A INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA ESTADUAIS BRASILEIROS SOBRE PAPEL DAS DIRETIVAS ANTECIPADA DE VONTADE PARA PRESERVAÇÃO DA AUTONOMIA DO PACIENTE

Jonas de Souza Oliveira

Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Maranhão.

jonas.oliveira@discente.ufma.br

Ruan Didier Bruzaca

Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Maranhão.

ruan.didier@ufma.br

Resumo: As diretivas antecipadas de vontade têm na sua essência a autodeterminação do paciente. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo analisar a aplicabilidade jurídica das diretivas para efetivação da autonomia do paciente. Para tanto, utilizou-se o método de abordagem dedutivo, com as técnicas de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Foram analisadas a jurisprudência dos Tribunais Estaduais, utilizando como termos de busca: “diretiva antecipada de vontade”, “testamento vital” e “mandado duradouro”. Apesar da vasta produção doutrinária sobre o tema, observou-se pouco pronunciamento jurisprudencial, cuja pesquisa resultou em cinco processos. Os processos são dos Estados de São Paulo e Rio de Grande do Sul. Identificou-se a validade das diretivas, mas sem necessidade de se recorrer a via judicial, bem como privilegiamento da autonomia do paciente nas situações ameaçadora de vida. Destarte, conclui que as diretivas diante da perspectiva jurisprudencial têm possibilidades de efetivar a autonomia do paciente com fundamentos implícitos no ordenamento jurídico brasileiro e em uma resolução do Conselho Federal de Medicina, todavia, diante das fragilidades desse normativo ainda se justifica a defesa de uma legislação federal específica para a garantia da segurança jurídica de se concretizar uma morte digna de quem constrói sua diretiva antecipada de vontade.

Palavras-chaves: Morte digna. Autonomia. Testamento Vital. Direito Médico.

The interpretation of brazilian state courts of justice about the role of anticipated will directives for preserving the autonomy of the patient

Abstract: The advance directives of will have in their essence the patient's self-determination. Thus, this article aims to analyze the legal applicability of the directives for the realization of patient autonomy. For this purpose, the deductive approach method was used, with bibliographic and jurisprudential research techniques. The jurisprudence of the State Courts was analyzed, using as search terms: “anticipated will”, “living will” and “lasting warrant”. Despite the vast doctrinal production on the subject, there was little jurisprudence pronouncement, whose research resulted in five processes. The processes are from the States of São Paulo and Rio de Grande do Sul. The validity of the directives was identified, but without the need to resort to the judicial system, as well as the prioritization of patient autonomy in life-threatening situations. Thus, it concludes that the directives, in view of the jurisprudential perspective, have possibilities to effect the patient's autonomy with implicit foundations in the Brazilian legal system and in a resolution of the Federal Council of Medicine, however, given the weaknesses of this normative, the defense of legislation is still justified. specific federal government to guarantee the legal certainty of a dignified death for those who build their advance directive of will.

Keywords: Dignified death. Autonomy. Living Will. Medical Law.

Introdução

Na relação médico-paciente há um predomínio do poder médico sobre as decisões terapêuticas e existem alguns motivos para esta supremacia, a saber: o paternalismo médico como justificativa para decidir o que é melhor para o paciente, manifestado por meio de um culturalismo de que o caminho traçado pelo médico deve prevalecer; a falta de entendimento dos termos técnicos pelo paciente, portanto, não consegue decidir adequadamente sobre o seu tratamento; a fragilidade da doença que não permite que o paciente consiga tomar a melhor decisão. Em outras palavras, existem várias barreiras a serem superadas dentro da relação médico-paciente para que se consiga dizer que este último tem um poder de decisão no seu tratamento.

Em particular, a autonomia do paciente para escolhas de cuidados e tratamentos na finitude da vida é questionada principalmente pela superveniência de incapacidade clínica para manifestação de vontade. Dessa forma, ao longo dos últimos cinquenta anos ocorreram debates, inicialmente, sobre a importância de informar e buscar o consentimento do paciente, independentemente da doença, e especialmente na ocorrência de um aspecto inexorável da vida – a morte, assim, surgiram, posteriormente, as diretivas antecipadas de vontade (DAV), como um instrumento para respeitar as decisões prévias do paciente na terminalidade da vida.

Este debate torna-se ainda mais importante diante do avanço da biotecnologia para tratamento de doença e manutenção artificial da vida. É inegável o progresso das ciências médicas no controle das enfermidades, possibilitando aumento da qualidade e expectativa de vida das pessoas. Por outra banda, esses avanços ultrapassam muitas vezes a barreira ética e deontológica, sendo marcados por intervenções médicas que trazem mais sofrimento do que qualidade de vida ao paciente, aqui se fala das situações em que a medicina, apesar do aparato tecnológico a sua disposição, não consegue mais garantir a cura, mas insiste na obstinação terapêutica, cuja a única certeza será apenas o prolongamento do processo de morte que já se tornou inevitável. Dessa forma, ressalta-se o caráter essencial de informar e permitir a manifestação de vontade do paciente nessas situações.

No contexto de ênfase da autonomia do paciente em fim de vida, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a resolução n. 1995/2012, que estabeleceu parâmetros para o médico efetivar as escolhas do paciente realizada por meio de um instrumento de vontade do tipo prospectivo, a DAV. No entanto, não existe uma regulamentação específica em âmbito federal sobre a temática. Considerando esse vácuo legislativo acrescido da existência apenas de um regramento direcionado à classe médica, que não contempla todos elementos necessário para elaboração das DAV, apresenta-se a questão central do presente estudo: investigar na jurisprudência estadual brasileira se as DAV conseguem efetivar a autonomia do paciente nas situações de fim de vida. A esse propósito, estabeleceu-se como objetivo geral da pesquisa - analisar a aplicabilidade jurídica das diretivas antecipadas de vontade como instrumento do direito para efetivação da autonomia do paciente. E por objetivos específicos: (I) - identificar os aspectos gerais da autonomia do paciente diante da terminalidade da vida; (II) - conceituar e caracterizar o instrumento das diretivas antecipadas de vontade; (III) - discutir a jurisprudência brasileira acerca da diretiva antecipada de vontade, bem como as limitações para efetivação da autonomia do paciente.

O método de escolha para pesquisa foi o dedutivo. Ademais, no estudo procedeu-se inicialmente a técnica de pesquisa bibliográfica por meio de livros, artigos científicos e tese de mestrado e, em sequência, houve o levantamento dos dados por meio da pesquisa jurisprudencial, que identificou as decisões judiciais nos autos de processo da segunda instância da justiça estadual brasileira que tratou sobre autonomia da vontade de paciente por meio das DAV e, por fim, adotou-se o procedimento analítico.

