BLOCKCHAIN E OS ATIVOS DIGITAIS EM JOGOS

Rodrigo Almeida Magalhães

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Minas Gerais.

amagalhaes@ig.com.br

Laiane Maris Caetano Fantini

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Minas Gerais.

escritorio@laianecaetano.adv.br

Resumo: O artigo busca demonstrar a relevância jurídica do tema para o mundo atual dos jovens que traz peculiar relação entre jogos digitais, bens digitais, blockchain e direito, explorando suas fronteiras. A partir do estudo de literatura especializada em cada uma dessas áreas, são apresentadas noções gerais para melhor compreensão do problema, que busca responder à pergunta se é, de fato, possível aplicar blockchain de forma a garantir a efetiva propriedade dos ativos adquiridos ou conquistados dentro de um jogo digital. Analisado tais aspectos, buscar-se-á confirmar a hipótese, no sentido que as aplicações em blockchain games, embora num primeiro momento não tenham apresentado importantes diferenciais para o desenvolvimento e comercialização dos jogos, cada vez mais essa tecnologia tem mostrado seu potencial disruptivo para provocar um novo olhar sobre o mercado de bens digitais e a indústria de jogos. Para fundamentar tal opinião, adotou-se o método qualitativo dedutivo através de pesquisa bibliográfica.

Palavras chave: Blockchain. Propriedade. Bens Digitais. Jogos Digitais.

Blockchain and the digital assets in games

Abstract: The paper focuses on demonstrating the legal relevance of the theme for the current world of young people which brings a peculiar relationship between digital games, digital goods, blockchain and law exploring their frontiers. From the study of specialized literature in each of these areas, general notions are shown to better understand the problem, which seeks to answer the question about if is it possible to use blockchain in order to guarantee an effective ownership of the assets acquired or conquered within a digital game. By analyzing those aspects, it will confirm the hypothesis in the sense that applications in blockchain games, although at first sight didn´t present important differentials for the development and commercialization of games, this technology has shown its disruptive potential to provoke a new look at the market of digital assets and the videogame industry. To support such an opinion, the author adopt the qualitatively deduce method with bibliographic research.

Keywords: Blockchain. Property. Digital Assets. Games.

Introdução

O mercado de bens digitais, baseado no caráter econômico de dados, é um reflexo da Sociedade da Informação. Nicholas Negroponte (1995) apresenta uma perspectiva de transformação da era de átomos para a era de bits, em que ambos coexistem e por vezes, se complementam, e demonstra o caráter valorativo dos dados ao longo dos anos, discussão cada vez mais relevante dentro da Sociedade da Informação.

No contexto de uma sociedade que tem sido desenvolvida a partir de dados, problemas atuais passam a demandar soluções igualmente contemporâneas. Não é possível lidar de maneira eficiente com questões como Big Data, dados informatizados ou segurança em rede sem lançar um novo olhar sobre a lei propor respostas à altura.

Nesse sentido, o estudo das formas de assegurar propriedade de ativos digitais leva à análise não apenas das teorias clássico-jurídicas e dos institutos normativos, mas pode buscar soluções também em novas tecnologias, como a blockchain. A ideia vai além da regulação pelo próprio “código” mas perpassa por essa noção para a análise sob a perspectiva jurídica e, até regulatória.

A blockchain se tornou uma das mais promissoras tecnologias do nosso tempo, e pode fornecer uma nova perspectiva para o mercado de jogos digitais. Dentre as expectativas criadas para a blockchain em jogos, existe a possibilidade de se conferir direito real de propriedade aos ativos digitais dentro do jogo, o que significa torná-los não fungíveis, cambiáveis e independentes do desenvolvedor do jogo.

Este estudo não pretende abordar microtransações realizadas por menores de idade que, pelo direito, correspondem a condutas socialmente típicas mas juridicamente avolitivas e demandam profundos debates em torno de uma nova hermenêutica para a Teoria das Capacidades prevista no Código Civil. Também e não menos importante, não é foco deste trabalho o estudo aprofundado da Lei de Software (9.609/98) e da Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018), embora de alta relevância quando se trata de qualquer direito digital.

Dito isso, na primeira parte objetiva-se contextualizar o leitor sobre a delimitação da pesquisa, que abrange apenas bens digitais relacionados a jogos academicamente caracterizados como digitais. Na segunda parte, apresenta um relevante problema dentro das microtransações realizadas dentro desses jogos, propondo uma análise acerca da propriedade dos bens digitais adquiridos.

O capítulo seguinte traz noções basilares sobre blockchain, essenciais para entender como essa tecnologia pode ser uma solução ao problema estudado, seguido de um capítulo que trata das principais expectativas do uso dessa tecnologia no mercado de jogos digitais, que avança de forma tímida, embora tenha exemplos promissores como o jogo Cryptokitties. O capítulo final buscará demonstrar a solução ao problema proposto, explicando como a blockchain pode ser usada como prova de propriedade de bens digitais de um jogo.

1. Do corpóreo ao incorpóreo: bens digitais no contexto dos jogos

1.1. Bens ou coisas: noções gerais

Todo direito subjetivo tem um objeto sobre o qual recai, e esse objeto pode ser um bem ou uma coisa. Doutrinariamente, a diferença entre esses institutos não é pacífica.

