CONSTITUCIONALISMO CORPORATIVO: ENTRE INTERESSES, INOVAÇÃO E RISCOS

Wilson Engelmann

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul

[email protected]

Júnior Roberto Willig

Universidade do Vale do Taquari (UNIVATES), Rio Grande do Sul

[email protected]

RESUMO: A globalização, ancorada na Quarta Revolução Tecnológica, acompanhada de suas incertezas e riscos, enfraquece os Estados nacionais e abre espaço para novos atores globais, como as corporações, gerando também novos espaços de constitucionalização social. Neste sentido, o problema do presente artigo questiona como o fragmento do constitucionalismo corporativo enfrentará os riscos criados pelas inovações tecnológicas. Assim, este artigo objetiva identificar evidências sobre a idoneidade das corporações na atuação e no desenvolvimento de seus corporate codes of conduct. Para isso, a presente pesquisa utilizará o método fenomenológico hermenêutico, com vistas a penetrar nos fenômenos e, com base nas contradições, percebê-los em sociedade, sendo que os métodos de procedimento utilizados no presente trabalho serão o método histórico e o comparativo. Desta forma, as reflexões começam com a análise do comportamento da sociedade na era da Quarta Revolução Industrial. Em seguida, procura-se demonstrar as tendências de uma constitucionalização social na globalização. Ao final, busca-se alertar sobre a sociedade de risco e avaliar a idoneidade do constitucionalismo corporativo. Nesse sentido, conclui-se que há evidências que os corporate codes of conduct, em função dos interesses envolvidos, podem desenvolver um “direito corrupto”.

Palavras-chave: Corporate codes of conduct. Constitucionalismo. Inovação. Risco.

Corporate Constitutionalism: between interests, innovation and risks

ABSTRACT: Globalization, anchored in the Fourth Technological Revolution, accompanied by its uncertainties and risks, weakens national states and opens space for new global actors, such as corporations, also generating new spaces for social constitutionalization. In this sense, the problem of the present article questions how the fragment of corporate constitutionalism will face the risks created by technological innovations. Thus, this article aims to identify evidence on the suitability of corporations in the performance and development of their corporate codes of conduct. For this, the present research will use the hermeneutic phenomenological method, with a view to penetrating the phenomena and based on the contradictions to perceive them in society, and the procedural methods used in the present work will be the historical and comparative method. Thus, the reflections begin with the analysis of the behavior of society in the era of the Fourth Industrial Revolution. It then seeks to demonstrate the trends of social constitutionalization in globalization. In the end, we seek to warn about the risk society and evaluate the suitability of corporate constitutionalism. In this sense, it concludes that there is evidence that corporate codes of conduct, due to the interests involved, can develop a “corrupt right”.

Keywords: Corporate codes of conduct. Constitutionalism. Innovation. Risk.

Introdução

A complexidade da sociedade mundial, que não respeita as tradicionais fronteiras terrestres, faz com que estruturas tradicionais, como os Estados nacionais, se submetam a novas realidades políticas e jurídicas. Impulsionada pela globalização e pela Quarta Revolução Industrial, a sociedade mundial fragmenta-se em sistemas sociais que ousam desenvolver um constitucionalismo para seu próprio espaço.

Com uma forte conotação corporativa-empresarial, estes novos espaços empresariais são cobrados e questionados pelos riscos que induzem na nação global. Riscos que, por diversas vezes, perpassam fronteiras nacionais e necessitam ser minimizados de forma rápida. Neste sentido, pode-se questionar, como Beck (2018), vivendo na modernidade suicida (capitalismo), a caixa-preta das questões políticas fundamentais se reabre: quem fala pelo “cosmo”? Quem representa a “humanidade”? É o Estado? A cidade? Os atores da sociedade civil? Especialistas? “Gaia”? E quem fala por sua própria espécie?

Neste cenário, marcado por uma nova Revolução Industrial e pela insuficiência de um constitucionalismo com base no Estado nacional, o problema do presente artigo questiona como o fragmento do constitucionalismo corporativo enfrentará os riscos criados pelas inovações tecnológicas.

