DA PERIFERIA AO CENTRO: REFLEXÕES SOBRE O LUGAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA FAMÍLIA E A GUARDA COMPARTILHADA

Paulo Germano Barrozo de Albuquerque

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará

paulogermano@uni7.edu.br

Letícia Queiroz Nascimento

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará

leticiaqnascimento@gmail.com

RESUMO: O presente artigo objetivou examinar as transformações do papel da criança e do adolescente na família e analisar o instituto da guarda compartilhada na perspectiva da Doutrina da Proteção Integral. Buscou-se responder em que medida o melhor interesse de crianças e adolescentes pode influenciar o regime de guarda e a rotina de pais que se divorciam. Para tanto, a metodologia aplicada foi qualitativa e teórica, uma vez que foram exploradas referências bibliográficas de livros, artigos periódicos das áreas do direito, psicologia e sociologia, enquanto o método utilizado será o hipotético-dedutivo. No primeiro tópico, apresentou-se o processo de transformação do lugar na criança e do adolescente no seio familiar. Posteriormente, foi exposto o avanço da legislação brasileira em matéria de proteção à infância. Por último, exibiu-se o instituto jurídico da guarda compartilhada como instrumento de efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. Conclui-se que a guarda compartilhada nada mais é que o reflexo de uma longa trajetória de mudança do entendimento que se tem sobre a infância, notadamente no seu lugar na família, que antes era localizado à periferia desta.

Palavras-chave: Direito da Criança e do Adolescente. Direito de Família. Guarda Compartilhada.

From the periphery to the center: reflections on the place of children and adolescents in the family and shared custody

ABSTRACT: This article aimed to examine the transformations in the role of children and adolescents in the family and to analyze the institute of shared custody from the perspective of the doctrine of integral protection. We sought to answer to what extent the best interest of children and adolescents can influence the custody regime and the routine of parents who divorce. For that, the applied methodology was qualitative and theoretical, since bibliographical references of books, periodical articles from the areas of law, psychology and sociology were explored, as well as news about the theme, while the method used will be the hypothetical-deductive. In the first topic, the process of transforming the place in children and adolescents within the family was presented. Subsequently, the progress of Brazilian legislation on child protection was exposed. Finally, the shared custody legal institute was shown as an instrument to enforce the rights of the child. In the end, it is concluded that the shared custody is nothing more than the reflection of a long trajectory of changing the understanding we have about childhood, notably in its place in the family, which was previously located on the periphery.

Keywords: Child and Adolescent Rights. Family right. Shared Custody.

Introdução

A proteção irrestrita conferida às crianças e adolescentes nas normas do direito brasileiro, independentemente de qual contexto estejam inseridas, é fruto de uma longa transformação histórica, social e cultural percorrida pela sociedade. A luta pelos direitos da infância aconteceu em nível mundial e suas consequências repercutem continuamente no ordenamento jurídico nacional e orientam todo o processo de elaboração de legislação e sistemas de garantias direitos.

O presente artigo objetivou examinar a emergência do instituto jurídico da guarda compartilhada sob o prisma da Doutrina da Proteção Integral, consolidada pela Constituição Federal brasileira vigente, por meio da análise histórica da transformação do lugar da criança e do adolescente na família contemporânea. Pretende-se com isso responder em que medida a guarda compartilhada de crianças e adolescentes, cujos pais são separados ou divorciados, pode ser considerada um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais destes infantes.

Se, como pretende-se esclarecer, a guarda compartilhada prevista no Código Civil, nos moldes apresentados pela Lei nº 13.058 de 2014, é fruto da transformação do lugar da criança e do adolescente na família ao longo do tempo, trata-se de questão fundamental compreender que estes nem sempre foram entendidos como sujeitos de direitos e colocados no centro da família. A preocupação com o bem-estar do infante, enquanto indivíduo em desenvolvimento, especialmente em um contexto de dissolução da sociedade conjugal, é uma inquietação contemporânea.

Este artigo está dividido em três tópicos. Em um primeiro momento, apresenta-se o processo de transformação do lugar da criança e do adolescente no seio familiar, na perspectiva da sociedade tradicional europeia, com ênfase nos séculos XVII, XVIII e XIX, discutindo-se acerca da modificação da percepção da coletividade e, por consequência, da família sobre a criança e o adolescente.

 Posteriormente, é exposta a transformação da legislação brasileira em matéria de proteção à infância e adolescência, desde o período em que era vigente a Doutrina da Situação Irregular, no século XX, até a organização e fortalecimento da Doutrina da Proteção Integral de crianças e adolescentes firmada no final do século XX e início do século XXI, sendo apresentados os princípios que regem os direitos da infância e da adolescência e que são aplicados ao direito de família.

Ainda, são abordados os principais aspectos do instituto jurídico da guarda compartilhada, diferenciando-o do exercício do poder familiar e destacando as modificações na legislação civil, especialmente aquelas oriundas da Lei Federal nº 13.058 de 2014. Por último, apresenta-se a referida modalidade de guarda como reflexo da modificação do lugar de crianças e adolescentes na família, além de ser entendida como um instrumento de efetivação de garantias fundamentais.