O artigo foi dividido em três capítulos, no primeiro capítulo, delineia a autonomia do paciente como princípio do direito e da bioética, para isso se identifica o choque entre os avanços da medicina que tornam o processo de morte mais sofrível e penoso ao paciente do que naturalmente aconteceria e a necessidade de se abrir espaços de discussões para a tomada de decisão pelo paciente. Assim, ressalta-se o estabelecimento da base principiológica da bioética, no qual explica o surgimento da autonomia do paciente na relação médico-paciente, trazendo a construção doutrinária do conceito e a incorporação dessas premissas para dentro Código de Ética Médica, além de compreender que o cerne da DAV é o respeito às escolhas do paciente.

No segundo capítulo, tece-se a estruturação da DAV a partir da doutrina e a resolução do CFM, no qual perpassa pelo contexto histórico de sua formação, espécies identificáveis deste instrumento, finalidades, diferenciações e características da DAV, como capacidade para elaboração, eficácia, conteúdo, forma, revogação, caducidade e limitações.

Por fim, tem-se o último capítulo, que traz uma análise dos processos judiciais de relevância sobre temática no âmbito da Justiça Estadual brasileira, na qual procurou trazer reflexões da posição do judiciário sobre as DAV em face da ausência de norma no ordenamento jurídico pátrio, e assim, verificar se é um instrumento que tem eficácia ou não para efetivar a autonomia do paciente.

1. Autonomia da vontade: uma interface entre o direito e a medicina

A DAV é um instrumento facultativo elaborado pelo paciente com plena capacidade para decidir sobre os cuidados que serão aplicados na finitude da vida, quando a condição clínica não o mais permitir expressar sua vontade. Esse instrumento surge como uma necessidade ética e deontológica frente aos avanços tecnológicos que embasam uma “medicina agressiva”, que busca combater a doença e preservar a “vida” a todo custo, muitas vezes esquecendo de ouvir o principal interessado: o paciente.

Segundo Nunes (2016), surgiram novas questões para medicina em temas difíceis como: o fim da vida humana; a ética e deontologia profissional; e como o direito pode auxiliar o médico analisar uma manifestação de vontade de um paciente (a exemplo de um pedido de suspensão de suporte avançado de vida, como o ventilador, ou a sedação paliativa com intuito de debelar a dor ou sofrimento intenso).

Diante desse cenário, pode-se afirmar que o pano de fundo para o surgimento das DAV é a promoção da autonomia do paciente dentro da relação com a equipe de saúde, principalmente com o médico, diante de doença sem perspectiva terapêutica.

Justamente, a valorização da autonomia do paciente deve prevalecer perante uma medicina, cujos avanços tecnológicos em suporte artificial de vida têm tornado o processo de morrer penoso, sofrível e longo além do que é natural. Por conseguinte, essa valorização busca oferecer ao paciente o direito a uma morte digna. (MARTEL, 2015)

Sobre o presente estudo, dois aspectos configuram sua complexidade: o primeiro, por ser uma questão que pode afetar quase todas as pessoas na finitude da vida (a interferência humana na determinação da forma e extensão do processo de morte); o segundo, referente à interdisciplinaridade do estudo, por envolver a medicina, bioética e o direito, interconexão de vastas áreas do conhecimento humano associado ao caráter essencialmente social da temática.

É inegável os ganhos extraordinários angariados pela medicina, resultando no aumento da expectativa de vida e qualidade de vida. As doenças que antes não se vislumbravam arsenal terapêutico ficaram para atrás com descobertas e aplicações no dia a dia na área da saúde. No entanto, os impressionantes avanços tecnológicos da biomedicina não são isentos de dilemas éticos. Todo conhecimento adquirido pelo homem invariavelmente estará associado a uma adversidade no campo da ética.

Sociedade, avanços tecnológicos e dilemas éticos estão imbricados, e o Direito não pode ficar distante desta discussão, assim, deve fornecer subsídios para o ser humano. Diante dos avanços no conhecimento científico, a humanidade depara-se com implicações éticas a serem enfrentadas, com necessidade de parâmetros jurídicos para tomada de decisões. Dessa forma, para adentrarmos nesse debate complexo, parte-se de um importante balizador do direito e da bioética: o princípio da autonomia do paciente.

Apesar do registro histórico da preocupação dos aspectos éticos nas práticas médicas, o que impera na relação médico-paciente é essencialmente um paternalismo e absolutismo, considerando aquele o responsável para decidir o que seria melhor para este, acrescido de uma medicalização da vida e incorporação de tecnologia na prática cotidiana no âmbito da saúde, não conseguindo essa visão unilateral estabelecer limites ponderável sob a ótica da ética. (ARAÚJO; FERNANDES, 2021)

Em função disso, Peixoto (2018) leciona que, na década de 1960, a discussão dos aspectos éticos nas ciências da vida é fomentada em decorrência de um contexto de valorização e respeito aos direitos humanos, em mundo marcado pelo pós-guerra. Tempos depois, em 1971, o biólogo e oncologista Van Renssealaer Potter cunhou e usou o neologismo bioética, derivado das palavras gregas bio (vida) e ethike (ética).

A este propósito de caracterização da conjuntura de surgimento da bioética, Nunes e Nunes (2004) ressaltam que esse novo campo do conhecimento nasceu como uma necessidade de ligação entre as ciências humanas, marcadas pelos aspectos reflexivos, com as ciências naturais: matemática, física, principalmente, nas ciências biológicas e na medicina, reconhecidas como ciências empíricas. Esta separação entre ambas havia sido provocada pelo movimento filosófico do positivismo no século XIX, com repercussões negativas nestas últimas, principalmente, pela perda da capacidade de autocrítica e autorreflexão sobre suas ações.

Nesse sentido, Diniz (2017) entende a necessidade da bioética para fornecer elementos diante de vários aspectos da vida relacionados à intervenção da ciência na prática médica. Tal aplicação pode estar presente desde o nascimento até a terminalidade da vida, compreendendo as pesquisas em seres humanas, às formas de eutanásias, à escolha de tempo para nascer ou morrer, dentre outras.

