pontos considerados estratégicos diante do déficit
de capacidade dos particulares em conseguirem obter soluções próprias para que
se atinja a esperada paz ou estabilidade social almejada pelo Direito.[10]
Tanto é assim que a lista inicialmente concebida por Cimbali, de novas matérias
que deveriam ser disciplinadas pelo tal direito privado social só fez
aumentar com o tempo.
As mudanças de perspectiva que consubstanciaram a passagem
do Estado Liberal para o Social, no bojo do qual também assomaram-se as
subsequentes ondas de direitos fundamentais de segunda e terceira gerações
importou a impossibilidade de se estabelecer limites precisos para o que no
começo do constitucionalismo oitocentista se supunha ser as fronteiras entre o
Direito Público e o Direito Privado. Na verdade, tais espaços possuem, cada vez
mais, uma ampla zona de interseção, o que, dificultando, senão impedindo mesmo
a identificação segura de seus contornos, abre o caminho para a própria
superação epistemológica da summa divisio. (ZANINI, 2018, p. 211). Para
tanto, será decisivo observar o papel dos direitos fundamentais em conformidade
com a hodierna teoria dos direitos fundamentais, o que será levado a efeito a
seguir.
Como se mencionou na introdução do presente trabalho, seu objetivo é demonstrar como a summa divisio entre o direito público e o privado deve ser redimensionada. Embora persistindo para fins mais práticos que teóricos, é alcançada pela nova dinâmica que entabulou um sentimento movimento não mais de exclusão senão que de cooperação entre as esferas pública e privada, sendo os direitos fundamentais um dos elementos catalizadores desse processo. Visto que até o momento se cuidou da evolução histórica que alterou a própria percepção do Estado, de liberal para social, é imprescindível focar, agora, numa análise, ainda que limitada, sobre o conceito de direitos fundamentais em consonância com a teoria constitucional vigente.
De forma lata, a expressão sugere a criação e a manutenção
dos “pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”;
de forma restrita, adquirem uma conformação estritamente normativa, onde se os
considera como “aqueles direitos que o direito vigente classifica como tais”.
(BONAVIDES, 2006, p. 560). Na realidade, essa classificação toma por base
distinção formulada por Konrad Hesse, o qual, nada obstante, alerta para a
inevitável dificuldade de inseri-los em uma estrutura coesa e harmônica, pois a
própria Constituição muitas vezes faz menção a vários direitos que, mesmo não
tendo sido chamados de fundamentais, outra coisa não são que tais. (1998, p.
225).
Vale dizer, os direitos fundamentais devem ser considerados sob dois aspectos, a saber, no âmbito formal e material. “A fundamentalidade formal dos Direitos Fundamentais resulta de seu posicionamento no ordenamento jurídico, gerando efeito vinculante tanto para o Executivo, Legislativo quanto para o Judiciário, enquanto a fundamentalidade material está ligada à ideia de normas que constituem estruturas básicas do Estado e da Sociedade.” (PANSIERI, 2012, p. 41). Contudo, pode-se dizer, como acima salientado, que o aspecto formal prepondera, de modo que a destacada eficácia jurídica diferenciada decorre não de seu espectro substancial, mas sim do normativo.
Considerada sob esse seu aspecto material, portanto, a noção de direitos fundamentais toma como ponto de partida o conceito de dignidade da pessoa humana. Não por outra razão que a vigente Constituição alemã, certamente o mais expressivo documento jurídico firmado naquele país após a tragédia nazista, inicia com seu clássico: a dignidade do homem é intocável (No original: “Die Würde des Menschen ist unantastbar”). Como explica Jorge de Miranda, realmente, tal conexão apenas surge com o pós-guerra por meio desses grandes documentos que procuraram, cada qual a seu modo, tentar redimir a humanidade das atrocidades do conflito armado encerrado em 1945, e, por meio dela: “a Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais” (2010, p. 362).
Ao se predicar que a dignidade do homem é a base de qualquer
pressuposto constitucional se está, por derradeiro, afirmando que ela é também
o fim último de qualquer forma de associação humana, incluído naturalmente o
Estado e a todo o ordenamento jurídico.
