OS EFEITOS DO ABANDONO NA PERDA DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA URBANA: UMA ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE

Marcelo Sampaio Siqueira

Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), Ceará.

msiqueira@siqueiraibiapina.com.br

Natercia Sampaio Siqueira

Universidade de Fortaleza (Unifor), Ceará

naterciasiqueira@yahoo.com.br

RESUMO: O objetivo da pesquisa, considerando o déficit habitacional das grandes cidades, é analisar o instituto da perda da propriedade por abandono à luz não só do princípio da função social da propriedade, como dever atribuído ao proprietário, mas também do princípio da função social da cidade, como dever atribuído à Administração Pública. A análise da intenção do abandono da propriedade à luz do artigo 1.276 do Código Civil deve ser restritiva, embora a escorreita hermenêutica, em face dos princípios citados e do da eficiência, como elemento de uma interpretação mais justa, seja no sentido de buscar a simplificação dos requisitos para caracterização da perda da propriedade e a disposição desses bens para fins de regularização fundiária. Para o atingimento de tal finalidade utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica doutrinária e jurisprudencial e o método hipotético-dedutivo. Com a pesquisa atingiu-se aos seguintes resultados: o abandono da propriedade imobiliária, antes da aquisição da propriedade pelo Município, mas durante a fase arrecadatória, pode receber destinação provisória atendendo ao princípio da função social da cidade; a inadimplência fiscal e o prazo fixado pelo artigo 65 da Lei 13.465/2017 não induzem à presunção absoluta, em face do princípio da ampla defesa.

PALAVRAS-CHAVE: Propriedade imobiliária urbana. Abandono. Arrecadação. Função social da cidade.

The effects of abandonment on the loss of urban real estate property: an analysis in the light of the principle of the social function of the city

ABSTRACT: The objective of the research, considering the housing deficit of large cities, is to analyze the institute of loss of property due to abandonment in the light not only of the principle of the social function of the property, as a duty attributed to the owner, but also of the principle of the social function of the city, as a duty attributed to the Public Administration. The analysis of the property abandonment intention in the light of the article 1,276 of the Civil Code must be restrictive, although the hermeneutic flow, in the face of the cited principles and the one of efficiency, as element of a fairer interpretation, whether in the sense of seeking to simplify the requirements for characterizing the loss of property and the disposition of these assets for purposes of land regularization. To achieve this purpose, the doctrinal and jurisprudential bibliographic research and the hypothetical-deductive method were used as methodology. With the research, the following results were achieved: the abandonment of real estate property, before the acquisition of the property by the Municipality, but during the collection phase, it can receive provisional destination in accordance with the principle of the social function of the city; tax defaults and the deadline set by Article 65 of Law 13.465 / 2017 do not lead to absolute presumption, in view of the principle of broad defense.

KEYWORDS: Urban real estate property. Abandonment. Collection. Social function of the city.

Introdução

A pesquisa desenvolvida tem como tema a propriedade imobiliária urbana e a perda desta por ato voluntário do proprietário e as consequências, tendo também por fundamento o interesse da Administração, em face do abandono do referido bem.

Não constituem objeto do estudo os motivos que levam um proprietário a descartar uma propriedade imobiliária, mas o modo como se caracteriza a intenção do proprietário de abandonar e a forma mais eficiente de substituição deste, considerando o interesse da sociedade e ponderando a adequação das regras do Código Civil brasileiro e da Lei 13.465/2017 aos princípios da função social da propriedade e da cidade.

A matéria é em parte regulamentada pelo Código Civil, constituindo uma inovação, tendo por base o Código de 1916, que cita a renúncia e o abandono como formas de perda da propriedade, sem, no entanto, regulamentar a arrecadação de bem imobiliário abandonado pelos Municípios e Distrito Federal de bem imobiliário abandonado. Tal fato demonstra o interesse do legislador em viabilizar esse tipo de arrecadação, não só para fins de moradia, mas também para urbanização, em respeito aos princípios constitucionais da função social da propriedade e da cidade, podendo a questão ser analisada também à luz do Estatuto da Cidade, fazendo-se um diálogo.

O problema a ser respondido é de natureza objetiva, levando em consideração a grande quantidade de bens imóveis abandonados nas grandes cidades, mas sem a devida regularização ou aproveitamento, impedindo que sejam utilizados por pessoas sem moradia ou pela Administração Pública. A pergunta a ser respondida por este artigo é: Quais requisitos objetivos devem ser obedecidos para a declaração da perda da propriedade e a consequente aquisição ou posse dessa pela Administração Pública, com fins de concessão de habitação à população de baixa renda?

O método de pesquisa utilizado foi a metodologia dedutiva, pesquisa teórica e qualitativa com emprego de material bibliográfico e documental legal. Foram ainda abordadas legislações essenciais, direitos fundamentais e princípios, a fim de elaborar uma boa análise dos textos normativos e das jurisprudências para o esclarecimento do tema.

O trabalho foi dividido em cinco seções, iniciadas por esta seção introdutória: 2 Perda da propriedade imobiliária no Direito Civil brasileiro: abandono e renúncia; 3 Abandono da propriedade imobiliária na legislação da Península Ibérica: efeitos comparativos; 4. Abandono de imóvel urbano e função social da cidade: arrecadação. Segue-se o fechamento do artigo com a seção 5, intitulada Considerações finais.

1. Perda da propriedade imobiliária no Direito Civil brasileiro: abandono e renúncia

O assunto perda da propriedade não constitui uma novidade, estando disciplinado desde as Ordenações Filipinas[1], passando pelo Código Civil de 1916, artigo 589[2], e hoje regulado pelos artigos 1.275 e 1.276 do Código Civil, apresentando os seguintes tipos: por alienação; pela renúncia; por abandono; por perecimento da coisa; e por desapropriação.

A alienação constitui um modo de perda derivada da propriedade, já que para sua ocorrência necessita da vontade do proprietário de transferir a propriedade a outrem. A doutrina, neste artigo representada por Venosa (2019), enumera exemplificadamente os seguintes tipos de alienação: compra e venda, doação, dação em pagamento, permuta, etc. Já a desapropriação constitui um ato de príncipe da Administração Pública ao intervir na propriedade privada sem anuência de seu detentor, tomando-lhe a propriedade. O constitucionalismo moderno, originário das revoluções americana e francesa, erigiu o direito à propriedade em garantia fundamental, não impedindo, no entanto, a desapropriação, mas garantindo indenização por sua perda, mesmo que seja para utilidade pública.