Paralelamente à construção das bases da bioética, para compreender o surgimento da autonomia do paciente na relação médico-paciente é necessário retornar ao final da década de 1970, com a constituição pelo governo norte-americano da Comissão Nacional para Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental, que estabeleceu diretrizes para pesquisas com seres humanos. Dessa forma, a bioética foi alicerçada em quatro princípios, a não maleficência, a justiça, a beneficência e autonomia. A presente pesquisa exige e interessa apenas o aprofundamento desse último princípio, o que faremos adiante. (DINIZ, 2017)

A esse propósito, na relação médico-paciente identifica-se os seguintes agentes – o médico, o paciente e a sociedade. Ademais, é possível relacioná-los aos princípios da bioética, de modo que cada um tem valor moral específico – paciente atua guiado pelo princípio da autonomia, o médico pelo da beneficência e a sociedade pelo da justiça. (MUÑOZ; FORTES, 1998)

Quanto à autonomia, Benfica (1999, p. 124) traz a seguinte significação:

[...] a capacidade de compreender a própria situação e perseguir objetivos pessoais sem estar dominado por coações. O termo autonomia, de acordo com sua origem etimológica grega, significa autogoverno, referindo-se ao poder da pessoa em tomar decisões que afetem sua vida, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais.

Diniz (2017, p. 15) destaca o campo da individualidade para fornecer elementos conceituais da autonomia: “o termo autonomia refere-se ao reconhecimento do domínio do indivíduo sobre a própria vida, restringindo, assim, a intromissão alheia e indevida no mundo daquele que se submete a um tratamento ou a uma intervenção médica”. Em outro dizer, Ugarte e Acioly (2014) reforçam a associação do termo “autonomia” à capacidade de se autogovernar e mencionam duas importantes características do indivíduo para exercê-la: a intencionalidade e a liberdade.

Cabe mencionar ainda o imperativo categórico kantiano, segundo o qual o homem é um fim em si mesmo, por conseguinte, “ser uma pessoa consiste em ser um sujeito moral autônomo, cuja autonomia é ter ‘uma vontade autolegisladora’.” (BENFICA, 1999, p. 124)

Ao estudar as condicionalidades das características da ação autônoma, Fadeu e Beauchamp estabeleceram o seguinte:

Ações são autônomas quando cumprem três condições: intencionalidade, conhecimento adequado e ausência de controle externo. Segundo esses autores, uma ação goza de intencionalidade, quando é querida pelo plano que a motiva. O conhecimento é adequado, quando existe a compreensão: da natureza da ação; das conseqüências previsíveis e dos resultados possíveis da execução ou não da ação. Existem ainda três formas de controle externo: coerção, manipulação e persuasão. (FADEN, BEAUCHAMP, 1986 apud DINIZ JÚNIOR, 2011, p. 27).

Maluf et. al. (2007) ressalta a incompletude dessas condições para ação autônoma, identificando uma quarta condição, a autenticidade. Um ato é autêntico quando é pautado pelos valores e as atitudes gerais diante da vida que uma pessoa assumiu reflexiva e conscientemente.

De toda sorte, o Código de Ética Médica brasileiro, em vigor desde 2010, é um importante marco regulatório da conduta médica, que privilegia a autonomia do paciente e mitiga o paternalismo. Estabelecendo que o médico respeite a vontade do paciente ou de seu representante, considerando os seus valores morais e crenças religiosas, enfatizando que suas decisões perpassam pelo crivo do domínio do paciente sobre a sua própria vida, conditio sine qua non para autonomia. (PEIXOTO, 2018).

Assim sendo, o disposto no art. 24 do Código de Ética Médica (2018, p. 07) impõe limites à conduta médica, vedando ao médico “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.

Todavia, as normas de proteção à autonomia do paciente não se limitam ao Código de Ética Médica. Pode-se citar o art. 15, do Código Civil (CC) de 2002: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Ainda neste contexto, o art. 5º, da Constituição Federal de 1988, trata do princípio da autonomia quando estabelece que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (inciso II).

A manifestação prática deste princípio da autonomia no âmbito da ciência da saúde é o chamado consentimento informado, no qual as diretivas antecipadas de vontade configuram como um desdobramento deste para instrumentalizar a centralidade do paciente como sujeito ativo na participação do seu cuidado, surgindo como uma tentativa de ruptura do paternalismo médico e fomentar o diálogo. Desta forma, a partir da estruturação do princípio da autonomia passa-se então ao aprofundamento do estudo sobre o instrumento das diretivas antecipadas de vontade.

2. Diretivas antecipadas de vontade: histórico, espécies, finalidades, diferenciações e características

Quanto ao histórico do debate sobre as diretivas antecipadas de vontade, o direito à autodeterminação do paciente surge nos Estados Unidos em 1969, quando o advogado Luis Kuttner publicou estudo no qual defendia a necessidade do consentimento prévio do paciente sobre o tratamento médico indicado. Posteriormente, redigiu um documento, que denominou de living will, conhecido no Brasil por testamento vital, cujo conteúdo fundamental era dispor sobre as escolhas e anseios do paciente em relação ao tratamento médico diante da terminalidade da vida. (MELO, 2018)

Dadalto (2015, p. 26) pormenoriza as exigências que Kuttner estabeleceu para se elaborar este documento:

(i) o paciente capaz deixaria escrita sua recusa a se submeter a determinados tratamentos quando o estado vegetativo ou a terminalidade fossem comprovados; (ii) a vontade manifestada pelo paciente no living will se sobreporia à vontade da equipe médica, dos familiares e dos amigos do paciente e o documento deveria ser assinado por, no mínimo, duas testemunhas; (iii) esse documento deveria ser entregue ao médico pessoal, ao cônjuge, ao advogado ou a um confidente do paciente; (iv) deveria ser referendado pelo Comitê do hospital em que o paciente estivesse sendo tratado; e (v) poderia ser revogado a qualquer momento antes de o paciente atingir o estado de inconsciência.

Em 1991, as DAV são transformadas em lei federal no Estados Unidos, com nome de Patient Self-Determination Act (PSDA) (Ato de Autodeterminação do Paciente), cujo o escopo era instrumentalizar o paciente para “expressar seus desejos em situações futuras em que isso não seja possível, preservando a sua autonomia e a sua dignidade mesmo em situações em que se encontre incapacitado para agir.” (MABTUM; MARCHETTO, 2015)

Outro marco histórico para DAV foram as Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, ocorrido em 1997 que abordou temas como: direito à informação, consentimento livre e vontade anteriormente manifestada, trazendo no art. 9º: “A vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta”. Sendo ratificado por Portugal, Suíça e Espanha, entre outros. Na América Latina, Porto Rico, Argentina e Uruguai legislaram sobre o tema. (DALDATO, 2020).