Em relação ao questionamento acima, apresentam-se duas hipóteses, sendo que a primeira refere que, apesar do constitucionalismo corporativo ter como base instituições privadas, ele necessariamente será obrigado a manter um foco no ser humano e na sociedade, inibindo os riscos tecnológicos. A segunda hipótese aponta que, em função de possíveis interesses "corruptos" da iniciativa privada, há a possibilidade de uma maximização dos riscos na sociedade, sem medidas constitucionais no fragmento corporativo para inibi-los.

Neste sentido, o objetivo principal do presente artigo é identificar evidências sobre a idoneidade das corporações na atuação e no desenvolvimento de seus corporate codes of conduct.

Para atingir o objetivo acima, a presente pesquisa utilizará o método fenomenológico hermenêutico, com vistas a penetrar nos fenômenos e com base nas contradições percebê-los em sociedade. Os métodos de procedimento utilizados no presente trabalho serão o método histórico e o comparativo. A investigação do objeto, levando-se em conta o seu objetivo geral, dar-se-á por meio de pesquisa descritiva, que, no presente caso, pretende aprofundar a descrição de determinada realidade e cujos resultados são válidos apenas para o caso que se está estudando. E, para chegar aos resultados esperados, a presente pesquisa utiliza as seguintes técnicas de pesquisa: bibliográfica e documental.

1. Uma resolução corporativa

A intensidade da sociedade atual denota movimentos numa velocidade nunca vivenciada. Com ações de diversas frentes, atinge e altera profundamente paradigmas individuais e sociais, que, exponencialmente, alteram sistemas inteiros. Essa é a definição clássica de uma mudança na forma de uma estrutura - de uma sociedade -, ou seja, nada mais que uma revolução[1]. Schwab (2016) sinaliza que esses são os indicadores da Quarta Revolução Industrial, uma nova revolução tecnológica, que, segundo o autor, implicará em nada menos que a transformação de toda a humanidade.

Avanços tecnológicos são experienciados há séculos, mas a intensidade das mudanças tecnológicas dos últimos anos tem marcado profundamente uma era de inovações disruptivas, caracterizadas por exemplos vindos de novas áreas, como a nanotecnologia ou a biotecnologia, e outros vindos de novos produtos e processos, como o Uber, Airbnb, Netflix, Google, WhatsApp, entre tantos outros, todos alterando profundamente o modo de vida da sociedade mundial. Conforme refere Castells (1999), é claro que a tecnologia não determina a sociedade e nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive a criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta científica, inovação tecnológica e aplicações sociais, de forma que o resultado depende de um complexo padrão interativo. “Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas” (CASTELLS, 1999, p. 43).

A Quarta Revolução Industrial é a eclosão de outro movimento recente, a tecnociência ou sociedade tecnocientífica, que repercutiu durante o século XX. Não em relação à essência da expressão “tecnociência”, que sugere basicamente a inseparabilidade da ciência e da técnica modernas, proposta inicialmente por Gilbert Hottois e já apontada por Heidegger (2008), quando este afirmava que a ciência e a técnica se tornavam indispensáveis uma à outra. Mas, conforme propõe Morin (2005), considerando o novo universo da tecnociência, no qual a técnica, que gera incessantemente novos poderes, pôs-se a serviço da economia para criar e desenvolver as indústrias, os transportes, as comunicações, impulsionando assim os desenvolvimentos econômicos contemporâneos, e a pesquisa científica, em certos domínios de ponta, como a química e a genética, também entra no mundo dos lucros e, com isso, leva esse mundo para a ciência.

Na tecnociência, [o utilitarismo] torna-se efetivamente o objetivo primário da pesquisa científica para aumentar nosso poder de controlar – assim, a tecnociência representa o fortalecimento e a perpetuação de uma tendência sempre presente na tradição científica. Ao mesmo tempo, o que se considera como “fins úteis” tende a ser interpretado sob a luz dos valores do capital e do mercado. Portanto, surge a ideia de que a Ciência visa a inovações tecnocientíficas que contribuam para o crescimento econômico, e a Ciência institucionalizada se torna em grande medida tecnociência orientada comercialmente (LACEY, 2013, p. 8).

Este formato de inovação (tecnocientífica), o qual a técnica produzida pelas ciências transforma a sociedade, o mercado e o interesse econômico da sociedade, é a origem da sociedade tecnocientífica. Diferentemente dos tempos passados, não se tem como objetivo extrair e explorar recursos naturais, mas sim manipular e criar formas de vida artificiais, sejam humanas, técnicas ou ambientais a partir da manipulação dos dados elementares da natureza (AZAMBUJA, 2013).