Como exemplo cita-se o artigo 179, inciso XXII[3], da Constituição do Império do Brasil, que possibilita a desapropriação, mas desde que haja indenização. Ao longo da história, já no século XX, esse instituto, que determina a perda da propriedade, sofreu evolução, em face principalmente do princípio da função social, positivada tanto na Constituição Federal de 1988 quanto no Código Civil, podendo-se destacar a prévia indenização em dinheiro e a inexistência dessa, quando a desapropriação se der em face do descumprimento da função social (ex: imóvel utilizado para produção de entorpecente ilícito).

O perecimento da coisa constitui também uma forma de perda do objeto. O desaparecimento pode se dar por força natural ou pela atividade do homem, isto é, segundo Venosa (2019, p. 1114), “não existe mais direito, por lhe faltar objeto”. Quando o bem for de natureza imobiliária, a caracterização do perecimento se torna difícil, embora a transformação de uma área em zona de proteção, que não permita habitação ou aproveitamento econômico, pode vir a ser caracterizada como perecimento por atividade humana. Assim como um terremoto ou maremoto, em caso de inundação permanente, por exemplo, pode levar ao perecimento de uma propriedade imobiliária (força natural).

As outras duas formas de perda de propriedade reguladas pelo Código Civil, que também constituem objeto deste artigo, são a renúncia e o abandono, trazendo a legislação civil traços diferenciadores dos dois instrumentos, sua forma de efetivação e definição dos requisitos.

O artigo 1.275 do Código Civil, que trata da perda da propriedade, elenca a renúncia, além de outras mencionadas nesse dispositivo, como uma das hipóteses de perda da propriedade. Dessa maneira, a renúncia[4] é definida como um ato unilateral do proprietário, independendo de aceitação de qualquer parte, por meio do qual apresenta, de forma expressa, a sua vontade de não mais permanecer com o bem, abdicando do seu direito sobre a coisa[5].

Interessante registrar que a renúncia só produzirá seus efeitos a partir do registro do instrumento renunciativo na serventia imobiliária. Logo, para que a renúncia reste configurada se faz necessário: a intenção do proprietário em renunciar (ânimo), o ato renunciativo, representado por uma escritura, e o registro do documento na serventia imobiliária.

Ainda seguindo o disposto nos tópicos do capítulo publicado por Siqueira e Matos (2019), observa-se que o abandono, como forma de perda da propriedade no Direito Civil brasileiro, inscrito no artigo 1.275, inciso III, do Código Civil, concretiza-se com a escolha do titular do bem de negligenciar a coisa, quer dizer, realiza-se por ato unilateral, que, apesar de volitivo, não exige qualquer ato formal. Isto é, o abandono se caracteriza pelo simples comportamento do titular, e é de difícil caracterização, já que, segundo Venosa (2019, p. 1113), “o fato de o proprietário não cuidar do que é seu por período mais ou menos longo não traduz de per si abandono”. Em síntese, o simples fato de não usar não implica abandono.

Isso posto, a figura do abandono, nos ensinamentos de Nader (2013), tipifica-se a partir do agrupamento de dois elementos: o objetivo (externo) e o subjetivo (interno). O elemento objetivo é estabelecido pela perda do interesse do proprietário em manter a coisa e pelo abandono da prática das ações relativas ao direito de propriedade. Por sua vez, o elemento subjetivo é delineado por um componente abstrato, a vontade ou animus do indivíduo de despojar-se do bem.

Diferentemente do que se observa na renúncia, para a configuração do abandono não se exige uma declaração expressa, registrada em Cartório, do titular da propriedade imobiliária concernente ao propósito de se desapossar do imóvel. Todavia, não bastam o mero desfazimento físico do bem e a ausência de realização de atos pertencentes ao direito de propriedade, uma vez que o proprietário ainda permanecerá como titular do imóvel em razão do registro dele na serventia imobiliária. Como exemplo, as “casas de veraneio”, que embora passem a maior parte do tempo fechadas, inutilizadas, não se enquadram na situação de abandono, posto que o proprietário tem a discricionariedade de usar o imóvel, cujo poder jurídico alberga a liberdade de não o utilizar.

Ao se comparar as ordens civis de 1916 e de 2002, constata-se que a anterior trazia os dois institutos em único artigo, 589, deixando para a doutrina terreno árido para diferenciação. O atual Código traz como novidade o artigo 1.276, que permite ao intérprete avançar na diferenciação entre os institutos do abandono e da renúncia como casos de perda da propriedade.

O abandono, conforme já exposto, prescinde do ato registral, dispensa que torna a situação jurídica mais insegura, pois sua caracterização depende da comprovação do fato do abandono, inexistente no caso de renúncia, que se particulariza de forma erga omnes com o registro da renúncia no Cartório competente. O inconveniente desta forma de perda de propriedade é sem dúvida o custo envolvido com escritura e registro para caracterização da perda da propriedade.

Reiterando o exposto no Código Civil, o artigo 1.276 traz os requisitos para a arrecadação da propriedade caso o bem imóvel tenha sido abandonado e não ocupado. O primeiro ato seria o abandono (fato) propriamente dito (elemento subjetivo – animus de abandonar); o segundo ato estaria na não detenção do imóvel abandonado por nenhuma pessoa; e o terceiro ato seria o transcurso de prazo de três anos para que o Município ou Distrito Federal pudessem iniciar a incorporação desse em seu patrimônio (elemento objetivo – despojamento prolongado da posse).

A caracterização do abandono é questão complexa, pois depende de análise exclusivamente fática, que provoca insegurança jurídica, já que muitas vezes a desocupação ou a não utilização dos atributos da posse nem sempre caracterizam o abandono. Para que haja o abandono tem que restar provada a desocupação, acrescida do ânimo de abandonar, da falta de cumprimento das obrigações fiscais e de outras obrigações civis, sem falar da questão temporal. A conjunção desses fatores pode levar à perda da propriedade pela arrecadação da Administração Pública.

Acrescenta-se que o abandono também pode levar à aquisição da propriedade por outra pessoa natural ou jurídica, caso a ocupação seja exercida por esta. Em síntese, a ocupação do bem abandonado por qualquer pessoa impede o início do processo de arrecadação, já que a ela será facultada a prescrição aquisitiva nos prazos determinados pelo Código Civil, passando a ter propriedade oponível erga omnes, constituindo uma forma originária de aquisição da propriedade.

Agora, caso o bem esteja efetivamente abandonado e não tenha sido ocupado por qualquer pessoa, inicia-se o prazo de três anos para a arrecadação do bem pelo Município ou Distrito Federal, se for o caso, após o qual a propriedade passaria à Administração Pública.

A intervenção do Estado pode ser fundamentada, nesses casos, no princípio da função social da propriedade e no princípio da função social da cidade, cujos parâmetros estão contidos no artigo 2º da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que estipula a política urbana para controle de solo, sendo o abandono da propriedade imobiliária um efeito potencial de degradação do meio ambiente urbano.