Não obstante, o tema não possui uma legislação específica no ordenamento jurídico brasileiro, mas é abordado por meio de uma resolução do CFM. A resolução n. 1995/2012 do CFM valida a condução médica nas diretivas antecipadas de vontade, trazendo no seu art. 1º o conceito de diretiva antecipada de vontade: “como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”

Consigna-se aqui que as DAV têm na sua essência permitir a autodeterminação do paciente. Por meio dela, o paciente terá a oportunidade inequívoca de manifestar o seu direito a recusar tratamentos inúteis, no qual o médico não pode mais garantir a possibilidade de cura, sendo considerado muitas vezes condutas que apenas prolongam o processo de morte, revestido em sofrimento e retirando a naturalidade desse processo e, por consequência, a dignidade humana.

É esclarecedor o ensinamento de Nunes (2016, p. 20) sobre a dignidade como alicerce ao respeito da autonomia do indivíduo: “dignidade lhe confere o direito de ser sempre considerado como sujeito, em si mesmo, com uma finalidade própria, dotado de liberdade no plano ético, não podendo nunca ser considerado como um objeto do desejo ou da manipulação de terceiros”.

Seguindo, existem espécies diferentes de DAV na prática médica brasileira. A doutrina e o normativo do CFM n. 1995/2012 reconhecem duas espécies do gênero diretivas antecipadas de vontade: testamento vital e procuração para cuidados de saúde/mandato duradouro. O testamento vital é definido pelo art. 1º dessa resolução, já citado anteriormente. Dadalto (2020, p. 55) complementa essa definição de testamento vital ao citar as situações possíveis de aplicação deste instrumento:

[...] o testamento vital é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade.

Insta salientar que Melo (2019) identifica uma similaridade entre o testamento vital e o testamento civil. Primeiro, pela própria essência da palavra testamento, que se verifica como o ato de dispor sobre algo, no caso do civil, seria uma disposição dos bens, e do vital, uma disposição da vida pela própria pessoa. Ambos exigem que a pessoa tenha pleno gozo de suas capacidades mentais. Ainda mencionado o paralelo entre os dois tipos de testamentos para o direito civil, se aplica os art. 1.858[1]; 1.860, caput[2]; 1.861[3], do CC/2002 para o testamento vital para caracterizá-lo como negócio jurídico existencial, unilateral, personalíssimo e gratuito. No entanto, urge pontuar uma diferenciação importante entre os dois testamentos: o civil, a eficácia, ocorre post mortem. E o vital, a eficácia ocorrer ainda em vida do testador.

Sobre a outra espécie de DAV, o mandato duradouro, leciona Melo (2018) que se caracteriza por um documento elaborado formalmente pelo paciente, no qual estabelece, prévia e voluntariamente, uma pessoa que responderá por decisões do seu tratamento/cuidados de saúde quando o próprio paciente não puder exprimir mais sua vontade.

No § 1º do art. 2º da Resolução n. 1995/2012, encontra-se o fundamento para a definição de mandato duradouro: “caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico”.

Pela definição do testamento vital e mandado duradouro, conclui-se que ambas são consideradas diretivas antecipadas de vontade, podendo existir isoladamente ou não. Todavia, a recomendação dos doutrinadores para a efetivação da autonomia do paciente, quando este estiver incapacitado de exercê-la, será maior se for utilizado os dois recursos dentro do mesmo documento. Em primeiro lugar, porque procurador de cuidado de saúde nomeado será um terceiro para certificar que os cuidados escolhidos pelo paciente será cumprido quando surgir sua incapacidade. Em segundo lugar, porque nem sempre é possível incluir todas as situações possíveis diante da terminalidade da vida, podendo existir lacunas e omissões. No entanto, o procurador, baseado no seu conhecimento sobre os valores e crenças do paciente, será a melhor oportunidade para se aproximar da vontade do paciente, auxiliando a equipe médica na tomada de decisão.

Quanto às finalidades da utilização das diretivas antecipadas de vontade na relação médico-paciente, pode-se extrair: garantir dignidade durante a morte, por meio da observação dos desejos de cuidado do paciente, respeitando sua autonomia; e servir de guia para atuação da equipe de saúde, nas situações em que não é possível garantir a cura do paciente, servindo de limites à utilização de recursos artificiais para suporte de vida. (DADALTO, 2020)

Mabtum e Marchetto (2015) ao mencionarem os objetivos das DAV, os relacionam ao respeito à autonomia por servir de embasamento para cumprir os desejos do paciente em fim de vida, além disso, é imperioso destacar que diante das controvérsias que possam ser ocasionada quando o médico honrar a vontade do paciente, as DAV tem uma função garantidora de respaldo legal.

A esse propósito, ao destacar como principal motivo das DAV, a proteção ao paciente ao evitar o uso de tratamento desproporcional, Dias (2013) ressalta ainda sua função secundária: afastamento da possibilidade de responsabilização civil e criminal dos atos praticados pelo médico em respeito ao testamento vital elaborado pelo paciente de forma prévia.

Importa destacar a diferenciação da DAV de outras formas de morrer, visto que ao observar as finalidades precípuas das DAV, cabe abrir um espaço na discussão para compreender a diferenciação deste instrumento em relação à eutanásia e à distanásia, principalmente em razão da aproximação temática e da associação crítica com a eutanásia.

Albuquerque (2015, p 05) pontua bem essa diferença de forma sucinta: “a eutanásia é reconhecida como a realização do óbito por outra pessoa, é a antecipação da morte do paciente realizada por escolha por terceiro. Já a distanásia é o prolongamento artificial da vida”. A outra forma de morrer, conhecida por ortotanásia, consiste em respeito ao processo natural de morte, entretanto, evita o sofrimento exacerbado do paciente. Dessa forma, confrontando os elementos conceituais dos termos supracitados, verifica-se que as DAV se encaixam como um tipo de ortotanásia.

Melo (2019) estabelece que a ortotanásia é o fundamento para construção do testamento vital, haja vista que não se busca antecipar e, muito menos postergar a morte, mas sim proporcionar ao enfermo durante o fim da vida, alcançar uma morte plena de sentido, compatível com sua biografia e notória vontade.

Por fim, destacado o conceito, o histórico, as espécies, as finalidades e as diferenciações quanto às DAV, passa-se a discutir sobre os seus pressupostos de validade. As fontes utilizadas para discorrer sobre capacidade de elaboração, eficácia, conteúdo, forma, revogação, caducidade e limitações das DAV foram a doutrina, as diretrizes do CFM, o Código Civil/2002 e o direito estrangeiro.