1. A transformação do papel da criança e do adolescente no seio familiar

A percepção da infância como período essencial à formação do indivíduo que as sociedades modernas, de modo geral, possuem, é um tanto quanto nova. A própria noção de infância não é um dado natural, mas uma construção histórica e cultural. Cada época irá construir uma noção que corresponda aos ideais e expectativas que animam discursos e práticas que são direcionados às crianças (SOUZA, 2005, p. 91). As sociedades tradicionais da Idade Média não consideravam a criança como sujeito de direitos, nem levavam em consideração suas peculiaridades, tratando-a como uma miniatura de adulto e desconsideravam as etapas diferentes do desenvolvimento do ser humano. No mundo medieval, crianças e adultos se misturavam. Como afirma Ariès: “Na sociedade medieval (...) o sentimento de infância não existia” (2018, p.99).

Apenas ao longo do desenvolvimento da Modernidade, principalmente a partir do século XIX, crianças e adolescentes foram considerados em suas particularidades físicas, psíquicas e sociais. Até o século XIX, as crianças não ocupavam o centro das relações familiares, elas careciam de direitos na família tradicional, sendo a ideia de consagrar garantias por meio de legislação relativamente recente. Em períodos pré-modernos, as crianças não existiam no interesse delas próprias, mas para a satisfação dos pais, de modo que praticamente não eram reconhecidas enquanto indivíduos (GIDDENS, 2000, p. 64).

Se a própria existência da criança só era considerada em razão do contento de seus genitores, não havia motivo para que se discutissem seus interesses pessoais, tampouco estes poderiam ser considerados legítimos a ponto de serem protegidos por normas jurídicas. As crianças não eram entendidas como indivíduos aptos a terem direitos, o que parece um despropósito para a sociedade contemporânea. Somente uma visão da construção histórica da infância e da adolescência permite compreender como os discursos e práticas jurídicas participaram desse processo.

Antes da Era Moderna, a insensibilidade sobre a criança podia ser percebida nos registros artísticos. Ariès aponta que, ainda por volta do século XII, a arte medieval suprimia a necessidade de representação das crianças com suas características próprias, dado que eram reproduzidas pelos artistas como adultos em escala menor (certamente não por falta de talento), indicando que não existia lugar para a infância no mundo, de modo que não havia necessidade de ilustrá-la em sua peculiaridade. (2018, p.17)

Tal indiferença persistiu ainda no século XIII, período em que os trajes das crianças eram semelhantes aos dos adultos de mesma condição. Somente no século XVII, percebeu-se determinada diferenciação à situação peculiar do indivíduo em suas fases iniciais, não obstante tal consideração da infância ser identificada nas crianças nobres ou da burguesia, que possuíam trajes reservados à sua idade, distinguindo-as dos adultos (ARIÈS, p. 32, 2018). Segundo Ariès, a sociedade tradicional “via mal a criança e pior ainda o adolescente” e será apenas nos séculos XVIII e XIX que irá consolidar-se um “sentimento de infância” que reconhece a importância dos laços afetivos entre pais e filhos. Nesse período, a família passou a se organizar ao redor da infância e dos cuidados necessários ao desenvolvimento infantil e, desta forma, os adultos passaram a lhe dar importância. Na Era moderna, traçou-se uma linha divisória entre adultos e crianças e a família “tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre os pais e os filhos, algo que ela não era antes” (ARIÈS, 2018, p. xi)

Apesar da constatação de que o reconhecimento e a tutela da infância entre os séculos XVII e XVIII, enquanto condição diferenciada de indivíduo em desenvolvimento, era garantido apenas às crianças inseridas em família abastadas, com a escolarização obrigatória durante o século XIX na Europa, esse processo de percepção da condição diferente da criança e do adolescente expandiu-se por todas as classes sociais. É importante frisar que antes do século XIX, as crianças e adolescentes ainda não eram consideradas indivíduos passíveis de direitos e obrigações, assim como os adultos, e estavam localizados à margem da família. Na família tradicional, marcada pelo caráter patrimonial e patriarcal, a vida dos infantes era secundária e a vida dos adultos estava voltada, principalmente, para o espaço público. Na esfera privada, as crianças existiam para a manutenção da organização familiar e estavam submetidas a um poder irrestrito, o poder dos adultos.

Também é preciso ressaltar que quando se analisa o desenvolvimento histórico dos sistemas e princípios da proteção de crianças e adolescentes, a questão da privatização da infância, que cada vez mais ocupa o centro da organização da família, não significa a ausência do Estado na regulação das relações entre pais e filhos. Ao contrário, a história da busca pela tutela dos direitos da infância, especialmente no contexto da Modernidade, contou com uma intervenção estatal cada vez maior para inibir determinadas condutas que colocavam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, ainda que inseridas em um contexto familiar, onde, acreditava-se, estariam a salvo de qualquer violação de direitos.