As políticas urbanas, cujas diretrizes estão contidas na citada Lei, devem sempre proteger a infraestrutura urbana, coibir a existência de bens imóveis desocupados, em face de déficit habitacional e da imposição criada pelo próprio ordenamento de que toda propriedade imobiliária deve ter seu dono.

A regra do artigo 1.276 é dirigida, salvo melhor entendimento, especialmente à Administração Pública municipal e do Distrito Federal, nos imóveis abandonados existentes nos territórios respectivos, cabendo-lhes a fiscalização e o início da arrecadação. Nos imóveis situados nas zonas rurais, a competência para arrecadação seria da União, com a observância das mesmas etapas (requisitos) descritas anteriormente.

Nesse mesmo artigo, parágrafo segundo, estabelece-se uma presunção jure et jure quando há cessação dos atos de posse acompanhada de falta de satisfação dos ônus fiscais relativos ao bem, abrangendo o não recolhimento do imposto predial e territorial urbano ou rural, a depender do tipo de imóvel e credor tributário.

Essa presunção absoluta vem originando intensos debates perante os pensadores do Direito Civil brasileiro, sendo alvo de quatro enunciados das Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[6]. A análise dos seus textos demonstra a tentativa do condicionamento dessa presunção à existência de um devido processo legal, em que o interessado possa demonstrar a não cessação da posse, destacando-se o enunciado 242, e a necessidade de apuração de cumprimento ou não do princípio da função social para caracterização da posse impeditiva. Em síntese, não é o simples abandono e a falta de pagamento de tributo, mas a existência de um processo administrativo de arrecadação.

No campo da jurisprudência, o assunto ainda não foi escorreitamente delimitado, sendo que, ao se fazer uma pesquisa de jurisprudência no sítio: www.stj.jus.br, com os critérios de pesquisa: propriedade e abandono e perda e arrecadação, encontrou-se um único acórdão. A supressão da palavra arrecadação levou ao aparecimento de até seis acórdãos, nos quais o teor dos votos não levou ao enfrentamento interpretativo do parágrafo segundo do citado artigo 1.276.

Aspectos devem ser analisados ao longo deste artigo relativos ao processo de arrecadação, que será adstrito aos bens imóveis urbanos, sendo interessante a análise e conclusão acerca dos efeitos da arrecadação, caracterização do abandono, e o próprio direito de reivindicação do proprietário, tudo em face do princípio da função social da cidade.

2. Abandono da propriedade imobiliária na legislação da Península Ibérica: efeitos comparativos

Antes de aprofundar a pesquisa e apresentar as conclusões propostas neste trabalho, passa-se a fazer uma análise comparada do instituto do abandono em Portugal e Espanha, justificando a escolha no fato de o Direito brasileiro ter sua origem institucional na Península Ibérica.

O direito comparado se mostra como importante ferramenta para o conhecimento dos institutos jurídicos em análise, concluindo Vicente (2018, p. 18) que consiste “no ramo do direito que tem por objeto o direito na sua pluralidade e diversidade de expressões culturais e procede ao estudo comparativo destas”. Adiante arremata: “Melhor se diria, pois, a fim de designá-lo, comparação de direitos”. Ainda citando o autor (VICENTE, 2018, p. 21), expõem-se duas importantes funções do direito comparado: a) “fator de enriquecimento cultural do jurista e de reforço do espírito crítico que dele se requer” (função epistemológica); b) “descoberta de soluções para os problemas postos pela regulação da convivência social” (função heurística).

A legislação civilista portuguesa, ao contrário do diploma brasileiro, não regula expressamente a figura da renúncia, mas tão somente a do abandono, que não deixa de ser uma perda voluntária do corpus pelo possuidor. O assunto é tratado no artigo 1267º, que regula a perda da posse, não existindo regra específica nesse diploma que indique de forma precisa a arrecadação desse bem pela Administração Pública, por exemplo.

Trata-se a discussão sobre a perda da propriedade de forma sistêmica pelo menos desde o Direito romano em face da necessidade dos bens de terem definidos sempre seus detentores, principalmente quando se tratar de bem imóvel, em face de sua importância patrimonial. A perda da propriedade deve ser seguida da aquisição por outrem, mesmo sendo de natureza originária. Para ilustrar o exposto, Tabosa (2007) leciona que a renúncia e o abandono (res nullius), como atos unilaterais de perda da propriedade, já eram objeto de atenção do jurista Ulpiano, citado no Digesto de Justiniano (século VI d.C.).

A doutrina lusitana, citando Santos Justo (2007), traz como modalidades de extinção da propriedade a: expropriação; perda da coisa; impossibilidade definitiva de exercício; abandono; renúncia; caducidade; não uso; e outras modalidades, como: contrato; usucapião e acessão.

O autor citado (JUSTO, 2007, p. 509) faz a distinção entre abandono e renúncia, descrevendo o primeiro como “um negócio jurídico unilateral não recipiendo”, no qual o proprietário se afasta intencionalmente do bem, tornando a coisa res nullius e suscetível de ocupação por terceiro. Já o segundo seria “uma manifestação da faculdade de disposição reconhecida ao proprietário”. Adiante, explicita que há discussão na doutrina portuguesa sobre a viabilidade da renúncia de coisas imóveis, embora ateste que uma das teses para aceitação do instituto estaria no artigo 1305º[7] do CC Português, que tipificaria essa possibilidade em face da natureza subjetiva desse direito, cujo conteúdo possibilitaria, como defesa ao proprietário, renunciar sua propriedade.

O fato, conforme já mencionado, comprobatório de que o Código Civil Português não traz expressamente a figura da renúncia é que o abandono é tratado na parte do texto que regula a posse. Vieira (2016, p. 387) ensina:

Da renúncia deve distinguir-se o abandono. Este respeita unicamente à posse e traduz-se na perda voluntária do corpus pelo possuidor, originando a extinção daquela (art. 1267º, nº1 alínea a). No abandono o possuidor quebra o controlo material que tinha sobre a coisa, deixando de o exercer por opção própria. Naturalmente, o possuidor que abandona a coisa possuída renuncia à sua posse, mas a declaração de renúncia à posse sem perda de controlo material da coisa (corpus) não implica a sua extinção. O art. 1257º, nº1 é expresso ao dispor que a manutenção da posse supõe a mera possibilidade de actuação material. Aquele que declarou renunciar à posse mas continua com a coisa em seu poder, tem posse. Este é mais um trecho da separação entre os factos extintivos da posse e os factos extintivos dos restantes direitos reais.

