INTERVENÇÃO ESTATAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES NA SOCIEDADE INTERNACIONAL CAPITALISTA NEOLIBERAL E A CRISE DOS ESTADOS

Paulo Klein Junior

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Santa Catarina.

[email protected]

Luiz Geraldo do Carmo Soares

Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Paraná.

[email protected]

Resumo: Este artigo aborda a importância da intervenção estatal para a efetivação dos direitos dos trabalhadores enquanto seres humanos, bem como, para a fomentação de um desenvolvimento localmente sustentável, pautado na valorização do local e dos pequenos empreendimentos. Para tanto, se estuda acerca da ascensão e consolidação do capitalismo neoliberal, a crise dos Estados, a globalização e a transnacionalização, bem como a emergência do fomento do desenvolvimento local e da reafirmação/remodelação dos direitos dos trabalhadores. Como resultados, entende-se necessária uma concepção mais ampla de desenvolvimento, abarcando o local, e de relações de trabalho que se transponham além da dualidade clássica detentores dos meios de produção e proletariado, assim, também, como o aprofundamento do estudo de tão amplo tema. Método de abordagem indutivo, com procedimento de pesquisa documental e bibliográfico.

Palavras-chave: Intervenção estatal. Direitos dos trabalhadores. Crise dos Estados.

State intervention and the protection of workers' rights in the neoliberal capitalist international society and the crisis of the states

Abstract: This article aims to understand the importance of state intervention for the realization of workers’ rights as human beings, as well as for the promotion of locally sustainable development, based on the valorization of the place and small enterprises. To this end, it will study about the rise and consolidation of neoliberal capitalism, the crisis of States, globalization and transnationalization, as well as the emergence of the promotion of local development and the reaffirmation / remodeling of workers' rights. As a result, a broader conception of development is needed, encompassing the place, and working relationships that go beyond the classic duality that hold the means of production and the proletariat, as well as the deepening of the study of such a broad scope. theme. Inductive approach method, with documentary and bibliographic research procedure.

Keywords: State intervention. Worker’s rights. States crisis.

Introdução

A falácia liberal-clássica dos livres mercados e da igualdade de todos perante a lei num sistema de Estados nacionais há muito está deslocada da realidade fática. São inúmeros os malefícios do crescimento econômico a qualquer custo, dentre os quais: degradação do ambiente natural, recrudescimento das desigualdades entre ricos e pobres, precarização e, ao mesmo tempo, eliminação do trabalho, crises migratórias e de refugiados, o regresso a um nacionalismo extremado e a ascensão de regimes legalista-autocráticos. De toda essa ampla conjuntura social-legal-política-econômica despertam vários questionamentos.

Neste ínterim, pois, pretende-se compreender a importância da intervenção estatal para a efetivação dos direitos dos trabalhadores enquanto seres humanos, bem como, para a fomentação de um desenvolvimento localmente sustentável, pautado na valorização do local e dos pequenos empreendimentos.

Esta pesquisa fixa uma compreensão inicial e mais geral acerca da temática, o que não levará ao esgotamento total do tema. E nem é esta a pretensão, por uma série de fatores, como amplitude da temática, tempo para realização da pesquisa, formato de artigo científico, bem como a inicial cognição dos marcos teóricos da área.

Denota-se a relevância do conteúdo para o campo do Direito Internacional e da Sustentabilidade, bem como adequação à linha de pesquisas em Direito Ecológico e Direitos Humanos, por retratar situações fáticas em curso e que já despertaram a atenção de pensadores e organismos internacionais, como as Nações Unidas que, inclusive, em 2015 editou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

O texto, portanto, será dividido em três compreensões: primeiro, se estabelecerá um sintético panorama histórico da evolução e constituição do capitalismo neoliberal como modelo econômico preponderante na sociedade internacional; segundo, as transformações sofridas pelos Estados e pelo mundo do trabalho por conta da globalização e pelo fenômeno da transnacionalização; e, por último, se discorrerá acerca na necessidade de modificações regulatórias com base no fomento do desenvolvimento local para assegurar os direitos dos trabalhadores.

Utilizar-se-á como método de abordagem o indutivo, e como procedimentos, as pesquisas documental e bibliográfica.

1. O capitalismo neoliberal como modelo econômico da sociedade internacional

O despertar dos ideais iluministas, a partir do século XVII, propunham o rompimento dos regimes absolutistas na Europa, representados pela preponderância da aristocracia e monarcas como acima de tudo e todos. Os teóricos passaram a criticar essa acepção, a qual, com resquícios do feudalismo medieval, estratificava a sociedade e via com maus olhos aqueles que se dispunham ao trabalho braçal, sendo virtuosa a disposição à intelectualidade ou religiosidade.

Nesse mesmo período histórico, a classe econômica ascendente dos pequenos e médios comerciantes e produtores – que passou a se denominar burguesia – questionava o porquê de tantos privilégios às classes que viviam do ócio – aristocracia e clero – enquanto que quem gerava as riquezas para a manutenção da nação era aquela classe e os trabalhadores (MILANOVIC, 2020).

Em adição, despontava a Primeira Revolução Industrial, com as inovações tecnológicas que passaram a transformar as relações comerciais e industriais, assim como sociais – levando os camponeses para o chão das fábricas das cidades e modificando enormemente as conexões interpessoais e profissionais (HARARI, 2020).

Esse simples resumo de fenômenos tão complexos acima mencionados quer demonstrar o contexto de surgimento dos ideais do liberalismo econômico, partindo da concepção inicial de que a burguesia ansiava por ter liberdade de produção e negociação sem estar submetida aos ditames dos monarcas absolutistas (MASON, 2017). Em outras palavras, liberdade para desenvolver seus investimentos sem prestação de contas e com valorização do trabalho.