Uma das características da Era Moderna, segundo Hannah Arendt, é que esta desfaz a antiga linha divisória que o mundo greco-romano tinha traçado entre o espaço público e o espaço privado. Na perspectiva do pensamento grego, a distinção entre vida privada e vida pública correspondia à existência das esferas da família e da política como entidades dicotômicas. A família não era compreendida como núcleo afetivo, mas como lugar das satisfações biológicas, reino da necessidade. Na esfera política, havia a possibilidade da individualidade, reino da liberdade. Concomitante a esse apagamento, a autora apontou a ascensão da esfera social, na qual os assuntos privados da Antiguidade ganham o espaço público (ARENDT, p. 37, 2007). Na esfera social, o espaço público não é mais marcado pela liberdade e individualidade, mas pelo conformismo. Será no espaço familiar, entendido como lugar da intimidade e das relações afetivas, que as sociedades modernas se sentirão livres das pressões da esfera social.

Depreende-se que, com o advento da Modernidade, a linha que divide o que se entende por público e privado é cada vez mais tênue. Com relação à proteção dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente familiar, a subtração da autonomia privada dos genitores por meio da intervenção estatal parece uma condição fundamental da Modernidade. Segundo Brandão (2011, p.88), um dos problemas dessa diluição da fronteira entre espaço privado e espaço público é que o direito de infância “(...) passou a ser forte vetor de intervenção do Estado na vida privada”. Daí o alerta do autor acerca da emergência de um novo paternalismo, agora por parte do Estado, que se utiliza da infância para diluir o direito à intimidade.

Nesse sentido, Bilac aponta um interessante paradoxo sociológico: quanto mais a família se “privatiza”, menor autonomia parece ter em relação à sociedade. Quanto mais se expande a questão da proteção irrestrita do Estado à infância, percebe-se, ao longo dos anos, que o Estado passou a intervir de maneira mais expressiva na esfera privada, notadamente nas relações familiares, independentemente de classe social. (1995, p. 44)

Um dos temas do cruzamento entre a esfera pública e privada na Modernidade é o divórcio. Na perspectiva da criança e do adolescente situados à periferia da família, formação típica da família tradicional, é natural que com o advento do divórcio, que dissolvia a sociedade conjugal, essência da família tradicional, não se tivesse qualquer preocupação quanto à situação do infante inserido nesse contexto.

Quando surgido durante a Revolução Francesa, ainda no ano de 1792, o divórcio era gerido por uma legislação liberal, havendo sete motivos que justificariam o seu requerimento: insanidade; condenação de um dos cônjuges a penas aflitivas ou infamantes; crimes, sevícias ou injúrias graves de um contra o outro; notório desregramento de costumes; abandono por dois anos; ausência sem notícias durante o período de cinco anos e emigração. (PERROT, 1991, p. 37). Nada se dizia acerca das crianças e de seu destino após o divórcio.

Originalmente, o processo de divórcio não contava com atenção específica para a questão dos filhos, uma vez que os infantes não eram entendidos enquanto indivíduos passíveis de direitos e a questão afetiva ainda era desimportante para a construção da família enquanto instituição. O afeto entre os cônjuges e entre pais e filhos não era necessário para a constituição e manutenção da casa, logo, também seria um aspecto ignorado no que se refere à convivência entre os genitores e sua prole.

Vale ressaltar que, ainda segundo Perrot, após promulgação da referida legislação, os pedidos de divórcio dificilmente resultavam em conflitos pela guarda dos filhos. Por um lado, à época, a maioria dos solicitantes não tinham filhos pequenos. Por outro, nem os tribunais nem os pais os consideravam como partes efetivamente integrantes da família (1991, p. 41). Verifica-se, portanto, que no contexto da vida privada, não havia um interesse no convívio com os filhos como se vislumbra na contemporaneidade, dado que a criança só era vista como um membro da família e não como um indivíduo.

Ora, no Brasil, esse roteiro moderno de transformação da infância e das relações familiares também ocorreu. Como afirma Costa (2004), a família contemporânea brasileira deve ser entendida a partir das transformações históricas da família colonial, organizada ao redor do patrimônio, do poder patriarcal e da vida dos adultos, que produziram a família moderna oitocentista, afetiva e onde a criança estava no centro das atenções e dos cuidados.

Assim como na Europa, somente a partir nos séculos XIX e XX, é que se pôde identificar uma mudança na percepção que se tinha da infância, que repercutiu e influenciou a legislação brasileira moderna. No próximo tópico, analisaremos essas influências e repercussões.

2. A proteção à infância no ordenamento jurídico brasileiro

As primeiras leis positivadas no Brasil não versavam sobre o tratamento jurídico a ser conferido às crianças e aos adolescentes, evidenciando, mais uma vez, que nem sempre houve preocupação a respeito do trato com estes indivíduos, especialmente aqueles inseridos em um contexto familiar, onde presumidamente, estariam a salvo de qualquer violação de direitos.

Além disso, as normas iniciais que abordavam a infância, somente previam tutelar a situação daqueles indivíduos que estavam inseridos em um contexto de evidente vulnerabilidade, ou seja, aquelas crianças e adolescentes que, na perspectiva do Estado, estavam em situação irregular, tais como: situação de rua, envolvimento em atos infracionais, em circunstância de abandono familiar etc. Assim, não havia qualquer menção ou interferência estatal a respeito daqueles em tenra idade quando estavam estabelecidos em uma família.