Nada obstante, por ser demasiada aberta a noção de dignidade da pessoa humana, é difícil captar sua essência por meio de um conceito apriorístico. É claro que a compreensão de vida digna é por demais importante para caber em qualquer fórmula jurídica artificialmente criada. Por outro lado, corre-se sempre o risco de impor limites prévios que poderiam privá-lo de eficácia ou operacionalidade em muitas situações. Desse modo, como destacou Gilmar Ferreira Mendes: “Esses limites são definidos com auxílio do desenvolvimento histórico-cultural da sociedade e de seus valores.” (2013, p. 89).
Não quer isso dizer, todavia, que não exista um conceito
minimamente universal, pelo qual se consegue dar a entender que a dignidade
humana em última análise representa a busca por uma co-humanidade no
sentido de contínuo respeito ao próximo, inclusive, mais que nunca, às gerações
que estão porvir (MENDES, 2013, p. 89). Ver-se-á mais adiante, por
sinal, que a própria ideia de gerações de direitos fundamentais importa o
reconhecimento de que há uma nítida historicidade de seu conteúdo e, de
conseguinte, que o conteúdo da dignidade da pessoa humana é igualmente
cambiante. Bem entendido: se por cambiante se compreende uma continuidade
evolutiva que sempre lhe agregue valores, vale dizer, sem que haja retrocessos.
Nesses termos, é a dignidade humana, de fato, a geratriz
dos direitos fundamentais. É que, embora a dignidade humana até se faça
acompanhar por um listado de direitos (fundamentais) que são suficientemente
capazes de fornecer uma proteção adequada aos indivíduos, é necessário resguardar
sua função principiológica de constantemente relembrar a razão de ser de todo o
ordenamento estatal (Rechtsstaat). De aí se cunha a ideia de que ela, em
última análise, constitui o direito de ter direitos (ENDERS, 2010, p.
2). Por esse aspecto, portanto, direitos fundamentais são: “normas
constitucionais de caráter principiológico, que visam proteger diretamente a
dignidade humana nas suas diferentes manifestações e objetivam legitimar a
atuação do poder jurídico-estatal e dos particulares”. (LOPES, 2001, p. 35).
Ainda assim, as definições até agora colocadas são ou meramente formais, ou
materialmente tão vagas que impedem precisar o que poderia ser configurado
dentro dessa pauta de posições jurídicas tão essencial para os ordenamentos
ocidentais.
Eis o grande problema: se por uma lado diz-se que se constituem como direitos básicos na ordem jurídico constitucional, não se consegue precisar a priori seu conteúdo material. Eles possuem um conteúdo variável, fruto da evolução histórica que lhes é inerente e que, mais adiante, será confirmada por meio das já referidas gerações, ou dimensões, de direitos fundamentais. Essa impossibilidade de prévia estruturação de um âmbito material para os direitos fundamentais fez com que a doutrina constitucional tenha concentrado suas investigações mais numa acepção formalista que substancial destes direitos.
Assim, observa-se que a causa eficiente para se considerar tal ou qual direito como sendo fundamental em determinado ordenamento jurídico é, ao fim e ao cabo, não seu conteúdo essencial, mas sua inserção naquele núcleo de matérias que, por estarem inseridos em uma Constituição rígida, contam com proteção diferenciada em relação aos demais direitos constantes desse mesmo ordenamento. Em outras situações, recorde-se, essa proteção vai ao extremo da imutabilidade, convertendo-se nas denominadas cláusulas pétreas. Como conclusão, decorre a afirmação de que só faz sentido falar em direitos fundamentais em uma Constituição formal (SILVA, 2010, p. 24). Isso, por si somente, já representa uma nítida mudança de perspectiva em relação ao critério para definição do que considera como Direito Público e Direito Privado.
O papel de destaque dos direitos fundamentais e sua perspectiva de cimeira no ordenamento jurídico, com efeito, altera a perspectiva até então narrada. Como destacado no capítulo anterior, as constituições, ou mesmo declarações de direito do liberalismo oitocentista projetaram em seus códigos civis seus capolavori. Foi assim com o Código Civil dos franceses de 1804 até o Código Civil alemão de 1901 (Bürgerliches Gesetzbuch). A lógica, agora, é outra e por ela já não é mais a legislação privada que outorga a primazia das normas de direito positivo, senão que as disposições constantes da Constituição mesma, especialmente quando se projeta o papel de destaque dos direitos fundamentais.