A análise desse tema perante a citada doutrina portuguesa é interessante, pois mostra que o abandono é tratado por essa, com fundamento no artigo 1267º do CC Português, como fator extintivo da posse, enquanto a renúncia, não regulada expressamente pelo texto civil, seria um fato extintivo de direito real, como a propriedade.

Ao final, Vieira (2016) expõe que a renúncia se exterioriza por meio de uma declaração e, em se tratando de bem imóvel, estaria sujeita à forma de escritura pública (art. 80º, nº 1 do Código do Notariado). Em síntese, observa-se que a doutrina portuguesa estuda os dois institutos (abandono e renúncia) fazendo distinção entre ambos e que, ao contrário do que acontece no Brasil, o Código Civil lusitano de 1966 não regula de forma expressa a renúncia e o abandono é tratado como extinção da posse. Lembra-se de que, no Brasil, o abandono e a renúncia são tratados como tipos de perda da propriedade.

Assim como no Direito português, o Direito espanhol trata, no seu Código Civil de 1889[8], o abandono como uma das possibilidades de perda da posse, não a ligando diretamente à perda da propriedade, embora aquela possa levar a esta, já que o uso constitui uma das faculdades da propriedade.

No artigo 462, o Código também determina que a posse de coisas imóveis e dos direitos reais não se entendem perdidas caso esse fato jurídico resulte em prejuízo de terceiros, a exemplo de credores do possuidor/proprietário que venha a abandonar seu bem.

Atualmente o assunto abandono da propriedade imóvel no reino da Espanha e sua consequente arrecadação deve ser também analisado à luz da Lei 33/2003, que trata do patrimônio da Administração Pública. No artigo 17[9] resta claro que a coisa sem dono pertence ao Estado. Logo, tendo por base a citada legislação[10], o abandono físico da coisa por seu dono deve estar associado à vontade de abdicar de todos os direitos sobre a mesma. No entanto, em se tratando de bem imóvel, passa a formar parte do patrimônio do Estado.

A citada lei traz inúmeras regras para a Administração Pública espanhola adquirir onerosamente, ceder, arrendar, incorporar, administrar, entre outros institutos, bens públicos. No mesmo texto há escassez de regra acerca da forma como se dá a adjudicação de bem abandonado pela Administração Pública, não restando dúvida da necessidade do devido processo legal, em face do artigo 24 da Constituição espanhola, que trata da tutela efetiva e do direito de defesa.

Ao contrário da legislação brasileira, a lei espanhola não faz menção à renúncia, embora trate o abandono como perda da posse por ato voluntário, sendo requisito essencial a comprovação da vontade de abdicar. A conclusão é que a legislação brasileira trata de forma expressa e diversa as figuras da renúncia e do abandono, como tipos de perda da propriedade, e traz requisitos para a configuração do abandono, como por exemplo o aspecto temporal. Os ordenamentos da Península Ibérica não trazem a distinção entre os institutos, mas comungam com o princípio de que o abandono pode levar à perda da posse e consequentemente da propriedade e de que não deve perdurar o estado de indefinição acerca da propriedade imobiliária.

3. Abandono de imóvel urbano e função social da cidade: arrecadação

Nos tópicos anteriores fez-se uma análise conceitual, histórica e comparativa do instituto do abandono como fato que leva à perda da propriedade, não sendo objeto deste trabalho tecer maiores comentários sobre a renúncia, embora também possa ser objeto de arrecadação.

No abandono, conforme visto, a perda da propriedade deve ser considerada como efetivada no momento do abandono efetivo, com o devido ânimo, mas a inexistência de um ato formal, como exigido pela renúncia, dificulta sua caracterização. Por outro lado, a adjudicação pela Administração Pública, observando a devida competência, só se dará ao final do período de três anos e respeitando o devido processo legal.

Acrescenta-se ainda o fato da falta de legislação local sobre o procedimento de arrecadação ou adjudicação do bem abandonado. Tomando por exemplo o município de Fortaleza, com quase dois milhões e setecentos mil habitantes[11], fora menção genérica nos artigos 249 e 250 do Plano Diretor (Lei Complementar municipal nº 62 de 2009[12], que repete em parte a regra do artigo 1.276 do CC), não há qualquer legislação que trate do processo de arrecadação de bens imóveis abandonados e sua destinação.

Ainda tendo por espelho o município de Fortaleza, observa-se que esse possui uma das maiores densidades demográficas do País (8.393,1 hab./km2 – estimativa IBGE de 2018)[13]. Ainda citando os números do IBGE referentes ao censo de 2010, constata-se que aproximadamente quatrocentas mil pessoas moram precariamente ou em favelas na referida cidade, o que caracteriza uma carência de habitação digna, considerando também a densidade demográfica, que demonstra grande população para uma pequena área territorial. Já o município de São Paulo, em pesquisa realizada em 2015 (SÃO PAULO [Cidade], 2015) e utilizando dados de 2010, atesta uma quantidade de 293.621 imóveis vagos ou ociosos. Em 2018, em reportagem do G1 (SANTIAGO; MURARO, 2018), atestou-se um déficit habitacional no maior município brasileiro de aproximadamente 358 mil novas moradias.

Os dados apresentados, considerando duas cidades bastantes adensadas e com grande quantidade de população vivendo precariamente, são interessantes para justificar a necessidade de se utilizar da arrecadação de bens imóveis abandonados como política de desenvolvimento social e para o cumprimento do princípio da função social da cidade.

Não constitui tarefa deste artigo analisar as razões que motivam um proprietário de imóvel urbano a abandonar sua propriedade, mas é fato que os imóveis desocupados permanentemente constituem um problema urbano, seja em consideração ao déficit habitacional, seja em relação à degradação ambiental provocada pelo bem abandonado decorrente do acúmulo de sujeira no local, por exemplo.

Partindo do pressuposto de que é dever do estado zelar pelo meio ambiente, mesmo o artificial, e da positivação da função social das cidades, torna-se necessária a adoção de medidas para diminuir o “estoque” de bens abandonados, passando a ser atribuição do Estado os atos profiláticos.

Quando a manutenção do imóvel desocupado, com aspecto de abandono, é gerada por especulação imobiliária, os municípios possuem meios para coibir essa prática, podendo aplicar o IPTU progressivo e até medidas de edificação compulsória, tudo em conformidade com o artigo 5º e seguintes da Lei 10.257/2001.

Ocorre que a manutenção do bem desocupado ou sem uso pelo proprietário para fins especulativos ou por descaso não implica abandono no sentido de perda da propriedade. Lembre-se de que para caracterização do abandono deve-se comprovar a cessação da posse, o ânimo de abandonar e o prazo de três anos, após o que poderá ter início o processo de arrecadação.