Identifica-se no ordenamento jurídico brasileiro, no início do século XIX, a prevalência do raciocínio que previa a regulamentação da situação de crianças e adolescentes em contexto irregular. Segundo Santos, é no Código Criminal do Império que se encontram as primeiras menções à expressão “menor”, definindo as penas aplicáveis nos casos de crimes realizados por menores de idade. A expressão foi consagrada no Século XX por meio da Doutrina da Situação Irregular, marcada pela publicação do Código de Menores em 1927, cujo conteúdo não abrangia a situação da população infantojuvenil de maneira ampla. (2011, p. 47).

A referida doutrina produzia como efeito a geração de uma categoria de crianças e adolescentes que seriam consideradas suspeitas e potencialmente perigosas, sendo estes denominados apenas “menores”, como afirma Santos “na associação entre o perigo e a pobreza” (2011, p. 47). Além disso, como afirmam Santana e Macedo (2015, p.116), essa categoria tinha um sentido pejorativo e era carregada de preconceito.

Posteriormente, publicou-se nova edição do referido código, com a promulgação da Lei nº 6.669 de 1979, pautada na Doutrina da Situação Irregular, reproduzindo muitos dos dispositivos descritos na norma anterior. De acordo Xaud, a doutrina jurídica da situação irregular foi praticada no Brasil de 1927 a 1990, estando presente nos códigos de Mello Matos (1927) e Alyrio Cavallieri (1979), que, ainda segundo a autora, “tiveram como fundamento esta doutrina, cuja característica é dirigir-se a uma categoria sociologicamente indefinida: menores em situação irregular” (1999, p. 88-89).

Ora, essa concepção doutrinária, ao mesmo tempo em que possibilitava a identificação dos menores como objeto jurídico, criava meios que tornavam possível ao Estado atuar sobre os núcleos familiares dessas crianças e adolescentes. (SANTOS, 2011, p. 54).

Quanto à população infantojuvenil, a legislação brasileira contemporânea possui forte influência de movimentos internacionais que buscaram resguardar a universalidade de direitos, incluindo crianças e adolescentes anteriormente desconsideradas em sua existência. O Brasil ratificou diversos documentos internacionais relativos a esses indivíduos na esfera de direitos humanos, que auxiliaram no processo de mudança de paradigma, dentre os quais se destacam: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica); a Convenção sobre os Direitos da Criança; a Declaração dos Direitos da Criança e a Declaração Universal de Direitos Humanos.

A história da década de 1980 é marcada por um ambiente de democratização, onde os movimentos sociais exerciam o papel de protagonistas na produção de alternativas ao modelo imposto à época. Desta maneira, segundo Custódio, o imperativo discursivo produzido pelo Estado autoritário recebia a contribuição crítica do espaço público (logo, um espaço político) de reflexão acerca das práticas estabelecidas sobre a infância. (2008, p.26).

Inspirado na proteção indicada pelos documentos internacionais supracitados, o legislador constituinte preocupou-se em positivar a tutela à todas as crianças e adolescentes, e não somente aos “menores”. Para o ordenamento jurídico brasileiro, a publicação da Constituição Federal de 1988 é o símbolo da luta pelos direitos fundamentais dos indivíduos, formalizando um processo de evolução histórica de garantia de direitos sociais que estava ocorrendo em nível mundial.

A ruptura formal com a Doutrina da Situação Irregular a partir da publicação da Constituição Federal de 1988 foi um marco significativo no processo de evolução da proteção da infância, momento em que possibilitou a emergência da Doutrina da Proteção Integral, cuja compreensão é pressuposto para o entendimento dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Significa, acima de tudo, uma mudança de perspectiva, que passou a orientar a compreensão de valores e princípios, com um alcance além das expectativas, não somente na área do direito da criança e do adolescente, como no próprio direito de família.

A redação do artigo 227 do texto constitucional versa que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir, a crianças, adolescentes e jovens, uma série de direitos: à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Tudo isso, dando absoluta prioridade a tais sujeitos. A norma também ressalta a necessidade de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A tríplice responsabilidade deste artigo impossibilitou a manutenção da Doutrina da Situação Irregular e anunciou a Doutrina da Proteção Integral, na qual crianças e adolescentes deixam o lugar de objetos da intervenção estatal para sujeitos de direitos.

Sendo assim, conforme assevera Custódio, a Constituição Federal de 1988 implicou em uma completa transformação jurídica, política e institucional na atuação do Estado em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes:

A Constituição da República Federativa do Brasil e suas respectivas garantias democráticas constituíram a base fundamental do direito da criança e do adolescente, interrelacionando os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral, que ocasionou um reordenamento jurídico, político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos ações e atitudes por parte do Estado, em estreita colaboração com a sociedade civil, nos quais os reflexos se (re)produzem sobre o contexto sócio-histórico do Brasil. (2008 p. 27)

Desta maneira, a legislação infraconstitucional publicada após 1988 buscou efetivar os ideais expostos na Carta Magna, salvaguardando à infância de maneira irrestrita, nos moldes da Doutrina da Proteção Integral. Pela primeira vez na história da legislação brasileira, crianças e adolescentes passaram a ser, formalmente, sujeito de direitos, tal qual o cidadão maior de 18 (dezoito) anos, porém sendo considerada a condição diferenciada destes enquanto indivíduos em desenvolvimento.