Para alguns autores, bem é considerado a partir de um critério de economicidade, podendo ser uma utilidade econômica ou não econômica (VENOSA, 2019; FARIAS e ROSENVALD, 2011; MONTEIRO, 2016). Entretanto, considerando os aspectos do direito civil, o valor econômico não é mais relevante para a conceituação de bem, considerando que existem bens cujo valor a seus titulares decorre de estima, como retratos de família (LOBO, 2016. p. 213) ou até certos bens digitais adquiridos ou conquistados dentro de um jogo. Como bem lembra Negroponte (1995), alguns bits valem mais que outros.

Dentro desse conjunto existem os bens jurídicos, tidos como aqueles que o direito considera relevante para tutela. Pereira (2019) os considera como bens jurídicos em sentido amplo, donde se inserem os bens jurídicos em sentido estrito, caracterizados pela abstração ou materialidade, e as coisas, materiais ou concretas. Então, inspirado pelo classicista Clóvis Beviláqua, “sob o aspecto de sua materialidade é que se faz a distinção entre a coisa e o bem” (PEREIRA, 2019). Essa noção de materialidade está no Código Civil, já que no Livro II “Dos Bens” trata de bens corpóreos e incorpóreos e no Livro III “Direito das Coisas”, bens corpóreos, e é também adotada por outros autores, como Venosa (2019), Farias e Rosenvald (2011) e Monteiro (2016).

A despeito da noção clássica que diferencia bens e coisas a partir do critério material, existem autores (ROSENVALD, 2011; TAVEIRA JR. 2018) que defendem a aplicação da tutela dos direitos reais aos direitos digitais. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu o direito de usucapião de linha telefônica na Súmula 193 e ou a eventual possibilidade de se exercer proteção possessória de conta de email, rede social ou aplicativo de comunicação em relação ao spam ou ferramentas de disparo em massa de mensagens.

Os bens digitais, caracterizados por sua natureza imaterial, serão tratados a seguir.

1.2. Um breve estudo sobre os Bens Digitais

A noção de bens digitais parte da ideia de desmaterialização enquanto perda da forma material em detrimento de uma nova forma, virtual. Podem ser definidos de forma ampla como qualquer arquivo digitalizado disposto em dados em formato eletrônico e uma de suas principais características é a capacidade de uso simultâneo por várias pessoas, sem comprometer sua natureza (TAVEIRA JR, 2018).

Num aspecto técnico, bens digitais podem ser definidos como um registro eletrônico individualizado. É o que disciplina a UFADAA (Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act), na Seção 2 (10):

Ativo digital (digital asset) corresponde a um registro eletrônico no qual o indivíduo tem um direito ou interesse. O termo não abrange um bem subjacente (underlying asset) ou obrigação legal (liability), a não ser que cada um deles corresponda a um registro eletrônico por si só. (tradução livre).

Segundo Taveira Jr. (2018), os bens digitais podem ser considerados enquanto qualquer produção criada e armazenada em contexto virtual, com fácil reprodutibilidade, conectividade, não taxatividade e relatividade valorativa, correspondendo a nomes de domínio, avatares, músicas, imagens, aplicativos, e-books, perfis em redes sociais e jogos digitais e os itens adquiridos dentro desse ambiente, como roupas, skins, moedas, etc.

Em termos normativos, não existe no Brasil uma abordagem legislativa direta sobre os bens digitais, seja no Marco Civil da Internet, na Lei do Software ou até na Lei Geral de Proteção de Dados pessoais. Entretanto, podem ser classificados a partir dos critérios previstos no Código Civil.

Bens digitais seriam, então, bens móveis (art. 82), não consumíveis e, via de regra, não divisíveis (art. 87). Podem ser considerados, num geral, como bens fungíveis[1] (art. 85 e 86), apesar de existiram bens digitais insubstituíveis, como fotos pessoais que se perdem. Considerando aspectos da titularidade, os bens digitais podem ser públicos (art. 98) ou privados e ainda, podem ser principais, por ter existência sobre si, ou acessórios (art. 92).

Podem ainda ser singulares (art. 89) ou coletivos. Contudo, considerando a noção geral de bens digitais, estes não se enquadram perfeitamente na definição legal de universalidade de fato, pois se referem a bens dotados de materialidade e nem sempre tem destinação unitária[2], nem na universalidade de direitos, considerando que existem bens digitais sem valor econômico (TAVEIRA JR, 2018).

Os bens digitais estão intrinsecamente relacionados com a evolução dos jogos digitais, a ponto de, considerando o cenário atual de mercado, serem poucos os jogos que não possuem, dentro de seu sistema, algum tipo de bem digitalizado. Independente do jogo oferecer um produto ou um serviço, a característica de bem ou ativo digital se mantém.

1.3. Definição de Jogos Digitais[3]

Embora inexista um consenso acadêmico para a definição objetiva de jogo, estudiosos que se dedicam ao assunto partem das suas características tendo por base as ideias tratadas por Huizinga em sua obra Hommo Ludens. Na teoria clássica, jogo é uma atividade voluntária, exercida segundo regras livremente consentidas que se tornam obrigatórias, “acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida quotidiana” (HUIZINGA, 2005. p.33). Para Salen e Zimmerman “um jogo é um sistema no qual os jogadores se envolvem em um conflito artificial, definido por regras, que implica um resultado quantificável” (2012, p.95).