Dentro desse contexto, ao considerar a dicotomia entre público e privado, os direitos fundamentais, atualmente uma das principais vigas de sustentação do próprio Direito Público, coloca-se em xeque a idéia de que a função do Direito Privado venha a ser basicamente proteger a autonomia da vontade. (SARMENTO, 2006, p. 12-13). A segunda dimensão dos direitos fundamentais, mercê de seus compromissos com a igualdade material, buscou - e ainda busca - a concretização do princípio da justiça social, como já assinalado, através do próprio Estado a fim de proteger grupos sociais desfavorecidos, seja por meio de um maior dirigismo sobre o legislador, inclusive no âmbito das relações privadas, seja mesmo pela enunciação de direitos prestacionais a cargo do poder público, os quais, até então, se viam sob o âmbito de incidência das relações entre particulares. (SARLET, 2007. p. 50).
Veja-se o caso, por exemplo, do direito à saúde. Visto tanto como um direito fundamental de primeira como de segunda geração, ele vem frequentando cada vez mais os textos das constituições européias e americanas. Embora geralmente franqueado o fornecimento de serviços de saúde à iniciativa privada, o que, no caso brasileiro encontra-se previsto no art. 199 da Constituição Federal, a atividade estatal ela é, essencialmente, “um dever do Estado, o qual deve garanti-la mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, bem como “sua regulamentação, fiscalização e controle” (arts. 196 e 197). O fenômeno se repete em quase todos os demais direitos sociais enunciados no art. 6º da Carta de 1988 tais como a educação a moradia, o transporte, a segurança, a previdência social.[11]
Até mesmo, ou principalmente, o direito à propriedade, tão caro ao Estado Liberal, hoje se vê bastante limitado pela preocupação com o social e com o coletivo. Por exemplo, o artigo 182, §2º, da Constituição Federal dispõe que a propriedade urbana deve atender as exigências contidas no plano diretor; no mesmo sentido, o artigo 186 da Constituição Federal elenca requisitos que devem ser efetivamente cumpridos pela propriedade rural.
Feitas tais considerações, tem-se que os direitos fundamentais efetivamente criam, ou intensificam a zona cinzenta já percebida, de interseção existente entre as esferas pública e a privada, cuja demarcação era vista como algo facilmente inferível em um passado não tão distante por força de se considerar o Estado como mínimo. Ora, ao se predicar um modelo estatal com poucas atribuições sociais, como foram, a propósito, o romano e liberal oitocentista, constituir-se-ia tarefa não tão hercúlea realmente traçar as fronteiras de um e do outro. Nada obstante, a passagem para um padrão de Estado que se agiganta na tarefa de diminuir desigualdades a partir do controle da economia e da entrega por ele próprio de determinadas prestações, por natural, rompe essa calmaria dogmática quer era fruto do absenteísmo ideológico.
Se, inicialmente, os direitos fundamentais surgiram como uma forma de reger e limitar as relações inseridas no âmbito público, ou seja, tinha-se efetivamente a presença do Estado, o Século XIX, colocou em perspectiva que opressões e os abusos podem decorrer não apenas do Estado, mas também de outros particulares. (SARMENTO, 2008, p. 193-194). Em o fazendo, terminar-se-ia chegando à revisão da summa divisio. A novel configuração do Estado, no que fora fortemente impulsionada inclusive pela chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais levou à perceção de que, como diz Cláudio Ari Mello, há “um lócus de encontro entre as duas esferas do universo jurídico”. (2003, p. 81). É isso que melhor se compreenderá a seguir.
