EMPRESA CONTEMPORÂNEA E MEIO AMBIENTE DO TRABALHO: O DEVER DE TUTELA PARA ALÉM DA QUESTÃO NACIONAL E MONETARIZANTE

João Luis Nogueira Matias

Universidade Federal do Ceará (UFC), Ceará.

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará.

[email protected]

Aline Lorena Mourão Moreira

Universidade Federal do Ceará (UFC), Ceará.

[email protected]

RESUMO: Na análise da relação entre empresa e meio ambiente do trabalho aborda-se a necessidade de atuação empresarial em padrões éticos e sociais na contemporaneidade e a atuação das transnacionais, o que requer um viés transconstitucional para a sua melhor compreensão. Parte-se da seguinte pergunta: em um sistema capitalista, intensamente marcado pelo processo globalizante da economia, ainda seria uma questão apenas nacional e monetarizante o dever de tutela efetiva do meio ambiente laboral? Constata-se que as grandes empresas na contemporaneidade não possuem mais nacionalidade, no sentido de que atuam por todo o globo, na busca incessante do lucro, sendo necessário que o Direito se adapte a essa nova forma organizacional. Faz-se uma visão crítica, a partir do Direito Ambiental do Trabalho e da análise do ambiente laboral nas empresas frigoríficas. Destaca-se que o grande desafio que se revela é como compatibilizar o princípio da função social da empresa com os princípios da livre iniciativa e o da lucratividade, aplicando-se o paradigma protetivo emergente de tutela do meio ambiente laboral. Conclui-se que se impõe garantir a efetiva tutela jurídica preventiva, priorizando-se o meio ambiente laboral como um direito universal, garantindo-se a equidade na proteção ambiental a todos os trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade, ao se tratar de empresas que atuam por todo o globo. Trata-se de pesquisa transdisciplinar. Utiliza-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

PALAVRAS-CHAVE: Direito ambiental do trabalho. Empresa e meio ambiente do trabalho. Paradigma preventivo de tutela do meio ambiente laboral. Direitos humanos e empresas.

Contemporary company and the work environment: the duty of guardianship beyond the national and monetizing issue

ABSTRACT: In the analysis of the relationship between the company and the labor environment, the need for business performance in ethical and social standards in contemporary times and the performance of transnationals is approached, which requires a transconstitutional bias for a better understanding of the theme. In a capitalism system, intensely marked by the globalizing process of the economy, would the duty of effective protection of the working environment still be a purely national and monetizing issue? Large companies in contemporary times no longer have nationality, in the sense that they operate across the globe, in the incessant pursuit of profit, and it is necessary that the law adapt to this new organizational form. The present study seeks to bring a critical view on the subject, from the Environmental Law of Work and the analysis of the work environmental in slaughterhouses. The great challenge that is revealed is how to make the principle of the social function of the company compatible with the principles of free enterprise and that of profitability, applying the emerging protective paradigm of protection of the working environment. It is concluded in order to guarantee effective preventive legal protection, prioritizing the work environment as a universal right and, in this way, guaranteeing equity in environmental protection to all workers, regardless of their nationality, when deal with companies operating across the globe. This is transdisciplinary research. The deductive method is used, with bibliographic and jurisprudential research.

KEYWORDS: Environmental labor law. Company and work environment. Preventive paradigm of protection of the work environment. Human rights and companies.

Introdução

A exigência de padrões éticos e sociais na atuação empresarial não suscita mais dúvidas na contemporaneidade. A imposição decorre da evolução do direito de propriedade, com repercussão clara no exercício da empresa. O tema atualmente tem sido impulsionado pelo avanço do processo globalizante e a consequente expansão da atuação das transnacionais, a demandar uma abordagem sob um viés transconstitucional.

Os novos padrões implicam na necessária compreensão do meio ambiente do trabalho como elemento vital à empresa contemporânea, em perspectiva em que o elemento saúde no trabalho, não mais é vinculado de forma exclusiva à ausência de doenças e outros agravos. Neste contexto, há todo um sistema normativo do direito ambiental do trabalho, elencando diversas Declarações e documentos nacionais e internacionais.

O ecossocialismo invoca uma alerta a respeito da questão socioambiental, uma vez que a racionalidade econômica globalizante, de aumento da competitividade e busca do lucro, não se mostrou acompanhada de uma racionalidade social, de respeito aos Direitos Humanos, como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ressalta-se a ideia trazida pela perspectiva ecossocialista, assim como pela perspectiva humanista ambiental, que compreendem a temática meio ambiente laboral como uma questão coletiva, que atinge toda a humanidade, e não apenas aqueles que se colocam diretamente na relação de trabalho, devendo estar fundada em critérios não-monetários e extra econômicos.

Parte-se da seguinte pergunta: em um sistema capitalista, intensamente marcado pelo processo globalizante da economia, ainda seria uma questão apenas nacional e monetarizante o dever de tutela efetiva do meio ambiente laboral?

A fim de respondê-la, discorre-se, inicialmente, sobre a atuação empresarial contemporânea, que exige novos padrões de atuação das empresas. Em seguida, busca-se a definição dos contornos do meio ambiente do trabalho, em perspectiva nacional e internacional. Na sequência, será analisada a indústria de abate e processamento de carnes, como mero exemplo de como se dá a proteção ao meio ambiente do trabalho. Ao final serão apresentadas as conclusões.