No que tange os requisitos necessários de quem pode elaborar DAV, aplica-se o art. 104, I do CC/2002, que estabelece como validade do negócio jurídico a capacidade do agente. Aqui não se restringe a capacidade civil (ser maior de 18 anos), sendo necessário discernimento para consentir. Entretanto, para alcançar esse discernimento e afastar qualquer vício na vontade do paciente, Pereira (2018, p. 50), esclarece a importância de o médico respeitar o direito à informação do paciente: “o dever de informação é fundamental para que o paciente possa declarar a sua vontade de forma consciente e isenta de vícios, fazendo valer a vontade expressa em seu testamento vital”.

Dessa forma, pontua-se outro pressuposto durante a elaboração das DVA: auxílio do médico para guiar o paciente durante esse processo. Nesse sentido, afastada a conduta omissiva, permite-se que o profissional da saúde exerça ação de modo a conduzi-lo, na tentativa de aconselhar o paciente (desde que isento de erro, dolo ou coação) sem manipulação, prestando a informação clara e compatível com o grau de entendimento do paciente, respeitando as crenças, valores, atitudes e intenções do paciente. O consentimento deve ser livre e esclarecido, podendo ser revogável a qualquer tempo. (MABTUM; MARCHETTO, 2015)

Acerca do conteúdo, várias são as possibilidades a serem suscitadas, como, por exemplo: a escolha por cuidados paliativos e afastamento de procedimento invasivos e artificiais de suporte de vida; a proibição ou permissão de visitas no lugar onde o paciente está sendo tratado (seja no ambiente hospitalar ou domiciliar, à sua livre escolha); a designação de um ou mais representantes para atuar alternativa, sucessiva ou conjuntamente ao testamento vital; a definição de um caminho interpretativo de sua manifestação de vontade (um comitê, um órgão, uma obra, um grupo ideológico, uma doutrina etc.) (DINIZ, 2017)

Não se pode deixar de olvidar o caráter facultativo da DAV e que ela pode ser alterada a qualquer tempo, inclusive revogada. Ademais, em alguns países considerando a dinamicidade da DAV, estabelece um intervalo de tempo em que a DAV caduca, forçando a pessoa a revisá-las: em Portugal e nos Estados Unidos são de cinco anos, na Espanha, de 2 anos. No Brasil, a doutrina e resolução do CFM não estabeleceu nenhum prazo, somente a possibilidade de alteração/revogação a qualquer tempo, como já citado. (ALBUQUERQUE, 2015)

A respeito da formalização das DAV, a resolução n. 1.995/2012 do CFM, no § 4º do art. 2º estabelece: “O médico registrará, no prontuário as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.” No entanto, recomenda-se o registro em cartório de notas das DAV por meio de escritura pública, visando maior segurança na expressão da vontade do paciente, e, dessa forma, impedir declaração de nulidade por qualquer pessoa. (DADALTO, 2020)

Por fim, na abordagem das limitações da vontade materializada na DAV, destaca-se que essa estará suspensa em caso de gravidez da declarante, inaplicabilidade de disposições contrárias ao ordenamento jurídico brasileiro e nas situações de recusa de tratamento que já tenham sido modificados pela medicina, bem como a recusa aos cuidados paliativos. (MELO, 2019) (ALBUQUERQUE, 2015)

3. Análise jurídica das diretivas antecipadas de vontade nos tribunais brasileiros

A metodologia de pesquisa aplicada a este estudo foi a abordagem dedutiva, pois se procura através de um raciocínio lógico obter uma conclusão a respeito das premissas debatidas, partindo-se do geral para o específico. (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009)

Considerando o objetivo geral da pesquisa, analisar a aplicabilidade jurídica das diretivas antecipadas de vontade como instrumento do direito para efetivação da autonomia do paciente, buscou-se o levantamento dos dados por meio da técnica de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, e adotou o procedimento analítico.

Foram analisadas jurisprudências da segunda instância da justiça estadual brasileira, abrangendo decisões publicadas no período de 01/01/2012 a 01/06/2021 e utilizando como principais termos de busca: “diretiva antecipada de vontade”, “testamento vital” e “mandado duradouro”. A pesquisa foi realizada através do site especializado de busca de jurisprudência, Jusbrasil, entre junho a outubro de 2021. Opta-se pela escolha dessa ferramenta pela praticidade que ela possui (ao contrário do que ocorreria na busca individualizada de cada um dos tribunais brasileiros), pela amplitude de sua base de dados e pelo motor de busca que apresenta os resultados mais relevantes, considerando que eventual margem de erro identificada seria desprezível.

A pesquisa retornou (28) vinte oito resultados, sendo excluídos: oito processos por apresentar-se repetidos em mais de um termo de busca; um, por tratar apenas de conflito de competência da temática entre Vara cível e Vara de Registro Público; dez, por apenas mencionar sobre a consulta ao site da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados – CENSEC, no qual é possível verificar a existência de diretivas antecipadas de vontade e, por fim, quatro, porque tratava de processos onde o requerente utilizava a DAV apenas como argumento para permanecer na curatela do interditando ou para reconhecimento de união estável. Assim, restaram (05) cinco resultados para análise.

Em seguida, na fase inicial da análise, realizou-se uma tabulação dos processos para facilitar o posterior acesso pormenorizado, sendo organizado por numeração do processo, ano da decisão em segunda instância, estado da federação do processo, ementa e normativos relacionado a temática utilizado para fundamentação da decisão.

Dessa análise preliminar, identificou-se que os processos se concentram apenas nos Tribunais dos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, que estão localizados em grande centro urbanos, e o tribunais são classificados pelo Conselho Nacional de Justiça (2021) como sendo de grande porte. Em relação ao ano de publicação, revelou-se um de 2013, um de 2015, um de 2017, um de 2018 e um de 2019. Além disso, verifica-se que três desses processos foram identificados como ação declaratória ou jurisdição voluntária, cujo requerente utilizava a via judicial para legitimação de suas DAV. E outros dois, tinha a instituição de saúde no polo ativo, porque tinham pacientes internados em seus leitos que recusavam intervenção médica, e por consequência, queriam respaldo jurídico para suprimir a vontade do paciente.

A seguir, passou-se a leitura crítica dos autos selecionados, buscando extrair os argumentos centrais das decisões para uma análise comparativa com a doutrina, e dessa forma, investigar se, perante a jurisprudência brasileira, a DAV tem condão de privilegiar a autonomia do paciente.