Atualmente, a transformação da sociedade e do mercado mundial, propondo uma inversão do processo de inovação, com a economia demandando inovações, preferencialmente disruptivas, e recebendo, como retorno, tecnologias extraordinárias, consiste num novo capítulo do desenvolvimento humano - na Quarta Revolução Industrial -, que, comparando, está no mesmo nível das três revoluções industriais anteriores[2] (SCHWAB, 2018). Ela teve início, segundo Schwab (2016), na virada do século e baseia-se na revolução digital[3], sendo caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos, pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina).

Apesar da matriz dos processos de inovação na Quarta Revolução Industrial incluir novos atores - como, por exemplo, os indivíduos e a sociedade civil -, há ainda uma forte influência da Hélice Tríplice[4], de autoria de Henry Etzkowitz e Loet Leydesdorff, que parte da tríade: academia, empresas e governo, e que, atualmente, serve de base para diversos países que visam melhorar ou aperfeiçoar seus processos e sistemas internos de inovação. Schwab (2016) referenda essa tendência na sua obra, citando que os países, regiões e cidades precisam investir fortemente para se transformarem em plataformas de lançamento da transformação digital, atraindo empresários e investidores de startups inovadoras. “A medida que as empresas jovens e dinâmicas e as empresas estabelecidas se conectam umas com as outras, com os cidadãos e com as universidades, as cidades tornam-se locais de experimentação e poderosos polos para transformar novas ideias em valor real para as economias locais e globais” (SCHWAB, 2016, p. 82).

A criação de ecossistemas de inovação é um dos objetivos das cidades no século XXI. Castells (1999) já referia que as descobertas tecnológicas ocorrem em agrupamentos, interagindo entre si num processo de retornos cada vez maiores, pois entende que a inovação tecnológica não é uma ocorrência isolada.

Ela reflete um determinado estágio de conhecimento; um ambiente institucional e industrial específico; uma certa disponibilidade de talentos para definir um problema técnico e resolvê-lo; uma mentalidade econômica para dar a essa aplicação uma boa relação custo/benefício; e uma rede de fabricantes e usuários capazes de comunicar suas experiências de modo cumulativo e aprender usando e fazendo (CASTELLS, 1999, p. 73).

Na realidade, neste novo cenário, a economia (agora global) da Quarta Revolução Industrial não é fruto somente das inovações disruptivas, mas é uma opção (necessária) dos stakeholders envolvidos no cenário econômico. E não é complexo entender o motivo dessa opção, pois, atualmente, conforme refere Spence (2011), entende-se que o crescimento vem da inovação, do progresso tecnológico. Segundo o autor, é ele que aumenta o potencial produtivo de uma economia ao longo do tempo. Isso significa que, com os mesmos insumos de capital, mão de obra, matéria-prima e energia, você consegue produzir mais (ou gerar produtos mais valiosos).

No entanto, Spence (2011) também alerta que o crescimento econômico sempre ocorre em paralelo com o desenvolvimento das instituições políticas, jurídicas e reguladoras, com aplicação em níveis nacionais, regionais e internacionais. É um processo contínuo em que os incrementos na capacidade econômica e na eficácia do governo complementam entre si. Na realidade, conforme refere Castells (1999), essa nova economia global foi constituída politicamente.

A reestruturação das empresas, e as novas tecnologias da informação, embora fossem a fonte das tendências globalizadoras, não teriam evoluído, por si só, rumo a uma economia global em rede sem políticas de desregulamentação, privatização e liberalização do comércio e dos investimentos. Essas políticas foram decididas e implantadas pelos governos ao redor do mundo, e por instituições econômicas internacionais. É necessário ter uma perspectiva da economia política para entender o triunfo dos mercados sobre os governos: os próprios governos clamaram por uma vitória, numa tendência suicida histórica. Fizeram isso para preservar/aprimorar os interesses de seus estados, dentro do contexto de surgimento de uma nova economia, e no novo ambiente ideológico que resultou do colapso do estatismo, da crise do previdencialismo e das contradições do estado desenvolvimentista (CASTELLS, 1999, p. 188, grifo nosso).