São apresentados dados do Ministério do Trabalho sobre acidentes de trabalho publicados em 2020, últimos disponíveis, considerando que a RAIS, ano base 221, pode ser reenchida até abril de 2022. A pesquisa é transdisciplinar. Utiliza-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

1. A atuação empresarial na contemporaneidade e a necessidade de atuação em padrões éticos e sociais no contexto da ordem transconstitucional

As grandes organizações empresariais na contemporaneidade não possuem mais nacionalidade, no sentido de que atuam por todo o globo, na busca incessante do lucro e é preciso que o Direito se adapte a essa nova forma organizacional. O grande desafio que se revela é: como compatibilizar o princípio da função social com os princípios da livre iniciativa e o da lucratividade.

A regulação da atividade empresarial, orientada pelo princípio da solidariedade social tem entre seus eixos fundamentais a proteção do direito à propriedade, cuja análise tem de ser realizada na nova perspectiva da funcionalidade, como requerem os ditames constitucionais. A função social da empresa é corolário da função social da propriedade, fundamentando-se na solidariedade social (MATIAS, 2015, p. 15), e, ao se estabelecer, na ordem jurídica nacional, como princípio jurídico, deve sempre nortear a atuação empresarial (SZTERLING, 2003, p. 72).

Para Ost (1995, p. 74), “[...] a partir da superação do entendimento da propriedade absoluta, talvez, seja possível conduzir as noções de lucro e abuso de domínio a um novo modelo, a uma propriedade-usufruto, destinada a gerar benefícios econômicos, sociais e ambientais em termos duradouros”.

O estudo da evolução do direito de propriedade ao longo dos anos se mostra de fundamental importância, na compreensão acerca da função social da empresa na contemporaneidade, uma vez que, em seu processo evolutivo, o instituto propriedade passa por diversas transformações.

A propriedade e o seu papel na sociedade, por conseguinte, tem passado por um longo processo evolutivo, desde suas origens históricas, no Direito Romano, até os dias atuais. E essa evolução do instituto teve íntima relação com a forma de desenvolvimento do Estado e sua relação com o indivíduo.

Com o advento do Constitucionalismo Social, cujos marcos jurídicos são a promulgação da Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar, de 1919, começa a ganhar importância a questão da solidariedade social, uma vez que o desenvolvimento do modelo de Estado Social possibilitou abertura ao pensamento filosófico e jurídico da solidariedade social, da qual surge a teoria da função social da empresa (SOLIMANI; SIMÃO FILHO, 2017, p. 999). Buscou-se compatibilizar a individualidade do titular do Direito de Propriedade com a solidariedade social, ou seja, com a preservação do bem comum.

A ideia central da função social da propriedade seria a de que não somente o Estado seria o responsável pela garantia do bem comum, mas também toda a sociedade, consistindo a propriedade um meio ou instrumento a se alcançar esse objetivo (LOPES, 2006, p. 113). É visualizar a empresa como instituição, que passa a ter relevância para além do âmbito meramente econômico. É a funcionalização dos direitos subjetivos, como o direito de propriedade, a fim de se garantir a harmonia social.

Para Matias (2015, p. 15), “[...] [é] a implementação de uma nova versão do capitalismo, cuja forma seria estipular novos padrões para o exercício do direito de propriedade, cujo exercício deve estar vinculado à preservação e pensamento nas gerações futuras”, posicionamento já defendido por Galgano (1979, P. 93).

No ordenamento jurídico interno, temos a função social da propriedade como princípio jurídico, previsto constitucionalmente e, no âmbito internacional, desponta a teoria da responsabilidade social da empresa, de origem norte-americana (HUSNI, 2007, p. 198), que se apresenta mais como um dever moral e ético do que obrigação jurídica, embora ambas tenham surgido na busca por uma fundamentação para a exigência de novos paradigmas no exercício da atividade empresarial (MATIAS, 2015, p. 25).

Enfatiza Matias (2017, p. 267), que, consolidou-se no Brasil, a partir da segunda metade do século XX e, em especial, com o advento da Constituição Federal de 1988, a ideia de funcionalização do direito à propriedade, ou seja, a mesma deve atender a fins que vão além dos interesses do proprietário, devendo-se prestigiar outros interesses como os da vizinhança, da comunidade, do Estado e, de proteção ao meio ambiente. Nas palavras de Lopes (2006, p. 121), “(...) não basta que a propriedade não seja utilizada de forma anti-social; mais do que isso, ela tem que ser utilizada em favor da sociedade”.

Para a melhor assimilação da temática, importante se mostra também a distinção entre a função social, a ambiental e a ecológica da empresa. A função social é mais ampla, assim, a proteção ambiental compõe a função social da empresa, entretanto, não a define, por si só, uma vez que outros interesses previstos em lei devem ser protegidos. Para MATIAS (2017, p. 268), deve-se atentar que a expressão função ambiental não faz referência apenas ao meio ambiente físico, mas à noção de meio ambiente em qualquer de seus aspectos. Já a função ecológica da empresa é mais restrita, referindo-se apenas ao meio ambiente natural.

É nesse contexto, e a partir do conceito mais amplo de função ambiental da propriedade e da empresa, que não se pode deixar de contemplar a noção de meio ambiente do trabalho.