A dificuldade para comprovação dos citados requisitos, alinhada à fiscalização deficiente promovida pelos municípios brasileiros, faz com que a atividade de arrecadação dos bens vagos para fins de aquisição da propriedade seja quase inexistente. No caso da renúncia, estudada na seção 2, a caracterização seria mais fácil, pois essa prescinde da prática de um ato formal pelo renunciante mediante escritura, cujo registro levaria à perda da propriedade e à possibilidade de arrecadação imediata.

A falta de fiscalização e de normas reguladoras para fins de arrecadação de bens abandonados, aliada à inexistência de órgãos municipais imbuídos do propósito de cadastrar essas propriedades abandonadas, torna possível a abertura de processo administrativo arrecadatório, para que se proceda ao apossamento e às devidas notificações ao proprietário, respeitando-se o devido processo legal, ato não muito comum nas grandes cidades brasileiras

Não resta dúvida que a solução das inquietações motivadores desta investigação passa não só pela análise do artigo 1.276 do CC, mas também de normas de natureza administrativa ligadas ao direito urbanístico, ramo do Direito que visa regular o urbanismo[14], elevado ao status de ciência interdisciplinar.

Conforme já dissertado, é bastante comum a existência de imóvel desocupado, mas a perda da propriedade pelo abandono não se mostra um fato corriqueiro. A propriedade imobiliária, para Siqueira (2018), considerando o ordenamento brasileiro, é limitada pelos princípios da função social e econômica da propriedade[15] e da função social da cidade. O abandono de um bem imobiliário sempre vai significar, independentemente da adjudicação final, que a propriedade não é garantida constitucionalmente, gerando o dever para a Administração Municipal de requerer a implementação de medidas de adequação ou até arrecadação, respeitando o due process of law. A manutenção perpétua do status de desocupado para o bem, sob o argumento do direito exclusivo e subjetivo do seu proprietário, mesmo que não caracterize abandono, claramente privilegia um suposto direito subjetivo ao direito social e desconsidera não só o princípio da função social[16], mas principalmente o princípio da função social da cidade dirigido ao Estado, que deve atuar nessas questões.

O principio da função social da cidade encontra-se positivado no artigo 182 da CF, tendo a Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) complementado a norma referida, cujas diretrizes estão definidas no inciso I e seguintes do artigo 2º. O conteúdo desse é o cumprimento de um plano que permita o ordenamento do meio urbano de forma mais harmoniosa à população e com menor intervenção no meio ambiente natural.

A função social da cidade, conforme exposto em Siqueira (2018), expressa um preceito constitucional dotado de positividade e eficácia, que condiciona diretamente o desenvolvimento urbano da cidade. O condicionamento é no sentido de que toda intervenção urbanística, entre elas a forma de dispor do bem imobiliário promovida pelos particulares, deve atender ao princípio do bem-estar social.

O fato é que a desocupação ou o efetivo abandono de imóvel implica infração aos princípios da função social da propriedade e da função social das cidades, o que possibilita a atuação da Administração Pública. Isto é, o bem nesse estado passa a não ser garantido pelo ordenamento jurídico brasileiro, que assegura sob certas condições o direito de propriedade. No caso dos imóveis urbanos, dentro das políticas urbanas orientadas pelo artigo 2º da Lei 10.257/2001, o abandono autoriza o município a tomar medidas eficazes de proteção ao meio ambiente artificial, já que bem desocupado tem o poder de causar enormes prejuízos ao bem-estar das cidades, que no caso brasileiro sofrem com a falta de moradias ou com a falta de qualidade dessas, que não atendem, no tocante a falta e qualidade destas, ao mínimo existencial.

Recentemente surgiu no Brasil mais uma norma legal, cujo objetivo é a regularização fundiária urbana e rural. Está-se falando da Lei 13.465/2017, que, por exemplo, acrescentou o instituto do direito de laje como uma espécie nova de direito real, objeto dos novos artigos 1510-A a 1510-E, ao CC brasileiro. Entre outras regras dessa legislação, citam-se os artigos 64 e 65, organizados no capítulo que trata da arrecadação de imóveis abandonados, cuja aplicação, a despeito de constituir uma legislação federal, é defendida também para os Municípios e Distrito Federal, estando suas normas em conformidade com o artigo 22, inciso I, da CF, mesmo considerando os interesses locais.

Além do mais, a Lei Federal em comento, que trata da questão da arrecadação de imóveis abandonados, não está regulando ou dando destinação a bens públicos pertencentes aos municípios, mas disciplinando apenas processo administrativo arrecadatório, considerando as normas do Código Civil já citadas. Logo, as regras em comento são aplicáveis aos Municípios e Distrito Federal, que podem complementá-las, considerando o artigo 30, inciso VIII, da CF.

Inovação digna de nota, trazida pela nova legislação, seria o reforço da presunção absoluta de abandono quando ocorrer inadimplemento fiscal igual ou superior a cinco anos[17], assim como o disciplinamento do procedimento administrativo de arrecadação, cujo texto, inscrito no § 2º, inciso III, do artigo 64, determina a notificação e o exercício, se assim desejar, do direito de impugnação pelo proprietário, o que de certa forma já descaracteriza a presunção absoluta determinada pelo CC, artigo 1.276, e pela Lei 13.465/2017[18].

Não confundir o prazo de cinco anos estipulado pelo artigo 63 com o prazo de 3 anos previsto no Código Civil. O primeiro seria requisito para iniciar o processo administrativo de arrecadação e se refere não ao tempo de abandono, mas de inadimplência fiscal, cuja caracterização depende também da comprovação de inexistência de oposição à cobrança fiscal. Já o prazo de três anos é referente à aquisição da propriedade pela Administração Pública deve ser observado para o início do processo administrativo de arrecadação.

Além do mais a chamada presunção absoluta não afasta o direito de o particular, em mora com o fisco, se opor à arrecadação. Logo, a citada presunção será na verdade relativa.

Imóvel abandonado, conforme lições de vários civilistas como Monteiro (2003) e Gonçalves (2013), constitui coisa de ninguém, e caso a arrecadação não seja contestada no prazo de três anos resta consolidada a propriedade do Município, no caso dos imóveis urbanos. Ressalta-se que a arrecadação só poderá ser realizada com o início do procedimento administrativo, comprovando-se quando de sua abertura a existência dos requisitos tratados no artigo 64 da Lei 13.465/2017 e a inexistência de qualquer tipo de posse por qualquer pessoa sobre a área.

Dois tópicos interessantes devem ser respondidos por este artigo relativos ao momento da perda da propriedade pelo proprietário que abandona[19] o bem imóvel e o momento de aquisição pelo Município ou Distrito Federal, no caso de imóveis urbanos. A questão é difícil.