A par das diversas categorias de jogos, há os jogos analógicos, construídos a partir de uma estrutura física, tais como jogo de xadrez, damas, jogos de baralho, dentre outros. Em sentido oposto, existem os jogos digitais, que, apreendidos inicialmente a partir de uma criação em ambiente imaterial, encontram, na atual acepção de jogos, elementos de programação e conectados à rede (SALEN e ZIMMERMAN, 2012). Complementando a definição, jogos digitais podem também ser conceituados como:

Atividade voluntária, com ou sem interesse material, com propósitos sérios ou não, composta por regras bem definidas e objetivos claros, capazes de envolver os (as) jogadores (as) na resolução de conflitos e que possui resultados variáveis e quantificáveis. Esta atividade deve ser gerenciada por software e executada em hardware. (MIRANDA e STADISZ, 2017)

Jogos digitais[4] são fortemente relacionados à noção de interatividade, por estarem conectados em rede, e por processarem uma série de informações de forma precisa, conferindo uma resposta rápida ao jogador. O fato de utilizarem uma plataforma física como instrumento acesso, como um console[5] ou celular, não descaracteriza a sua natureza.

Existem inúmeros tipos de jogos digitais e por essa razão, o objeto de estudo será delimitado àqueles que permitem microtransações, ou seja, transações financeiras realizadas dentro do ecossistema dos jogos digitais, por meio do fornecimento de moeda “real” para a troca de ativos de jogo, como itens (cosméticos ou funcionais), melhoramentos, moedas de jogo (NEELY, 2018) ou personagens[6]. São contratos do tipo business to consumer.

Bens virtuais, numa perspectiva de mercado de consumo, podem também ser definidos como um conjunto de ativos digitais produzidos em massa e comprados e vendidos como mercadorias de consumo convencionais (MACEDO; VIEIRA, 2018). As microtransações são, conforme os autores, um mercado de bens virtuais[7].

Como exemplo de jogos que permitem microtransações, há os MMORPG (Massively Online Roleplaying Game) como World of Warcraft (Blizzard Entertainment, 2004), os fremium games com download gratuito e oferta de produtos e serviços em loja dentro do jogo como Fortnite (EpicGames, 2017), League of Legends e Valorant (Riot Games, 2020), jogos de cartas digitais colecionáveis como Magic: The Gathering Arena (Wizards of the Coast, 2018) e os FPS (First Player Shooting) como Star Wars Battlefront II (EA Games, 2017).

As microtransações são responsáveis pela maior parte das receitas dentro do mercado de jogos digitais e movimentam valores expressivos, com crescimento ano a ano. Segundo pesquisa realizada pela NEWZOO (2020), o mercado global de jogos deste ano gerará uma receita aproximada de US$ 159 bilhões de dólares, principalmente em meio à pandemia (NEWZOO, 2020), em que os jogos, mais do que nunca, se tornaram uma forma de escapismo.

Nesse mercado de bens virtuais dentro dos jogos, nas microtransações realizadas diariamente os bens adquiridos pelos jogadores são a ele transferidos a título de posse, como uma licença limita para uso. Em outros termos, os jogadores pagam por um bem digital mas sem poder exercer sobre estes qualquer direito de propriedade.

2. A “falsa” propriedade dos ativos de jogo digital

A discussão a respeito da propriedade de bens digitais é alvo atual de debate no do cenário jurídico acadêmico. Muitos estudos se voltam para análises sob a ótica do Direito Sucessório e como, sob o ordenamento jurídico pátrio, esses bens podem ser objeto de transmissão por herança (TAVEIRA JR, 2018, p. 29). Para fundamentar esse debate, faz-se a reflexão sobre a noção de posse e propriedade dos bens digitais.

Essas considerações são igualmente relevantes no espectro dos jogos digitais. Jogadores em todo o mundo despendem vultosas quantias investindo em conteúdo virtual de jogos sem qualquer segurança a respeito desses direitos de uso que são adquiridos, principalmente porque a nenhum deles é conferido direito de propriedade.

As desenvolvedoras de jogos ou os responsáveis por sites que fazem a intermediação na venda de jogos digitais, como a Steam (VALVE, 2003) e a GOG (CD Projekt, 2008) deixam expresso no contrato com o consumidor que podem se valer de arbitrariedades em relação aos bens digitais adquiridos ou conquistados, vez que os ativos digitais adquiridos são de propriedade das desenvolvedoras, cuja posse é transferida temporariamente aos jogadores por meio de uma licença de uso.

Nos termos de Licença de Uso da Blizzard (2018), responsável por World of Warcraft, a empresa se coloca como proprietária de todos os componentes visuais, narrações, personagens e itens,proibindo inclusive coletar itens do jogo para vendê-los fora da plataforma da empresa. A desenvolvedora se reserva ainda no direito de desativar, suspender ou encerrar a conta do usuário caso constate violação aos termos deste contrato, situação em que o usuário irá perder o acesso a todos os bens digitais conquistados ou adquiridos dentro do jogo. Nessa mesma toada são os termos de uso da Wizard of the Coast (2019), da Epic Games e o Acordo de Usuário da EA Games (2019).

Riot Games, as cláusulas 3 e 4 dos Termos de Serviço (RIOT GAMES, 2020) disciplinam sobre a licença limitada de usuário em relação aos serviços e produtos digitais da empresa protegidos por propriedade intelectual. O jogador deve usar esse conteúdo digital apenas para fins individuais e não comerciais sob pena de cancelamento da licença, sendo “não exclusivos, intransferíveis, não sublicenciáveis, revogáveis e limitados”. A Riot se reserva ainda no direito de “excluir, alterar, mover, remover, re-empacotar, re-precificar ou transferir todo e qualquer conteúdo do jogo, inclusive o conteúdo virtual”, sem aviso prévio ou responsabilidade perante o usuário.