Neste cenário, marcado pelo triunfo do mercado, evidentemente, há um destaque para as empresas, entre os atores dos processos de inovação. A academia, por exemplo, não é um stakeholders de mercado. A universidade, no modelo da hélice tríplice, transforma-se de uma instituição centrada basicamente no ensino, em uma instituição que combina seus recursos e potenciais na área de pesquisa com uma nova missão[5], voltada ao desenvolvimento econômico e social da sociedade onde atua, estimulando o surgimento de ambientes de inovação e disseminando uma cultura empreendedora (AUDY, 2006). Enquanto a universidade amplia o seu foco, a empresa busca justamente aproveitar este alargamento para incorporar o conhecimento produzido nas universidades e incorporá-lo ao sistema produtivo. A empresa é transformada, de uma unidade competitiva relacionada a outras empresas somente através do mercado, a uma entidade de hélice tríplice, cada vez mais baseada em relações com outras empresas, assim como com a academia e o governo (ETZKOWITZ, 2009).

No entanto, apesar deste cenário inovador não ser novidade, a forma agressiva como as empresas agem junto ao conservadorismo das pesquisas no meio acadêmico, incentivando formas mais comerciais de investigação, tem mobilizado alguns desafios e discussões, especialmente diante do terceiro ator: o governo[6].

O governo, apesar de parecer um coadjuvante[7], tem uma importância fundamental nos processos de inovação da Quarta Revolução Industrial. Aliás, conforme refere Schwab (2016), pela própria natureza fundamental e global dessa revolução, ela afetará e será influenciada por todos os países, economias, setores e pessoas. É, portanto, crucial que a sociedade volte a atenção e energia para a cooperação entre múltiplos stakeholders que envolvam e ultrapassem os limites acadêmicos, sociais, políticos, nacionais e industriais.

É fundamental a compreensão de que o Estado não é nenhum “intruso” e nem um mero facilitador do crescimento econômico. É equivocada a visão do Estado como inimigo da empresa, ponto de vista que se encontra frequentemente em publicações de negócios bastante respeitadas, como a revista The Economist, que costuma se referir ao governo como um “leviatã hobbesiano”, que deveria ocupar um lugar secundário (MAZZUCATO, 2014, p. 42).

O Estado é responsável pela maioria das inovações radicais, que revolucionaram a sociedade atual e que alimentam a dinâmica do capitalismo. Mazzucato (2014) refere que, das ferrovias à internet[8], até a nanotecnologia e farmacêutica modernas, apontam para o Estado a origem dos investimentos “empreendedores” mais corajosos, incipientes e de capital intensivo.

E [...] todas as tecnologias que tornaram o iPhone de Jobs tão “inteligente” [smart] foram financiadas pelo governo (internet, GPS, telas sensíveis ao toque (touch-screen) e até o recente comando de voz conhecido como SIRI). Tais investimentos radicais - que embutiam uma grande incerteza - não aconteceram graças a investidores capitalistas ou “gênios de fundo de quintal”. Foi a mão visível do Estado que fez essas inovações acontecerem. Inovações que não teriam ocorrido se ficássemos esperando que o “mercado” e o setor comercial fizessem isso sozinhos - ou que o governo simplesmente ficasse de lado e fornecesse o básico (MAZZUCATO, 2014, p. 26).

Mas também é preciso fazer algumas ressalvas quando da atuação do Estado neste cenário inovador, especialmente quando não se demonstra confiante. Mazzucato (2014) refere que o mais provável é que o Estado seja submetido e se curve aos interesses privados. Não assumindo um papel de liderança. O Estado se torna uma pobre contrafação do comportamento do setor privado em vez de uma alternativa real. E as críticas costumeiras de que o Estado é lento e burocrático são as mais prováveis nos países em que ele é marginalizado e obrigado a desempenhar um papel puramente “administrativo”. No mesmo sentido, Castells (1999) identifica que, embora não determine a tecnologia, a sociedade pode sufocar seu desenvolvimento principalmente por intermédio do Estado.

O fato é que há os dois modelos de Estado na conjuntura política atual. Inclusive, a hélice tríplice, na formatação em espiral, desenvolvida por Etzkowitz e Leydesdorff, tem início a partir de dois pontos de vista opostos: um modelo estatista de governo, que controla a academia e a indústria, e um modelo laissez-faire, com empresas, academia e governo atuando separadamente, interagindo de forma modesta apenas por meio de fortes fronteiras. A atual versão da hélice tríplice representa uma configuração intermediária entre os dois modelos anteriores. Neste modelo, as três esferas institucionais apresentam uma região de superposição, onde se identificam redes trilaterais e organizações híbridas, com papéis flexíveis e dinâmicos, o que gera um espiral de inovação (CARVALHO, 2009).