3.1. Ação declaratória e jurisdição voluntária

Neste item da análise, identificou-se três processos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos quais os requerentes buscaram validar por via judicial suas decisões autônomas em caso de situações de fim de vida. A apelação nº 1001378-30.2015.8.26.0363 (TJ-SP, 2018a) da Comarca de Mogi-Mirim, que consistia em uma ação declaratória pelo direito à ortotanásia e cremação após a morte. O apelante solicitou ao poder judiciário do Estado de São Paulo que declarasse seu direito de recusar tratamento médico fútil, que sirva exclusivamente para prolongamento de sua vida em caso de doença irreversível bem como seu direito de opção pela cremação em caso de morte. Segue os termos do autor da ação:

[...] busca a tutela jurisdicional para ver declarado seu direito de opção pela ortotanásia, ou seja, a sua vontade quanto aos tratamentos a serem ou não empregados caso advenha situação na qual não possa mais expressar suas intenções em virtude do estado de saúde em que se encontre em decorrência de moléstia grave, assim como manifestar a sua vontade de não ser mantido vivo em condições que considere indignas, cuja qualidade de vida não pode mais ser preservada diante da batalha travada para vencer a morte. (TJ-SP, 2018a, p. 03)

No pedido, o Tribunal entendeu que o autor não apresentou uma lide resistida, ou fato concreto para se eliminar ou resolver a incerteza do direito ou relação jurídica, haja vista que não apresentou motivo atual para autorização de ortotanásia. Portanto, não se verificou as condições para uma intervenção jurisdicional por causa da impossibilidade de a sentença emitir comandos genéricos, ou em outras palavras, declaração de direito em tese. Assim, o Tribunal por falta de interesse jurídico, extinguiu o processo, sem resolução do mérito em janeiro de 2018, mantendo a decisão de primeira instância. (TJ-SP, 2018a)

O direito do autor pela autonomia na escolha de uma morte digna não foi suprimido no in casu, muito menos a tutela jurídica desse direito, no entanto, por não apresentar elementos fáticos concretos que justifique essa tutela, ou seja, seu direito à morte digna não estava sendo obstado, entre outros motivos, porque não apresentou quem poderia obstá-lo e não restou claro motivo atual para desconsideração de tratamento fúteis, pois não informou sequer a doença que o acomete, existindo apenas um pedido hipotético.

Todavia, na fundamentação do ad quem em relação ao testamento vital, indicou que esse instrumento tem valor legal para prevalecer a autonomia do paciente nos termos que ele pede ao judiciário: “[...] o apelante pode se valer de ‘testamento vital’ para obter sua pretensão”. (TJ-SP, 2018a, p. 09)

Ainda na fundamentação do acórdão, citou-se o enunciado n. 528 da V Jornada de Direito Civil como embasamento legal da autonomia do paciente em fim de vida (TJ-SP, 2018a, p. 09):

“É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”.

Em apertada síntese do caso, tem-se: o apelante, que busca respaldo jurídico para validar suas escolhas em situações de terminalidade de vida por meio de uma ação declaratória e a decisão do Tribunal que para as finalidades pretendidas pelo apelante basta realizar um testamento vital.

Dessa forma, extrai-se as seguintes ponderações: observa-se razões subjetivas do apelante diante da incerteza de se efetivar seus cuidados em final de vida e sem condições para manifestar sua autonomia e por consequência a busca da via judicial para sedimentar suas escolhas e impedir qualquer impugnação por outros e, dessa forma, concretizar a segurança jurídica. Por outro lado, a jurisprudência paulista no caso sub examen reconhece que o testamento vital possui valor legal perante o ordenamento jurídico brasileiro e que não há necessidade de acionar a justiça conforme a doutrina já esclarece sobre a temática, no qual basta lavrar uma escritura pública, apresentando para isso capacidade civil e discernimento pleno ou conforme resolução do CFM n. 1995/2012, pedir o registro escrito de sua vontade em seu prontuário. No entanto, não se pode olvidar que a ausência de legislação federal específica gera incerteza para efetivação da autonomia do paciente nessas condições.

Seguindo a análise do próximo processo, tem-se outra Apelação que tramita na Comarca de São Paulo, n. 1000938‑13.2016.8.26.0100, referente à jurisdição voluntária para legitimar as DAV e afastar o emprego da distanásia nas situações clínicas irreversíveis, visando uma morte digna. No mesmo sentido da anterior, o Tribunal extinguiu a ação sem resolução do mérito por falta de interesse de agir em 2019. (TJ-SP, 2019)

O apelante ao expressar a necessidade do reconhecimento jurídico pelo Tribunal do seu living will ou testamento vital, alega como justificativa para seu interesse de agir: “[...] falta de regulamentação legislativa, no Brasil, deste instrumento jurídico (living will), cabe ao Poder Judiciário atuar em uma de suas funções atípicas: de legislar positivamente, em consonância com o artigo 4º da LINDB (princípio do non liquet) e de fazer justiça”. (TJ-SP, 2019, p. 04)

Na fundamentação da decisão o Tribunal estabelece que a eficácia da manifestação de vontade para elaboração da DVA independente de chancela judicial, no qual pode ser expressada perante Cartório Extrajudicial. Nos autos, a colenda Câmara de Direito Privado do Tribunal de São Paulo, reforça como validade e eficácia da DAV, além do enunciado n. 528 da V Jornada de Direito Civil (já citada), a resolução n. 1995/2012 do CFM, discutida no capítulo anterior. (TJ-SP, 2019)

No espaço das ponderações, além do mesmo reconhecimento observado no primeiro processo analisado pelo requente, destaca-se aqui o objetivo último da requerente neste processo - seu direito à morte digna - cabe concordar e destacar os ensinamentos de Godinho (2016, p. 82):

[...] a morte digna não sobrevém quando se põe termo à vida de uma pessoa a quem não se reconhece uma existência marcada por uma noção artificial de “qualidade de vida”, mas sim quando se permite ao doente, no momento em que a morte lhe bate à porta, manter um franco diálogo com a equipe médica, pautado pela confiança recíproca, quando se evita seu sofrimento inútil e controle da sua dor, e quando se confere ao indivíduo a prerrogativa de saber seu estado de saúde e de escolher as medidas médicas que lhe pareçam convenientes, afastadas todas as práticas excepcionais ou desproporcionais no estágio terminal.