Nessa esteira, é importante o pensamento fomentado pela ética protestante, despontada nos países em que protestantismo e o calvinismo se arraigaram, cindindo com a ideia de que o trabalho e a geração de riquezas eram prejudicial ao ser humano – visão do catolicismo – e promovendo a noção de que trabalho duro e geração de economias era a virtude esperada pelo ente supremo.

Não entrando aqui no mérito de que a liberdade hasteada pelos burgueses não era para todos os indivíduos – os trabalhadores, mulheres e minorias em sentido lato permaneceriam subjugados aos ditames de quem estivesse “no poder” – houve, por fim, revoluções nacionais que instituíram sistemas representativos. Como já mencionado, a Revolução Industrial fomentou ainda mais o estabelecimento da dualidade presente até hoje (ao menos pelo establishment) de detentores de meios de produção e proletariado. Isto é, afixado o capitalismo liberal como sistema econômico.

Em tal sentido, os Estados modernos pautaram-se na premissa do laissez-faire – o “deixar fazer” –, com responsabilidade de assegurar a ordem, a segurança, e o cumprimento das legislações comerciais e econômicas pactuadas pelos “cidadãos”. A acepção de liberdade seria ampla. Os indivíduos (frisa-se, os detentores dos meios de produção) poderiam negociar entre si livremente, sem prestações de contas. A produção e comercialização de bens automaticamente atenderia aos anseios dos consumidores e, assim, os sistemas funcionariam perfeitamente (MASON, 2017, p. 35-60).

Na vanguarda dos ideais do liberalismo, a sistemática transcorreu sem percalços. Mas por que funcionou perfeitamente? Temos a explicação em Nunes (2003, p. 34):

O liberalismo econômico funcionou nas condições dos séculos XVIII e XIX, quando a tecnologia industrial era relativamente rudimentar e adaptada a empresas de pequena dimensão; quando era inexistente ou pouco relevante a concentração capitalista; quando os trabalhadores não estavam organizados (ou dispunham de organizações de classe de existência precária, débeis e inexperientes) e não gozavam da totalidade dos direitos civis e políticos (o que lhes dificultava e reduzia o acesso ao aparelho de Estado e ao poder político e, consequentemente, à obtenção dos direitos econômicos e sociais do que hoje desfrutam); e quando, por isso mesmo, os governos - imunes às exigências e aos votos populares - podiam ignorar impunemente os sacrifícios (e os sacrificados) das crises cíclicas da economia capitalista, qualquer que fosse sua duração e intensidade. É claro que a ‘solução’ de impor aos trabalhadores o ônus de ‘pagar a crise’ só funcionou porque o capitalismo era então, sem disfarces, <<um sistema em que os que não podiam trabalhar também não podiam comer>>”.

Conforme a sociedade foi se transformando, as economias se consolidando, e o desenvolvimento tecnológico abrangendo amplas extensões do mundo, a situação não mais se tornou tão favorável à predileção do sistema. Soma-se a tanto o fato de que nas colônias europeias de além-mar – as quais favoreceram o enriquecimento dos países e indivíduos/empresas das metrópoles – movimentos de independência abalaram a dominação extrativista de exportação de matérias-primas e importação de bens de consumo de alto valor agregado.

Em complemento, disputas existentes entre as próprias potências europeias – consubstanciando-se em conflitos armados – bem como outros fatores, geraram crises financeiras – ainda no século XIX – atingindo, inclusive, os Estados Unidos da América (EUA). Esses fatores não serão aqui detalhados, porque, conforme já exposto na introdução, a intenção deste texto não é explicar às minúcias um apanhado histórico-econômico de formação e transformação do liberalismo, mas sim, estabelecer apanhado geral que leve o leitor a compreender as noções básicas que instituíram o capitalismo neoliberal como sistema econômico vigente na sociedade internacional contemporânea.

Assim como os iluministas criticavam os Estados absolutistas, novos teóricos observaram as particularidades do neoliberalismo, apontando suas falhas. Marx e Engels foram os expoentes da crítica do sistema de dominação. Logo sobreveio a Revolução Proletária, na Rússia, em 1917, e na ocorrência da Primeira Guerra Mundial (HARARI, 2020).

Ideários que problematizavam a dominação de uma “alta burguesia” de produtores, comerciantes e industriários sobre uma massa de trabalhadores que não tinham a quem recorrer – Estado era liberal, sem intervenção -, com recrudescimento das desigualdades, em pontos mais altos até do que os existentes na época do absolutismo, tão criticados pelos teóricos liberais, John Locke, principalmente. (ANDRADE, 2019).

Estabelecida a Liga das Nações, um sentimento de animosidade permeou a sociedade internacional, malgrado a persistente crítica dos autores às disparidades do capitalismo. Nos anos 1920, Arthur Pigou idealizou a teoria do Estado Social, que depois foi aprimorada por outros autores, principalmente John Maynard Keynes (PIGOU, 2017; KEYNES, 2012). Há que se mencionar regimes já diferenciados, como o zapatismo, no México, o próprio socialismo, na União Soviética, e o new deal norte-americano.

Essa teoria do Estado de bem-estar social, – welfare state - em estreita síntese, propunha a intervenção do Estado em setores da economia e da sociedade, para que fossem suavizadas as desigualdades, as disparidades e se promovesse uma efetiva concorrência entre os entes. Essa intervenção se daria pela regulamentação de atividades e inserção dos Estados na promoção de serviços públicos e de seguridade social (MILANOVIC, 2020). Até aquele momento, os Estados nacionais eram os principais atores internacionais, o que se modificou depois da Segunda Guerra Mundial, tema que será tratado no próximo tópico.