Na trajetória entre a indiferença e a proteção integral de direitos, crianças e adolescentes transitaram desde a desconsideração absoluta de suas situações de vulnerabilidade até a compreensão (nem sempre percebida) de suas condições de pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento e sujeitos de direitos. (SARAIVA, 2013 p. 58).

Naturalmente, foi necessária a atuação do Poder Legislativo no sentido de redigir uma norma que contemplasse os novos preceitos vigentes no país, dado que, como visto, o Código de Menores não condizia com os ideais da Doutrina da Proteção Integral. Assim, influenciado pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por meio da publicação da Lei Ordinária nº 8.069 de 1990, consolidando a referida doutrina. Acerca desta transição, dispõe Xaud (2002, p. 90):

A mudança de paradigma advindo da adoção da Doutrina Jurídica da Proteção Integral, a partir da vigência do Estatuto, ampliou o espaço social de crianças e adolescentes, deslocando significativamente o eixo das velhas práticas institucionais e pessoais. Crianças e adolescentes na nova doutrina não são mais meros objetos de intervenção. Tornaram-se sujeitos de direito, num contexto legal garantista e civilizatório que lhes abriu espaço social para o exercício pleno da cidadania

Ressalte-se que a Doutrina da Proteção Integral surge em um contexto no qual o Brasil compromete-se a implementar e defender a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção dos Direitos da Criança de 1989. Com isso, tornou-se o primeiro país latino-americano a levar em consideração tais normas internacionais para a elaboração de uma lei específica para a proteção da infância e da adolescência. (SANTOS, 2011, p. 58). Deve-se acrescentar, como afirma Arantes (2016, p. 69), que esses documentos foram influenciados pelas orientações da Convenção de Genebra de 1949 (conjunto de tratados sobre Direito Internacional Humanitário), que entendia os direitos da infância e da adolescência, acima de tudo, como direitos de seres humanos particularmente vulneráveis, pois ainda não autônomos.

Paralelamente ao progresso de direitos da proteção de crianças e adolescentes, a questão da guarda de filhos de relações desfeitas também foi tratada durante muitos anos pelo Código Civil de 1916, sem que a criança fosse colocada como protagonista no processo decisório das circunstâncias oriundas do rompimento do relacionamento de seus pais.

Diante de uma sociedade marcada pelo patriarcalismo, que se caracteriza, como afirma Castells (2010, p.169) pela autoridade “(...) imposta institucionalmente, do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar”, os filhos, na domesticidade do lar, estiveram sob responsabilidade e cuidados da figura materna, entendida como “naturalmente” voltada para os cuidados infantis. O mesmo ocorria após a dissolução da sociedade conjugal, de modo que os filhos, por muitas vezes, perdiam a convivência com o progenitor, mesmo porque, frequentemente, não havia o interesse nem a expectativa de estabelecer essa convivência ou a preocupação em garantir que pudessem se relacionar igualmente com ambos os pais.

De modo geral, a família passou, como visto no tópico anterior, por um profundo processo de transformação. Por óbvio, existem variações de uma sociedade para outra, mas o fato é que as mesmas tendências são visíveis em quase toda parte do mundo industrializado. Hodiernamente, somente uma minoria vive no que poderia ser chamado de “família padrão” da década de 1950, cuja realidade seria a existência dos pais morando juntos com os filhos nascidos de seu casamento, sendo a figura materna uma dona-de-casa em tempo integral, enquanto o pai é responsável pelo sustento financeiro. (GIDDENS, 2000, p. 67).

Percebe-se que, durante um longo período, o ordenamento jurídico brasileiro era enviesado quanto à situação da criança e do adolescente, abordando-os somente enquanto “irregulares”, omitindo-se no que diz respeito à proteção destes em contexto familiar. Somente após a consolidação da Doutrina da Proteção Integral, por meio da publicação do texto constitucional vigente e do Estatuto da Criança e do Adolescente, é que se pôde afirmar que a criança está no centro da família, não só na dimensão psicológica e afetiva, mas também no aspecto formal e jurídico. É nesse sentido que se formou um terreno fértil de proteção e tutela de crianças e adolescentes no qual surgiu o instituto jurídico da guarda compartilhada, amparado nos princípios da convivência familiar e comunitária e do melhor interesse da criança.

3. O instituto jurídico da guarda compartilha como instrumento para efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente

Consoante o que foi esclarecido nos tópicos anteriores, na medida em que ocorreram transformações sociais na percepção que se tem sobre a infância e a adolescência, ocasionando uma mudança de paradigma doutrinário, a dinâmica familiar também sofreu modificações, promovendo importantes alterações no ordenamento jurídico brasileiro. Aos poucos, aqueles indivíduos em situação de desenvolvimento, anteriormente desconsiderados em sua vulnerabilidade, passaram a ser a essência da família, ainda que em um contexto de relações matrimoniais desconstituídas.