Defende-se, em face da conclusão aceita há séculos no Direito brasileiro, que coisa abandonada é coisa de ninguém, a tese de que a perda da propriedade pelo particular ocorre no momento do abandono, devendo ser considerado o ânimo naquela oportunidade[20]. O fato de o particular poder contestar a arrecadação, caso reste provado que o ato constitui um abuso de direito, significa que o proprietário nunca abandonou ou teve a intenção de abandonar o bem, tornando indevida a arrecadação. Logo, na situação em que a oposição do proprietário for procedente, observa-se que nunca ocorreu a perda da propriedade.

A vitória do proprietário no processo administrativo de arrecadação ou no Judiciário não implica remissão do crédito tributário devido, tendo em vista a propriedade territorial do bem em questão. O artigo 64 da Lei 13.465/2017 também confere o direito à Administração Pública de cobrar todas as despesas envolvidas com a posse do bem arrecadado, inclusive multas, presumindo-se, nesse caso, salvo melhor juízo, a boa-fé da Administração.

A fundamentação para o entendimento ora defendido encontra previsão nos artigos 1.201, 1.241 e 1219, considerando não só o estado de desocupação do bem em questão, mas o princípio da função social[21] da propriedade, que deve coibir as omissões do proprietário (a propriedade obriga) em prejuízo da coletividade, como por exemplo: o não cumprimento das ordens administrativas de limpeza sistemática da área e de manutenção da calçada, entre outras, ou o uso da propriedade para fins especulativos.

Cita-se também que a propriedade, como fator de produção, possui sua função econômica[22], artigo 1.228, § 1º, do CC, que difere da função social, mas também limita o uso do bem, sendo claro que o não usar não estará condizente com nenhuma das funções determinadas pela Carta Civil.

Já o momento da aquisição pelo Município ou Distrito Federal, considerando a natureza urbana do bem imóvel, só se dará com a declaração pelo Judiciário, após o processo de arrecadação e comprovada a posse do município por três anos. A sentença declaratória constituiria título aceito pelo registro de imóveis competente, passando o bem ao domínio da entidade pública.

Inovação digna de nota trazida pela Lei 13.465/2017 é o artigo 65, que claramente regula atos de posse durante o período de arrecadação. A análise da regra, assim como dos princípios contidos no artigo 2º do Estatuto da Cidade[23], possibilita ao Município ou Distrito Federal, considerando suas competências, utilizar o bem arrecadado para fins de moradia, concessão de direito real de uso, ou para utilização de entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse da Administração Pública arrecadante.

O preceito em comento claramente está em consonância com o princípio da função social da cidade[24], que inibe a utilização de bens imóveis em desacordo ao seu teor programático, estabelecido de forma geral pelo Estatuto da Cidade e Plano Diretor, considerando os Municípios e o Distrito Federal, e compõe um preceito constitucional dotado de positividade e eficácia, que condiciona diretamente o desenvolvimento urbano da cidade. O condicionamento, conforme já visto anteriormente, é no sentido de que toda intervenção urbanística, entre elas o uso ou falta de uso do bem imóvel urbano pelos particulares, deve atender ao princípio do bem-estar social. A diferença entre função social da propriedade imobiliária urbana e função social das cidades é sutil, já que o fim é semelhante, mas a segunda possui um raio de ação mais difuso, amplo e direcionado à Administração Pública, ao ditar regras, enquanto a primeira tem como objeto a restrição legal direta ou indireta do direito de propriedade, cujo destinatário é o proprietário.

A arrecadação do bem imóvel constitui um dever da Administração Pública e o uso da propriedade arrecadada deve estar em conformidade com a função social da propriedade definida principalmente nos planos diretores dos Municípios, considerando o déficit habitacional e as políticas urbanas lá contidas, que obrigam o administrador e o proprietário, que pode perder a garantia da propriedade em caso de inadimplência.

Ainda tratando da arrecadação do bem abandonado, informa-se que desde o início do processo administrativo para esse fim, já se confere à Administração Pública a posse de boa-fé, a não ser que se prove o contrário, possibilitando o uso imediato do bem desocupado, inclusive mediante concessões a terceiros. Defende-se, no entanto, que o Poder Público responde por qualquer ato administrativo oriundo de sua posse ou concessão, caso seja julgado improcedente o procedimento administrativo, que faz coisa julgada, ou o pleito judiciário, a ser iniciado após essa primeira fase (arrecadação) pelas procuradorias municipais e distrital correspondentes, para obtenção do título de domínio[25].

Agora ao tratar da responsabilidade do Estado, fundamentada no artigo 37, § 6º, da CF, afirma-se que essa será de natureza objetiva e estará caracterizada caso a arrecadação seja improcedente, causando danos ao proprietário, que deverá ser ressarcido dos danos sofridos e comprovados, obrigando-se a Administração a restituir o bem livre de quaisquer bens ou coisas.

Por fim, defende-se que a concessão do bem arrecadado a terceiro importa no dever desse de restituir a posse à Administração, restando nulo o ato concessivo, podendo, no entanto, a Administração, ao devolver o bem ao proprietário, cobrar pelas benfeitorias e acessões, em conformidade com o artigo 64 da Lei 13.465/2017 e o artigo 1.219 do CC, desde que provada a boa-fé, cabendo o poder de retenção.

A importância da Lei de 2017, sem dúvida alguma, é possibilitar, salvo melhor juízo, a reutilização imediata do bem arrecadado, estando essa conclusão fundamentada no princípio da função social da cidade e no artigo 2º do Estatuto da Cidade. Observa-se que mesmo que não reste provado o abandono, o não uso do bem já caracteriza infração à ordem urbanística e justifica, de certa forma, a aplicação de sanção ao proprietário, independentemente de outros instrumentos contidos no citado estatuto, como a aplicação do IPTU progressivo, que necessita de lei específica para área, e até a desapropriação, sanção prevista no artigo 8º da Lei 10.257/2001.