O debate, em nível internacional, acerca do papel da empresa no exercício de sua atividade econômica, persiste até os dias atuais, sempre em busca de se atingir o ideal de equilíbrio entre a busca do lucro e o respeito aos Direitos Humanos.

A ONU vem, desde meados de 1970, buscando superar o desafio de compatibilizar o aspecto funcional e o aspecto privado, atribuídos a propriedade, tentando regulamentar a prática empresária transnacional, na temática “Direitos Humanos e Empresas”, com o objetivo de tornar possível a responsabilização das empresas (TOMAZETE, 2014).

Daí a importância de uma análise jurídica da temática no contexto da Ordem Transconstitucional, uma vez que, com a aceleração do processo globalizatório, desde a segunda metade do século XX, nós temos no século XXI uma nova racionalidade: o modelo transconstitucional de organização empresarial, responsável por grandes violações a Direitos Humanos como as tragédias ocasionadas em Brumadinho e Mariana, por transnacionais mineradoras, as graves violações sócio laborais nas cadeias de produção da indústria têxtil, como a tragédia ocorrida com o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, que abrigava várias fábricas locais de roupas, fornecedoras de transnacionais como a Primark, Walmart e Nike.

Verifica-se que, em razão desta maior integração social, econômica e política, oriunda da intensificação da globalização e dos avanços tecnológicos nos últimos anos, problemas relacionados à proteção dos Direitos Humanos deixaram de ser debatidos apenas no âmbito interno, no âmbito dos respectivos Estados, passando a serem discutidos entre diversas ordens jurídicas. Assim ocorre em relação ao Direito Humano ao trabalho digno, nos termos preconizados pela OIT, que compreende o Direito Humano a um meio ambiente de trabalho saudável.

É o que NEVES denomina de “transconstitucionalismo”, que não se trata de constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. Explicita NEVES (2014, p. 206-207) que “(...) o conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas”. Por conseguinte, aponta o transconstitucionalismo para a necessidade de construção de “pontes de transição”, do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas ordens jurídicas: estatais, internacionais, transnacionais, supranacionais e locais (NEVES, 2014, p. 208).

Assim, no âmbito interno e internacional, novos padrões de atuação das empresas são exigidos. E, certamente, um meio ambiente do trabalho adequado se caracterize como um elemento de destaque na atuação empresarial.

2. O meio ambiente do trabalho como direito humano correlacionado ao direito à vida, ao trabalho e à saúde

Não podendo ser compreendido como algo estático, mas dinâmico, uma vez que compreende todos os componentes integrantes das relações de trabalho, o Meio Ambiente do Trabalho, para ROCHA (2013, p. 99), “(...) representa todos os elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e mental, comportamento e valores reunidos no locus do trabalho”. É espaço no qual o trabalhador realiza suas atividades laborais, variando de acordo com a atividade exercida.

De acordo com o disposto no art.3º da Lei n.6938/81, o meio ambiente constitui-se no conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, obriga e rege a vida, em todas as suas formas. Na Constituição Federal de 1988, temos uma referência expressa ao meio ambiente, em seu art.225, que estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Portanto, é um direito de todos e, ao mesmo tempo, por imposição constitucional, cabe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo.

Os Direitos Humanos a vida, ao trabalho, a saúde e ao meio ambiente humano é caracterizador da proteção jurídica da saúde do trabalhador (SANTOS; PADILHA, 2015, p. 161). São Direitos Humanos que se encontram correlacionados. Nesse sentido, para Oliveira (2011, p. 106),

[...] o primeiro e fundamental direito do ser humano, consagrado em todas as declarações internacionais, é o direito a vida, suporte necessário para o gozo dos demais direitos. Entretanto, não basta declarar o direito a vida sem assegurar os seus pilares básicos de sustentação: o trabalho e a saúde. Seria o mesmo que proclamar solenemente o direito a vida, as não garantir o direito de viver.

É preciso ter em mente que, diante da compreensão do meio ambiente do trabalho, que o elemento saúde no trabalho depende de uma série de condicionantes, não sendo entendido somente como a ausência de doença e outros agravos. Portanto, a saúde é resultado da interação desses diversos elementos do ambiente, provocando ou não o bem-estar no trabalho (ROCHA, 2013, p. 100). A proteção efetiva do meio ambiente laboral incorpora, por conseguinte, a necessidade de se investigar as “causas” e as “medidas preventivas” para que não ocorram efeitos deletérios para o ser humano (no caso, doenças e/ou acidentes de trabalho).

Para Rocha (2013, p. 104), “[...] somente a percepção global do meio ambiente do trabalho e a análise de todos os seus elementos oferece a possibilidade de efetiva prevenção do infortúnio e a eliminação (ou pelo menos redução) do risco no trabalho”, daí a essencialidade do reconhecimento e da identificação desse risco no ambiente laboral (por meio dos programas de gerenciamento de riscos da empresa).

Neste sentido, o documento internacional, intitulado “O futuro que queremos”, divulgado pela ONU, já chamava a atenção para a importância de uma governança ambiental, diretriz esta que serve também de referência para o ambiente onde o trabalhador passa grande parte de sua vida produtiva (ONU, 2012)

No Brasil, há estimativas de que, a cada minuto que passa, um trabalhador sofre um acidente enquanto desempenha suas atividades, segundo dados da Justiça do Trabalho (TRT 4ª Região, 2020). O abate de frangos, suínos e bovinos gerou, entre 2016 e 202, 85.123 acidentes típicos e adoecimentos ocupacionais, com 64 óbitos (Le monde Diplomatique, 2021). E dados estes ainda subnotificados, uma vez que abrange somente trabalhadores formais e, dentre estes, muitas vezes sequer é emitida a Comunicação de Acidente de Trabalho - CAT.