No Brasil, o Código Civil de 1916, em caráter eminentemente punitivo, determinava que, em caso de desquite judicial, os filhos ficavam sob a guarda do cônjuge “inocente”. Nos casos em que a sociedade conjugal era dissolvida por desquite amigável, seria observado o que os cônjuges acordassem. (BRASIL, 1916) Entretanto, salvo em casos excepcionais, a criação dos filhos costumava ficar a cargo da mãe.

Seguindo o mesmo caminho, a Lei nº 6.515 de 1977, conhecida como “Lei do Divórcio”, regulava os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, privilegiando, da mesma maneira, o cônjuge que supostamente não havia dado causa ao rompimento da relação, no que se referia à guarda e à proteção dos filhos. (BRASIL, 1977)

Conforme o disposto anteriormente, dentre os direitos fundamentais de crianças, adolescentes e jovens previstos pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, a serem assegurados com absoluta prioridade, está o direito à convivência familiar e comunitária. Tornou-se necessário, portanto, que a legislação infraconstitucional previsse elementos que auxiliassem a efetivação de tal direito. A partir de então, conforme preceitua Lelis, “a convivência com os pais passa a ser um direito fundamental dos filhos, e não o direito dos pais em relação aos filhos.” (2017, p. 167).

Além de outorgar a instauração a Doutrina da Proteção Integral de crianças e adolescentes, garantindo-lhes o direito à convivência familiar e comunitária, a Carta Magna foi divisora de águas no que se refere à garantia de direitos sociais das mulheres. É nessa perspectiva que, segundo o princípio da igualdade, homens e mulheres passaram a ter os mesmos direitos e deveres na sociedade conjugal, inclusive aqueles inerentes ao exercício do poder familiar em relação aos filhos.

A norma constitucional vigente permitiu a adoção ampla de um conceito de “igualdade” aos personagens que compõem a entidade familiar. O referido conceito passou a exercer a função de princípio de interpretação das normas infraconstitucionais em matéria de família e buscou resgatar a ideia de isonomia. Autorizou também o enfrentamento da matéria de direito de família a partir da busca de um maior humanismo na resolução de questões que eventualmente se apresentam (MARQUES, 1999).

Acrescente-se a isso, a influência dos movimentos feministas do final do século XIX e início do século XX, que se caracterizaram pela busca de “(...) redefinir o gênero feminino em oposição direta ao patriarcalismo” (CASTELLS, 2010, p. 211), as mudanças sociais, culturais e políticas ocorridas na sociedade moderna que possibilitaram, dentre outras coisas, uma inserção mais expressiva da mulher no mercado de trabalho, e por conseguinte (ainda que de maneira tímida), uma maior participação da figura paterna no processo de educação dos filhos. À vista disso, tal realidade trouxe situações passíveis de reinvindicações jurídicas.

Em um primeiro momento, após a regulação do divórcio, as primeiras normas jurídicas não faziam menção à questão da situação da prole do casal divorciado, sendo comum que aquela fosse deixada de lado pelo genitor masculino e o dever de guarda e proteção na prática fosse atribuído somente à genitora, que assumia sozinha a tarefa de criação e de educação dos filhos.

Em uma realidade onde se identificam novos arranjos familiares e a criança enquanto principal preocupação dos genitores, que objetivam exercer plenamente (e de forma igualitária) a parentalidade, se tornou necessária a adaptação de normas já existentes às novas organizações familiares. Segundo apontam Amazonas e Braga, apesar de todas essas transformações acontecidas no interior da família, ela ainda se mantém desejada, uma vez que não importa a configuração que assuma, ela continuará a existir, pois é ela, essa família transformada, que pode assegurar à criança, aos novos sujeitos que se apresentam ao mundo, o direito ao amor, ao acolhimento e à palavra (2006, p. 188).

Em concordância ao disposto no texto constitucional e no Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil de 2002 positivou o rompimento com os parâmetros estabelecidos na lei civil anterior. Em atenção ao princípio do melhor interesse da criança, que, segundo Sá e Oliveira, foi previsto pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e incorporado pela Constituição Federal (2020 p. 183), ele apontou diretrizes para o exercício da guarda unipessoal e regime de visitas.

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, assevera Colucci, “deve sempre ser a fundação em que se basear para qualquer decisão que se possa tomar e que envolva crianças e adolescentes”. Ainda segundo a autora, o referido princípio tem sua importância evidenciada quando analisado frente a institutos jurídicos que envolvam criança ou adolescente. (2014, p. 31).

Somente após a consolidação de tal princípio, e da quebra com a percepção equivocada de que crianças são adultos pequenos, é que a legislação vigente passou a exigir que a família colocasse os direitos das crianças e adolescentes como prioridade quando do processo de dissolução da relação de seus pais, sobretudo o direito à convivência familiar e comunitária, previsto constitucionalmente.