O próximo julgado para análise de n. 1084405-21.2015.8.26.0100 da Comarca de São Paulo, trata-se de jurisdição voluntária em que a autora requer reconhecimento da declaração de vontade em recusar, antecipadamente, enquanto goza das faculdades mentais, tratamento médico que prolongue a vida e cause sofrimento quando não há mais possibilidade de cura em face de uma doença ameaçadora de vida. (TJ-SP, 2017)

Nesse passo, o juízo de primeiro grau ao analisar a inicial, extinguiu a ação sem resolução do mérito, por entender ser desnecessário o procedimento em virtude de haver via administrativa capaz de assegurar o que era demandado pela autora. (TJ-SP, 2017)

Inconformada com a decisão a autora recorreu ao segundo grau de jurisdição que por sua ótica entende, diversamente dos casos já aqui analisados, haver um direito a apelante: “no entanto, tal extinção foi equivocada: razão assiste à apelante ao brandir em seu recurso da garantia do acesso a justiça. [...] o Juízo não pode fechar suas portas a quem o procurou e remeter a outras vias”. (TJ-SP, 2017, p. 03)

Como o tribunal superior não enfrentou o mérito, decidindo pelo retorno dos autos a quo para regular seguimento, cabe mencionar os fundamentos no reexame do processo pela primeira instância. Assim, a juíza de primeiro grau considerou a questão e reconheceu a validade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro fazendo alusão a resolução do CFM, n. 1995/2012, ao enunciado n. 528 aprovado na V Jornada de Direito Civil, ao Código Civil no tocante ao negócio jurídico válido, ao princípio da dignidade da pessoa como bastião para liberdade de escolha e o direito a autonomia do paciente na relação médico-paciente tema já tratado em jurisprudência do STF. Ao final, reconhece e homologa a declaração de vontade, apontando que esse ato tem caráter estritamente formal. (TJ-SP, 2018b)

Verifica-se na análise desses julgados que não se coloca em dúvida a existência do direito as diretivas antecipadas de vontade, ou seja, o direito à decisão por parte do paciente de não aceitar tratamentos fúteis ou desnecessários, mas o que existe é uma insegurança na consecução desse direito como bem observa Dadalto (2018) ao analisar o tema (p. 11): “coloca- se em dúvida a capacidade do sistema social – notadamente as relações familiares da autora e a prática médica – em efetivar o direito da autora. Coloca-se em dúvidas a efetividade dos direitos fundamentais no Brasil.”

Desse modo, em função da ausência de lei que regulamente a questão e faça a sistemática do processo, defina os termos e conceitos e trate de forma objetiva o alcance e possiblidades do uso do disposto, coloca-se o cidadão e os profissionais em angustia em face da insegurança jurídica evidente quando se trata do tema.

3.2. Recusa terapêutica ou testamento vital

Os próximos dois processos a serem apresentados possuem em comum que foram protocolados ao poder judiciário a pedido das instituições de saúde, porque tinha em seus leitos pacientes que se recusavam a aceitar determinado tipo de tratamento, dessa forma, buscava respaldo jurídico para suprimir a vontade do paciente.

No processo n. 0223453-79.2013.8.217000 da Comarca de Viamão, o Ministério Público (MP), a pedido do Hospital Colônia, apresentou uma apelação para suprimir a vontade de um idoso de 79 anos que se recusava amputar um membro necrosado. O parquet argumentou que a lesão estava em estágio avançado, associado a uma situação clínica grave: “inclusive com emagrecimento progressivo e anemia acentuada resultante do direcionamento da corrente sanguínea para a lesão tumoral [...]. Acrescentou-se que a recusa poderia implicar na morte do idoso por infecção generalizada. (TJ-RS, 2013, p. 02)

O MP justificou a necessidade de suprimir a vontade do idoso porque ele não apresentava condições psíquicas de recusar validamente o procedimento, além da indisponibilidade do direito à vida. Dito isso, solicitava ao Poder Judiciário autorização para que o Hospital onde o idoso estava internado pudesse realizar o procedimento. (TJ-RS, 2013)

Tanto o juiz singular da primeira instância como os desembargadores, por unanimidade, decidiram pelo direito do idoso em recusar o procedimento, entendendo que o caso se tratava de ortotanásia. Fundamentaram a decisão citando que o direito à vida não é absoluto, apesar da tutela constitucional, e que o mesmo deveria ser interpretado integrado ao princípio da dignidade da pessoa. No plano infraconstitucional, utilizou o art. 15 do CC/2002, que dispõe: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Por fim, cita ainda na fundamentação da decisão a Resolução n. 1995/2012, do CFM: “Não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano”. (TJ-RS, 2013)

Para reflexões desta análise, ressalta-se que o Tribunal entendeu que se tratava de um caso de ortotanásia, mas não resta claro pela leitura dos autos se o paciente apresentava uma condição de terminalidade de vida (doença incurável ou uma condição irreversível), situações perfeitamente cabíveis, de acordo com a doutrina, para aplicação do testamento vital. Mas o destaque é o privilegiamento da autonomia do paciente para que se concretizasse sua vontade. Dessa forma, diante das incertezas das condições do paciente a situação poderia se configurar apenas como manifestação de recusa terapêutica e não como testamento vital. Mas os desembargadores foram mais longe – relacionaram o testamento vital à proteção dos médicos diante de contestação por outras pessoais: “[...] a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tenho que o paciente, pelo consta nos autos, fez o seu testamento vital no sentido de não se submeter à amputação, com os riscos inerentes à recusa”. (TJ-RS, 2013, p. 07)

No último processo a ser analisado, o agravo de instrumento n. 0284885-31.2015.8.21.7000, que possui a Fundação Hospital Centenário de São Leopoldo como agravante e como agravado um paciente que consta em seu leito de internação. Assim o hospital interpôs um recurso de agravo de instrumento diante do indeferimento de medida liminar em ação de obrigação de fazer ajuizada contra o paciente na primeira instância. Nesse caso, o paciente e sua madrasta recusavam realizar procedimento de laparatomia exploratória. O hospital argumentou que “[...] o profissional da saúde tem o dever de, havendo eminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento do paciente, independentemente do consentimento do paciente e de seus familiares.” (TJ-RS, 2015, p. 03)

Por outro lado, o agravado aduz que está plenamente ciente da gravidade do seu estado de saúde e que possui o direito de decidir se aceita ou não determinado tratamento proposto pela equipe médica. Dito isso, o desembargador em decisão monocrática negou seguimento ao agravo de instrumento, mantendo a decisão agravada de respeito a vontade do paciente. O julgador enfatizou os seguintes fatos: o paciente lúcido e consciente e que a médica, mediante contato telefônico realizado pelo magistrado, asseverou que diante da gravidade do caso, que mesmo realizando o procedimento proposto, a morte do paciente seria inevitável: “[...] a dra. Letícia que atende o paciente, que relatou que esses casos normalmente levam o paciente a óbito, ainda que seja realizado o procedimento de laparatomia exploratória”. (TJ-RS, 2015, p.02)