Acreditava-se, até por força das implicações ideológicas já mencionadas anteriormente, que o distanciamento ontológico entre o Direito Público e o Privado seria dado por contrários lógicos, o que implicaria a regra do terceiro excluído, a qual enuncia que entre dos proposições lógicas que, juntas, formam una contradição não há uma terceira posibilidade (tertium exclusum ou tertium no datur; inter duo contradictoria non este médium). Na realidade, o que se percebeu é que eles poderiam conviver perfeitamente como contrários, não sendo contraditórios, ou seja, não eram em si mesmos excludentes. Os contrários, com efeito, permitem uma zona de interseção, como o claro, o escuro e o gris, enquanto que os contraditórios, por se referirem a juízos díspares jamais poderiam conceber uma zona intermédia.[12]
Ao se advogar, como se fazia anteriormente, que o privado e o público consagrariam interesses antagónicos os estritos limites que os separavam jamais poderia ser rompido. Nada obstante, como antes destacado, esses ramos não são assim tão explicitamente delineados, operando uma nítida simbiose entre eles, podendo-se afirma que, muitas vezes, a relação jurídica que se está averiguando mesma situação pode ser considerada por uma perspectiva híbrida. Ou seja, um mesmo fato pode, ao mesmo tempo, interesses públicos e privados. De fato, existem direitos que transitam em uma zona intermediária, cinzenta, atualmente perceptível entre o público e privado. (PERLINGIERI; FEMIA, 2004, p. 53).
Por tudo isso é que se fala em privatização do direito
público e publicização do direito privado, fenômeno particularmente percebido
pelos civilistas italianos do pós-guerra. É que não apenas interesses não tão
gerais, mas de menor escala, como associados a comunidades, grupos e
categorias, passam a ser levados em consideração e, desse modo, tornam-se
objeto de regulamentação estatal, como, para o fazer de melhor modo, não raro o
Estado se vale de formas e meios (institutos) de Direito Privado.
(BIANCA, 1990, p. 41).
Não se está dizendo, por certo, que a novel que o
descrédito da milenar summa divisio teve seu início com a doutrina dos
direitos fundamentais. A mesma crítica que ora se lhe a faz, por exemplo, pode
ser encontrada em Hans Kelsen com fundamentação puramente epistêmica. (1992, p.
201-206). O ponto que se que destacar aqui, como já mencionado no tópico
anterior, é que a releitura dada aos direitos fundamentais com eficácia também
aos particulares, ou seja, a compreensão de sua hibridez para ser
aplicado tanto às relações jurídicas envolvendo tanto a presença do Estado como
aquelas envolvendo tão somente os particulares parece ter jogado derradeira pá
de cal no problema.
A questão, como é sabido, apresentou especial importância
na Alemanha e veio a ser o pano de fundo, através do caso Lüth para o
desenvolvimento da força vinculante e a eficácia imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas (Drittwirkung). Se eventuais críticas,
a nosso sentir corretas, lhe podem ser dirigidas em razão dos excessos
metodológicos que se vem verificando mais recentemente no Brasil, não se nega
que possa existir uma comunicação virtuosa entre o Direito Constitucional e o
Privado, em Civil. Atente-se, contudo, para o fato de que o movimento deve ser
de mão dupla de modo que o Direito Privado, que desenvolveu ao longo de
quase dois mil anos de total independência bases metodológicas próprias, também
poder influenciar a leitura das normas constitucionais, o que muitas vezes é
desprezado pelos publicistas nacionais.[13]
Drittwirkung e Wechselwirkung[14]
passam a ser consideradas como ferramentas hermenêuticas resultantes de uma
nova teoria constitucionalista, são reiteradamente destacadas quando se fala do
caso Lüth, o qual, como sabido, tratou de garantir a incidência, num
contexto entre privados, do direito fundamental de liberdade de expressão. A
partir da famosa decisão, a doutrina da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais ganhou corpo ao defender que eles tanto servem em face do Estado,
para evitar abusos e arbitrariedades, mas também podem fazer uso nas relações
jurídicas essencialmente privadas. (VIEIRA DE ANDRADE, 2007, p. 262).