Desta maneira, nas palavras de Lelis, “a convivência familiar deve ser priorizada ainda que os pais não mais convivam.” (2017, p. 167). O objetivo é pôr fim à quebra do vínculo de convivência com o genitor não detentor da guarda. Continuamente, a autora afirma que a guarda dos filhos é uma das atribuições do poder familiar (2017, p. 167), de modo que se faz necessário apontar as diferenças entre os dois institutos, de acordo com o disposto na legislação vigente.

O poder familiar, que no passado era denominado “pátrio poder”, guarda suas origens no direito romano, época em que era conferido somente ao homem, chefe da família, um poder arbitrário de disposição das pessoas a ele submetidas. Segundo à nova ordem constitucional, a expressão “pátrio poder” foi substituída por “poder familiar”, mais adequada, uma vez que abrange mulheres e homens, evidenciando mais uma vez o princípio da igualdade.

Entretanto, o termo “poder familiar” não demonstra compatibilidade com a lógica da proteção integral, dado que significa principalmente o dever de amparo e sustento, e não tanto o poder sobre a criança efetivamente, que está associado à uma ideia de liberdade dos genitores com os filhos, relembrando o significado original. Segundo Dias, as expressões “autoridade parental” e “responsabilidade parental” parecem mais coerentes com a Doutrina da Proteção Integral (2017, p. 487).

No que diz respeito à guarda, o Estatuto da Criança e do Adolescente não dispõe expressamente sobre o conceito do referido instituto. Porém, em seu artigo 33, referindo-se à colocação do infante em família substituta, versa que a guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (BRASIL, 1989). A partir da leitura do referido artigo, percebe-se que a guarda não necessariamente está vinculada ao poder familiar, apesar de não serem excludentes.

O atual Código Civil, por outro lado, em alteração inovadora dada pela Lei nº 11.698 de 2008, reserva o capítulo XI para tratar da proteção dos filhos e estabelece que a guarda será unilateral ou compartilhada. Segundo a norma, a guarda unilateral é aquela atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua, enquanto a guarda compartilhada é exercida por meio da responsabilização conjunta e do exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns (BRASIL, 2008).

A redação da referida lei, evidencia no ordenamento jurídico brasileiro, um traço característico das relações entre família e Estado na Modernidade, qual seja, a intervenção estatal na família com o objetivo de proteger os interesses e garantias fundamentais dos filhos. Introduz-se, assim, no ordenamento jurídico pátrio, a modalidade da guarda compartilhada, objetivando assegurar a convivência familiar e comunitária, com base no melhor interesse do infante. A respeito da referida alteração legislativa, Lelis afirma que: “no entanto, a referida norma ainda era muito tímida no que pertinente à implementação real da guarda compartilhada, tendo em vista que sua disposição foi instituída a título de recomendação, e não a título de imposição legal” (2017, p.169).

Hoje, percebe-se, claramente, que a preferência legislativa é pela guarda compartilhada, entretanto, a cessão do vínculo de convivência com os pais não altera a relação destes com os filhos, na perspectiva do poder familiar, que permanece, ainda que não seja estabelecida a referida modalidade de guarda, por qualquer razão. O genitor não guardião possui o direito de ter a prole em sua companhia, assim como esta tem o direito à convivência com o genitor não guardião e, com isso, a possiblidade de desenvolver e aprofundar os vínculos afetivos. Este possui ainda o dever de supervisionar a vida dos filhos, de modo que tem legitimidade para solicitar informações e até prestações de contas (DIAS, p. 548, 2017).

Assim, a nova redação conferida ao Código Civil passou a indicar a preferência pela guarda compartilhada, em que o convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre os genitores, sempre tendo em vista o melhor interesse da prole. O mesmo Código determina que a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos (BRASIL, 2002). Destaca-se que o poder familiar deve ser exercido de forma igualitária por ambos os genitores.

A compreensão de que a guarda de crianças e adolescentes deve ser conferida em sua modalidade compartilhada aos genitores, também é percebida na “Lei da Alienação Parental”. Em dois momentos distintos, a referida norma reforça que a guarda compartilhada deve ser prioritária, privilegiando não os pais, mas a criança, que possui a necessidade legal e afetiva de ter acesso à tal convivência (BRASIL, 2010).

Nesse sentido, percebe-se o quanto essa alteração legislativa vem ao encontro das transformações pelas quais a família moderna passou, organizando-se agora ao redor dos vínculos afetivos entre pais e filhos.

É na perspectiva de tais transformações da realidade que foi promulgada a chamada “Lei da Guarda Compartilhada” ou “Lei da Igualdade Parental” (Lei 13.058 de 2014), que nada mais é do que um reflexo significativo da mudança de percepção que o Estado e a própria família têm da criança. Esta norma, que passou a vigorar em 22 de dezembro de 2014, realizou modificações relevantes no Código Civil de 2002, no que se refere à guarda e à proteção dos filhos.

Não mais como uma recomendação, mas como regra geral, a última lei determina que deve ser instituída a modalidade de guarda compartilhada. O texto legal prevê que a convivência com os filhos deve ser dividida de maneira equilibrada, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos (BRASIL, 2014). O objetivo principal é garantir o direito à convivência com ambos os genitores. A criança, que na família tradicional não era sequer tida como um indivíduo, passa a ter seus interesses como principais norteadores da conduta de seus genitores e da rotina de uma família, devendo o seu interesse ser privilegiado.