Considerações finais

As conclusões obtidas com a pesquisa, que trata do instituto do abandono como modalidade de perda da propriedade imobiliária urbana e do procedimento de arrecadação pelo Município, em face do princípio da função social da cidade, expostas neste artigo ao longo dos itens dissertados, podem ser sintetizadas nos seguintes pontos:

a)   diferentemente do que se observa na renúncia, para a configuração do abandono não se exige uma declaração expressa, registrada em Cartório, do titular da propriedade imobiliária concernente ao propósito de se desapossar do imóvel. Todavia, não bastam o mero desfazimento físico do bem e a ausência de realização de atos pertencentes ao direito de propriedade, uma vez que o proprietário ainda permanecerá como titular do imóvel em razão do registro dele na serventia imobiliária;

b)   a legislação brasileira trata de forma expressa e diversa as figuras da renúncia e do abandono, como tipos de perda da propriedade, e traz requisitos para a configuração do abandono, como por exemplo o aspecto temporal. Os ordenamentos da Península Ibérica não trazem a distinção entre os institutos, mas comungam com o princípio de que o abandono pode levar à perda da posse e consequentemente da propriedade e de que não deve perdurar o estado de indefinição acerca da propriedade imobiliária abandonada.

c)   a Lei Federal 13.465/2017, que trata nos artigos 64 e 65 da questão da arrecadação dos bens abandonados, não está regulando ou dando destinação a bens públicos pertencentes aos Municípios, mas disciplinando apenas o processo arrecadatório, considerando as normas do Código Civil já citadas. A inovação digna de nota é reforçar a presunção absoluta de abandono quando ocorrer inadimplemento fiscal igual ou superior a cinco anos[26] e disciplinar o procedimento administrativo de arrecadação, cujo texto, inscrito no § 2º, inciso III, do artigo 64, determina a notificação e o exercício, se assim desejar, do direito de impugnação pelo proprietário, o que de certa forma já descaracteriza a presunção absoluta determinada pelo CC, artigo 1.276, e pela Lei 13.465/2017.

d)   a arrecadação do bem abandonado, mediante o início do processo administrativo para esse fim, já confere a posse de boa-fé, a não ser que se prove o contrário, à Administração Pública, possibilitando o uso imediato do bem desocupado, inclusive na forma de concessões. Conclui-se, no entanto, que o Poder Público responde por qualquer ato administrativo oriundo de sua posse ou concessão, caso seja julgado improcedente o procedimento administrativo, que faz coisa julgada, ou o pleito judiciário, a ser iniciado após essa primeira fase (arrecadação) pelas procuradorias municipais e distrital correspondentes, para obtenção do título de domínio. A responsabilidade do Estado, fundamentada no artigo 37, § 6º, da CF, que será de natureza objetiva, estará caracterizada caso a arrecadação seja improcedente, causando danos ao proprietário, que deverá ser ressarcido em caso de prejuízo, obrigando-se a Administração a restituir o bem livre de quaisquer bens ou coisas.

Referências

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Recebido em: 12 fev. 2020.

Aceito em: 8 abr. 2020.

 



[1]  Livro II, Título XXVI, § 17, que davam ao Fisco “todos os bens vagos, a que não he achado senhor certo”.

[2]  Vide Bevilaqua (1958, p. 103), que atesta, ao comentar o artigo 589 do Código Civil de 1916: “O abandono, porém, não se presume. Deve resultar de atos que o indiquem de modo positivo.

[3]  Constituição de 1824: “Art. 179 [...] XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.”

[4]  Para elucidar o que foi dito, Miranda (1983, p. 125) afirma que “A renúncia ao domínio ou a qualquer direito real importa renúncia às pretensões e ações. Porém é renunciável o domínio sem algum dos seus elementos, como o usufruto.”

[5]  Como sugestão de leitura cita-se Siqueira e Matos (2019).

[6]  Enunciados: 242 e 243 da III Jornada de Direito Civil; 316 da IV Jornada de Direito Civil; e 297 da VI Jornada de Direito Civil.

[7]  Código Civil Português - Decreto-Lei 47.344/66: “Artigo 1305º (Conteúdo do direito de propriedade): O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.

[8]  Código Civil Espanhol - Real Decreto de 24 de julio de 1889: “Artículo 460. El poseedor puede perder su posesión: 1.º Por abandono de la cosa. 2.º Por cesión hecha a otro por título oneroso o gratuito. 3.º Por destrucción o pérdida total de la cosa, o por quedar ésta fuera del comercio. 4.º Por la posesión de otro, aun contra la voluntad del antiguo poseedor, si la nueva posesión hubiese durado más de un año.

[9]  Legislação espanhola – Ley 33/2003, de 3 de noviembre: “Artículo 17. Inmuebles vacantes. 1. Pertenecen a la Administración General del Estado los inmuebles que carecieren de dueño. 2. La adquisición de estos bienes se producirá por ministerio de la ley, sin necesidad de que medie acto o declaración alguna por parte de la Administración General del Estado. No obstante, de esta atribución no se derivarán obligaciones tributarias o responsabilidades para la Administración General del Estado por razón de la propiedad de estos bienes, en tanto no se produzca la efectiva incorporación de los mismos al patrimonio de aquélla a través de los trámites prevenidos en el párrafo d) del artículo 47 de esta ley. 3. La Administración General del Estado podrá tomar posesión de los bienes así adquiridos en vía administrativa, siempre que no estuvieren siendo poseídos por nadie a título de dueño, y sin perjuicio de los derechos de tercero. 4. Si existiese un poseedor en concepto de dueño, la Administración General del Estado habrá de entablar la acción que corresponda ante los órganos del orden jurisdiccional civil.” (grifo nosso)

[10] Vide Lasarte (2019).

[11] estimativa de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE

[12] Lei Complementar municipal 62/2009: Seção IX. Do Abandono Art. 249 - O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que não se encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado como bem vago. Parágrafo Único - Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos da posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. Art. 250 - No caso de qualquer imóvel se encontrar na situação descrita no artigo anterior, o Município deverá instaurar processo administrativo para a arrecadação do imóvel como bem vago.

[13] Para fazer uma comparação, a cidade de São Paulo tem uma densidade de 8.054 hab/km2 – estimativa de 2019 (SÃO PAULO, 2020).

[14] Siqueira (2018, p. 87) afirma: “O urbanismo não é uma simples arte para tornar as cidades mais agradáveis, mas uma ciência interdisciplinar [...], contando com disciplinas, cujo objeto de estudo é compartilhado com outras ciências, como o Direito, a Economia, a Sociologia e a Ecologia (entre outras), cada uma com seu foco específico, mas contribuindo para a constituição de um todo, que é a correção das distorções nas concentrações habitacionais humanas. Para se chegar a esse fim, expõe-se, em face do interesse público, que o controle e planejamento urbano (atividade urbanística) é exercido pelo Estado, que passa a tomar as medidas necessárias por meio de atos de ordenação do solo, do sistema viário e da manutenção sustentável do meio ambiente, entre outros.”

[15] Vide artigo 1.228 do CC e 182 da CF.

[16] Função social como direito, liberdade e garantia vide Canotilho (2003).

[17] Prazo não fixado pelo artigo 1.276 do CC, o que constitui uma inovação.