A posse dos bens digitais em jogos tem fundamento não nos direitos reais, mas na licença de uso que no país é respaldada na propriedade industrial (Lei 9.279/96) e na licença de uso de software (Lei 9.609/98). Ao adquirir esses ativos digitais, os jogadores passam a figurar como possuidores, cuja posse é exercida de forma restrita e sujeita às limitações impostas pelo titular, que no caso normalmente é a empresa desenvolvedora ou distribuidora do jogo.

Essa posse, poder de fato sobre o bem (art. 1.196 do Código Civil), tem fundamento na ideia de posse de bem imaterial, como dados, senhas, acessos ou tecnologias, seriam poder de fato ou de direito.

Porém, é somente a propriedade, direito fundamental respaldado na Constituição da República, art. 5ª caput e incisos XXII e XXIII e no Código Civil de 2002, que assegura ao titular os atributos de uso, gozo, disposição e direito de reaver o bem de volta para si de quem injustamente o detiver (art. 1.128 do Código Civil).

Segundo Milagres (2019), citando Francesco Galgano:

[...] é o direito de propriedade que possibilita uma maior proteção jurídica sobre um bem, enquanto os outros direitos reais são mais limitados, tendo seu exercício condicionado ao direito de propriedade alheio. Consequentemente, a posse ligada ao direito de propriedade possui maior proteção jurídica do que a atrelada aos demais direitos reais e, portanto, apenas essa é uma posse plena.

Tradicionalmente visto como um direito que liga uma pessoa a um bem tangível, o reconhecimento de novas gerações de direitos intangíveis tem levado a uma reformulação do direito dos direitos reais:

Atualmente, vemos um crescimento da importância da propriedade intelectual, seja por meio da indústria do entretenimento que demanda proteção para os programas de computador, para as músicas, para os filmes e para os jogos em geral; seja por meio da indústria que necessita das proteções patentárias para suas invenções e para os seus modelos de utilidade com aplicações industriais. (ROHRMANN, 2017)

As empresas desenvolvedoras, enquanto proprietárias dos ativos de jogo, acabam concentrando grande poder com esses bens. Podem, por exemplo, criar um item raro, agregar valor e, a partir de então, controlar a oferta desse diante de uma grande demanda, seja podendo replicar milhares de cópias idênticas desses bens raros sem que os usuários tomem conhecimento ou sem que isso reduza o valor do item. Podem ainda excluir esses bens digitais das contas do usuário, sem qualquer responsabilidade por reembolso (segundo os termos analisados), ou ainda, banir a conta de usuário sem qualquer estorno por todos os bens digitais que estavam a ela associadas. Ainda, um jogo pode simplesmente deixar de ser disponibilizado, encerrando todas as contas ativas, sem prestar contas a nenhum usuário a respeito dos ativos digitais que cada um adquiriu.

Repensar o sistema atual de posse desses bens digitais leva estudar à busca de soluções inovadoras com o escopo de conferir maior segurança aos jogadores. A blockchain tem potencial para tornar isso possível.

3. Os principais aspectos da tecnologia blockchain

Blockchain[8] apresenta uma relevante melhora dentro do panorama de coleta e armazenamento de dados. Pode ser definida como uma tecnologia de informação distribuída ou banco de dados distribuído (DTL – distributed ledger technology) consistente num conjunto de blocos de dados ligados por uma “corrente”, que garantem a integridade histórica da informação por meio do uso do código hash[9] criptografado e ligado ao bloco anterior e pela prova de trabalho.

As transações existentes dentro de cada bloco são realizadas por meio da transferência de dados de carteira a carteira, em que cada uma delas possui uma chave pública (um endereço), atrelado a uma chave privada. A combinação dessas chaves permite acessar o conteúdo da carteira, um token não fungível (ou NFT, de non-fungible token), podendo transferi-lo a outras carteiras. Logo, cada criptoativo corresponde a um token. O poder de acessar o conteúdo de cada carteira é conferido apenas a quem detém as duas chaves compatíveis, e não a quem se dedica a validar as transações existentes nos blocos.

Em cada bloco existem inúmeras transações e cada transação adicionada a um novo bloco é validada e inserida dentro desse bloco (BAMBARA, 2018). Com a prova de trabalho (PoW – proof of work), ou seja, a verificabilidade das informações nos blocos por diversos “observadores”, esse sistema garante complexidade computacional que dificulta a sua adulteração e faz com que a informação ali contida se torne íntegra, dado que publicamente verificada.

Dessa forma, ainda que exista um “custo de escrita” (WUST, 2018; BAMBARA, 2018) para criação de cada bloco, o custo para refazê-la é consideravelmente maior, reduzindo as possibilidades de adulteração. Em outros termos, quanto mais antiga a informação dentro dos blocos, maior o trabalho necessário para adulterar essas informações, uma espécie de tolerância “bizantina” para os erros.

Karl Wüst (2018) elenca as propriedades mais relevantes dessa tecnologia, como a verificabilidade pública dos blocos, a transparência, a integridade, a redundância e a confiança. Ainda, é uma tecnologia com custos reduzidos em comparação a métodos tradicionais de registro de informação e, num geral, dispensa uma autoridade central para verificar e confirmar cada transação realizada e registrada nos blocos.

Apesar da comum relação entre blockchain e Bitcoin, a tecnologia blockchain ganhou atenção para além das transações financeiras, reformulando conceitos como a distribuição do armazenamento em nuvem, smart contracts e bens digitais.

Smart contracts, ou contratos autoexecutáveis, foram idealizados por SZABO (1996) como um conjunto de promessas especificado em formato digital, incluindo os protocolos pelos quais essas promessas serão executadas. Consistem, em outras palavras, em transações digitais autoexecutáveis usando mecanismos de criptografia descentralizada (WERBACH, 2017).

Os contratos autoexecutáveis foram pensados com reduzidos custos de transação, o que o torna vantajoso o uso de blockchain para a transferência de bens digitais entre sujeitos. O Bitcoin conseguiu demonstrar como isso é possível (WERBACH, 2017) e a partir de então, outras aplicações começaram a ser pensadas e executadas.

Nos próximos anos, as possibilidades de uso da blockchain vão mudar os modelos de negócio em todos os tipos de indústria (BAMBARA, 2018). No mercado de jogos, isso já está ocorrendo, ainda que de forma tímida. Existem, atualmente, diversas plataformas de blockchain desenvolvidas exclusivamente para servirem de ferramentas na criação de jogos digitais e empresas de renome, como a Ubisoft, já estão estudando as possibilidades que essa tecnologia pode trazer.

Würst (2018) lança um olhar crítico sobre a necessidade do uso de blockchain, uma vez que existem outros recursos, tecnológicos ou não, que poderiam ser capazes de dar uma solução igualmente eficiente a alguns problemas de mercado[10].

A análise é importante inclusive para respaldar casos em que o uso dessa tecnologia se mostra realmente necessário e relevante, como a proposta deste estudo, que envolve a noção de propriedade de bens digitais.

4. O uso de blockchain em jogos: expectativas do mercado

Quando se pensa em blockchain, é muito comum correlacionar com o uso de criptomoedas, mas as possibilidades do uso dessa tecnologia vão além.              Uma delas é a blockchain aplicada a jogos digitais, ou Blockchain games, que podem ser definidos como jogos digitais desenhados e implementados a partir de tecnologias blockchain (MIN et al, 2019). Essa precisa definição não inclui, decerto, jogos ou plataformas que eventualmente aceitaram ou possam aceitar pagamentos em criptomoedas, como Bitcoin.

Segundo entrevista fornecida por Anne Puck, advogada responsável por iniciativas em Blockchain na Ubisoft (TAKAHASHI, 2018), através de blockchain, poderá ser possível criar uma identidade digital “única” para facilitar a verificação dos jogadores, comercializar jogos e produtos com maior rapidez e sem intermédio de plataformas de compra e venda, reduzindo o custo com as taxas de processamento das transações, tanto com as operadoras de cartão de crédito, bancos quanto das próprias plataformas que fazem a intermediação da venda.

Sob uma perspectiva crítica, a redução dos custos de transação, se por um lado agrega valor para os jogadores, de outro poderá refletir na perda de receita das desenvolvedoras ou das plataformas de vendas. Essa não é uma preocupação ignorada por um dos mercados de entretenimento que mais cresce no mundo.

Essa tecnologia pode trazer outros benefícios relacionados a novas oportunidades aos jogadores e maior segurança. Um deles, escopo deste estudo, diz respeito à propriedade dos ativos digitais dos jogadores, que no contexto atual pertencem à desenvolvedora, que cede o direito de uso aos usuários.

A negociação de ativos virtuais no jogo na blockchain por meio de contratos inteligentes permite transações ponto a ponto que podem ser acessadas por qualquer pessoa na blockchain, negando a necessidade de controle centralizado. Ao mesmo tempo, ele remove alguns dos problemas relacionados à fraude. (PROSSER, 2018. Tradução livre)

Como consequência ao direito de propriedade, seria possível aos jogadores a transferência de bens virtuais entre jogadores ou ainda, entre jogos diferentes. PROSSER (2018) cita como exemplo a situação em que o jogador ganha um ativo virtual em Super Smash Bros. e pode usá-lo em outros personagens de outros jogos produzidos pela Nintendo.

Jogos em blockchain permitem ainda aos jogadores, por meio de smart contracts, a troca suas propriedades digitais por criptomoedas que podem circular por toda a internet e ainda, “os itens de jogo não terão valor apenas a partir de um jogo em particular” (MIN et al, 2019).

Sob a perspectiva da propriedade dos bens digitais, a blockchain pode trazer uma nova ideia na relação entre jogos e trabalho, aprimorando a noção de “gold farming”[11] (DIBBEL, 2007), prática assim denominada para designar a rentável atividade de se conquistar bens digitais de um jogo e vendê-los a terceiros, em troca de “dinheiro real”. A blockchain viabiliza essas práticas, trazendo maior segurança àquelas pessoas que ganham dinheiro a partir da venda de ativos digitais obtidos dentro do jogo.

Apesar das expectativas, são poucos os jogos criados em blockchain que oferecem a possibilidade do jogador se tornar proprietário dos ativos que adquirir, executando essas transações através de smart contracts. Como demonstrado em tópico anterior, essa é uma situação real dos jogos digitais, que traz importantes implicações jurídicas, já que os jogadores não podem dispor livremente dos bens que possuem ante a falta de alguns elementos decorrentes do direito de propriedade.