A partir da análise fática, o magistrado apresentou os fundamentos que se segue: (I) inexistência do direito estatal de ‘salvar a pessoa dela própria’, quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros; (II) o direito à vida previsto no artigo 5º da CF não é absoluto, sendo necessário a observância ao princípio da dignidade da pessoa humana, conforme previsão do art. 1º, inc. III da CF/88 e ainda na legislação infraconstitucional: art. 15 do CC/2002 e 7º, inc. III e V, da Lei n. 8080/90. (TJ-RS, 2015)

Da análise desse julgado, observa-se que o paciente lutava pela proteção do direito de escolha do seu tratamento, isso torna ainda mais importante na terminalidade da vida. Considerando que a opção ofertada pela medicina não era decisiva para sua cura, tendo como única certeza o prolongamento do sofrimento caso insistisse no procedimento. É necessário estabelecer limite na atuação do médico na relação médico-paciente. No caso em exame, apesar do paciente não ter perdido sua autonomia de vontade por uma condição clínica subjacente, este risco era inerente. Por isso, podemos constatar que além de validar sua manifestação de vontade na atualidade da decisão, a via judicial reconhecia sua legitimidade a posteriori, pois o paciente manifestou verbalmente a recusa de determinados procedimentos, reconhecidamente fúteis ou extraordinários, isso também serviria para situações onde ele não mais conseguisse manifestar essa vontade, portanto, assumindo formato de testamento vital.

Conclusão

Permitiu-se nesse estudo, a análise das DAV como instrumento do direito para efetivar autonomia do paciente em fim de vida através de uma reflexão doutrinária e jurisprudencial. Assim, a outrora visão paternalista de atuação da medicina não cabe mais em um mundo, no qual se forja uma sociedade plural e democrática, de forma a se preponderar o direito à personalidade em que se permite a autodeterminação do sujeito na relação médico-paciente.

Nesse sentido, observou-se entendimento da autonomia como manifestação da subjetividade da pessoa, em reconhecimento da livre decisão individual, racional e sem coação, principalmente em face de decisões sobre si mesma, ao seu corpo, sobre campo de atuação de seus próprios interesses e de modo que não afete terceiros. Portanto, identifica-se um espaço único em que cabe apenas a ação do particular, o que exclui ação do Estado, médico e familiares. Isso torna ainda mais importante diante da experiência da morte, fato inerente à vida, e por isso, imprescindível o respeito a expressão de liberdade de cada um nessa situação, permitindo o alcance de uma morte digna.

Constatou-se que a discussão sobre aplicação das DAV em solo nacional, indubitavelmente, teve seu ponto alto quando o CFM editou uma resolução respaldando a classe médica para executar as manifestações de vontade dos pacientes em fim de vida. Contudo, na sociedade ainda existe uma limitação cultural para lidar com o tema da morte, isso acaba afastando as pessoas das reflexões necessárias de que existe um espaço no qual o sujeito pode decidir como se dará esse processo. Isso pode ser evidenciado também pela pesquisa deste estudo, no qual se investigou sobre o tema nos 26 Tribunais Estaduais e o do Distrito Federal do Brasil e obteve apenas 05 resultados, considerando que a resolução do CFM tem quase 10 anos de existência.

Na análise dos casos, percebe-se a necessidade das pessoas de acionarem o judiciário para o reconhecimento da validade legal de suas DAV e torná-las eficazes. As justificativas dessa necessidade se desenham, principalmente, pela insegurança gerada pela falta de legislação específica sobre a temática. Apesar disso, os Tribunais de Justiça estaduais que decidiram sobre o tema reconhecem a validade legal do instrumento e utiliza como fundamento a resolução n. 1995/2012 do CFM, além dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, que permite uma leitura de modo a aceitar uma interpretação integrativa, cujo o entendimento é de privilegiar a autonomia do paciente. Cabe ressaltar que a doutrina apresenta também entendimento pacífico a respeito da legitimidade desse instrumento no ordenamento jurídico brasileiro, assim como a jurisprudência ressalta que o tema já foi discutido na V Jornada de Direito Civil, sendo proferido o enunciado n. 528.

Ainda sobre a análise dos julgados, nos processos apresentados pelas instituições de saúde perante o judiciário, tinham por objetivo invalidar a vontade do paciente, ou por alegação de vício de vontade e/ou usando o direito à vida como valor absoluto, mas os julgadores em suas decisões entenderam que era necessário sopesar os princípios, para se chegar a conclusão que diante dos valores e escolhas do paciente que interfere na sua integridade e que não afete a terceiros, fica evidente o direito a uma morte digna, onde prevalece o respeito aos princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade do indivíduo.

Portanto, mesmo diante de uma jurisprudência incipiente é possível identificar nas decisões a legitimidade implícita das DAV no ordenamento jurídico brasileiro, sendo um passo importante para efetivar a autonomia do paciente na finitude de vida. Todavia, diante do único regramento, a resolução do CFM, reconhecidamente classista, por consequência, uma força normativa limitada, não se pode esquecer que a doutrina destaca também a fragilidade pela carência da abordagem de elementos regulamentares sobre o tema, como a formalização, capacidade do declarante, conteúdo, limitação temporal da validade, eficácia e efeitos.

A manutenção de discussões acerca da necessidade de legislação específica é justificável, principalmente no Direito Brasileiro, essencialmente civil law, para garantir previsibilidade e segurança na construção deste documento, bem como na execução das vontades neles contidas, que serão efetivados no ato derradeiro da pessoa antes da morte.

Impende então dizer que com a mudança de paradigma do agir médico na relação médico-paciente, com ênfase em ouvir o paciente e respeito as suas escolhas, é que se direciona para o final deste estudo, para se compreender que isso deve tornar-se o parâmetro tolerável diante dos limites éticos e jurídico da medicina ao presenciar cotidianamente as incansáveis lutas travadas pelos seus pacientes perante a vida ou a morte.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 14ª Vara Cível da Comarca de São Paulo. Autos n. 1084405-21.2015.8.26.0100. Juíza Leticia Antunes Tavares. Sentença proferida em 02/​03/​2018b.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível 70054988266, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/​11/​2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/​11/​2013

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível 70065995078, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Data de Julgamento: 03/​09/​2015, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 10/​09/​2015.

Submetido em: 16 dez. 2021.

Aceito em: 31 dez. 2022.

 



[1]  Art. 1.858, Código Civil de 2002. O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo.

[2]  Art. 1.860, Código Civil de 2002. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento

[3]  Art. 1.861, Código Civil de 2002. A incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade.