A PROTEÇÃO DO DIREITO À HABITAÇÃO NO TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS DO HOMEM: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Alexandra Aragão

Universidade de Coimbra, Portugal

aaragao@fd.uc.pt

RESUMO: O presente artigo visa aprofundar a compreensão dos contornos do direito à habitação, em intenso diálogo com a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos do Homem, por considerar que a interpretação dada pelo Tribunal Europeu ao direito humano consagrado no artigo 8º da Convenção Europeia não pode deixar de influenciar fortemente a jurisprudência dos tribunais superiores dos Estados Membros do Conselho da Europa. A evolução interpretativa do referido dispositivo tem contribuído para o desenvolvimento de uma proteção ambiental mais efetiva no sistema europeu. Com efeito, somente depois de percorrerem, durante décadas, os complexos trilhos judiciais e extrajudiciais da Justiça Estadual é que milhares de afetados por violações flagrantes do direito a um ambiente são conseguem o direito de tentar demonstrar perante o Tribunal Europeu de Direitos do Homem a gravidade da ingerência na habitação. Ao mesmo tempo, fica demonstrada a absoluta insuficiência das medidas previstas, prometidas ou adotadas pelos poderes públicos. A metodologia utilizada será indutiva, com uma análise jurisprudencial do Tribunal Europeu. Conclui-se que a seriedade de injustiças territoriais que decorrem da violação do direito ambiental à habitação exige instrumentos jurídicos mais eficazes, prospetivos e não reativos, que reflitam novas abordagens, preventivas e não reparatórias.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à habitação. Proteção ambiental. Tribunal Europeu de Direitos do Homem.

Protection of the right to housing at the European court of human rights: a jurisprudential analysis

ABSTRACT: The present article aims to deepen the understanding of the contours of the right to housing, in intense dialogue with the case law of the European Court of Human Rights, considering that the interpretation given by the European Court to the human right enshrined in article 8 of the European Convention cannot fail to strongly influence the jurisprudence of the higher courts of the Member States of the Council of Europe. The interpretative evolution of this device has contributed to the development of more effective environmental protection in the European system. Indeed, it is only after having traversed, for decades, the complex judicial and extrajudicial paths of State Court that thousands of people affected by flagrant violations of the right to an environment are able to demonstrate in front of the European Court of Human Rights the severity of the interference in housing. At the same time, it demonstrates the absolute insufficiency of the measures envisaged, promised or adopted by the public authorities. The methodology used will be inductive, with European Court jurisprudential analysis. Concludes that the seriousness of the territorial injustices that result from the violation of the environmental right to housing requires more effective, prospective and non-reactive legal instruments that reflect new, preventive and non-reparative approaches.

KEYWORDS: Right to housing. Environmental protection. European Court of Human Rights.

Introdução

Consagrado internamente desde 1976 no artigo 65 da Constituição da República Portuguesa, o direito à habitação[1] como direito humano é protegido internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[2], pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais de 1950[3], pelo Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais de 1966[4] e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000[5].

O objetivo do presente estudo é aprofundar a compreenção dos contornos do direito à habitação, também denominado de direito ao domicílio, em diálogo intenso com a jurisprudência, sabendo que a interpretação que o Tribunal Europeu tem feito do direito humano consagrado no artigo 8º da Convenção Europeia tem influenciado a jurisprudência dos tribunais superiores dos Estados[6]. Em especial, a constatação da evolução interpretativa do referido dispositivo convencional para o desenvolvimento de uma proteção ambiental no sistema europeu.

Na presente pesquisa, adotando-se uma abordagem metodológica indutiva, procede-se a uma análise da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relacionadas à proteção do direito à habitação, que tenha reflexos na proteção do meio ambiente. Foram selecionados 36 acórdãos proferidos entre 1990 e 2019 nos quais suscitou-se o artigo 8º da Convenção Europeia a partir de uma razão ambiental. O recorte do marco temporal foi assim definido por considerar que a jurisprudência em relação a essa temática, de modo mais específico, somente teve repercussão significativa em termos de precedentes no próprio Tribunal a partir de 1990, sendo pontuais julgados anteriores a essa data, intensificando-se os julgados somente a partir dos anos 2000.

O desenvolvimento organiza-se em três partes: na primeira, de caráter mais descritivo, é feita uma análise e exposição didática dos principais julgados, em seguida é discutida a questão da ingerência ambiental à luz dessas decisões e, por fim, coloca-se um aprofundamento das determinações do Tribunal Europeu para a tomada decisória dos países.

Porém, o uso do artigo 8º em contextos ambientais não é uma solução jurídica evidente. Os acórdãos que se analisam brevemente em seguida, proferidos pelo Tribunal Europeu ao longo de praticamente 30 anos, foram situações em que em que o dispositivo foi invocado, mas a ingerência ilícita do Estado não se deu pela força das armas, nem através de mecanismos de escuta, ou ações de vigilância, nem sequer por meio de decisões contestáveis relativas à titularidade da habitação. Aquilo que foi considerado como uma ingerência ilícita do Estado, foi apenas a emissão de fumo, poeiras, ruido e vibrações que resultam do desenvolvimento, da autorização, da tolerância ou da ausência de supervisão de rotineiras atividades produtivas, desenvolvidas pelo Estado ou por terceiros, no exercício de um simples direito de iniciativa empresarial. Trata-se de atividades de extração de matérias-primas, de fabricação de produtos para o mercado, de transporte, de lazer ou outras. Em qualquer caso, atividades tidas como úteis para o desenvolvimento do país, aparentemente benéficas para a sociedade e a economia, e supostamente favoráveis ao bem-estar dos cidadãos.

1. Súmula dos casos de jurisprudência sobre direito à habitação no tribunal europeu dos direitos do homem

A Tabela 1 apresenta 36 casos selecionados a partir da abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o direito ao domicílio nos últimos 30 anos, ordenados alfabeticamente pelo nome do recorrente, em regra o sujeito lesado de seu direito à habitação. Todos eles são casos em que o direito ao domicílio foi perturbado pelos impactes ambientais de atividades próximas do domicílio, configurando conflitos de vizinhança.

Tabela 1: Lista de casos por ordem alfabética de primeiro recorrente

 

Recorrente

Ano

Recorrido

Tema

1

Apanasewicz

2011

Polónia

indústria cimenteira

2

Bacila

2010

Roménia

indústria siderúrgica

3

Bor

2013

Hungria

transporte ferroviário

4

Borysiewicz

2008

Polonia

alfaiataria

5

Cordella

2019

Itália

indústria siderúrgica

6

Dees

2011

Hungria

transporte rodoviário

7

Di Sarno

2012

Itália

gestão resíduos

8

Dubetska

2011

Ucrânia

extração mineral (carvão)

9

Dzemyuk

2014

Ucrânia

cemitério

10

Fadeyeva

2005

Rússia

indústria do aço

11

Fagerskiold

2008

Suécia

energia eólica

12

Flamenbeaum

2013

França

transporte aeronáutico

13

Furlepa

2008

Polónia

oficina automóvel

14

Galev

2009

Bulgária

dentista

15

Giacomelli

2007

Itália

gestão resíduos

16

Greenpeace

2009

Alemanha

transporte rodoviário

17

Grimkovskaya

2011

Ucrânia

transporte rodoviário

18

Guerra

1998

Itália

indústria química

19

Hardy e Maile

2012

Reino Unido

energia (gás natural líquido)

20

Hatton

2003

Reino Unido

transporte aeronáutico

21

Ivan Atanasov

2011

Bulgária

extração mineral (cobre)

22

Kolyadenko

2012

Rússia

abastecimento de água

23

Kyrtatos

2003

Grécia

construção

24

Lopez Ostra

1994

Espanha

indústria de tinturaria

25

McGinley e Egan

1998

Reino Unido

militar (testes nucleares)

26

Mileva

2011

Bulgária

lazer noturno (clube de computadores)

27

Moreno Gomez

2005

Espanha

lazer noturno (bares e discotecas)

28

Oluic

2010

Croácia

lazer noturno (bar)

29

Pino Manzano

2012

Espanha

extração mineral (pedreira)

30

Powell

1990

Reino Unido

transporte aeronáutico

31

Ruano Morcuende

2005

Espanha

transformador de energia

32

Smaltini

2015

Itália

indústria siderúrgica

33

Tatar

2009

Roménia

extração mineral (ouro e prata)

34

Udovicic

2014

Croácia

lazer noturno (bar)

35

Walkuska

2008

Polónia

suinicultura

36

Zammit

2012

Malta

pirotecnia

Fonte: elaborado pela autora

Na apresentação, um a um, dos casos selecionados, seguiremos o critério da atividade que subjaz à violação do direito ao domicílio. Esta é a forma mais impressiva de retratar as realidades que configuram uma ingerência atual ou potencial no domicílio, pondo em causa o bem-estar e o ambiente. Convém frisar que se há casos em que ao Tribunal é pedida uma atuação ressarcitória, depois de a ingerência no domicílio ter terminado[7], em virtude dos danos sofridos enquanto a infração durou, outros casos há, em que é pedida uma atuação preventiva, mesmo antes de haver uma ingerência geradora de danos, mas apenas perante um fundado receio de dano.

Deste modo, organizámos os casos em 6 categorias de atividades: indústria, transporte, outras atividades produtivas, atividades não económicas, atividades de lazer noturno e extração mineral.

As atividades não económicas, são aquelas que são desenvolvidas no interesse geral da população e não em benefício de um operador económico que pretende obter lucro direto através do mercado. É o caso de cemitérios, estradas, transformadores de eletricidade, gestão de resíduos urbanos, armazenagem de água para abastecimento, ou lançamento de fogo-de-artifício.

Dentro de cada categoria organizámos os casos por ordem cronológica indicando, em traços muito gerais, os contornos do conflito subjacente e o sentido, positivo ou negativo, da decisão do Tribunal Europeu. Neste diagnóstico da jurisprudência, é importante ter em mente que a declaração de não violação do direito ao domicílio pode ser justificada por diferentes razões, desde a falta de prova da seriedade do dano, até à proporcionalidade da ingerência numa sociedade democrática (para utilizar a fórmula da Convenção Europeia). Considerando que, no exercício de uma certa contenção judicial, o Tribunal afirma recorrentemente considerar que as autoridades nacionais estão mais bem posicionadas para apreciar os contornos da questão, a absolvição do Estado pode não significar realmente a ausência de problemas ambientais graves. Aliás, a existência de mais do que uma queixa contra a mesma instalação, em que só à segunda vez é que o Tribunal condena o Estado, é bem reveladora das dificuldades sentidas pelos recorrentes. A título de exemplo, vejam-se os casos Powell (1990) e Hatton (2003), contra o aeroporto de Heathrow em Londres, Reino Unido, e os casos Smaltini (2015) e Cordella (2019), contra a indústria Ilva, de Tarente, Itália.

1.1. Atividades industriais

a) Caso Lopez Ostra c. Espanha (1994), violação do artigo 8º (nº 24)

Instalação de tratamento de resíduos sólidos e líquidos de uma tinturaria da indústria do couro não licenciada localizada a 12 metros da residência da família Lopez Ostra. Provoca fumos, cheiros pestilentos e ruído repetitivo desde 1988. As autoridades relojaram a família num apartamento próximo, arrendado pelo Município, mas a precariedade da habitação obrigou a família a procurar um novo local para viver. Os tribunais nacionais não reconheceram a gravidade da situação porque a família era livre de se deslocar para onde quisesse. Apesar da margem de discricionariedade reconhecida ao Estado, o Tribunal considerou que o Estado Espanhol não tinha feito uma ponderação correta dos interesses públicos e privados.

b) Caso Guerra c. Itália (1998), violação do artigo 8º (nº 18)

Indústria química perigosa de produção de fertilizantes, compostos químicos, polímeros e gestão de efluentes líquidos, localizada a 1 quilómetro de residências. Em 1976 e 1985 já tinha havido acidentes na fábrica com internamento hospitalar de centenas de pessoas. 40 cidadãos italianos residentes na localidade recorrem a tribunal devido à falta de informação sobre os riscos, para a saúde e a vida decorrentes da libertação de gases tóxicos e inflamáveis. O Tribunal Europeu considerou que a Itália violou as suas obrigações substanciais ao não controlar as atividades perigosas e procedimentais e ao não fornecer informação suficiente sobre os riscos.

c) Caso Fadeyeva c. Rússia (2005), violação do artigo 8º (nº 10)

Uma instalação industrial de produção de aço que origina concentrações de poluição atmosférica e níveis de ruído muito superiores ao admitido por lei. Desde 1965 que tinha sido decidida a criação de uma zona sanitária de segurança de 5000 metros à volta da fábrica, mas continuaram a viver lá milhares de pessoas. Os recorrentes vivem a escassos 450 metros de distância. Índices de morbilidade muito elevados, destacando-se especialmente a incidência de doenças respiratórias e do sangue entre as crianças. A solução das autoridades foi pôr os queixosos em listas de espera para obter alojamento proporcionado pelo Estado, mas sem qualquer previsão da data de atribuição do novo alojamento. O Tribunal considerou que a Rússia excedeu a sua margem de apreciação na ponderação de interesses públicos e privados.

d) Caso Bacila c. Roménia (2010), violação do artigo 8º, com uma opinião concordante de um juiz (nº 2)

A fábrica de produção de metais não ferrosos (chumbo e zinco) e substâncias químicas derivadas do carvão, começa a laborar em 1938 como empresa do Estado, tendo sido privatizada em 1993. As emissões provenientes da fábrica afetam 6000 habitantes da localidade onde a incidência de doenças respiratórias é sete vezes mais elevada do que no resto do país. As concentrações de chumbo no sangue dos residentes são muito superiores às admitidas. Os solos, as águas e a vegetação em 35 quilómetros ao redor da fábrica encontram-se contaminados por chumbo, cobre, cádmio e zinco. O Tribunal considera que a condenação da fábrica em processos cíveis ou penais por danos à saúde e ao ambiente, não exonera o Estado das obrigações que lhe incumbem em virtude do artigo 8º.

Na sua opinião concordante, o Juiz Zupancic reforça a decisão do Tribunal com argumentos baseados no princípio da precaução, e mais concretamente na inversão do ónus da prova, no estabelecimento de presunções ilidíveis, e na ultrapassagem de “barreiras conceituais” como a teoria da causalidade.

e) Caso Apanasewicz c. Polónia (2011), violação do artigo 8º (nº 1)

Desde 1988 uma fábrica de cimento, localizada numa área residencial, onde vivem 20000 habitantes, provoca elevada emissão de poeiras e ruído. Os vizinhos que residem no terreno adjacente, queixam-se de irritações cutâneas, problemas respiratórios e conjuntivite e ainda de não poder consumir os frutos e legumes que produzem no seu quintal. O Tribunal considera que embora a Polónia tenha tentado adotar algumas medidas de proteção (tendo chegado a ordenar, sem nunca executar, a demolição da fábrica), o que é certo é que elas foram, durante 20 anos, completamente inoperantes.

f) Caso Smaltini c. Itália (2015), não admissibilidade (nº 32)

O maior complexo industrial de fabricação de aço da Europa, situado em Itália, causa poluição intensa e grave. A recorrente não consegue provar o nexo de causalidade entre a leucemia aguda de que padece e a exposição à poluição da fábrica. O recurso é considerado como não admissível.

g) Caso Cordella c. Itália (2019), violação do artigo 8º (nº 5)

O mesmo complexo industrial que emprega atualmente 11000 trabalhadores, e que produz aço e coque, começou a funcionar no início do século XX, em Itália, e desde 1965 na cidade de Tarente. As emissões poluentes atmosféricas estão na origem de uma incidência de neoplasias (do estômago, do cólon, do fígado, do pulmão, do rim, da vesícula, da tiroide, da mama, do útero e da próstata) muito superior à média nacional. Há inúmeros relatórios e provas do dano. Apesar dos diversos processos crime, administrativos e constitucionais, 180 recorrentes acusam o Estado Italiano de não fazer o suficiente para os proteger da ingerência no seu domicílio. O Tribunal concorda que a Itália não respeitou o justo equilíbrio entre os interesses públicos e privados.

1.2 Atividades de transporte

a) Caso Powell c. Reino Unido (1990), não violação do artigo 8º (nº 30)

Desde 1961 o ruído dos aviões que aterram e descolam do aeroporto de Heathrow causa incómodos que afetam os recorrentes, que moram a algumas milhas do aeroporto, e mais de um milhão de pessoas. As autoridades adotam diversas medidas para reduzir os incómodos causados pelo ruído: monitorização, alteração das regras de funcionamento do aeroporto e isolamento sonoro das casas, financiado a 100% pelo Estado. O Tribunal aceita a argumentação do Estado de que a ingerência é legal e se justifica numa sociedade democrática para salvaguardar os interesses económicos e o bem-estar do país, decorrente do uso de uma instalação de importância central para o comércio e as comunicações internacionais.

b) Caso Hatton c. Reino Unido (2003), não violação do artigo 8º, mas com opiniões dissidentes (nº 20)

A utilização do aeroporto de Heathrow intensificou-se muito e os recorrentes, que vivem a cerca de 12 quilómetros do aeroporto, alegam graves dificuldades em dormir e depressão (com necessidades de tomar medicamentos antidepressivos) em virtude dos voos noturnos, sobretudo no período do verão, quando está demasiado calor para dormir com as janelas fechadas. O Tribunal considerou, numa decisão maioritária com votos de vencido, que não há indícios de que o Reino Unido não tenha tido em consideração os incómodos de vizinhança causados pelo ruído, não tenha dado oportunidade aos afetados para se pronunciarem ou recorrerem das decisões, não tenha desenvolvido esforços para avaliar e mitigar esses incómodos e não ponderado devidamente a proporcionalidade entre estes incómodos e os benefícios gerais decorrentes do aeroporto. Pelo contrário, os juízes Costa, Ress, Türmen, Zupančič e Steiner consideram, contra a maioria do Tribunal, que uma referência genérica ao “bem-estar económico do país” não é suficiente para justificar a falha do Estado em salvaguardar os direitos dos recorrentes à proteção do seu domicílio.

c) Caso Greenpeace c. Alemanha (2009), não violação do artigo 8º (nº 16)

A associação ambientalista Greenpeace e alguns particulares pretendem que o Governo Alemão adote medidas de controlo da qualidade do ar obrigando a pôr filtros nos motores a diesel dos carros, cuja circulação afeta os seus escritórios, situados junto a um cruzamento rodoviário muito movimentado. O Tribunal tem dúvidas sobre a qualidade de vítima da associação e considera que cabe ao Estado, no âmbito da sua discricionariedade escolher as medidas.

d) Caso Dees c. Hungria (2011), violação do artigo 8º (nº 6)

Após o aumento dos custos das portagens de uma autoestrada próxima o tráfego intenso desvia-se e passa a atravessar uma rua residencial, provocando fumos e ruído que tornam as casas inabitáveis. O Tribunal reconhece a complexidade das questões jurídicas relativas à gestão de infraestruturas mas, apesar de todas as medidas tomadas pelas autoridades (como reduzir o limite de velocidade, construir rotundas, instalar semáforos, interditar o trânsito a camiões pesados, introduzir um sistema de autocolantes para reduzir os custos das portagens), considera que tais medidas na prática não se revelaram suficientes para resolver o problema.

e) Caso Grimkovskaya c. Ucrânia (2011), violação do artigo 8º (nº 17)

Uma estrada municipal, construída em 1983, é reclassificada em 1989 como auto-estrada de travessia urbana, passando por uma rua de casas e jardins. Fumo, pó, contaminação do solo por metais pesados, ruído, vibrações, são as queixas relativas ao intenso tráfego de pesados que destruíram o piso da estrada, agravando ainda mais os incómodos. Embora não tenha ficado definitivamente provado que as doenças de que padecem os moradores sejam causa necessária do tráfego rodoviário, o Tribunal Europeu considera que os residentes não tiveram possibilidade de se manifestar suficientemente durante todo o processo.

f) Caso Bor c. Hungria (2013), violação do artigo 8º (nº 3)

Os moradores em frente a uma estação de comboios queixam-se do agravamento das condições de vida desde que, em 1988, a empresa ferroviária húngara substituiu as máquinas a vapor por máquinas a diesel. O ruído excedeu o permitido por lei durante 20 anos, sobretudo durante a noite. Em 2004, o tribunal de primeira instância ordena a construção de uma parede de insonorização, mas o tribunal de recurso dispensa esta obrigação. Em 2008, noutro processo, o tribunal decreta o pagamento de uma compensação pela desvalorização da casa e também um valor para permitir a substituição de janelas e portas. Também esta decisão é revertida pelo tribunal superior. As primeiras medidas de controlo do ruído só foram tomadas pelas autoridades em 2010. Em conclusão, o Tribunal Europeu considera que a Hungria falhou no seu dever de garantir aos recorrentes o direito ao respeito pela sua habitação.

g) Caso Flamenbeaum c. França (2013), não violação do artigo 8º (nº 12)

O aeroporto de Deauville-Saint-Gatien funciona desde 1931 e a sua utilização tem vindo a intensificar-se pelo que se pretende alongar a pista. Os moradores, cujas residências se situam a distâncias entre 500 metros e 2500 metros da pista principal, sofrem o prejuízo do ruído e da desvalorização da sua propriedade. O Tribunal Europeu reconheceu razão às autoridades nacionais, que consideram que foi feita uma ponderação adequada dos interesses públicos e privados.

1.3 Outras atividades produtivas

a) Caso Kyrtatos c. Grécia (2003), não violação do artigo 8º, com opiniões dissidentes (nº 23)

Os proprietários de uma casa, construída junto a uma zona destinada à conservação da natureza, alegam que a sua qualidade de vida foi prejudicada pelas sucessivas construções, ilegalmente autorizadas pelas autoridades competentes. As construções, que foram gradualmente destruindo a zona húmida destinada à proteção de peixes, aves e tartarugas marinhas, são urbanizações, estradas e parques de estacionamento. Apesar de reconhecer a ilegalidade das autorizações, o Estado considera que há outras formas de dar cumprimento às decisões judiciais que ordenam a demolição das construções e que a demolição é a ultima ratio. O Tribunal Europeu considera que apesar de a invocação do artigo 8º não exigir a demonstração de danos à saúde ou à vida, ele exige a demonstração da “existência de um efeito danoso na vida privada ou familiar da pessoa e não uma simples degradação geral do ambiente”. Considera que seria diferente se se tratasse da destruição de uma floresta. Votando vencido, o Juiz Zagrebelsky considera impossível afirmar que a destruição do pântano não causou uma interferência no domicílio. A interferência pode não ser grave, mas não está em conformidade com a lei, tal como os tribunais gregos declararam, pelo que é uma interferência ilegal e, portanto, inadmissível.

b) Caso Borysiewicz c. Polónia (2008), não violação do artigo 8º (nº 4)

O proprietário de uma casa geminada apresenta diversas queixas contra o vizinho, que tem uma alfaiataria no outro lado da casa. Na sequência das queixas, as autoridades ordenam que se façam obras de insonorização, estudos de impacte ambiental, mas autorizam o funcionamento. O Tribunal considera que as autoridades tomaram medidas adequadas e que a ingerência não é desproporcional.

c) Caso Fagerskiold c. Suécia (2008), não admissível (nº 11)

Os proprietários de uma casa de férias queixam-se de três torres eólicas, construídas a cerca de 400 metros da sua casa, e que estão na origem de um ruído mecânico pulsante constante e de efeitos perturbadores e intrusivos dos reflexos das luzes. Alegam ainda que o valor de mercado da casa diminuiu. O Estado fez diversas medições e alterações na forma de funcionamento das turbinas, para reduzir o ruído. O Tribunal Europeu afirma que o facto de se tratar de uma casa de férias não justifica menor proteção, mas considera que o nível de incómodo causado pela ingerência não é excessivo e que o Estado ponderou corretamente os interesses públicos e privados.

d) Caso Furlepa c. Polónia (2008), não violação do artigo 8º (nº 13)

O proprietário de uma casa alega que a construção ilegal de uma loja de acessórios e de uma oficina de reparação automóvel, no lote adjacente de uma zona residencial, violam o seu direito ao domicílio. Considerando que a mera ilegalidade da atividade não demonstra violação de direitos humanos e que as autoridades administrativas e judiciais nacionais tomaram diversas medidas, incluindo ordenar a demolição das construções ilegais, o Tribunal Europeu declara que o caso não revela quaisquer violações de direitos ou liberdades estabelecidas na Convenção ou nos Protocolos.

e) Caso Walkuska c. Polónia (2008), não violação do artigo 8º (nº 35)

Uma suinicultura, localizada a 5 metros de distância de uma casa de habitação, está na origem de incómodos de vizinhança. Apreciando as queixas, os tribunais nacionais consideraram que as medidas adotadas, em conformidade com as condições da licença, foram suficientes para mitigar os incómodos. Isto bastou para o Tribunal Europeu afirmar que o Estado cumpriu, tanto do ponto de vista substancial, como do ponto de vista procedimental, as suas obrigações de proteção do direito ao domicílio.

f) Caso Galev c. Bulgária (2009), não violação do artigo 8º (nº 14)

Uma clínica de cirurgia dentária, instalada sem licença numa das frações de um prédio em propriedade horizontal, motivou queixas da parte dos condóminos que recorrem aos tribunais nacionais sem conseguir obter qualquer decisão favorável. De igual modo, o Tribunal Europeu considerou que o recorrente não conseguiu demonstrar que os incómodos atingem níveis excessivamente elevados.

g) Caso Hardy e Maile c. Reino Unido (2012), não violação do artigo 8º (nº 19)

Na opinião dos residentes junto a um porto marítimo, a operação de dois terminais de gás natural liquefeito gera riscos ambientais, e especialmente marinhos, tão elevados que exigem do Estado uma avaliação quantitativa do grau de probabilidade de ocorrência de um desastre. O Tribunal concorda que o artigo 8 pode ser invocado quando os indivíduos estão expostos a riscos de efeitos danosos de uma atividade, mas considera que não é exigível que a decisão de autorizar a atividade seja baseada apenas em dados quantitativos e mensuráveis. A avaliação do risco desenvolvida pelas autoridades britânicas será suficiente para considerar que foi feita uma ponderação adequada e que existem, no plano interno, mecanismos de recurso suficientes para que os cidadãos possam defender os seus pontos de vista.

1.4 Atividades não económicas

a) Caso McGinley e Egan c. Reino Unido (1998), não violação do artigo 8º, com opiniões dissidentes (nº 25)

Enquanto militares destacados na ilha Natal, no Oceano Pacífico, onde o Reino Unido desenvolveu diversos testes nucleares atmosféricos entre 1958 e 1967, os recorrentes estiveram expostos a forte radiação nuclear que terá, segundo relatórios médicos, sido determinante no desenvolvimento de várias doenças que resultaram na atribuição de pensões de invalidez de 20%. O Tribunal concorda que o Reino Unido faltou às suas obrigações processuais ao não fornecer prontamente aos militares toda a informação sobre os potenciais efeitos adversos para a saúde, o que lhes causou ansiedade e stress que configuram uma violação do artigo 8º. No entanto decide, por 5 votos contra 4, não condenar o Reino Unido por violação do artigo 8º, na medida em que os recorrentes podiam ter recorrido a um tribunal nacional para exigir os documentos, coisa que não fizeram. Nas suas opiniões dissidentes, quatro juízes consideram ter havido violação do artigo 8º, na medida em que as autoridades nacionais omitiram, durante 35 anos, informação de que dispunham sobre as consequências possíveis dos testes nucleares, sobre a saúde dos militares e sobre a ampliação dos seus direitos a uma pensão do Estado.

b) Caso Ruano Morcuende c. Espanha (2005), não violação do artigo 8º (nº 31)

Um transformador de eletricidade que fornece energia a diversas casas, encostado à parede exterior da casa dos recorrentes, causa incómodos considerados, pelos moradores, muito significativos. Além da vibração, alegam igualmente que a radiação eletromagnética torna inabitável a divisão adjacente ao posto de transformação, que era ocupada pelos filhos. O Tribunal Europeu não se deixou influenciar pelo facto de a casa ser ocupada apenas durante 5 meses por ano, mas fundou a sua decisão negativa na inexistência de elementos de prova, seja dos incómodos, seja dos riscos da poluição eletromagnética, que, segundo o Governo Espanhol, ainda não estão suficientemente demonstrados no estado atual da ciência.

c) Caso Giacommelli c. Italia (2007), não violação do artigo 8º (nº 15)

A atividade visada é uma instalação de armazenagem e tratamento de resíduos sólidos perigosos, em funcionamento desde 1950, a 30 metros de distância da casa dos recorrentes, e alvo de diversas queixas de incumprimento das condições da licença e consequente contaminação do solo e das águas subterrâneas. O Tribunal declara a violação do artigo 8º, em virtude de as autoridades judiciais italianas não terem conseguido, durante anos, assegurar qualquer proteção ao queixoso.

d) Caso Di Sarno c. Itália (2012), violação do artigo 8º (nº 7)

Em 1994, o Estado de emergência é decretado na região da Catânia em virtude da gestão “praticamente desastrosa da recolha, tratamento e eliminação de resíduos produzidos em certas partes da província de Nápoles”. Os recorrentes alegam que a poluição generalizada, causada pelos resíduos, põe em perigo a sua saúde e que as autoridades não fornecem a informação devida sobre os riscos que correm. O Tribunal deu razão aos recorrentes, afirmando a violação do artigo 8º no plano substancial, por considerar que a justificação do Estado relativamente à alegada força maior não colhia.

e) Caso Kolyadenko c. Rússia (2012), violação do artigo 8º (nº 22)

Na sequência de um período de pluviosidade muito elevada, a abertura inevitável, mas inesperada e sem pré-aviso, das comportas de um reservatório destinado ao abastecimento de água provoca inundações que destroem uma área residencial com mais de 5000 pessoas. O Tribunal não aceita a alegação do Estado, de que se tratou de um desastre natural, e considera que as autoridades falharam no dever de limpar os cursos de água e de desenvolver medidas de planeamento territorial, para evitar pôr em risco as vidas e prejudicar o domicílio e a propriedade, de quem reside na zona inundável.

f) Caso Zammit c. Malta (2012), não violação do artigo 8º (nº 36)

Os recorrentes consideram que o lançamento de engenhos pirotécnicos, bianualmente, durante as festividades locais, a 150 metros da sua residência, põe em risco a sua vida e a sua saúde. O Tribunal releva o facto de a casa ter sido adquirida com conhecimento da tradição do lançamento de foguetes, e não reconhece a violação do direito ao domicílio.

g) Caso Dzemyuk c. Ucrânia (2014), violação do artigo 8º (nº 9)

A construção de um cemitério, a menos de 300 metros de uma zona residencial, e a 38 metros da casa mais próxima, causou contaminação grave das águas subterrâneas. Análises feitas à água dos poços, usados tanto para abastecimento como para rega, revelou níveis de E. coli com valores mais de 2000 vezes superiores ao permitido por lei. Apesar de as autoridades terem reconhecido a ilegalidade da localização do cemitério e terem proibido funerais, os enterros continuam a realizar-se. As decisões favoráveis dos tribunais nunca foram executadas. Em consequência, o Tribunal Europeu considerou que houve uma ingerência grave, ilegal e injustificada, no direito ao domicílio dos recorrentes.

1.5 Atividades de lazer noturno

a) Caso Moreno Gomez c. Espanha (2005), violação do artigo 8º (nº 27)

127 bares e discotecas na zona residencial de Valência, um dos quais no prédio do recorrente, a funcionar desde a década de 70 estão na origem de problemas de saúde, física e psicológica, dos recorrentes. Decisões contraditórias das autoridades, reconhecendo por um lado, que se trata de uma “zona acusticamente saturada”, mas por outro, licenciando cada vez mais estabelecimentos noturnos, levaram o Tribunal Europeu a declarar que o ónus da prova dos danos se inverteu, condenando a Espanha por não ter conseguido evitar a ingerência ilegal e desproporcionada no domicílio dos moradores.

b) Caso Oluic c. Croácia (2010), violação do artigo 8º (nº 28)

Um bar, a funcionar durante 8 anos numa casa geminada, causou danos, medicamente comprovados, na saúde da família que reside na outra metade da casa. A ultrapassagem dos limites legais e a incapacidade de fornecer uma solução, seja pela via administrativa, seja pela via judicial, conduziram o Tribunal Europeu a condenar a Croácia por incapacidade de garantir o direito do domicílio de forma “prática e efetiva” e não “teorética e ilusória”.

c) Caso Mileva c. Bulgaria (2011), violação do artigo 8º (nº 26)

Durante quatro anos, um clube de computadores funcionou 24 horas por dia, sete dias por semana, num apartamento de um prédio destinado a habitação. Devido aos problemas de saúde, provocados pelo ruído (dores de cabeça constantes, insónia, irritabilidade, ansiedade, tensão alta e taquicardia) os queixosos foram forçados a vender a casa e ir viver noutro bairro, num apartamento menor. Neste contexto, o Tribunal Europeu considera que as obras feitas ilegalmente no bar, não são suficientes para justificar uma condenação por violação do artigo 8º, mas o ruído e vibrações provenientes dos clientes do bar já o são, não tendo o Estado Búlgaro demonstrado diligência suficiente na consideração dos interesses em conflito.

d) Caso Udovicic c. Croácia (2014), violação do artigo 8º (nº 34)

Um bar funciona no piso térreo de uma casa, sendo o piso superior ocupado por uma família. Apesar das obras de isolamento, o funcionamento do bar gera ruído excessivo: música, gritos, cantar alto e quebra de vidros, além de um comportamento agressivo dos clientes do bar, ameaçando os moradores e urinando em público. O facto de os incómodos do bar se terem prolongado por mais de 10 anos, tendo a polícia sido chamada a intervir 87 vezes, e tendo sido instauradas 42 ações por quebra da paz e da ordem pública, justificou a condenação da Croácia pelo Tribunal Europeu, que considerou que não foram adotadas medidas de proteção suficientes.

1.6 Atividades de extração mineral

a) Caso Tatar c. Roménia (2009), violação do artigo 8º, com opiniões separadas (nº 33)

No ano 2000, uma mina de extração de ouro e prata, sofreu um acidente, que conduziu à libertação de 50 a 100 toneladas de cianuros e metais pesados (bioacumuláveis) que afetaram a Roménia, a Hungria, a Sérvia e o Montenegro, percorrendo 800 km do rio Danúbio até chegar ao delta, no Mar Negro. Nos primeiros tempos após o acidente, as autoridades forneceram água potável em camiões. Em 2004, análises à água subterrânea, revelam que os níveis de cianeto, zinco e cobre ultrapassam em muito os limites legais. Após o acidente, volta a ser atribuída uma concessão de exploração a uma nova empresa. Os residentes a 100 metros da mina alegam que o seu estado de saúde se agravou depois do acidente e que não houve nem estudos ambientais adequados nem uma consulta pública que permita a participação dos cidadãos antes da atribuição da nova concessão. Reconhecendo que a contaminação do solo e da água na sequência do acidente, atingiu níveis inadmissíveis, o Tribunal Europeu considerou que toda a população de Baia Mare, incluindo os requerentes, viveram numa angústia e incerteza acentuadas pela falta de informação das autoridades nacionais sobre as consequências passadas, presentes e futuras do acidente ecológico e pelo receio de que um acidente similar volte a ocorrer. No entanto, por falta de provas médicas, não considerou provada a existência de um nexo causal entre o agravamento da doença dos requerentes e a exposição às substâncias poluentes. Exprimindo uma opinião separada da maioria dos juízes, os magistrados Zupancic e Gyulumyan sublinham, de forma muito incisiva, a necessidade de, no caso dos “novos riscos”, avaliar a causalidade de forma menos positivista, e mais baseada em probabilidades estatísticas.

b) Caso Dubetska c. Ucrânia (2011), violação do artigo 8º (nº 8)

Uma mina de carvão funcionando desde os anos 60, a 100 metros de distância das casas dos recorrentes (construídas em 1933 e 1959), está na origem de poluição aguda do ar, do solo e da água. Os recorrentes juntam fotografias recentes da água de cor alaranjada dos poços e de cursos de água e certificados médicos comprovativos das doenças respiratórias e oncológicas de que padecem. Reconhecendo a contaminação dos lençóis freáticos, as autoridades distribuíram, durante algum tempo, água às populações em camiões e tratores, mas em quantidade insuficiente e com escassa frequência. Decidiram igualmente realojar os recorrentes sem nunca ter chegado a concretizar a decisão. Considerando irrelevante o facto de as casas terem sido construídas ou ocupadas ilegalmente (tal como alegado pelo Estado e negado pelos particulares) o Tribunal condena a Ucrânia por, durante 12 anos pós a adesão da Ucrânia à Convenção Europeia, terem permitido que as populações continuassem a viver sem condições mínimas de salubridade.

c) Caso Ivan Atanasov c. Bulgaria (2011), não violação do artigo 8º (nº 21)

Uma mina de cobre, atualmente desativada, gerou mais de 45.000 toneladas de lamas perigosas, contaminadas com cobre, zinco, cadmio, níquel, cobalto, magnésio e crómio. As lamas estão contidas num tanque, situado a um quilómetro de uma casa e a quatro quilómetros de terrenos agrícolas. Comparando com casos anteriores de maior proximidade, o Tribunal Europeu considera que a distância é considerável, que a poluição do tanque não resulta de processos industriais ativos, e que não há dados médicos que indiciem que a morbilidade no local é superior à média ou prejudiquem a capacidade dos moradores de gozar do seu domicílio.

d) Caso Pino Manzano c. Espanha (2012), não violação do artigo 8º (nº 29)

Uma pedreira, situada a 200 metros da habitação do recorrente, em funcionamento 19 horas por dia, entre 1996 e 2005, provoca pó e ruído diurno e noturno. O Tribunal europeu considerou que o facto de a atividade ter cessado, não retira aos recorrentes a qualidade de vítimas, uma vez que sofreram incómodos durante anos, sem qualquer compensação. No entanto, não condena a Espanha, porque a casa dos recorrentes foi construída ilegalmente numa zona não residencial e foi objeto de diversas decisões negativas, quando pediram licença para obras de ampliação, pelo que foram os próprios que se colocaram voluntariamente numa situação de irregularidade.

2. Intensidade, tipos e formas de ingerência ambiental na habitação

A poluição e a degradação ambiental podem assumir múltiplas formas e diversas intensidades. Entre a siderurgia que polui o ar, a água e o solo, com metais pesados, durante mais de 70 anos (caso Bacila c. Roménia, 2010), ou o incómodo do ruído de um dentista durante 10 anos (caso Galev c. Bulgária, 2009), há uma grande diferença.

Efetivamente, nem todas as formas e intensidades de poluição configuram violações do direito humano à habitação.

2.1. A intensidade da ingerência

Se considerarmos uma escala crescente de intensidade, teremos, num extremo da escala, a poluição que prejudica apenas os componentes ambientais, sem que os prejuízos humanos sejam imediatamente percetíveis e, no outro extremo, a poluição que põe em causa a vida ou afeta gravemente a saúde das pessoas.

Danos ecológicos

Danos à habitação

Danos à saúde

Danos à vida

 

É ao primeiro extremo da escala que o Tribunal Europeu alude quando afirma, recorrentemente, que não existe proteção autónoma do “direito ao ambiente” em si mesmo (casos Apanasewicz c. Polónia, 2011; Hatton c. Reino Unido, 2003; Flamenbeaum c. França, 2013; Kyrtatos c. Grécia, 2003 etc.).

Por isso, perdas de qualidade ambiental que poderiam ser consideradas internamente, segundo as Constituições dos Estados, como violações do direito fundamental ao ambiente, no contexto do sistema de proteção de Estrasburgo só serão objeto de análise, na medida em que os incómodos ambientais atinjam um grau tal, que passa a configurar uma infração a outros direitos humanos consagrados na Convenção. Por ordem crescente de gravidade referimos o direito ao domicílio, o direito à saúde ou o direito à vida.

Na realidade, como o Tribunal afirmou desde o primeiro momento (caso Lopez Ostra c. Espanha, 1994 §51; Guerra c. Itália, 1998 §60), e mantém até hoje, para estarmos perante uma violação do direito ao domicílio, não é preciso chegar ao extremo da escala de intensidade que prejudica ou põe em perigo a vida humana ou sequer a saúde. Nas palavras do Tribunal, no caso Lopez Ostra, “naturalmente, poluição ambiental severa pode afetar o bem-estar dos indivíduos e impedi-los de disfrutar dos seus domicílios de tal forma que afeta adversamente a sua vida privada e familiar sem, contudo, pôr seriamente em perigo a sua saúde”.

Este entendimento de que basta uma interferência no direito a usufruir serenamente do seu direito à habitação, não se exigindo danos à saúde, corresponde a uma justíssima interpretação, não só porque o que está em causa é o direito à habitação e não o direito à vida ou à saúde, como porque as dificuldades na obtenção da prova dos danos à saúde têm conduzido a verdadeiros paradoxos de desproteção jurídica. Aliás, é recorrente vermos descritas, nos acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, as enormes dificuldades enfrentadas pelos recorrentes na prova do seu estatuto de vítima. Vejamos alguns exemplos.

No caso Udovicic c. Croácia, 2014, para contestar as queixas de ruido proveniente de um bar licenciado num apartamento de um prédio, o Estado diz que o barulho do bar não é muito significativo porque a própria rua já é muito barulhenta, nomeadamente em virtude do trânsito.

No caso Grimkovkaya c. Ucânia, 2011, as autoridades alegam que a culpa do ruido não é sua, mas dos condutores e utentes da estrada, além de que há outras fontes de ruído, além da estrada, como uma mina de carvão próxima.

Nos casos caso Tatar c. Roménia, 2009 e Smaltini c. Itália, 2015, quando são apresentados estudos epidemiológicos que demonstram incidências de doenças (cutâneas, digestivas, respiratórias, oncológicas etc.) e índices de morbilidade substancialmente mais elevados no local de residência do que no restante território, o Estado alega que faltam dados médicos que estabeleçam com clareza, no caso concreto, o nexo de causalidade entre a atividade poluente e a doença do queixoso.

Quando tais exames médicos específicos são apresentados, como no caso Fadeyeva c. Rússia, 2005, o Estado alega que a doença pode ser de origem laboral, na medida em que o queixoso contacta igualmente com as referidas substâncias também no local de trabalho. Ora, quando a vítima tem simultaneamente o estatuto de vizinho, residindo nas proximidades da fonte de emissões poluentes, e de trabalhador na instalação poluente, não devia ter maiores dificuldades em obter proteção pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O risco de que uma doença seja rotulada como “ocupacional” e não “habitacional”, leva a que seja menos difícil quem seja apenas vizinho provar a sua qualidade de vítima, do que quem seja duplamente vítima, vizinho e trabalhador.

Este é o círculo vicioso da prova do dano, que redunda numa injustiça chocante, que resulta da inexistência de um direito humano autónomo ao ambiente.

2.2. Os tipos de ingerência

Sendo assim, que tipo de ingerências ambientais é que geram violação do direito à habitação? Os incómodos ambientais que se fazem sentir dentro de casa (com ou sem reflexos na saúde, mas seguramente com reflexos no bem-estar) e que prejudicam o direito a usufruir da sua habitação, podem ser de diversos tipos, mas são sobretudo as emissões poluentes que afetam as habitações, incluindo quintais, jardins ou logradouros (caso Apanasewicz c. Polónia, 2011).

Ora, as emissões poluentes ¾ denominadas externalidades ambientais negativas, pela ciência económica ¾ podem ser súbitas ou progressivas, consoante se trate de uma degradação ambiental aguda, que ocorre quase instantaneamente, ou de uma degradação gradual, que demora algum tempo a manifestar-se. Exemplos de violações (ou riscos de violação) súbita do direito à habitação são as que decorrem do desencadeamento de processos acidentais incontrolados[8] como por exemplo inundações súbitas (caso Koliadenko c. Rússia, 2012) detonamentos (caso Guerra c. Itália, 1998), explosões (caso Zammit c. Malta, 2012), ruturas de tanques (caso Ivan Atanasov c. Bulgária, 2011), ou fugas de gás e incêndio (Hardy e Maile c. Reino Unido, 2012). Exemplos de violações graduais do direito à habitação, são as associadas a emissões sólidas, líquidas ou gasosas, afetando a atmosfera (casos Lopez Ostra c. Espanha 1994; Bacila c. Roménia 2010), a litosfera (Dzemyuk c. Ucrânia, 2014), a hidrosfera (Dubetska c. Ucrânia, 2011), ou a biosfera (Caso Apanasewicz c. Polónia, 2011). Podem também ser emissões de ondas mecânicas causando ruído ou vibração (caso Moreno Gomes c. Espanha, 2005; Dees c. Hungria, 2011; Grimkovskaya c. Ucrânia, 2011; Bor c. Hungria, 2013; Hatton c. Reino Unido, 2003), ondas eletromagnéticas, luminosas ou hertzianas (Fagerskyond c. Suécia 2008; Ruano Morcuende c. Espanha 2005) ou emissões radioativas (McGinley c. Reino Unido, 1998).

Na generalidade dos casos, as emissões poluentes fazem sentir-se de forma mais grave localmente, junto à fonte emissora[9], e vão-se desvanecendo ou diluindo e sendo menos percetíveis gradualmente à medida que nos afastamos dela. Este fenómeno é uma manifestação da primeira lei da geografia, enunciada por Waldo Tobler, segundo a qual “todas as coisas estão relacionadas com todas as outras, mas coisas próximas estão mais relacionadas do que coisas distantes“[10]. É também este fenómeno que explica que o afastamento preventivo seja uma forma de, através do ordenamento do território, se mitigarem os efeitos nocivos das atividades poluentes.

É assim que a delimitação de zonas tampão e a proibição de assentamentos humanos no entorno de instalações geradoras de incómodos ou riscos significativos é uma medida básica de proteção contra a poluição (caso Dubetska c. Ucrânia, 2011).

No entanto, esta prática nem sempre é seguida, sendo frequente a ocorrência de aglomerados habitacionais que se desenvolvem demasiado próximo de uma atividade poluente. No caso Fadeyeva c. Rússia, 2005, por exemplo, foi definida uma “zona de segurança sanitária” mas dentro da qual residiam… 6000 trabalhadores. No caso Moreno Gomez c. Espanha em 2005, o Município declara toda uma zona residencial da cidade de Valência como “acusticamente saturada” mas continua a licenciar mais estabelecimentos de diversão noturna.

Quando isto acontece, há um conjunto de pessoas ¾ os vizinhos ambientais[11] ¾ que estão mais expostas do que as restantes, aos efeitos nocivos ou aos riscos das atividades poluentes. Por outras palavras, as externalidades ambientais criam situações de desigualdade na distribuição territorial dos riscos, na medida em que as populações mais próximas da atividade emissora são mais oneradas pela poluição do que a população em geral. A isto chamamos (in)justiça territorial[12].

Neste sentido, o problema jurídico que está em causa na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que aplica o artigo 8º relativo à proteção do domicílio, é o princípio da igualdade na distribuição de encargos das atividades económicas que beneficiam todos, mas oneram alguns mais do que a generalidade da população. São atividades que beneficiam os trabalhadores, porque criam emprego; beneficiam a região e o país, porque geram desenvolvimento económico; beneficiam os consumidores, pelos produtos e serviços que colocam no mercado; mas oneram os vizinhos mais próximos, que amiúde suportam uma fatia desproporcional dos incómodos, quando a poluição é tão elevada que configura uma violação do direito à habitação, ou até do direito à saúde e à vida.

2.3. As formas de ingerência

Essa violação pode ser direta ou indireta, por ação ou por omissão, consoante o Estado esteja na posição de operador, administrador, gestor, financiador, acionista, concessionário, licenciador, auditor, certificador, garante, segurador ou fiscalizador. A responsabilidade do Estado decorre de levar a cabo, autorizar, financiar, tolerar ou não supervisionar atividades que gerem ou agravem riscos ambientais atuais ou potenciais ou atividades que mantenham as emissões poluentes durante períodos suficientemente longos para causar degradação ambiental significativa e perda de qualidade ambiental na habitação.

Em suma, o Estado pode surgir, ele próprio, como “dono da obra”, quando está em causa uma atividade desenvolvida diretamente por organismos públicos que detêm um poder fático sobre as condições de funcionamento da atividade nociva para o ambiente. Na maior parte dos casos, todavia, o Estado está no papel de garante do equilíbrio entre interesses públicos e privados, limitando-se a regulamentar, fiscalizar e sancionar o funcionamento de atividades privadas ambientalmente incómodas. Estas são as obrigações às quais o Tribunal Europeu chama “negativas” (configurando um dever de abstenção) ou “positivas” (impondo um dever de ação)[13].

3. Discricionariedade dos estados e contenção judicial na apreciação das ingerências ambientais na habitação

Em todas as decisões sobre o direito ambiental na habitação ¾ seja sobre a localização, sobre o grau de afetação do direito do particular, sobre a adoção de medidas de mitigação ou sobre a ponderação e justificação do interesse público da atividade ¾ há uma dimensão substancial e uma dimensão procedimental.

Substancialmente, a administração do Estado e os tribunais nacionais apreciam, tanto no plano objetivo como no subjetivo, a gravidade do incómodo.

Objetivamente, avaliam o tipo e a intensidade das emissões. A mensurabilidade da intensidade depende do tipo de emissões: se for ruído, será medido em decibéis; se forem emissões líquidas, gasosas ou partículas, será em miligramas, mililitros ou partes por milhão, distinguindo as medições consoante seja de dia ou de noite; com janelas abertas ou com janelas fechadas; um tempo de permanência mais longo ou mais curto etc..

Subjetivamente, avaliam o grau de sensibilidade individual àquele incómodo: se se trata de uma pessoa saudável ou doente, se se trata de uma pessoa jovem ou idosa, se é uma pessoa particularmente sensível àquele fator de incomodidade que a torna mais suscetível de desenvolver outras patologias, nomeadamente patologias do sono ou do foro neurológico (Oluic c. Croácia, 2010; Ivan Atanasov c. Bulgária, 2011).

Procedimentalmente, desenvolvem as diligências necessárias à escolha informada da localização, ao apuramento, com consulta prévia, do grau de afetação, à escolha participada das medidas corretivas, à ponderação democrática de vantagens e encargos da atividade. O Tribunal considera que a Convenção não impõe regras procedimentais aos Estados. No caso Walkuska c. Polónia, 2008, o Tribunal afirma que pode ter sido realizada uma ponderação adequada, mesmo sem ter levado a cabo uma avaliação qualitativa dos efeitos sobre a habitação.

No entanto, o Tribunal considera também que são exigidos determinados procedimentos mínimos, que envolvam a realização de estudos ou auditorias para aferição dos incómodos ambientais, que mostrem que as perceções subjetivas foram tomadas em consideração nos procedimentos autorizativos, inspetivos, corretivos ou sancionatórios, e que permitam a audição de todas as partes interessadas em diferentes etapas dos procedimentos.

No caso Grimkoskaya c. a Ucrânia 2011, o Tribunal chega a afirmar expressamente que decide tendo em consideração a Convenção de Aarhus sobre acesso à informação, participação e acesso à justiça em matéria ambiental.

A discricionariedade dos Estados existe tanto nas decisões substanciais como nas procedimentais. No entanto, tal como o Tribunal já teve ocasião de afirmar (por exemplo, no caos Hatton c. Reino Unido, 2003), quanto maior for a discricionariedade do Estado na dimensão substancial, menor será na procedimental. Ou seja, se a atividade causa incómodos notórios e não são feitas diligências aturadas para a sua mensuração, avaliação ou ponderação, então as vítimas deverão ter múltiplas oportunidades de se pronunciar, de apresentar queixa ou de impugnar judicialmente as decisões.

Pelo contrário, se forem feitas diversas diligências, como medições, sondagens, testes, análises e estudos, destinados a avaliar o grau de afetação e a apurar as condições de perturbação, então a existência de múltiplas instâncias de audição e oportunidade de participação das vítimas poderá não ser tão essencial.

Se, numa análise substancial, não foi possível concluir pela violação, baseado no argumento de que o Estado tem uma significativa margem de manobra quanto à apreciação da correção da localização, quanto à suficiência das medidas de minimização ou quanto à necessidade de desenvolver a atividade, numa sociedade democrática, o Tribunal passa à análise da medida em que os requisitos procedimentais foram observados. Primeiro, se houve investigações e estudos suficientes para prever com antecipação os efeitos das atividades em causa de forma a poder ponderar conscientemente as vantagens e os inconvenientes da atividade. Depois, se houve acesso do público aos referidos estudos e informações que lhe permitissem avaliar o perigo a que estavam expostos. Em seguida, se os particulares tiveram oportunidade de se pronunciar durante o processo de tomada de decisão e se as suas opiniões foram suficientemente tidas em consideração durante esse processo; por fim, se as alegadas vítimas tiveram oportunidade de recorrer aos tribunais nacionais, para que eles profiram decisões justas e efetivas, em tempo útil.

Sintetizando, na construção jurisprudencial do Tribunal, há um conjunto de obrigações, simultâneas ou sucessivas, dos Estados:

·         Criar um enquadramento legislativo adequado para atividades suscetíveis de causar incómodos ambientais na habitação.

·         Desenvolver uma atuação administrativa coerente que siga os passos de autorização da atividade, de licenciamento da localização e funcionamento da instalação, licença de exploração, vigilância e fiscalização das condições de laboração.

·         Adotar medidas adequadas e eficazes, baseadas em inquéritos e estudos apropriados.

·         Facultar o acesso e divulgar informações que permitam aos cidadãos compreender os riscos aos quais estão expostos.

·         Criar oportunidades de participação para que os cidadãos possam exprimir os seus interesses, preocupações e observações e para que estes sejam tidos em consideração nos processos decisórios.

·         Ponderar os interesses em conflito fazendo um justo equilíbrio entre interesses públicos e privados.

·         Criar meios de recurso judicial e extrajudicial contra leis, regulamentos, atos ou omissões administrativas.

Simetricamente, há um conjunto de momentos em que a discricionariedade dos Estados prevalece e a separação de poderes impera:

·         Na apreciação da localização da atividade nociva (decisões de planeamento e de ordenamento do território, como no caso Hatton c. Reino Unido, 2003)

·         Na apreciação do grau de afetação do direito a usufruir/disfrutar da habitação. O Estado está mais bem posicionado para dizer se se trata de uma perturbação significativa ou não significativa do imóvel.

·         Na decisão sobre as medidas a adotar na origem para evitar, corrigir, sancionar os incómodos atuando sobre a “fonte emissora”, como por ex. reduzindo os valores-limite legais de emissões, alterando horários de funcionamento, impondo condições de funcionamento ou aplicando sanções.

·         Na decisão sobre as medidas a adotar ao nível do recetor para evitar, corrigir ou compensar os incómodos atuando sobre a vítima, como por ex. apoio na introdução de melhoramentos na casa, financiamento da mudança de habitação, atribuição de uma compensação pelo incómodo.

·         Na decisão sobre a ponderação dos interesses privados ou públicos em conflito, subjacentes à atividade nociva em causa, considerando, por um lado, como proporcionada ou desproporcionada a relação de forças e o peso relativo dos valores, e, por outro lado, os interesses privados afetados pelos incómodos da atividade.

Conclusão: mais vale prevenir do que remediar as injustiças territoriais

Na realidade, o percurso pela jurisprudência deixou bem patentes os pontos fracos da proteção jurídica das condições ambientais da habitação nos Estados membros. Os contornos dos casos que chegam a Estrasburgo, depois de percorrer complexos trilhos judiciais e extrajudiciais dentro do labirinto da justiça Estadual, impressionam. São milhares de afetados, a lutar durante décadas, até conseguir ganhar o direito de tentar demonstrar, perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, primeiro, a gravidade da ingerência na habitação e depois, a absoluta insuficiência das medidas preventivas, remediatórias, compensatórias ou sancionatórias, adotadas, decretadas, anunciadas ou apenas prometidas pelos poderes públicos.

A partir da análise dos julgados, conclui-se que, a despeito da ausência de uma proteção ambiental autónoma, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem extrai do direito à habitação a proteção a aspectos ambientais correlacionados e, em adição, adota uma postura de defesa em favor dos agentes privados face ao Estado, tanto de um ponto de vista material relativo à intensidade da ingerência e seu impacto, quanto de um ponto de vista procedimental pela imposição de parâmetros mínimos de atuação, ligados à postura diligente.

Sem prejuízo da postura de contenção do Tribunal, compreende-se que a adoção de certas posturas precautórias pelo Estado teria evitado o cometimento de danos ao direito à habitação, a tutela ressarcitória e os respectivos custos processuais. Deste estudo jurisprudencial deve extrair-se uma lição: a seriedade das injustiças territoriais ¾ populacionalmente tão alargadas e temporalmente tão prolongadas ¾ que decorrem da violação do direito ambiental à habitação, exige novos instrumentos jurídicos mais eficazes, prospetivos e não reativos, que reflitam novas abordagens, preventivas e não reparatórias[14].

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TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Di Sarno and others v. Italy, n. 30765/​08, julgado em 10 jan. 2012.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Dubetska and others v. Ukraine, n. 30499/​03, julgado em 10 fev. 2011.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Dzemyuk v. Ukraine, n. 42488/​02, julgado em 4 set. 2014.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Fadeyeva v. Russia, n. 55723/​00, julgado em 9 jun. 2005.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Fagerskiold Lars and Astrid Fägerskiöld v. Sweden, n. 37664/​04, julgado em 26 fev. 2008.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Flamenbaum et Autres c. France, n. 3675/​04 et 23264/​04, julgado em 13 dez. 2012.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Furlepa Janina Furlepa v. Poland, n. 62101/​00, julgado em 18 mar. 2008.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Giacomelli v. Italy, n. 59909/​00, julgado em 2 nov. 2006.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Giuseppina Smaltini c. Italie, n. 43961/​09, julgado em 24 mar. 2015.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Greenpeace E. V. and others v. Germany, n. 18215/​06, julgado em 12 maio 2009.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Grimkovskaya v. Ukraine, n. 38182/​03, julgado em 21 jul. 2011.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Guerra and others v. Italy, n. 116/​1996/​735/​932, julgado em 19 fev. 1998.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Halina Walkuska v. Poland, n. 6817/​04, julgado em 29 abr. 2008.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Hardy and Maile v. The United Kingdom, n. 31965/​07, julgado em 14 fev. 2012.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Hatton and others v. The United Kingdom, n. 36022/​97, julgado em 8 jul. 2003;

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Ivan Atanasov v. Bulgaria, n. 12853/​03, julgado em 2 dez. 2010.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Kolyadenko and others v. Russia, n. 17423/​05, 20534/​05, 20678/​05, 23263/​05, 24283/​05 and 35673/​05, julgado em 28 fev. 2012.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Kyrtatos v. Greece, n. 41666/​98, julgado em 22 maio 2003;

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Lopez Ostra v. Spain, n. 16798/​90, julgado em 9 dez. 1994.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. María Isabel Ruano Morcuende c. Espagne, n. 75287/​01, julgado em 6 set. 2005.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Martínez Martínez et Pino Manzano c. Espagne, n. 61654/​08, julgado em 3 jul. 2012.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Mcginley and Egan v. The United Kingdom, n. 10/​1997/​794/​995-996, julgado em 9 jun. 1998.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Mileva and others v. Bulgaria, n. 43449/​02 and n. 21475/​04, julgado em 25 nov. 2010.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Moreno Gomez v. Spain, n. 4143/​02, julgado em 16 nov. 2004.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Nikola Ivanov Galev and others v. Bulgaria, n. 18324/​04, julgado em 29 set. 2009.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Oluić v. Croatia, n. 61260/​08, julgado em 20 maio 2010.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Powell and Rayner v. The United Kingdom, n. 9310/​81, julgado em 21 fev. 1990.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Pretty v. The United Kingdom, n. 2346/​02, julgado em 29 abr. 2002.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Tătar c. Roumanie, n. 67021/​01, julgado em 27 jan. 2009.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Udovičić v. Croatia, n. 27310/​09, julgado em 24 abr. 2014.

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM. Zammit Maempel v. Malta, n. 24202/​10, julgado em 22 nov. 2011.

Recebido em: 14 mar. 2020.

Aceito em: 13 out. 2020.

 



[1]  Artigo 65: “1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar“.

[2]  Artigo 11, n.º1 “Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa a um nível de vida adequado para si e sua família, incluindo alimentação, vestuário e habitação adequados e a uma melhoria contínua das suas condições de vida. Os Estados Signatários tomarão medidas apropriadas para assegurar a efectividade deste direito, reconhecendo para esse feito, a importância essencial da cooperação internacional baseada no livre consentimento”.

[3]  Artigo 8º 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.

[4]  Artigo 25, n.º1 1: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”

[5]  Artigo 34, n.º3: “3. A fim de lutar contra a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais”.

[6]  Exemplarmente veja-se o acórdão Urgenda (disponível em https://www.urgenda.nl/wp-content/uploads/ECLI_NL_GHDHA_2018_2610.pdf), proferido pelo Tribunal de Recurso de Haia em 2018, que fundamenta a condenação do Governo dos Países Baixos por insuficiente proteção climática, nos artigo 2º e 8º da Convenção Europeia.

[7]  E sem que isso signifique que o recorrente perdeu a qualidade de vítima, como refere o Tribunal nos casos Bor contra Hungria (2013), Ivan Atanasov contra Bulgária (2011) ou Pino Manzano contra Espanha (2012).

[8]  A Diretiva 2012/18/UE de 4 de julho de 2012, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, define acidente grave como “um acontecimento, como uma emissão, um incêndio ou uma explosão, de graves proporções, resultante de desenvolvimentos não controlados durante o funcionamento de um estabelecimento abrangido pela presente diretiva, e que provoque um perigo grave, imediato ou retardado, no interior ou no exterior de um estabelecimento, para a saúde humana ou para o ambiente, e que envolva uma ou mais substâncias perigosas” (artigo 3º n.13).

[9]  Com exceção dos gases que se dissipam rapidamente na atmosfera causando danos à escala planetária, como os gases com efeito de estufa e os gases que destroem a camada de ozono.

[10] Waldo Tobler, “A Computer Movie Simulating Urban Growth in the Detroit Region“, Economic Geography Vol. 46, Supplement: Proceedings. International Geographical Union. Commission on Quantitative Methods, June 1970, pp. 234-240.

[11] Na aceção de Gomes Canotilho em Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 1, 1994. p. 55-66.

[12] Alexandra Aragão, “O mapeamento dos serviços culturais dos ecossistemas e a deteção de injustiças territoriais”, in: As infraestruturas de dados espaciais e outras ferramentas de apoio a uma decisão justa, Alexandra Aragão (coord.), Instituto Jurídico, Coimbra, 2018, p. 105-118.

[13] §3, página 8 do Guide of the Directorate of the Jurisconsult of the Council of Europe on Article 8 of the European Convention on Human Rights. Right to respect for private and family life, home and correspondence, Strasbourg, 2018.

[14] Alexandra Aragão, “Ensaio sobre a prospetividade no Direito Administrativo do Ambiente. A protecção jurídica do futuro”, in: Conferências | Direito Administrativo Fezas Vital e Rogério Soares - Cadernos do Centenário do Boletim da Faculdade de Direito, Instituto Jurídico, 2016, p. 93-128.