Com o crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, a recessão econômica ampliou ainda mais o espectro de influência dos ideais do welfare state, que foram propagados com maior intensidade pelo mundo. A “teoria geral do emprego, juro e moeda”, de Keynes, reconhecia que a livre competição entre as entidades econômicas era impossível, e, por certo, não geraria acesso ao emprego, e ao pleno emprego, muito menos atingiria um nível de paridade econômica e social sem qualquer regramento. Já não se baseavam mais, portanto, as premissas diretivas naquele capitalismo liberal clássico, dada a modificação da conjuntura da sociedade internacional.

Com a Segunda Guerra Mundial entre os anos de 1939-1945, ficou ainda mais clara a noção de que as bases do liberalismo não estavam mais presentes. Os Estados europeus estavam devastados e empobrecidos pelo conflito bélico, os EUA começaram a ascender enquanto nova potência econômica, seguidos e acompanhados, logo em seguida, pela União Soviética. Consubstanciou-se a bipolaridade capitalismo versus socialismo (CROUCH, 2013).

Na parte ocidental do globo, as ideias do welfare state entraram em declínio, movidas, principalmente, pela globalização, transnacionalização e crise dos próprios Estados, o que se exporá adiante. O Consenso de Washington formou o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, de filosofias antagônicas ao Estado providência. Críticos como Friedman pugnavam pelo encerramento de qualquer intervenção estatal nas legislações regulatórias, assim como na flexibilização de contratos trabalhistas e na crítica ferrenha aos sindicatos, já bastante consolidados. A justificativa da re-liberalização era para que não houvesse a estagnação do desenvolvimento e do crescimento econômico. Além disso, pode ser mencionado o temor de que ideias “social-comunistas” se espalhassem pelo ocidente, o que reforçou ainda mais a crítica à intervenção do Estado.

Essa “nova” roupagem do liberalismo veio por se definir como neoliberalismo. Claro que com outras características, algumas das quais serão sinteticamente inseridas nos seguintes tópicos.

É importante mencionar que após a independência das colônias europeias, veio por surgir o chamado neocolonialismo, quer dizer, a volta (permanência) da dominação das potências sobre as ex-colônias, basicamente no âmbito econômico e governamental (com instituições e leis voltadas à parceria com os Estados dominadores). Houve movimentos de questionamento também dessas relações – aqui, só para mencionar, na Nicarágua e no Chile, sem falar em países africanos, recém libertos das amarras do que se chamava “dependentismo” (PREBISCH, 2011).

Contudo, esses movimentos e regimes políticos acabaram sendo derrubados por golpes militares que implementaram o neoliberalismo nas economias. Pode ser mencionada a discussão do financiamento dessas “quebras de regimes” pelos Estados dominantes, como os Estados Unidos. Dessa forma, após a década de 1970, permearam-se regimes ditatoriais pelo sul global (CROUCH, 2013).

Com o encerramento do “segundo mundo” – União Soviética e Estados albergados pela sua influência política e ideológica – no início dos anos 1990, encerrou-se, também, a bipolaridade existente. Assim, tornou-se o globo “unipolar”, com um único centro de poder, representado pelo capitalismo neoliberal, em contraponto ao “multipolar” apregoado por alguns autores – em referência à multiplicidade de centros de poder presentes.

E desde então prepondera na sociedade internacional o sistema econômico capitalista neoliberal, permeado pela globalização, desenvolvimento tecnológico e relações entre entes diferentes dos Estados – o que se tratará a seguir. As relações de trabalho, contudo, pouco se diferenciam daqueles presentes no início do liberalismo econômico; talvez um pouco melhores do que eram, por conta da presença de forças sindicais e de legislações a duras penas conquistadas em oportunidades de presença do Estado social (CERVO, 2007).

Há que se ter em conta, todavia, que, na visão de Nunes (2003), e pelos teóricos por ele pesquisados, o desemprego é intencionalmente induzido pelas forças de mercado. Com a existência de desemprego, fica muito mais fácil o fornecimento de salários piores e condições de trabalhos não tão boas, a qual serão aceitas por aqueles que precisam trabalhar. Caso contrário, caso houvesse pleno emprego, as entidades empregadoras não poderiam leiloar as vagas de trabalho.

E esse é um questionamento que de antemão se deixa em aberto: como, numa sociedade cuja produção – fomentada pela tecnologia – aumenta consideravelmente num tempo menor do que o era no início do século passado, não disponibiliza vagas de emprego suficientes.

2. Estados, globalização e transnacionalização

Conforme explicado no tópico anterior, o capitalismo neoliberal permanece como sistema preponderante na sociedade internacional. Neste tópico, debater-se-á acerca das particularidades desse sistema econômico em relação com os Estados, e em meio ao fenômeno da globalização e da transnacionalização, e como as transformações foram contribuintes na geração de crises financeiras, de mobilidade humana, nos direitos trabalhistas e no ambiente natural.

A partir do final da Segunda Guerra Mundial, a ascensão de novos atores internacionais começou um processo de enfraquecimento da soberania dos Estados. O percurso transcorreu a partir de fenômenos como internacionalização e multinacionalização, culminando, por fim, na transnacionalização. A transnacionalização é uma das facetas da globalização, e sua principal característica, como mencionado, é o enfraquecimento da soberania estatal, a desterritorialização das relações e a expansão em larga escala do capitalismo (OLSSON, 2014).