4.1. Blockchain games na prática: o caso Cryptokitties

Analisando os termos e condições de alguns blockchain games, como Brave Frontier Heroes, Cryptodozer e My Crypto Heroes, todos baseados em Ethereum, os ativos digitais adquiridos dentro desses jogos pertencem às desenvolvedoras, prática já difundida em grande parte dos jogos digitais.

CryptoKitties[12], por outro turno, demonstrou a possibilidade de concreção das principais expectativas do uso dessa tecnologia para jogos (PROSSER, 2018). Não à toa, é um dos mais famosos jogos criados com a tecnologia blockchain para fins recreativos[13].

Lançado pela canadense Dapper Labs Inc. em 2017, o jogo se destacou pelo grande volume de microtransações realizadas e em 2019, já tinha atingido um volume de negócios de aproximadamente US$ 200 milhões de dólares (MIN et al, 2019).

Nesse game, os jogadores compram, colecionam e vendem vários tipos de gatos virtuais, organizados em “cards”. São três requisitos mínimos para jogar: um navegador de internet (Chrome ou Firefox), uma carteira digital compatível com o padrão de token não fungível (non fungible token - NFT) e Ether (criptomoeda usada na blockchain Ethereum, a qual o jogo foi criado). (CRYPTOKITTIES, 2018). Cada gato digital representa um NFT, ou seja, são inúmeros gatos indivisíveis e únicos, e o jogador é proprietário do NFT, que fica armazenado na sua carteira digital. Para cada transação dentro da blockchain, é cobrado um gas por conta da Ethereum, e uma comissão mínima devida à desenvolvedora.

As microtransações são feitas com smart contracts, e dependem do tempo de processamento dos blocos numa blockchain descentralizada e pública para serem confirmadas e sincronizadas com o sistema do próprio jogo. Com o uso desses contratos, é possível acompanhar as transferências de propriedade e verificar a propriedade dos ativos de jogo.

Apesar da importância de Cryptokitties para demonstrar a união entre jogos e blockchain, é importante mencionar uma das ressalvas apresentadas no estudo de Charlotte Ducuing (2019). A autora realizou uma análise crítica do jogo e demonstrou que, embora seja anunciado como uma blockchain descentralizada, a desenvolvedora Dapper Labs Inc. é uma autoridade responsável pelas transações, atuando como uma espécie de trader e controladora dos ativos digitais. Isso, segundo a autora, não apenas se trata de uma forma de publicidade enganosa que demanda a devida regulação, como também pode comprometer a confiança da rede e a propriedade desses ativos digitais (DUCUING, 2019).

Esses pontos são de grande importância para entender que não se trata de uma falha da blockchain per se, mas da postura da desenvolvedora responsável pelo jogo.

Ainda assim, a Dapper Labs Inc. tem o mérito de não apenas ter desenvolvido um jogo divertido, com regras simples – muitas delas sendo as regras da própria blockchain – mas também, pela capacidade de criar um jogo digital com uso de blockchain a partir de contratos inteligentes na Ethereum que, num aspecto geral, tem potencial de ser seguro e garantir a propriedade dos ativos digitais.

4. Blockchain como possibilidade de prova de propriedade dos bens digitais

Embora o uso da blockchain seja comumente defendido como uma solução de cunho inovador, outros recursos tecnológicos dão conta de atender as demandas de mercado (WUST, 2018). O registro para fins de proteção da Propriedade Intelectual, por exemplo, pode ser feito de modo eficiente por outros instrumentos sem o uso de blockchain, assim como o gerenciamento de uma cadeira de suprimentos, que poderia ser suficiente uma base rica de dados aliada a planejamento e comunicação.

No caso dos ativos digitais em jogos, o ponto de destaque está em não só registrar a propriedade no “tempo”, mas em poder transferi-la sem que seja preciso autorização da empresa responsável pelo jogo e permitir transparência sobre todo esse processo, garantindo, assim, o exercício dos direitos relacionados à propriedade, prefixados no Código Civil.

Os ativos digitais, segundo a UFADAA, correspondem a um registro eletrônico individualizado e, com o uso da blockchain, podem se tornar um token não fungível armazenado dentro da carteira digital do usuário. A tecnologia blockchain possibilitaria que cada bem fosse identificado através de um NFT, que ficaria armazenado na carteira digital do jogador, num ambiente fora do próprio jogo e sem o qual a desenvolvedora não teria poder de intervir.

A propriedade seria comprovada com o uso de uma blockchain pública ligada a esse token, usada como uma espécie de “carimbo de tempo”, contendo informações sobre o objeto digital, a identidade do proprietário e um código hash. Por isso, apesar das ressalvas apontadas por Wüst (2018), para o problema em comento a blockchain poderia ser uma solução viável.

Além de corresponder a um sistema distribuído de armazenamento de dados, sem um único servidor, pode trazer maior segurança em relação às microtransações, transparência nas regras do jogo e a possibilidade de cada jogador criar conteúdo próprio dentro do jogo (MIN et al, 2019). A expectativa é que jogadores poderão se sentir mais seguros em investir grandes montas em bens digitais dentro dos jogos, vender esses bens e até fazer especulação, mas sempre tendo assegurado que terá, sobre aqueles criptoativos, amplos direitos decorrentes do direito de propriedade. Embora sejam positivas as expectativas do uso de blockchain nos jogos para assegurar essa propriedade, existem questões importantes que precisam ser enfrentadas por desenvolvedores, pelo que serão citadas algumas.

Para um blockchain game poder aproveitar todas as potencialidades dessa tecnologia em benefício da indústria, ou deve desenvolver esse produto ou serviço usando um sistema descentralizado e não permissionado, ou então deve-se levar ao conhecimento dos jogadores a autoridade confiável por trás da confirmação das transações, por poder comprometer a propriedade dos ativos digitais que aparentemente é assegurada aos jogadores.

Ducuing (2019) chama a atenção para os aspectos de Cryptokitties que, embora aparentam ser descentralizados, as regras do sistema podem ser alteradas pela desenvolvedora, que se coloca numa posição de autoridade dentro dessa blockchain e compromete a confiabilidade da rede.

Isso pode levar a um problema envolvendo, inclusive, os problemas de oferta e publicidade dentro de uma relação de consumo, conferindo ao jogador brasileiro – no caso, consumidor – a possibilidade de recorrer aos instrumentos legais caso se sinta lesado por uma falsa promessa dos blockchain games.

Outro ponto é relacionado à segurança: como trazer maior segurança ao mercado e aos jogadores, garantindo que o bem digital transferido ou recebido tenha uma procedência legítima, evitando fraudes? Em outros termos, considerando que tal qual no papel, a blockchain tudo aceita, como garantir que, num tempo mais rápido que a leitura de cada bloco, possa verificar a origem legítima do bem digital transacionado? Se por um lado, num contexto de propriedade de um item de jogo garantida por blockchain, um jogador banido do jogo pode vender esses bens a terceiros e evitar prejuízo financeiro, por outro lado, o jogador pode usar uma espécie de “hack” para adulterar o sistema do jogo, conseguir assim um item valioso (aparentando, para terceiros, que esse item foi adquirido legitimamente) e imediatamente vendê-lo. Como impedir que pessoas má intencionadas usem essa tecnologia para ganhar vantagens indevidas e, às vezes, até ilícitas?

Nesses casos, uma solução precisaria vir da blockchain complementada por uma política da própria desenvolvedora. A Steam, sistema de vendas criado pela VALVE, embora não atue mais com criptomoedas, adota como política de segurança que a cada transação, deve-se aguardar um período até que a movimentação seja confirmada, com a maior segurança possível para as partes. Isso também poderia ser trazido para o blockchain game.

Essa poderia ser uma solução para o problema apontado, ou seja, para desestimular que jogadores, de má-fé, adulterem o jogo para obter itens valiosos e vendê-los imediatamente, a plataforma em que a transação é realizada poderia, por meio de um smart contract, estabelecer que a venda será confirmada dentro de determinado período, a partir da confirmação da desenvolvedora do jogo de que esse item foi adquirido de forma legítima. Trata-se de uma solução hipotética, dentro de várias outras possibilidades que a própria blockchain pode oferecer.

O uso da blockchain para conferir a propriedade dos bens digitais aos consumidores é um grande passo para o mercado digital, seja no comércio de músicas em formato digital, e-books, programas de computador e até jogos digitais.

Assim como nos demais bens digitais, o jogador, consumidor de jogo digital, pode ter para si uma série de bens digitais com possibilidade de exercer direito de uso, gozo, alienação e, inclusive, reaver de terceiros que injustamente os tiver. Cryptokitties já demonstrou ter essas características, levando em conta os seus termos de uso.

Num nível maior de abstração – posto que ainda não foram apresentados no mercado as aplicações práticas disso – é a possibilidade de portar esses bens digitais, ou seja, pode mudar a plataforma (física ou digital) do jogo e levar consigo os bens adquiridos, além de várias outras execuções apontadas nesse estudo.

De fato, os blockchain games têm se firmado definitivamente no mercado provocando uma ruptura no modo tradicional de transmissão de ativos digitais. Essa ruptura, porém, está criando um novo nicho na indústria, de modo que os jogos digitais por si tendem a continuar sendo desenvolvidos com controle da desenvolvedora, na forma como já conhecemos.

Ademais, existem desvantagens que colocam os blockchain games como um novo nicho de jogos, no lugar da substituição da forma com que atualmente a maior parte dos jogos digitais é produzida. Trata-se de uma tecnologia recente que tem se popularizado em razão das criptomoedas, e possui conceitos densos e difícil compreensão para quem não estuda ou trabalha na parte técnica de tecnologias digitais. Isso pode colocar os consumidores em situação de vulnerabilidade agravada. Não se olvide que o modelo atual de mercado, com o controle dos bens digitais por uma autoridade, normamente decorrente do licenciamento de direito autoral, é um método que tem servido convenientemente à indústria, daí o crescimento dos blockchain games à margem, mas com expressivos investimentos e expectativas de crescimento.

Conclusão

A sistemática normativo-jurídica pátria não trata especificamente dos bens digitais, mas apoiando-se na teoria clássica, de que estes seriam bens em razão de sua natureza abstrata, é possível enquadrar os ativos digitais dentro das classificações previstas no Código Civil.

Bens digitais, enquanto qualquer informação digitalizada dotada ou não de economicidade, estão intimamente relacionados com a evolução dos jogos digitais e a construção de um mercado de microtransações. Essas transações realizadas dentro dos jogos se tornaram uma das principais fontes de receita do mercado, e levanta questões importantes, como a titularidade dos ativos digitais que são adquiridos.

Tais ativos, consultando termos de uso de alguns dos principais jogos dos mais variados gêneros, são repassados aos jogadores a título de licença de uso, cedida pelos titulares de propriedade intelectual. Essa cessão, na forma de “posse”, não autoriza os jogadores, que adquirem esses ativos, a transferi-los a terceiros, a não ser que a desenvolvedora, titular dos direitos, autorize.

A tecnologia blockchain tem despertado a atenção de várias empresas na indústria de jogos digitais e, embora em alguns casos a sua aplicabilidade tenha se concentrado em fornecer possibilidades de pagamento com criptomoedas dentro das lojas dos jogos, a blockchain pode ser explorada de modo a garantir diversos ganhos para o jogador, para o mercado e para a comunidade.

Nessa toada, a blockchain pode ser usada para garantir aos jogadores o direito à propriedade dos bens digitais adquiridos dentro do ambiente dos jogos, assegurando a procedência dos bens, a infungibilidade dos itens como NFT (no sentido de serem únicos) e a possibilidade de transferência a terceiros. Cryptokitties, com as devidas ressalvas, mostrou que isso é possível.

Embora possa não parecer economicamente viável para as desenvolvedoras em razão do possível redução de receita, o uso de blockchain como forma de assegurar a propriedade dos ativos digitais dentro de um jogo é uma das mais promissoras aplicações dessa tecnologia, conferindo segurança aos jogadores, transparência, garantia de procedência e infungibilidade e redução dos custos de transação. O mesmo se aplica à possibilidade de uso de blockchain em relação à qualquer ativo digital.

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Submetido em: 24 jan. 2021.

Aceito em: 31 dez. 2022.

 



[1]    Leva-se em consideração a noção de fungibilidade no Código Civil, sendo os bens que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Embora não seja uma característica essencial, bens digitais podem ser escaláveis e nesse sentido, a noção de substituição é adequada.

[2]    Taveira Jr. (2018) coloca como exemplo o e-mail, que tem função principal de enviar mensagens mas também pode ter outras destinações, como armazenar arquivos ou recuperação de senha de outros e-mails.

[3]    Para fins práticos, o presente estudo tratará como sinônimo “bens digitais”, “bens virtuais”, digital assets e ativos digitais.

[4]    SALEN e ZIMMERMAN veem como sinônimos jogos digitais e eletrônicos. A autora discorda dessa visão, uma vez que existem jogos sem um sistema complexo de regras, imateriais e sem recursos de programação os quais podem ser classificados como “jogos eletrônicos”, como o Genius, ao passo que os jogos digitais, objeto deste estudo, são caracterizados pela interatividade, conexão em rede e uso de recursos de programação.

[5]    “Console” é o nome comumente atribuído às plataformas físicas para acessar jogos digitais, como o Play Station (Sony), X Box (Microsoft), Switch (Nintendo) e o recentemente lançado Stadia (Google).

[6]    Existem jogos que permitem a aquisição de personagens diretamente com dinheiro “real”. É o caso do Kombat Pack de Mortal Kombat 11, pacote vendido, por exemplo, na PlayStation Store contendo 6 personagens jogáveis adicionais. Vide: https://store.playstation.com/pt-br/product/UP1018-CUSA11395_00-MK1100KOMBATPACK. Acesso em: 20 de junho de 2020.

 

 

[8]    Nick Szabo, em 1990, publicou trabalho com noções da tecnologia blockchain aplicadas em contratos autoexecutáveis a partir de um reforço proativo (smart contracts). Satoshi Nakamoto (assim conhecido), foi autor de um whitepaper demonstrando a primeira aplicação prática da blockchain: o Bitcoin. Esses dois estudos representam importante marco teórico mundial da tecnologia blockchain.

[9]    Código Hash (ou função Hash) é uma espécie de impressão digital de um bloco, que usa o “cabeçalho” do bloco anterior, como forma de conectá-lo sequencialmente ao bloco atual, aplicando uma função criptográfica para gerar um uma série de 256 bits (SHA-256). (BAMBARA, 2018. p. 18)

[10]  Wust lista diversos casos práticos, dentre eles o gerenciamento de cadeia de suprimentos, em que, a seu ver, uma base de dados bem estruturada conjuntamente com planejamento e comunicação poderiam ser suficientes para as necessidades desses negócios. Outros exemplos dados são em relação à Internet das Coisas – pelo que entende que, em tese, apenas a automação seria suficiente – e o registro dos direitos de Propriedade Intelectual – que embora a blockchain possa facilitar o processo de prova de registro, o sistema de registro de patentes parece atender adequadamente esse objetivo.

[11]  “Gold farming” consiste na possibilidade de jogadores “cultivarem ouro” (ou outro ativo digital )dentro de um jogo e poder comercializá-lo dentro ou fora desse ambiente, em troca de dinheiro “real”.

[12]  É importante registrar que Cryptokitties não é o único jogo que aplicou, com sucesso, as propriedades da blockchain. Todavia, é um dos casos de maior sucesso, razão pela qual tem, neste trabalho, um espaço dedicado a seu estudo.

[13]  Embora seja normalmente considerado um jogo digital, dada a simplicidade da plataforma em termos de game design, regras e jogabilidade, alguns autores preferem categorizar Cryptokitties como uma blockchain gamificada (BRIDGWATER, 2019; MIN et al, 2019).