É justamente dentro desse contexto que merece destaque a
ascensão do que se chama atualmente de Direito Civil Constitucional, que
demonstra já não ser tão maciça a antiga disjunção existente entre os âmbitos
público e privado, o qual é resultado da conjugação de dois movimentos: o
primeiro, é o crescimento da importância das Constituições nas ordens jurídicas
das democracias ocidentais contemporâneas; o segundo, é a perda de protagonismo
do Código Civil nos termos em que o Século XIX concebeu sua importância para os
ordenamentos jurídicos. (LEAL, 2015, p. 126). Desse modo, a discussão
envolvendo os direitos fundamentais se desenvolve lado a lado com a
constitucionalização do Direito Civil, de modo que este passa a abarcar, cada
vez mais, princípios eminentemente constitucionais e que eram aplicados, até
então, em um contexto publicista. Nesse sentido, esclarece Fernando Leal:
O direito civil constitucional endossa uma teoria da
Constituição. Essa teoria se assenta sobre a afirmação da supremacia e da
normatividade da Constituição, a centralidade dos direitos fundamentais como
sistema de referência da ordem constitucional, a concepção de que as
Constituições encarnam os valores ético-políticos fundamentais da comunidade
que pretende reger e o reconhecimento de que os comandos constitucionais e os
compromissos valorativos assumidos pelo constituinte funcionam fundamentalmente
como limites e programas que condicionam a atuação de atores públicos e
privados, na medida em que é a Constituição e, no seu centro, a sua “tábua
axiológica”, que garantem a unidade do ordenamento jurídico. (2015, p. 128).
Nessa perspectiva, o Direito Civil Constitucional
desenvolve valores que, estavam fora da agenda do Direito Privado
concebido no Code, tais como a dignidade da pessoa humana, função social
dos contratos, função social da propriedade, dentre outros. Esse novo viés do
Direito Civil se preocupou com problemas da sociedade contemporânea, abrindo-se
para todas essas questões e preocupando-se com grupos minoritários. (RODRIGUES
JÚNIOR, 2010, p. 20). Não poucas vezes, esses grupos não são numericamente
contramajoritários, bem ao contrátio, mas são economicamente débeis, buscando a
legislação tentar minimamente colocar em situação de paridade os particulares
separados pela desproporção entre suas riquesas.
Um recente exemplo dessa perspectiva foi a promulgação da Lei 12.181, de 1 de julho de 2021, que tratou da prevenção e controle do superendividamento. Dentre seus vários artigos, acrescentou-se o art. 54-A ao Código de Defesa do Consumidor, cujo § 1º tem a seguinte redação: “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.” O ponto que se quer demonstrar, observe-se é a correlação entre a metodologia jurídica privada, com a remessa a conceitos como boa-fé, obrigações vincendas por um lado e, do outro, termos próprios do Direito Constitucional como mínimo existencial.
Um direito privado constitucional propicia, assim,
novos rumos ao que, anteriormente, era considerado puramente Direito Civil,
Comercial etc., porquanto passa a considerar a dignidade como elemento basilar
da relação jurídica. Dessa maneira, o que o Direito Civil constitucional
objetiva, em princípio, é capturar o valor axiológico da norma, ou seja, o seu
sentido mais aproximado da ideia de justiça e em conformidade com predefinições
do que é socialmente adequado ou que atenda, ao máximo, o bem-comum e a
dignidade da pessoa humana. Assim, na prática, observam-se três intuitos
principais, são eles: a) proteção das minorias; b) justiça distributiva; e c)
ruptura, no campo dos costumes e da organização familiar, de tradições
religiosas ou morais. (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 24).
Com efeito, não se nega que as premissas inerentes ao Direito Civil constitucional são importantes e representam um grande avanço social, pois intentam, em maior ou menor grau, uma sociedade marcada pela preocupação com a igualdade material – e não puramente formal, como no Estado Liberal, tendo sido este, repita-se, um dos motivos de sua crise. No entanto, é de se ressaltar que existe, também, o outro lado da moeda, composto por aspectos negativos, porquanto a utilização exacerbada do Direito Civil constitucional pode, no longo prazo, reverberar contra os próprios cidadãos.
No pertinente, são duas as características que merecem
papel de destaque. A primeira é a eventual desconsideração de textos legais –
e, até mesmo, constitucionais – explícitos e completos, que, em outra situação,
não implicaria nenhuma dúvida ao intérprete. Já a segunda é a utilização do
Direito com a finalidade precípua de favorecer impreterivelmente os
hipossuficientes. Ao fazer a sobreposição de tais particularidades, o resultado
pode se traduzir em verdadeira inconsistência, porquanto é possível que
determinada norma seja “simplesmente” desconsiderada para favorecer algum
segmento social e efetivar a justiça distributiva, o que acaba por abalar, de
certo modo, a segurança jurídica que deve ser inerente à dogmática jurídica.