Quanto à globalização, António José Avelães Nunes (2003), entende ser um fenômeno antigo, de etapas. Considera estarmos na terceira etapa, pautada na desintermediação, descompartimentação de desregulamentação ferrenhas dos mercados, principalmente financeiros. Fenômeno cultural e ideológico, implementou com força total o consumismo como mote (aqui passou a estimular-se o consumo de bens desnecessários pelas classes menos favorecidas); anula culturas e identidades nacionais, estabelecendo uma padronização de pensamento. Posição distinta de Marini (2015), que afirma que a globalização efetivamente surgiu nos anos 1980. Neste texto, filia-se ao primeiro pensamento.

É inegável a contribuição do desenvolvimento tecnológico para o “êxito” da terceira fase de globalização, tecnologia essa que permitiu a engenharia dos sistemas financeiros que se desconectaram por completo das amarras estatais, passando o capital a gravitar em torno do sistema de finanças. Esse capitalismo, segundo Nunes (2003), pode ser chamado de “capitalismo de cassino”: absolutamente divorciado da economia comum e da renda de quase totalidade da população, por conta das somas envolvidas nas transações.

Contudo, o conceito de globalização não é tarefa fácil. Victor Flores Olea e Abelardo Mariña Flores (1999, p. 288 e ss.), de um lado, atentam que a globalização é, de certa forma, um fenômeno irreversível, porque os avanços tecnológicos transformaram a vida em sociedade. De outro lado, os autores acreditam que a globalização é um fenômeno que deve ser controlado, ou seja, “apresenta potencialidades emancipatórias que devem ser retomadas, com o redirecionamento da globalização neoliberal hegemônica atual para uma globalização alternativa ou includente”. Isto é, são necessárias medidas para reorientar os rumos do fenômeno, já que irreversível, utilizar de suas consequências para fins que incluam.

A respeito do mesmo tema, Guedes (2013) enfatiza que o fenômeno da globalização é um processo pelo qual atividades estatais são desagregadas em favor de uma estrutura de relações entre diferentes atores, que operam em um contexto que é global, ao invés de meramente internacional. Para ela, implicações da globalização para os Estados seriam a perda da soberania e perda de controle dos processos de decisões. Porém, afirma que somente alguns setores assumem essa problematização, quais sejam: economia política internacional focada na economia global, estudos culturais focados na cultura global, e sociologia global focada em movimentos transnacionais.

Todavia, é importante mencionar, a conexão de países meramente serve para atender aos anseios dos protagonistas do desenvolvimento econômico. A integração da globalização é seletiva. A força de trabalho, por exemplo, encontra inúmeras barreiras ao tentar transpor fronteiras dos Estados em busca de trabalho efetivamente digno – o que não existe nos locais onde provêm ou este é de difícil acesso. Além de o mercado de trabalho ter se reduzido drasticamente por conta da substituição da mão de obra humana por maquinários, este se torna ainda mais restrito para aqueles que têm o “privilégio” de serem “nacionais” de determinados Estados desenvolvidos.

Essa é a principal contradição: se por um lado os Estados tiveram sua soberania ruída pelo avanço de outros atores internacionais e pela globalização/transnacionalização, por outro, convenientemente aos interesses daqueles novos atores, intensificou-se ou, ao menos, manteve-se, a premissa de que os Estados são soberanos para decidirem quem entra e sai de seus territórios, quem tem direito ao trabalho, quem é nacional ou quem é “alienígena” / indesejado. E o próprio estímulo recente à ascensão de governos de extrema direita, nacionalistas e conservadores, corrobora com essa suposição. A expressão cunhada foi legalismo autocrático (SCHEPPELE, 2018).

Trazendo à tona a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), exemplos de mudança radical na guinada da forma do poder institucional, observa-se que tais contemporâneas instituições estabelecem pautas com temáticas voltadas ao “crescimento econômico”, e não ao “desenvolvimento social”. De certa forma, o debate é canalizado para o primeiro tema, ficando evidente falta de interesse desses atores em viabilizar um efetivo desenvolvimento social nessa sociedade internacional. Por isso, o poder é presente, mas passa de forma despercebida, e exercido de forma indireta ou difusa (OLSSON, 2014). E tal realidade é intensificada, pela sociedade em rede.

É desnecessário dizer que este cenário é preocupante, complexo e de muitas facetas. A sociedade internacional reflete as relações interdependentes de seus atores internacionais, onde os anteriormente soberanos Estados se fragmentaram, sendo incapazes de eliminar tantos desequilíbrios. Devem-se levar em consideração ainda os organismos internacionais criados pelos próprios Estados, mas, principalmente, o fenômeno das poderosas empresas transnacionais, que atualmente detêm o domínio decisivo dos destinos do globo, estipulando regras, modelos e jogadores em seu jogo de poder.

Tendo como pressuposição esse contexto, problematiza-se neste texto, também, sobre aqueles que estão de fora da dualidade proletariado e detentores dos meios de produção. Até mesmo parece paradoxal falar dessas duas categorias frente à realidade modificada do capitalismo neoliberal globalizado. Contudo, essas categorias iniciais desenhadas no liberalismo clássico, são as que permanecem, malgrado haja uma recorrente noção imposta de que não mais existe dominação de subjugação de uma massa por alguns.

Na esteira do presente raciocínio, trechos da obra de Nunes (2003) são esclarecedores, a fim de contextualização:

À margem dos ganhos do ‘mercado livre’ têm ficado as pequenas e médias empresas (que constituem, na generalidade dos países, a base da estrutura produtiva e do emprego) e têm ficado também os países mais fracos e menos desenvolvidos, muitos deles enleados na teia infernal da dívida experta, uma espécie de ‘prisão perpétua por dívidas’. Os fatos dão razão ao velho Keynes, que há mais de cinquenta anos, advertia para os perigos da paralisação da atividade produtiva em consequência do aumento da importância dos mercados financeiros e da finança especulativa” (p. 85).