[18] Lei 13.465/2017. Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago. § 1º A intenção referida no caput deste artigo será presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana, por cinco anos. § 2º O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou distrital e observará, no mínimo: I - abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação; II - comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal; III - notificação ao titular do domínio para, querendo, apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de recebimento da notificação. § 3º A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação. § 4º Respeitado o procedimento de arrecadação, o Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja prontamente os objetivos sociais a que se destina. § 5º Na hipótese de o proprietário reivindicar a posse do imóvel declarado abandonado, no transcorrer do triênio a que alude o art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), fica assegurado ao Poder Executivo municipal ou distrital o direito ao ressarcimento prévio, e em valor atualizado, de todas as despesas em que eventualmente houver incorrido, inclusive tributárias, em razão do exercício da posse provisória. Art. 65. Os imóveis arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços públicos, ao fomento da Reurb-S ou serão objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município ou do Distrito Federal.

[19] Sobre o abandono, Monteiro (2003, p. 170) leciona: “Podem determinar o abandono ônus reais sobremaneira gravosos (por exemplo, no caso do art. 1.382 do Cód. Civil de 2002), ou fiscais muito pesados, bem como gastos vultosos para a sua utilização, sobre excedentes do respectivo valor. Na Alemanha, ao tempo da inflação, segundo relata Martin Wolff, numerosos proprietários preferiram abandonar suas propriedades, por não se sentirem capazes de mantê-las de acordo com as disposições administrativas referentes à segurança dos prédios.”

[20] Sobre os requisitos para o processo de arrecadação, em face da Lei 13.465/17, destacam-se Gama e Ramos (2019, p.): “Assim, resta claro que devem estar presentes os elementos subjetivos – ausência de posse e de animus – e objetivos, qual seja, o não recolhimento dos ônus fiscais. O critério referente ao não recolhimento de tributo busca facilitar a identificação, conjugado com o não uso, do abandono imobiliário, eis que o simples não uso pode acarretar incerteza acerca da intenção abdicativa.”

[21] Vide Siqueira (2018, p. 299): “O significado da função social da propriedade não se encontra só no sentido de bem-estar que seu uso deve acarretar, mas principalmente na disciplina da conduta do proprietário, que deve pautar a utilização do direito de propriedade em consonância com aspectos sociais, econômicos, ambientais e urbanísticos. A propriedade, contudo, não é uma função social. Parece ser a conclusão mais acertada aquela a deixar claro que a função social não se confunde com o conceito de propriedade, mas constitui componente da estrutura da propriedade funcionalizada. Em síntese, o uso da propriedade sem o cumprimento da função social não pode levar ao extermínio do direito, mas à exclusão da garantia constitucional.”

[22] Siqueira (2018, p. 304) defende: “A função econômica da propriedade está́ representada na sua utilidade econômica e produtiva, isto é, se o exercício da propriedade está́ sendo eficiente. A apresentação desse sintético conceito coloca pesquisadores do Direito e Economia (Law and Economics) diante de uma afirmação de natureza econômica para explicar uma restrição ao direito de propriedade.”

[23] Lei 10.257/2001: Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...] VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; [...]”

[24] Vide Siqueira (2018).

[25] Ajudam no entendimento do processo de arrecadação as interpretações realizadas pelo Judiciário, cabendo destacar a decisão no REsp 1176013/SP, que traz no voto vencedor ideia clara de procedimento judicial para reconhecimento do domínio: RECURSO ESPECIAL - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - NÃO OCORRÊNCIA - AÇÃO DE INVENTÁRIO - PRETENSÃO DE UM DOS HERDEIROS DE TRAZER À COLAÇÃO BEM IMÓVEL QUE TERIA SIDO ABANDONADO PELO DE CUJUS - FORMALIZAÇÃO DO ABANDONO DE PROPRIEDADE IMÓVEL - DESNECESSIDADE, PARA OS FINS COLIMADOS NA PRESENTE AÇÃO - AFERIÇÃO DA EXISTÊNCIA DE ABSTENÇÃO DOS ATOS DE POSSE PELO TITULAR, COM ÂNIMO DE ABANDONAR - NECESSIDADE - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - Da análise acurada do artigo 589, III, do CC/1916, constata-se que a alteração do registro existente, como condição de consolidação da perda da propriedade, recai, tão-somente, sobre as hipóteses de alienação e de renúncia. Em tais circunstâncias, portanto, o registro possui natureza constitutiva-negativa da propriedade; II - Em relação às hipóteses remanescentes (abandono e perecimento do imóvel), o preceito legal (§ 1º, do artigo 589, CC/1916), de natureza restritiva, não impõe a referida exigência. Quisesse o legislador (de 1916) exigir que o titular do bem imóvel, ao pretender abandoná-lo (situação eminentemente fática que é aferida por meio da abstenção de atos de posse do titular), formalizasse tal desiderato perante o registro, inseriria o abandono no referido § 1º, do artigo 589, CC/1916. Porém, caso assim procedesse, diferença alguma pairaria sobre a renúncia e o abandono de bem imóvel; III - Tem-se, portanto, que a alteração do registro, em razão do abandono da propriedade, não tem o condão de desconstituir a propriedade do titular, mas, sim, declarar a perda da propriedade daquele; IV - Não se pode exigir que o reconhecimento de abandono, para os fins colimados na presente ação, somente se dê, por exemplo, após a efetivação de procedimento formal de arrecadação do bem imóvel ao patrimônio público (o qual exige a constituição do débito tributário, adoção de medidas judiciais para caracterizar o bem como vago e, após três anos, viabilizar que o Poder Público possa incorporá-lo ao seu patrimônio), se as circunstâncias fáticas apontam em direção oposta; V - Em razão do fundamento adotado pelas Instâncias ordinárias (que ora se afasta), não se perscrutou, como seria de rigor, se houve ou não, por parte do de cujus, ao longo desse período, efetiva abstenção de atos de posse, com intenção de abandonar o bem. Aos que alegam a perda da propriedade, dever-se-ia conferir oportunidade para demonstrar, por exemplo, o não pagamento de encargos fiscais incidentes sobre o imóvel (pelo de cujus ou por seus herdeiros), inexistência de atos de disposição etc; VI - Para a presente ação de inventário (em que se verificará se referido bem deverá ser trazido à colação ou, em razão de eventual reconhecimento de abandono daquele, tão-somente o produto da ação indenizatória), a demonstração dos fatos alegados é imprescindível para o reconhecimento ou não do instituto do abandono de propriedade imóvel; VII - Recurso Especial provido. (BRASIL, 2010, grifos nossos).

[26] Prazo não fixado pelo artigo 1.276 do CC, o que constitui uma inovação.