Por exemplo, considere-se a seguinte situação hipotética: o julgador, sem nenhuma causa jurídica relevante, determina a revisão de um contrato ou a desconsideração de uma de suas cláusulas, justamente com o objetivo de favorecer um grupo socialmente desfavorecido. O cerne da questão é que, realmente, no caso que se julgou, houve um benefício para o indivíduo especificamente ou para o grupo de indivíduos, no entanto, a vantagem será estritamente pontual, já que, a partir de então, o outro polo do negócio jurídico poderá – e. não raro, isso, de fato, acontece – incrementar custos contratuais, aumentar a taxa de juros, etc.
Assim, o que deve ser especialmente considerado é que a
própria sociedade pode vir a pagar custos pela intervenção, embora em um
primeiro momento fosse considerado como algo essencialmente positivo, já que se
aproximava bastante da ideia de justiça social. Contudo, o lado oposto da
relação jurídica poderá onerar os próximos bens ou serviços simplesmente pelo
risco de que o mesmo venha a ser alterado pelo Poder Judiciário. (RODRIGUES
JÚNIOR, 2010, p. 31). Vale dizer, ao se advogar a superação epistêmica da summa
divisio não se está fornecendo um documento em branco ao juiz para
suplantar a metodologia que é própria dos institutos de direito privado por
meio de outros tantos oriundos do direito público.
O que se pretende, como também reiteradamente aqui pronunciado, nem tão inédito é, tanto assim que pode ser perfeitamente reproduzido pela boca de Carlos Cossio: “no puede haber ninguna figura concreta del Derecho positivo que sea puro derecho público o puro derecho privado, sino que siempre Han de ser ambas cosas en mayor o menor proporción.” (1964, P. 455). Alcançada pelo marco da teoria atual dos direitos fundamentais, o antigo fosso conceitual é preenchido por uma fértil zona a ser arada. Uma zona de interseção, de simbiose, de cooperação que, como destacado pelo autor da teoria egológica, será orientada, a depender da situação, mais para um lado, ou mais para o outro, mas nunca totalmente apenas para um deles, na busca da aplicação óptima daqueles direitos cujo substrato primeiro é a dignidade do homem.
As revoluções estatais contribuiram para que o homem
alterasse sua relação com o direito público e o privado. O que havia, em
princípio, era um afastamento, ou mesmo uma separação, entre os âmbitos
jurídicos, de modo que Estado devia evitar interferir em atividades próprias
dos indivíduos. Na medida em que essa dicotomia sofreu mitigações, o direito
público e o privado encontraram um ponto de confluência, passando a existir uma
retroalimentação entre ambos. Assim, fomentou-se o interesse – e a necessidade
– em construir um caminho que interligasse os âmbitos, tendo em vista que,
conjuntamente, poderiam potencializar a concretização de direitos.
É nesse contexto que ganha força a teoria dos direitos
fundamentais. Tais direitos, justamente por refletirem uma forma de resguardar
os indivíduos de atos tirânicos e abusivos por parte do Estado, devem ser
visualizados como inerentes a própria condição de ser humano e, por isso mesmo,
devem, naturalmente, ser garantidos e respeitados. É de se destacar que,
inicialmente, os direitos fundamentais surgem como uma proteção inserida, muito
especialmente, na relação dos indivíduos com o direito público, como um
verdadeiro trunfo contra o Estado.
Ocorre que o âmbito de aplicação dos direitos fundamentais
aumenta consideravelmente, pois passam a ser vistos não mais como um
instrumento aplicado apenas no âmbito público, mas também como um mecanismo
utilizado nas relações entre privados, de modo que se passa a proteger um
particular de arbitrariedades de outro particular.
Desse modo, nada obstante os direitos fundamentais tenham
sido criados como forma de proteção às arbitrariedades do Estado, os citados
direitos passaram a ser evocados também no âmbito privado, notadamente nas
relações entre particulares. A partir daí, fala-se em eficácia horizontal dos
direitos fundamentais, o que possibilitou concretizar, por sua vez, a
constitucionalização do Direito Civil, ramo do direito que classicamente
cuidava de relações essencialmente privadas.
Por derradeiro, não se nega que a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações entre privados demonstra e concretiza a preocupação
da sociedade em proteger as minorias historicamente prejudicadas e em propiciar
uma maior igualdade material, e não puramente formal. No entanto, é preciso que
se tenha uma visão sistêmica de tal aplicação, que muitas vezes ocorre por meio
do direito civil constitucional. É que caso o Estado adote uma postura
extremamente ingerente, pode acontecer de o próprio segmento social que se
buscava proteger sofrer com a oneração de diversos bens e serviços, sendo
justamente esta uma forma encontrada pela parte adversa para se resguardar de
eventuais prejuízos gerados pela intervenção.
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Submetido em: 28 abr. 2022.
[1] Em tradução livre: “O direito público diz respeito ao estado das coisas
públicas (romana); o privado à utilidade dos particulares”. (Digesto, 1.1.1.2).
[2] Nada obstante, autores como Foustel de Coulanges parecem sugerir que, já
em uma etapa posterior das instituições político-jurídicas de Atenas,
especialmente após as reformas introduzidas por Sólon no Século VI A.C., bem
como no início de Roma, ainda com a Lei das XII Tábuas, já seria possível
observar uma separação entre as tradicionais regras religiosas, que davam a
conformação unitária do Direito até então, e traços de uma nova moralidade
pública, a qual seria dominada mais pelos interesses da pólis como
elemento a parte - e muitas em colisão - com os de seus habitantes. Cf.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução: Frederico Ozanam Pessoa
de Barros. São Paulo: Edameris, 1961, p. 217-218.
[3] De fato, o ius civile, ou quiritário, embora entabulando a quebra
entre as leis da natureza e as leis da cidade, vinham nestas um
todo unitário. Porém, “quando o poder estatal se fortalece e se agiganta,
somando poderes para a dominação internacional, é que ocorre o divórcio entre
os interesses do Estado e do indivíduo, daí surgindo a tensão entre a liberdade
e a autoridade. (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica.
5 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 214)
[4] Apenas como exemplo do que se disse acima, cf.: MEIRA, Silvio Augusto de
Bastos. Direito Tributário Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1978.
[5] Não por acaso que ambas foram pronunciadas por nada menos que dois soberanos
absolutistas. A primeira, no original, The King can do no wrong, dita
por Carlos I da Inglaterra quando da ocasião do julgamento que lhe custou a
vida. A segunda, talvez ainda mais conhecida, dada por Luiz XIV: L’État
c’est moi.
[6] Tradução livre do original: ““la majestueuse égalité des lois, que
interdit aux riches comme aux pauvres de coucher sous les ponts, de mendier
dans la rue et de voler du pain”. (FRANCE, Anatole. Le lys
rouge. Paris: Calmann Lévy, 1894, p. 81). Em termos mais jurídicos que literários
pode-se dizer que as condições que se revelaram no contexto fático do Estado
Liberal ocasionaram o agravamento das desigualdades sociais, na media em que a
evocação do Direito Privado de raiz iluminista era pautada apenas numa
igualdade meramente formal entre a população, especificamente entre empregados
e empregadores. Cf.: BONAVIDES, Paulo. O Estado Social e a tradição política
liberal do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, 53, p.
63-90, 1981, p. 67.
[7] Sobre a História do Direito Constitucional enquanto disciplina jurídica,
cf.: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São
Paulo : Editora Malheiros, 2006. p. 35-41.
[8] Desnecessário acrescentar que o Código Civil italiano de 1942 ainda em
vigor constitui-se como fruto direto dessas ideias, tendo ele próprio
aglutinado, como sabido, vários ramos do Direito Privado, como o Civil, o então
Comercial e o do Trabalho, naquilo que passou a ser conhecido como
uniformização do Direito Obrigacional.
[9] Sobre o assunto, a obra referencial no Direito nacional é o trabalho do
professor Paulo Bonavides Do Estado Liberal ao Estado Social ao qual se
remete o leitor: BONAVIDES, Paulo Do Estado Liberal ao Estado Social. 7
ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
[10] Aqui cabe uma importante explicação, até agora não mencionada porque se
a considerava implicitamente mencionada. Quando se diz Direito Privado como
ramo onde prevalece o absenteísmo estatal, pode-se excogitar do seguinte
paradoxo: mas, afinal, se há intervenção legislativa por parte do Estado em
setores, por exemplo, como obrigações, contratos e a propriedade privada, não
se estaria, de todo modo, impondo a vontade do Estado sobre a vida
interna dos particulares? A resposta pode ser negativa se se considera
que aquilo que se denomina de Direito Privado, como esclareceu Hans Kelsen numa
das primeiras e mais contundentes críticas feitas no Século XX sobre a summa
divisio, nada mais seria que de “antagonismo entre autonomia e
heteronomia”, assim entendidas, a primeira, como a capacidade de as partes
obterem “a norma secundária, cuja violação é uma condição da sanção, (ser)
criada por uma transação jurídica”, ou seja, por meio do princípio de autonomia
que é corolário da liberdade. Seriam as normas tradicionalmente chamadas de
dispositivas (ius dispositivum), vale dizer, aplicáveis apenas quando no
silêncio de previsão específica por parte dos interessados em sentido
contrário. Relembre-se, entretanto, que na concepção teórica do mestre de
Viena, as normas primárias, definidoras da sanção, seriam sempre emanadas
do Estado, pelo que, em última análise, sempre existiria um componente de
direito estatal. De todo modo, no Direito Público até as normas secundárias
seriam disciplinadas pelo Estado, daí porque se falar em heteronomia. Ao
assunto, todavia, se voltará mais adiante quando se mencionar a fragilidade
tanto teórica. Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado.
trad. Luis Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 204-205.
[11] Com o advento dos direitos fundamentais de terceira dimensão, o
princípio que restou consagrado foi o da solidariedade ou da fraternidade.
Existe, no mencionado período, uma preocupação com direitos que não se destinam
à proteção especificamente de um indivíduo, mas sim de um grupo ou, até mesmo,
de determinado estado. Realmente, o destinatário é o gênero humano. Cf.:
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo
: Editora Malheiros, 2006, p. 569. Contudo, não é necessário aprofundar o
conceito de direitos fundamentais de terceira geração na medida em que, para os
fins do presente artigo, concentra-se na mudança de perspectiva levada a efeito
pelos direitos de segunda dimensão.
[12] “Dos posiciones son contradictorias entre sí cuando una equivale a la negación de la otra, de tal modo que no pueden ser las dos verdaderas ni las dos falsas: “llueve” y “no llueve”; “hace frío” y “no hace frío”. En cambio, dos proposiciones son contrarias cuando son incompatibles (es decir, no peuden ser ambas verdareras) pero dejan entre ellas un espacio para otras posibilidades. Así, contraria de la “pared es blanca” sería “la pared es negra”; pero contradictoria es “la pared no es blanca” [...] Dos proposiciones contrarias pueden ser ambas falsas, pero entre dos proposiciones contradictorias (es decir, entre una proposición y su negación lisa y llana) alguna tiene que se verdadera. La pared es blanca o bien no lo es (por ser negra, girs, verde o de cualquier otro color).” (ECHAVÈ, Delia Teresa; GUIBOURG, Ricardo A.; URQUIJO, Maria Eugenia. Lógica, Proposición y Norma. Buenos Aires, Astrea, 2002. p. 86-87).
[13] Sobre o assunto cf.: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2 ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2019.
[14] Que poderia ser traduzida ao pé da letra como efeito de troca. No caso,
isso vem a significar a interação dialética entre tais leis gerais, quando
estipulam limites ao direito fundamental, em especial para preservar o teor do
dispositivo constitucional, e a legitimação, decorrente de um processo
interpretativo-constitucional, que deve existir para que haja o reconhecimento
do significado axiológico deste direito. Ou seja, pela noção de Wechselwirkung
se coloca que a legislação ordinária, inclusive a privada, precisa ser
interpretada, sempre e quando venha a limitar um direito fundamental, de tal
forma a garantir que, de algum modo, prevaleça o conteúdo axiológico deste
direito.