E, também, como complemento:

Neste mundo de comércio livre de barreiras físicas ou legais pretende-se que circulem livremente todo o tipo de bens (matérias-primas, semiprodutos e produtos acabados da indústria e da agricultura), serviços (incluindo os chamados <<produtos financeiros>>), capitais e tecnologia. Mas esta liberdade já não se aplica aos trabalhadores. Quanto a estes, os grandes centros imperiais procuram barricar-se nas suas fronteiras armadas, para evitar esta nova “invasão de bárbaros” (p. 81). (grifo nosso).

Fala que não se pode interpretar a globalização como um regresso aos tempos de capitalismo de concorrência:

[...] neste nosso tempo, os protagonistas quase exclusivos são os grandes conglomerados transnacionais, orientados por uma estratégia planetária, apoiados num poder econômico (e político) que anula em absoluto os mercados tal como os entendia a teoria da concorrência, apostados em controlar o processo de desenvolvimento econômico à escala mundial (p. 82).

Os pequenos empreendimentos comerciais e produtivos ficaram à margem. Muitos foram suplantados pela adentrada de grandes empresas e fábricas nos territórios/localidades em que se encontravam. Assim, aquela força de trabalho empregada por esses pequenos empreendimentos ou se submete ao que lhe é imposto por referidas grandes empresas, ou simplesmente ficam fora do jogo. Necessário levar em consideração o poder de mando sobre os governos, o que se chama de “chantagens econômicas” (NUNES, 2003).

Isto é, caso os governos não abram concessões para a instalação de determinada fábrica, por exemplo, ela retira sua planta e a realoca em outra localidade ou outro Estado, onde as vantagens sejam maiores. Existe uma subjugação palpável dos Estados. Nesse ponto, questiona-se até que ponto é válida a instituição de direitos trabalhistas mais fortes e se identifica, também, a dificuldade de implementação de novos direitos, por exemplo.

Nesse ritmo, a luta de classes já não se vê com nitidez, mas, não porque as relações entre classe patronal e empregados se tivessem pacificado, mas porque os conflitos estão em novos espaços, não mais locais, internos ou nacionais, mas se deslocaram para os espaços das CTNs [corporações transnacionais], das estratégias mundiais e das relações desterritorializadas (STELZER; GONÇALVES, 2009, p 10957-8).

A desterritorialização das relações humanas e de produção (para locais com diferença salarial marcante), capitalismo neoliberal ao extremo, o abalo da soberania estatal (summa potestas estatal não mais vislumbrada) e a emergência de novos atores, principalmente, delineiam relações jurídicas, comerciais e políticas que ocorrem à guisa da sociedade dos Estados. Conforme abordado neste tópico, existe uma dualidade, contudo, entre Estado mínimo para alguns casos, e Estado máximo para outros casos, a depender do que se convenciona pelo establishment.

Questiona-se se existe como o mercado realmente se autorregular – fazendo menção ao ideal de Adam Smith de que a mão invisível do mercado seria capaz de propiciar progresso e desenvolvimento – e como ficam os direitos dos que estão subjugados por esse mesmo mercado, à margem ou efetivamente fora dele. Sobre formas de valorização do desenvolvimento local e dos trabalhadores, abordar-se-á no último tópico.

3. Fomento do desenvolvimento local e dos direitos dos trabalhadores

A partir do raciocínio dos tópicos anteriores, parte-se do pressuposto de que não há perspectiva promissora de valorização dos direitos de trabalhadores e de promoção de desenvolvimento sustentável. A motivação para essa conclusão de fácil dedução é observar à volta e constatar a situação de esgotamento propiciada pelo capitalismo neoliberal e por todos os fatores e características sinteticamente esmiuçados nos itens anteriores. Por isso, se defende neste texto o fomento do desenvolvimento local e dos direitos dos trabalhadores - mais facilmente assegurados numa sistemática diferente da atual.

Os direitos dos trabalhadores, de caráter indivisível, foram construídos com base na noção de que compreendiam duas formas entre os consagrados desde a constituição da ONU: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais; os primeiros voltados para assegurar as liberdades e os segundos, o valor da igualdade (BRANDÃO, 2003).

A escala de evolução na forma de positivar cada vez mais os direitos dos trabalhadores teve, historicamente, sua dimensão ampliada no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Junto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, também, de 1966, regulamentaram as rubricas expressas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (BRANDÃO, 2003).

A partir de então, “solidificou-se o conceito de que o trabalho é feito para o homem e não o homem para o trabalho, tendo o trabalhador direito de ser tratado como um ser humano e não como instrumento de produção” (BRANDÃO, 2003, p. 90). Indubitavelmente, relevante marco conceitual no âmbito da política de atuação dos entes internacionais, a partir de então; e aqui em apertada síntese para contextualização.

É importante a conceituação de meio ambiente do trabalho também é enfatizada por Padilha (2002, p. 20), para a qual:

[...] é tudo aquilo que cerca um organismo (o homem é um organismo vivo) seja o físico (água, ar, terra, bens tangíveis para o homem), seja o social (valores culturais, hábitos, costumes, crenças), seja o psíquico (sentimento do homem e suas expectativas, segurança, angústia, estabilidade), uma vez que os meios físico, social e psíquico são os que dão as condições interdependentes necessárias e suficientes para que o organismo vivo (planta ou animal) se desenvolva na sua plenitude (destaque nosso).

Para mencionar as etapas da evolução da tutela da saúde do trabalhador, Oliveira (2002) apresenta quatro principais momentos históricos. No primeiro, ocorrido na primeira etapa do século XX, a OIT teve atuação na promoção da medicina do atendimento médicos aos trabalhadores no local de trabalho (a medicina do trabalho). O segundo momento ocorreu após o final da Segunda Guerra Mundial, marcado pela preocupação com a saúde ocupacional. Depois, surgiu a etapa da saúde do trabalhador, novamente, mas com um enfoque mais interdisciplinar, sem consecução de grandes êxitos, todavia.