Segundo um estudo realizado pela Fundacentro, estima-se que, se fossem considerados os trabalhadores informais e os autônomos, esse número pode ser até sete vezes maior, se aproximando de 4 milhões de acidentados todos os anos (TRT 4ª Região, 2020). Neste contexto, portanto, se revelam cada vez mais insuficientes as medidas até então oferecidas pelas empresas do setor, no que diz respeito à tutela jurídica do meio ambiente laboral.

2.1. O sistema normativo do meio ambiente do trabalho: o direito ambiental do trabalho

Disciplina relativamente recente, o Direito Ambiental do Trabalho consiste no sistema normativo que tutela o meio ambiente do trabalho e a saúde dos trabalhadores, e como disciplina jurídica in status nascendi, que descreve e compreende essa proteção normativa, tendo em vista o trabalhador em seu entorno de trabalho (ROCHA, 2013, p. 229).

Dos documentos e normativos internacionais que fazem previsão do meio ambiente laboral elenca-se o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Agenda 21, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8, da Agenda 2030, e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu art.12, que estabelece que os Estados Partes signatários reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir, devendo assegurar medidas necessárias para o melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial.

A Agenda 21 consiste em documento assinado por 179 países durante a conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ou “ECO-92”, que corresponde a um compromisso político que busca aliar o desenvolvimento econômico com a cooperação ambiental e social. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8 estabelece a promoção do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos. Em seu item 8.8, estabelece a proteção dos direitos trabalhistas e a promoção de ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes e pessoas em empregos precários.

As Convenções n.148 e 155 da Organização Internacional do Trabalho – OIT tratam mais especificamente acerca do meio ambiente laboral. A Convenção n.148 trata da proteção dos trabalhadores contra os riscos profissionais devidos à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações no local de trabalho. Já a Convenção n.155 trata da segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, aplicando-se a todas as áreas de atividade econômica e a todos os trabalhadores abrangidos.

No ordenamento jurídico interno, além do já citado art.225 da CF/1988, temos, em seu art.7º, inciso XXII, que são direitos de todos os trabalhadores, urbanos e rurais, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. O inciso XXIII, do mesmo artigo, faz previsão de adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei. Há referência constitucional ao meio ambiente do trabalho no art.200, inciso VIII, ao estabelecer a Constituição que, compete ao Sistema Único de Saúde – SUS, além de outras atribuições, colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Portanto, entendem Santos e Padilha (2015, p. 161) que “(...) o Direito Ambiental do Trabalho sedimentou-se como um direito fundamental e do meio ambiente humano, na conjugação do art.7º, incisos XXII e XXIII, c/c art.225 da CF/1988”, existindo expressa previsão constitucional de que o meio ambiente do trabalho equilibrado consiste em um direito fundamental a prevenção à segurança e saúde do trabalhador.

A regulamentação da prevenção dos riscos ambientais do trabalho é de competência do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), por meio das denominadas Normas Regulamentadoras, que estabelecem normas técnicas e específicas sobre o tema, por autorização constitucional e legal, O art.200 da CLT estabelece expressamente que cabe ao Ministério do Trabalho estabelecer disposições complementares ao capítulo celetista que trata da saúde e segurança do trabalho, tendo em vista as peculiaridades de cada atividade ou setor de trabalho.

Mais especificamente, a Norma Regulamentadora 36 regula a prevenção a segurança e à saúde do trabalhador no meio ambiente laboral das empresas de abate e processamento de carnes e derivados. Verifica-se, em suma, da análise de todo esse arcabouço jurídico, que as medidas preventivas se mostram imprescindíveis à efetiva tutela do meio ambiente laboral.

O pensamento humanista ambiental sustenta a utilização racional dos bens naturais. No que se refere ao meio ambiente do trabalho, podemos dizer que se funda na ideia de que a atividade econômica necessariamente pode ser adaptada à proteção ambiental, por exemplo, empresas podem adotar tecnologias limpas e sustentáveis. É a concepção de uma atividade harmônica entre ambiente e ser humano (ROCHA, 2013, p. 59). Assim, a atividade ambiental pode não ser impactante e/ou agressiva ao meio ambiente, devendo sobretudo adotar medidas preventivas a fim de neutralizar ou ao menos minimizar os riscos existentes. Medidas preventivas, portanto, se apresentam como essenciais à proteção do ser humano e à manutenção da vida saudável.

E a prevenção, por sua vez, consubstancia-se no dever de impedir a produção da poluição e evitar a ocorrência do dano ambiental. O mero pagamento de adicional ou de indenizações não atende à dignidade humana, não havendo uma efetiva tutela do meio ambiente laboral.

Além da perspectiva humanista ambiental, podemos citar também a perspectiva ecossocialista do Direito do Trabalho, que propõe uma política econômica visando às necessidades sociais e ao equilíbrio ecológico e, portanto, fundada em critérios não-monetários e extra econômicos (SEFERIAN, 2020, p. 26), compreendendo uma de suas proposições o abandono da monetização de direitos trabalhistas, bem como analisar a saúde, higiene e segurança no ambiente de trabalho como uma questão coletiva, que atinge toda a humanidade, e não apenas aqueles que se colocam diretamente na relação de trabalho.