Entretanto, em que pese a alteração legislativa, é preciso haver uma mudança cultural no que se refere ao exercício da paternidade e maternidade de maneira igualitária, por meio da guarda compartilhada. Como afirma Lelis, “Apesar da inserção da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se que para a sua implementação é necessário superar a questão cultural envolta na definição dos papéis a serem exercidos pelo pai e pela mãe.” (2017, p. 171)

Os fundamentos da guarda compartilhada possuem raízes constitucionais, porém igualmente sociais e psicológicas, priorizando sobretudo o direito de convivência, porém não somente dos genitores, mas principalmente da criança, reforçando a ideia da importância da presença e da participação dos pais. Percebe-se claramente a aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, demonstrando o resultado da luta em prol de direitos que garantem o bem-estar da criança, outrora subjugado pela família.

A guarda compartilhada deve ser tomada, antes de tudo, como uma postura e como o reflexo de uma mentalidade e de uma percepção que não existia na sociedade tradicional. Tal postura, preconiza que pai e mãe são igualmente importantes para os filhos de qualquer idade e, portanto, que essas relações devem ser preservadas para a garantia do adequado desenvolvimento físico, psíquico e social das crianças ou adolescentes venha a ocorrer (DIAS, 2017).

Ao passo que tornou a guarda compartilhada a regra geral no caso de dissolução da sociedade conjugal, a imposição legislativa (mesmo que tardia) produziu efeitos relevantes na configuração de famílias cujos genitores tiveram sua sociedade conjugal dissolvida, sendo entendida como meio de efetivação de direitos de crianças e adolescentes sob a óptica da Doutrina da Proteção Integral.

Considerações finais

Após um longo período de indiferença em relação à criança, a família moderna aderiu à uma nova forma de organização, em que os filhos são colocados no centro da estrutura familiar, estabelecendo uma mudança de perspectiva, que resultou de uma modificação histórica e social sobre a criança e o adolescente.

Aliados às evoluções dos direitos da criança e do adolescente, a relevância do princípio da convivência familiar e comunitária e do melhor interesse da criança e do adolescente, que se tornaram elementos essenciais à manutenção da família e que juntos, passaram a exercer a parentalidade responsável, são fatores relevantes para o entendimento que se tem da guarda compartilhada a da relação dos filhos com os genitores.

Em um cenário onde o infante se desloca da periferia para o centro da família, os pais separados são induzidos a modificarem suas rotinas para adaptarem-se aos hábitos de seus filhos, objetivando dirimir os possíveis efeitos negativos que uma separação pode causar sem suas vidas. O rompimento da relação entre os genitores não pode significar o afastamento de qualquer um dos dois de sua prole, bem como não deve causar prejuízos à formação da criança e do adolescente que atualmente está no centro de prioridades da família.

Até o início da Modernidade, a infância não era sequer reconhecida, tampouco protegida. No Brasil, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual foi estabelecida formalmente a Doutrina da Proteção Integral, como reflexo dos movimentos internacionais em busca de tutelar os direitos destes indivíduos, crianças e adolescentes tornaram-se efetivamente sujeitos de direitos.

A partir de então, verifica-se que a interferência necessária e discutível do Estado e da legislação no amparo de crianças e adolescentes não estava relacionada somente àquelas que não estavam inseridas em um contexto familiar, mas também passou a ser percebida nas relações privadas, amparando qualquer criança ou adolescente, que, por definição, são seres vulneráveis independente do contexto em que se encontrem.

Percebe-se que a intervenção do Estado na proteção à infância impôs que pais divorciados passassem a se preocupar eminentemente com a situação da criança, reprimindo violações de seus direitos, inclusive priorizando a convivência equilibrada com ambos os genitores, independentemente de gênero. A promulgação da Lei 13.058 de 2014, que regula o exercício da guarda compartilhada como regra geral, nada mais é que o reflexo de uma longa trajetória de mudança do entendimento que se tem sobre a infância, notadamente do seu lugar na família, que antes estava localizado na periferia.

Trata-se, sobretudo, de uma mudança de perspectiva. A guarda compartilhada objetiva não somente o exercício equilibrado da paternidade/maternidade e do poder familiar, mas, principalmente, efetivar o direito da criança e do adolescente de manter uma rotina e de conviver com ambos os seus genitores, privilegiando a sua proteção integral, e colocando seus interesses no centro da família.

Assim, pode-se concluir que a guarda compartilhada, conforme estabelecida pela Lei nº 13.058 de 2014, é um dos efeitos ocorridos na mudança da organização familiar ao longo da Modernidade, e que expressa a centralidade do infante, assim como, dos vínculos afetivos entre pais e filhos nessa nova organização, efetivando, desta forma, o direito constitucional à convivência familiar de crianças e adolescentes.

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Submetido em: 2 mar. 2020.

Aceito em: 23 jun. 2021.