Quanto a essa perspectiva de poucos êxitos, argumenta José Isaac Pilati:

Nas ações e processos que envolvem bens coletivos [aí inseridas ações de fito trabalhista, v. g.], o papel da jurisdição pós-moderna não é dar respostas formais, de leis abstratas, para dizer quem tem razão; e sim presidir a grande ágora de inclusão que é o processo coletivo pós-moderno. Trata-se de um novo paradigma, que os romanos não conheceram como tal, mas apontaram o rumo, já que o seu sistema era de democracia direta, em forma que lembra a mediação e arbitragem de hoje: o processo é das partes, a decisão é construída por elas com a intermediação do magistrado (PILATI, 2012, p. 125).

Esse autor faz comparações dos atuais ordenamentos com o direito romano, tecendo as pertinentes argumentações. No ordenamento daquele povo, alguns direitos não podiam ser mensurados, por serem constituídos e discutidos pela discussão popular (popular na acepção daquela sociedade). O que era dos romanos a eles pertencia, como uma espécie de condomínio de mão-comum, e não detidos por “pessoas jurídicas”.

Aí se insere a crítica de que meras formalizações de direitos inerentes aos seres humanos e, por conseguinte, aos trabalhadores, de nada adiantem quando não se concede a titularidade e a discussão aos destinatários, mas sim, a deixa ser discutida por cúpulas afeitas aos próprios interesses, unicamente. “Os romanos não viam lei e direitos certos, sob um reino. Preferiam a República, porque nela o povo decreta e o magistrado concretiza o Direito” (PILATI, 2012, p. 128).

O autor faz uma comparação do Estado de hoje de como era a organização do Estado romano e como atualmente o Estado se tornou o vilão dos seus próprios cidadãos quando deveria protegê-los. Tornou-se uma entidade suprema numa potestade de aristocratas. Essa é a primeira lição do sistema romano como contraponto. Perdeu-se o espaço de ágora da coletividade. A sociedade moderna não dispõe de instrumentos jurídicos que sejam efetivos de participação como tinha o povo romano. Como visto nos dois tópicos anteriores, a realidade transfigurou o Estado em uma dualidade: ora sem soberania, cooptado pelas forças de mercado; ora extremamente regulador.

Recapitulando o primeiro tópico, antes do século XVIII e em grande parte do século XIX, as constituições haviam se identificado com o desmantelamento do Estado absoluto e a edificação do Estado de Direito, à liberdade das pessoas, igualdade dos cidadãos, fraternidade e propriedade como direito dominial absoluto, e plenitude da autonomia privada. Porém, com o fracasso liberal, as agudas crises financeiras, os problemas sociais – e também ambientais, se agravaram.

Padilha (2018) registra a questão da monetização do risco, em que são quantificadas as indenizações financeiras para compensar os danos causados tanto ao meio ambiente quanto ao meio ambiente do trabalho e as condições dos trabalhadores – pressuposto de que valores monetários poderiam sanar danos irreversíveis. Na verdade, seria necessária uma mudança paradigmática de toda a concepção de trabalho, de empresa e, principalmente, de Estado. Este voltar a ser o que era na essência do contrato social, que acabou se desvirtuando e o Estado se tornando, em alguns aspectos, superestado.

Assim, o simples direito do dano não tem condições de responder às indagações trazidas pela irreparabilidade e irreversibilidade dos danos ambientais, violações de direitos humanos e dos trabalhadores. Somente um novo modelo jurídico de direito poderia vir a solucionar tais ameaças (PADILHA 2018; PADILHA; POMPEU, 2019).

Dando seguimento, a fundação da OIT se deu em 1919. A partir de reestruturação adotada na declaração de Filadélfia, no ano de 1944, a atuação da OIT aumentou para além da priorização da proteção dos direitos de condições de trabalho. Passou a atuar na proteção dos direitos humanos do trabalhador, sua essencialidade e indispensabilidade, por meio de ações em prol da elaboração de políticas e de programas internacionais para a melhoria das condições de vida e de trabalho o ser humano trabalhador. Também, na elaboração de normas internacionais do trabalho que orientem a aplicação de seus princípios nos Estados.

Aqui se destaca a atuação da OIT na defesa e proteção dos grupos mais vulneráveis, como mulheres, crianças, imigrantes, e em defesa da qualidade de vida e segurança no trabalho, e não essencialmente o trabalhador subordinado, mas de todos os trabalhadores e em todas as relações de trabalho.

A OIT tem uma filosofia que prega a intervenção do Estado nas relações econômicas, sociais e políticas para garantir os direitos humanos dos trabalhadores em todo mundo. Porém, há que se levar em conta que a intervenção estatal nos meios econômicos vai totalmente de encontro à sistemática econômica vigente do capitalismo neoliberal, intensificado pela globalização.

Documento de 2010 expedido pela OIT expõe os riscos profissionais novos e emergentes que podem ser causados por inovações técnicas ou por mudanças sociais ou organizacionais, tais como: novas tecnologias e novos processos de produção, por exemplo, nano tecnologias e biotecnologias. Novas condições de trabalho, por exemplo, cargas de trabalho mais elevadas, intensificação das tarefas devido à restrição de efetivos, más condições associadas à migração laboral, empregos na economia informal (PADILHA; POMPEU, 2019).