O Ecossocialismo se apresenta como um olhar crítico, trazendo uma abordagem diferenciada, acerca do desenvolvimento sustentável. Apresenta questionamentos quanto ao modo de produção e consumo no sistema capitalista, baseado na ideia de infinidade da base material da existência, e que compreende a natureza como um giro incessante de recursos naturais (MELLO et al, 2019, p. 32).

Para Mello et al (2019, p. 32), o ecossocialismo também representa críticas à globalização e ao imperialismo perpetrado por Estados e estruturas de mercado, que se caracterizam por atitudes repressivas e controladoras. Nos alerta a corrente ecossocialista a respeito da questão socioambiental, uma vez que a racionalidade econômica globalizante, de aumento da competitividade e busca do lucro, não se mostrou acompanhada de uma racionalidade social, de respeito aos Direitos Humanos, como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Os ensinamentos de Martínez (2014, p. 9) trazem um viés crítico ao sistema de produção atual, ao propor uma solução ecossocialista:

[...] Lo que está em cuestión para poder oferecer soluciones definitivas es el próprio paradigma capitalista, baseado en el crecimiento económico “ad infinitum”. Hemos de convencermos y convencer a nuestra classe política de que no es posible, de que es um callejón sin salida, que sólo nos conduce a la autodestrucción. Hemos venerado durante muicho tempo um sistema económico que há hecho um fetiche del crecimiento del PIB, sin que importaran las consecuencias humanas o ecológicas, y en el cual la classe política neoliberal há adbicado de su responsabilidade de administrar, dejándolo al albur del sacrosanto mercado, esse gênio todo-poderoso al que hay que cofiarlo todo.

O ecossocialismo proposto por Löwy, em sua obra “o que é o Ecossocialismo?”, aborda uma ideia de profundas mudanças das relações de produção, do sistema produtivo e do padrão de consumo predominante no sistema capitalista. Como aduz Mello et. al. (2019, p. 37), por conseguinte, a corrente ecossocialista objetiva um novo paradigma de civilização, pautado na ideia de não neutralidade da indústria como aparelho de acumulação capitalista.

Para Löwy (2014, p. 56), a ideia iria além de mudanças nos modos de produção e distribuição, encontrando-se a ética ecossocialista traçada em uma ética social, que não se limitaria a comportamentos individuais, compreendendo-se como uma transformação para outro modo de vida no planeta. Em suma, a mudança viria com um modo de vida em que as atitudes, a tomada de decisões, ocorreriam, prioritariamente, de forma coletiva.

Nas palavras de Mello et al (2019, p. 40), “[...] a proposta de uma ética ecossocialista envolveria uma mudança nas bases estruturais da sociedade, mudando as maneiras de pensar e viver nossas vidas, invertendo as lógicas”. Seria uma referência para a construção de outras formas de convivência com o meio ambiente, retomando os questionamentos e críticas ao atual modelo civilizatório e de produção, com seus modelos de desenvolvimento em crise em todas as suas facetas.

A ideia trazida pela perspectiva ecossocialista, assim como ocorre com a perspectiva humanista ambiental, se mostra muito pertinente, uma vez que o direito a um meio ambiente de trabalho saudável encontra-se previsto em várias Declarações e documentos internacionais, correlacionando-se ao direito à vida, à saúde do ser humano trabalhador, bem como o dano ambiental não possui limites geográficos e exige também uma proteção equânime, o que torna imprescindível a compreensão do tema sob um viés transconstitucional.

2.2. A tutela efetiva do meio ambiente laboral por meio da perspectiva humanista ambiental: o paradigma preventivo emergente

Segundo Rocha (2013, p. 119), podemos classificar os modelos de tutela jurídica do meio ambiente laboral em: paradigma protetivo tradicional, paradigma protetivo em transição e paradigma protetivo emergente. Diante da existência do risco ocupacional no ambiente de trabalho, algumas medidas de controle devem ser tomadas para se garantir o direito a meio um meio ambiente de trabalho saudável, que devem obedecer a uma ordem de hierarquia prevista no item 1.4.1, alínea “g”, da NR-1.

Assim, primeiro deve-se buscar a eliminação do risco ocupacional, se não for possível, a eliminação dos fatores de risco, deve-se ao menos tentar minimizá-los e controlá-los, com a adoção de medidas de proteção coletiva. Em seguida, tem-se a minimização e controle dos fatores de risco, com a adoção de medidas administrativas ou de organização do trabalho (como treinamentos, por exemplo, e aí entra a importância da educação ambiental, e, por fim, nessa hierarquia, tem-se a adoção de medidas de proteção individual, com o fornecimento ao trabalhador de equipamentos de proteção individual (EPI).

Não raras vezes, contudo, a Auditoria-fiscal do Trabalho se depara com a inversão dessa ordem hierárquica, priorizando-se, por exemplo, o mero fornecimento de equipamentos de proteção individual. Assim, o paradigma protetivo tradicional ainda encontra-se dominado por abordagens a respeito da proteção individual e da compensação monetária (com o pagamento de adicionais), pelo trabalho em ambientes insalubres e perigosos (ROCHA, 2013, p. 121).

Para Rocha (2013, p. 122), no paradigma tradicional, o sistema de compensação monetária, em geral, pode colocar-se de duas formas: ex ante (adicional de insalubridade ou periculosidade) e ex post (acidente e doença ocupacional).

No paradigma em transição, no qual o Brasil se enquadra, combinam-se elementos do paradigma tradicional e do paradigma preventivo emergente. As medidas protetivas coletivas assumem gradual prioridade sobre as medidas individuais, ou seja, o mero fornecimento de EPI, mas ainda está presente a monetização do risco. A tutela preventiva passa gradativamente a compor o cenário jurídico (ROCHA, 2013, p. 147-148)

Já no paradigma protetivo emergente a concepção do meio ambiente de trabalho inclui todos os fatores (psicológicos, físicos e sociais), que interferem no bem-estar do ser humano. A saúde do trabalhador, nesse paradigma de tutela, assimila o conceito ampliado de “completo bem-estar físico, mental e social, não apenas a ausência de doença ou outros agravos”, estabelecido pela OMS. (ROCHA, 2013, p. 185-186).

Daí compreender-se que a dignidade do ser humano trabalhador está diretamente relacionada com a efetivação da saúde e do meio ambiente laboral equilibrado. Ocorre, no paradigma protetivo emergente, ações que, de fato, priorizam a prevenção ao dano ambiental, intentando-se, em primeiro lugar, a eliminação do risco. Para Rocha (2013, p. 198), “[...] se estabelece, em suma, o consenso universal de que todos têm direito a um meio ambiente saudável, recepcionando-se ideários ambientais, como o princípio da prevenção-precaução, princípio do desenvolvimento sustentável”, princípios estes que podem e devem ser adaptados e aplicados às relações de trabalho.

Passa-se à análise do ambiente de trabalho das empresas de abate e processamento de carnes, como exemplo da realidade exposta.

3. O exemplo do meio ambiente do trabalho nas empresas de abate e processamento de carnes

De acordo com dados da OMC, o Brasil está entre os maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo. Em 2021, estimativas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos apontam que o Brasil responderia por 17% da produção mundial de carne bovina, batendo a marca de 10,4 milhões de toneladas de proteína animal (AGRO SABER, 2021). A empresa JBS/Seara é a maior empresa de proteína animal do mundo, sendo sua carne exportada para mais de 150 países (CANAL RURAL, 2012).

Contudo, é necessário fazer uma análise mais acurada da realidade socioambiental na indústria frigorífica, indo além dos indicadores de exportações, de geração de emprego e renda nessa atividade, uma vez que, conforme será demonstrado, o desenvolvimento econômico no setor não tem sido acompanhado de um desenvolvimento também nas áreas social e ambiental.

Assim, como argumenta Heck (2012, p. 8-9), ao comparar os índices de geração de emprego e renda com a alta rotatividade de mão de obra no setor:

Qualificar enquanto desenvolvimento regional como expressão da geração de emprego e renda a atividade de frigorificação de carnes, é um argumento muito limitado e irreal. Isso porque, as pesquisas e indicadores têm demonstrado o elevado percentual de adoecimento no setor, bem como, um grande índice de acidentes de trabalho e altíssima rotatividade em pequenos períodos de tempo.

Em contrapartida a esses dados, que demonstram o enorme poderio econômico do setor e seu avanço global, verifica-se que a indústria de abate e processamento de carnes e derivados tem cerca de 90 acidentes de trabalho por dia até 90 movimentos por minuto (Le monde Diplomatique, 2021). Revelam essas estimativas a realidade degradante de movimentos repetitivos, em velocidades cada vez mais crescentes, demonstrando a incompatibilidade do processo de trabalho existente com a saúde e o meio ambiente laboral, relevando um aviltamento da dignidade do trabalhador. É preciso um novo paradigma de tutela, pautado na ideia de não neutralidade da indústria como aparelho de acumulação capitalista.

Se a preocupação se mostra com uma racionalidade social, de respeito ao ser humano trabalhador nos frigoríficos, nas palavras de Heck (2012, p. 13), o ambiente de trabalho nessas empresas se tornam “territórios da degradação do trabalho”. De acordo com Santos e Padilha (2015, p. 160), se mostram indiscutíveis os riscos ambientais na indústria de abate e processamento de derivados, e, a primeira coletividade a sofrer os riscos ambientais da atividade é o trabalhador, exposto aos resíduos contaminantes em seu ambiente de trabalho.

Segundo dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMAT, 2019), a indústria frigorífica encontra-se no topo do ranking de acidentes de trabalho do ramo alimentício, sendo registradas 54 ocorrências, em média, por dia, número este que poderia ser menor, caso houvesse gestão de riscos ocupacionais.

Conforme dados do Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT, do Ministério do Trabalho e Previdência, publicado em 18/11/2021, a quantidade total de acidentes típicos de trabalho no setor frigorífico correspondeu a 7.775 no ano de 2019. No ano de 2020, mesmo com a diminuição das atividades econômicas em virtude da pandemia provocada pela COVID-19, o número de acidentes típicos de trabalho no setor correspondeu a 5.777, atingindo o total de 326 adoecimentos do trabalho, sem CAT registrada.

Daí a importância do estudo prévio dos processos de trabalho, realizando-se um gerenciamento de riscos efetivo, em consonância com os princípios ambientais da precaução e da prevenção. Se mostra essencial, como medida preventiva para o setor, uma melhor compreensão das atividades dos trabalhadores, visando à adoção de medidas de adaptação dos processos produtivos às suas características psicofisiológicas. Nas palavras de Heck (2012, p. 14), em sua visão crítica aos que analisam apenas dados estatísticos relativos à geração de emprego e renda:

É por isso que estudamos o processo de trabalho e as consequências desastrosas para a saúde dos trabalhadores, com o objetivo de contribuir para aqueles que ainda acreditam na crítica radical à sociedade do capital e não enxergam o desenvolvimento regional apenas se utilizando de dados estatísticos.

Por conseguinte, embora se trate de um setor inserido na disputa mundial por mercados, com alto faturamento e elevada capacidade de investimento, registra elevados índices de acidentes de trabalho, ocasionando custos para a sociedade e para a Previdência, não havendo razão, portanto, para que seja excluído das medidas de prevenção e precaução (LE MONDE DIPLOMATIQUE, 2021). Segundo dados de benefícios da Previdência Social, em fevereiro de 2020, foram concedidos 390,2 mil benefícios, no valor total de R$ 560 milhões (SECRETARIA ESPECIAL DE PREVIDÊNCIA E TRABALHO, 2020).

A Norma Regulamentadora n.15, do Ministério do Trabalho e Previdência, estabelece as atividades que devem ser consideradas insalubres, definindo os limites de tolerância para agentes físicos, químicos e biológicos, quando é possível quantificar a contaminação do ambiente, ou listando ou mencionando situações em que o trabalho é considerado insalubre qualitativamente. Segundo a NR-15, portanto, a insalubridade possui riscos ambientais, que são: físicos, químicos e biológicos. Os principais riscos ambientais encontrados na atividade frigorífica são: riscos ergonômicos (decorrentes de posturas inadequadas, manuseio de cargas pesadas, ritmo intenso de trabalho), riscos físicos (frio, ruído), riscos biológicos (fungos e bactérias do contato humano com vísceras e restos de animais), riscos químicos (como a presença de amônia no ambiente), além de os restos de animais poderem estar contaminados com zoonoses, como a brucelose, além do próprio uso de ferramentas cortantes e a umidade presente no ambiente.

De acordo com dados da Previdência Social, o risco de traumatismo de cabeça ou abdômen em trabalhadores de frigoríficos de bovinos é três vezes maior do que em outras atividades econômicas, cabendo ressaltar que, em se tratando do trabalho em linhas de desossa de frango, o risco de uma pessoa desenvolver uma tendinite seria de 743% maior do que em outras atividades, além dos problemas psicológicos surgidos em virtude do ritmo intenso de trabalho e pressão por produtividade e metas (SANTOS, 2011).

Os problemas mais recorrentes na atividade encontram-se associados à ergonomia, em virtude de distâncias de alcance, adoção de posturas extremas e nocivas, amplitudes articulares, movimentação manual de cargas excessivas e ritmo de trabalho intenso (BRASIL DE FATO, 2021). Ressaltando tais fatos, Candido Neto (2012, p. 2) afirma que “[...] quase sempre o trabalho não é adaptado às condições psicofisiológicas dos trabalhadores”.

Dessa forma, a atividade objeto de estudo requer, por ser de alto risco de contaminação, a aplicação de medidas de prevenção da saúde de forma criteriosa e específica. Exige a atividade que o acompanhamento médico dos trabalhadores ocorra de forma permanente, independentemente de os riscos encontrados se estabelecerem ou não dentro dos limites estabelecidos na NR-15, além de exigir programas de gerenciamento de riscos que tragam efetivas práticas de prevenção de riscos para o dia a dia do trabalhador nos frigoríficos.

Verifica-se, contudo, que o setor não prioriza medidas preventivas, tais como a busca de eliminação do risco com o uso de tecnologias mais avançadas, ou a busca de minimizá-los e controlá-los, limitando-se a reconhecer e identificar os riscos que se encontram acima dos limites de tolerância previstos na NR-15, confundindo-se o eventual pagamento de insalubridade com a existência de riscos inerentes a estes locais de trabalho. É preciso ter em mente que os matadouros-frigoríficos organizam-se em ambientes bastante úmidos, com um alto nível de ruído, existindo ainda uma alternância de temperaturas baixas e altas.

Atuações empresariais incompatíveis com a legislação se mostram frequentes, como a existência de prontuários médicos que não permitem verificar as causas do adoecimento, ausência de emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, a não adoção de medidas eficazes para reduzir o agravamento dos adoecimentos, exames médicos fora do prazo, atestados médicos de saúde ocupacional preenchidos sem os requisitos mínimos, dentre outras irregularidades (BRASIL DE FATO, 2021).

A falta de uma gestão ambiental eficiente veio à tona, de forma ainda mais explícita, com o advento da pandemia ocasionada pela COVID-19. No município de Ipumirim, em 2020, foi interditado um frigorífico da JBS no qual foi constatada a existência de focos de transmissão da COVID-19, com 86 trabalhadores acometidos pela COVID-19 (SINAIT, 2020). Demonstra-se, em suma, que a falta de medidas preventivas restou ainda mais evidenciada com o advento da pandemia, como a falta do cumprimento do distanciamento mínimo entre trabalhadores, medida de prevenção amplamente divulgada como uma das mais eficazes na prevenção ao coronavírus.

De acordo com a pesquisa da ONG Repórter Brasil (2013, p. 4), intitulada “Moendo Gente: a situação do trabalho nos frigoríficos”, “[...] se os dados econômicos vão muito bem para as empresas do setor, o mesmo não se pode dizer dos indicadores sociais. Estatísticas do próprio governo federal mostram que trabalhar em um frigorífico é comprovadamente uma atividade de risco”. Percebe-se, no decorrer da pesquisa, que as condições adversas do trabalho não foram extintas ou mesmo atenuadas com o avanço do processo tecnológico no setor. Muito pelo contrário, o avanço tecnológico e econômico não é acompanhado de um avanço da proteção social e ambiental.

Verifica-se a urgência de se compatibilizar o princípio da função social da empresa com os princípios da livre iniciativa e o da lucratividade no setor, estabelecendo-se como regra o paradigma protetivo emergente de tutela do meio ambiente laboral, num viés ecossocialista.

É preciso, em suma, urgentes medidas a nível global, a fim de se garantir a efetiva tutela jurídica preventiva emergente, priorizando-se o meio ambiente laboral como um direito universal e, dessa forma, garantindo-se a equidade na proteção ambiental a todos os trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade, ao se tratar de empresas que atuam por todo o globo.

Trazendo a ideia de Kloepfer (1989, p .28), uma solução pertinente seria a solução global para a questão ambiental, já que a dimensão global de muitos problemas ambientais faria supor que uma solução para a crise ambiental só poderia ser obtida por intermédio de uma estratégia global. Medidas preventivas se apresentam como essenciais à proteção do ser humano trabalhador em seu ambiente laboral.

Considerações finais

Dois relevantes fatores devem ser considerarmos ao se analisar a temática Empresa e Meio Ambiente do Trabalho: a necessidade da atuação empresarial em padrões éticos e sociais na contemporaneidade, diante da evolução do direito de propriedade, e a necessidade de tratar o assunto sob um viés transconstitucional, diante do avanço do processo globalizatório e a consequente expansão da atuação das transnacionais.

Verifica-se que, em razão desta maior integração social, econômica e política, oriunda da intensificação da globalização e dos avanços tecnológicos nos últimos anos, problemas relacionados à proteção dos Direitos Humanos deixaram de ser debatidos apenas no âmbito interno, no âmbito dos respectivos Estados, passando a serem discutidos entre diversas ordens jurídicas. Assim ocorre em relação ao Direito Humano ao trabalho digno, nos termos preconizados pela OIT, que compreende o Direito Humano a um meio ambiente de trabalho saudável.

Nos alerta o ecossocialismo a respeito da questão socioambiental, uma vez que a racionalidade econômica globalizante, de aumento da competitividade e busca do lucro, não se mostrou acompanhada de uma racionalidade social, de respeito aos Direitos Humanos, como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A ideia trazida pela perspectiva ecossocialista, assim como ocorre com a perspectiva humanista ambiental, se mostra muito pertinente, uma vez que o direito a um meio ambiente de trabalho saudável é um direito previsto em várias Declarações e documentos internacionais, se encontrando correlacionado ao direito à vida, à saúde do ser humano trabalhador, bem como o dano ambiental não possui limites geográficos e exige também uma proteção equânime, o que torna imprescindível a compreensão do tema sob um viés transconstitucional.

A dignidade do ser humano trabalhador está diretamente relacionada com a efetivação da saúde e do meio ambiente laboral equilibrado. No paradigma protetivo emergente ocorrem ações que, de fato, priorizam a prevenção ao dano ambiental, intentando-se, em primeiro lugar, a eliminação do risco.

Em que pese o enorme poderio econômico do setor frigorífico e seu avanço global, verifica-se que as empresas de abate e processamento de carnes e derivados no país, e seu sistema produtivo, são responsáveis por cerca de 90 acidentes de trabalho por dia, e por até 90 movimentos por minuto, o que demonstra o paradoxo do século XXI: a utilização de tecnologias avançadas em seus processos produtivos, visando ao aumento da produção, convivendo com a degradação do meio ambiente laboral.

A atividade de abate e processamento de carnes, por ser de alto risco de contaminação, demanda a aplicação de medidas de prevenção da saúde de forma criteriosa e específica. Exige que o acompanhamento médico dos trabalhadores ocorra de forma permanente, a despeito de os riscos encontrados se estabelecerem ou não dentro dos limites estabelecidos na NR-15, além de exigir programas de gerenciamento de riscos que tragam efetivas práticas de prevenção de riscos para o dia a dia do trabalhador nos frigoríficos.

Verifica-se a urgência de se compatibilizar o princípio da função social da empresa com os princípios da livre iniciativa e o da lucratividade no setor, estabelecendo-se como regra o paradigma protetivo emergente de tutela do meio ambiente laboral, num viés ecossocialista.

Em suma, é preciso urgentes medidas a nível global, a fim de se garantir a efetiva tutela jurídica preventiva emergente, priorizando-se o meio ambiente laboral como um direito universal e, dessa forma, garantindo-se a equidade na proteção ambiental a todos os trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade, ao se tratar de empresas que atuam por todo o globo. A atividade econômica deve ser adaptada à proteção ambiental.

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Submetido em: 14 fev. 2022.

Aceito em: 21 mar. 2022.