Como as pessoas não conseguem mais empregos por conta de vários fatores relacionados ao neoliberalismo e a globalização como, por exemplo, a substituição da mão de obra por tecnologias, acabam submetendo a quaisquer tipos de serviços precarizados, sem direitos ou mesmo funções autônomas que não dispõem de qualquer assistência estatal.

Depois da segunda metade do século XVIII e início do século XIX, quando as ideias do liberalismo político, que importava no afastamento do Estado da tutela individual, econômico, que valorizada a livre iniciativa e estimular a concorrência, proporcionaram o desenvolvimento do capitalismo, especialmente na França, Grã-Bretanha e, mais tarde, nos Estados Unidos, Alemanha, Países Baixos e Bélgica. Prevaleciam as codificações civis que tratavam sobre os princípios do individualismo e do materialismo, respaldado aquele do princípio da autonomia da vontade e este na garantia do direito de propriedade, que propiciava a acumulação de riquezas, ambos necessários para possibilitar ao indivíduo afirmar-se perante o estado (PILATI, 2012).

Nessa senda, há que se estabelecer um contraponto entre a noção da OIT que trabalho não é uma mercadoria, com a noção capitalista neoliberal, que torna impossibilitada a efetividade desse princípio, uma vez que o consumismo acaba aumentando cada vez mais, produzindo muitos bens desnecessários aos seres humanos, e que com isso, com essa produção desregrada, o meio ambiente é destruído, os ecossistemas são danificados, e surgem diversos questionamentos a serem respondidos da urgência de uma mudança de paradigma para se efetivar essa premissa.

As mudanças da modernidade, após a revolução industrial, passaram a exigir do direito um posicionamento a respeito das questões sociais e ambientais: economia de mercado, baseada na livre iniciativa e no acúmulo de capital. Ao mesmo tempo em que o modelo capitalista de produção provocou a degradação da qualidade de vida e da saúde da grande massa de trabalhadores, também causou um processo de degradação e devastação, sem precedentes, dos recursos naturais.

Dussel (2007) afirma que nenhum Estado moderno tem como base uma nação, mas sim, várias culturas e que quando o uso da diferença cultural é uma maneira de dominar os outros, deve-se defender a igualdade da dignidade humana. Nesse sentido, aposta no desenvolvimento de uma nova civilização transmoderna apoiada no respeito absoluto à visa em geral. Também, que a soberania é da comunidade política do povo, e não do Estado. É visão deveras utópica frente aos acontecimentos rotineiramente noticiados internacionalmente, mas com pertinência teórica.

Nesse sentido, as crises de refugiados causadas pelas mudanças climáticas, tão intensificadas pela atividade predatória humana, aliadas à falta de oportunidades mediante a financeirização do capital e pela substituição da mão-de-obra por máquinas, coloca em xeque toda a sistemática delineada na economia de mercado. O que fazer com os que “sobram”, que ficam “de fora”? Há que se levar em consideração que os refugiados são o “refugo da terra”, nas palavras de Hannah Arendt (1989); dessa forma, se encontram em situação ainda mais desfavorável, por conta de sua situação, ainda atrelada àquela noção desatualizada de nacionalidade e pertencimento.

É defendido por Padilha (2002; 2018), por exemplo, a concepção de que o Estado Liberal deveria ser suplantado pelo Estado Social. Contudo, conforme podemos verificar na realidade fática, o Estado Social além de se tornar um Estado “intrometido”, num “superestado”, altamente burocrático que não consegue dar conta de por em prática o que apregoa – a proteção dos direitos sociais e humanos com sua intervenção no meio privado – por conta de o Capitalismo com sua força destrutiva, ir tão de encontro que torna ineficazes quaisquer disposições em contrário. Esse superestado, ao invés de estar a serviço, coloca os outros a serviço.

Por isso, aqui se defende uma ideia de transposição desse paradigma para um novo, em que o Estado não seja o protagonista, visto que impossível que o seja. Mas sim, uma concepção de grupo, de coletividade, que deveria prevalecer. Ou, ao menos, um regramento que favorecesse os pequenos empreendimentos comerciais, industriais, produtivos e de serviços.

Esses empreendimentos são aqueles que atendem à esfera “social” do meio ambiente de trabalho. O sentimento de pertencimento a uma coletividade, a solidariedade existente, os hábitos e costumes, estão atrelados nessa relação próxima com o seu empregador, ou mesmo com os consumidores. Numa relação de subordinação clássica – dual proletariado e detentores dos meios de produção, liberal – hoje principalmente exemplificada em corporações transnacionais, inexiste uma esfera social. Existe uma despersonalização do trabalho, um rompimento de laços. Não sabem os trabalhadores para quem trabalham e, muitas vezes, para que trabalham.

A fragmentação das grandes empresas transnacionais (característica da transnacionalização), não e mera abertura de filiais. Há a despersonalização: diversas unidades de diversos nomes, terceirizadas, numa complexa estrutura utilizada para diminuir ao máximo os custos e aumentar, também ao máximo, os lucros dos acionistas e CEOs (presidentes/diretores) de tais conglomerados (KORTEN, 2001; SELL, 2003). Há, portanto, a mecanização extrema da função social representada pelo trabalho.

Por outro lado, no modelo do Estado Social há uma hipertrofia do que é público e uma atrofia do privado. O Estado, nessa modulação, cresce, acentuadamente, para atender às infinitas demandas sociais, para ocupar o espaço que o paradigma liberal havia deixado como esfera de não-intervenção. Desta forma, o público passa a ser identificado como Estatal (PISKE; SARACHO, 2018). Isso repercute no direito dos trabalhadores.

Verifica-se o abismo que chegou o Estado Social pela sua ineficiência. Exatamente a redução do público ao estatal conduziu aos excessos perpetrados pelo Estado Social e sua doutrina. A essência do Estado Social gravita na premissa da alta tributação para propiciar programas sociais de alta qualidade. Porém, o que se observa é a falta de qualidade nessa contraprestação, e que os montantes arrecadados servem, em grande quantidade, para manter sua própria estrutura funcional e burocrática, sem falar na cooptação pelo sistema financeiro.

Em 2015, com o advento da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, os Estados – sujeitos do Direito Internacional – aprovaram dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável, abrangendo, de forma ampla, as esferas do desenvolvimento multidimensional. O objetivo 8 trata especificamente “trabalho decente e crescimento econômico” (ONU, 2015). A partir desse marco, as agências da ONU, incluindo a OIT, têm pautado suas políticas para estarem em consonância com os objetivos de desenvolvimento sustentável.

Porém, todos os arcabouços regulamentares e prospectivos da ONU/OIT estão moldados para serem implementados no formato institucional vigente. Só que esse mesmo formato é o causador da insustentabilidade e de todos os problemas dela decorrentes (degradação do ambiente de trabalho, crises de migração/refugiados, conflitos armados, desigualdade, pobreza, desemprego, etc.). Não há perspectivas promissoras de implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no enquadramento existente. Será um jogo de soma zero. Um círculo vicioso, urgindo a necessidade de um novo paradigma.

Mesmo com o fortalecimento das instituições jurídicas, das legislações, das políticas de acolhimento, fixação de direitos humanos, sabe-se que na configuração econômica capitalista globalizada, não se vislumbra efetividade, uma vez que os problemas são eles mesmos gerados por essa realidade. Há que se romper com a primeira fase do ciclo. Não adianta criar instrumentos paliativos que continuarão retroalimentando o ciclo – geração cada vez maior de insustentabilidade, desigualdade, nacionalismos, discriminações, encerramento de fronteiras, e, claro, fragilização do próprio trabalho digno que tanto se milita proteger. Ou, ao menos, adaptar com os aparatos existentes, levando em consideração as causas estruturais profundamente enraizadas, em toda sua complexidade.

Conclusão

A questão da intervenção estatal traz à tona um sem número de discussões, a favor e contra, todas com seu devido respaldo e relevância. Porém, no âmbito do fomento de um desenvolvimento sustentável – aí inseridos os direitos dos pequenos e médios empreendimentos à participação na economia, direitos humanos dos trabalhadores e solidariedade – a inserção do Estado no meio econômico, por meio de regulamentos e incentivos, é de suma importância.

Os ideários do liberalismo clássico imaginavam um sistema no qual a liberdade de negociação e concorrencial era perfeita, isto é, automaticamente inseriria e teria capacidade de inserir a todos que dele participassem – ou ousassem participar -, tanto produtores quanto consumidores. O mercado se regularia por ele mesmo.

Contudo, as referidas premissas do laissez-faire logo se provaram inverídicas, levando – aqui em apertada síntese – a modificações teóricas a fim de suavizar o distanciamento absoluto do Estado da atividade econômica e social, o que resultou no ideário do welfare state. Esse Estado social foi e tem sido alvo de críticas, tanto por ser um adendo para mascarar a desigualdade gerada pelo capitalismo quanto por acabar se tornando, em muitos casos, um Estado máximo onde deveria ser mínimo, e vice-versa.

Aliado a essa conjuntura, o fenômeno da transnacionalização (com a ascensão de novos atores internacionais) fomentado pela globalização tecnológica, de estreitamento de distâncias e financeirização do capital, acabou por intensificar ainda mais a agressividade do que veio a se chamar neoliberalismo, achatando, por assim dizer, as poucas benesses prometidas e intentadas pelo welfare state.

Atores como as corporações transnacionais, organizações não governamentais e outros movimentos organizados “em rede”, têm abalado as estruturas dos antes soberanos Estados, delineando negociações e projetos de grade magnitude, mas completamente alheios aos regramentos clássicos de Direito Internacional (dos quais os Estados são os sujeitos). E, também, soma-se a influência desses atores na cooptação de governos (executivo, legislativo e judiciário), moldando-os conforme seus interesses, inclusive de forma decisiva em eleições e políticas públicas.

Dessa forma, aspectos tão debatidos como o consumismo desregrado, destruição do ambiente natural, crise de valores humanos, corrosão do amálgama social, dentre outros, vão ao total encontro da fragilização e desmantelamento das legislações trabalhistas e no alijamento dos pequenos produtores, empreendedores e comerciantes locais do cenário econômico. A relação empregatícia pautada numa relação pessoal se torna artificiosa e sem ligação humana, sem falar na subordinação a conglomerados sem correlação com a localidade, distantes da realidade social e cultural de onde estão instalados, e cujas unidades de trabalho/produção estão espalhadas por diversos países, a depender da comodidade propiciada pelas legislações de cada um e pelas concessões realizadas por seus governos.

Por derradeiro, entende-se, em linhas gerais, que a atuação do Estado enquanto interventor e regulador do cenário econômico é contribuição ao menos paliativa para fomentar um desenvolvimento mais sustentado tanto para o comércio, as indústrias, os produtores e os empreendimentos locais – que são geradores de empregos e receitas públicas – quanto para assegurar a manutenção de direitos laborais e humanos ainda ao menos positivados. E isso não somente em âmbito nacional, mas sim, mundial.

Levando-se em consideração a pequena fração, de tão amplo tema, abordada neste texto, é imperativo ressaltar a urgência e importância de se estudar mais a fundo as particularidades e recortes possíveis para análise, o que, poderá ser desenvolvido em pesquisas ulteriores.

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Submetido em: 06 mar. 2021.

Aceito em: 31 dez. 2022.