Para explicar o seu modelo, Etzkowitz (2009) utiliza a teoria do campo da hélice tríplice, que prevê a necessidade de as três esferas manterem um status relativamente independente e distinto, pois uma esfera institucional pode perder seu caráter distinto se não puder manter sua independência relativa. Mostra onde as interações ocorrem e demonstra que uma hélice tríplice dinâmica pode ser formada com graduações entre independência e interdependência, conflito e confluência de interesse.

Na realidade, é importante um Estado direcionado, proativo, empreendedor, capaz de assumir riscos e criar um sistema altamente articulado, que aproveita o melhor do setor privado para o bem nacional em um horizonte de médio e longo prazo. O Estado agindo como o principal investidor e catalisador, que desperta toda a rede para a ação e difusão do conhecimento. O Estado pode e age como criador, não como mero facilitador da economia do conhecimento (MAZZUCATO, 2014, p. 48).

Assim, apesar de três atores na hélice, conforme refere Castells (1999), são as empresas ou nações (ou entidades políticas de diferentes níveis, tais como regiões ou a União Européia) os verdadeiros agentes do crescimento econômico. Não buscam a tecnologia pela própria tecnologia ou aumento de produtividade para a melhora da humanidade. Comportam-se em um determinado contexto histórico, conforme as regras de um sistema econômico, que no final premiará ou castigará sua conduta. Assim, as empresas estarão motivadas não pela produtividade, e sim pela lucratividade e pelo aumento do valor de suas ações, para os quais a produtividade e a tecnologia podem ser meios importantes, mas, com certeza, não os únicos. E as instituições políticas, moldadas por um conjunto maior de valores e interesses, estarão voltadas, na esfera econômica, para a maximização da competitividade de suas economias. A lucratividade e a competitividade são os verdadeiros determinantes da inovação tecnológica e do crescimento da produtividade (CASTELLS, 1999, p. 136).

Com um discurso de compartilhamento e de integração dos atores econômicos, poderia se questionar por que os holofotes ainda estão direcionados somente às empresas. Isso talvez ocorra, conforme refere Mazzucato (2014), pelo fato de que assumir riscos tem sido cada vez mais resultado do esforço coletivo - com o Estado desempenhando um papel de liderança no sistema de “inovação aberta” -, enquanto os frutos têm sido distribuídos menos coletivamente[9]. É preciso haver uma dinâmica funcional risco-recompensa que substitua a disfuncional “risco socializado” e “recompensa privatizada", que caracteriza a atual crise econômica, evidenciada na indústria moderna e no setor financeiro. O equilíbrio correto entre risco e recompensa pode fortalecer - em vez de enfraquecer - a inovação futura e refletir sua natureza coletiva através de uma difusão mais ampla de seus benefícios[10] (MAZZUCATO, 2014, p. 245).

Ainda, cabe referir que são as empresas, na ponta do processo de inovação, as responsáveis por apresentar as novas tecnologias ao mercado global. O que gera o sentimento de pertencimento das tecnologias à iniciativa privada, que, de fato, é o ator de mercado.

Neste novo cenário, de inovações disruptivas e de economia global, guiado por empresas com braços e relações transnacionais e com uma presença menor dos Estados Nacionais, questiona-se também a tradicional formatação dos sistemas do direito e da política. Especialmente porque se considera que os reguladores neste campo da Quarta Revolução Industrial estão atrasados em relação aos avanços tecnológicos, em razão da velocidade e dos impactos multifacetados destes últimos. Assim, conforme refere Schwab (2016), já que os governos e as estruturas controladas por eles estão ficando para trás em relação à regulamentação, talvez a liderança seja tomada pelo setor privado e não pelos agentes estatais.

A dinâmica da sociedade do século XXI e as especificidades de um cenário global sugerem novas experiências na seara do sistema do direito. No próximo subtítulo, desenvolve-se esse novo contexto jurídico, que necessita buscar um assentamento fora das fronteiras do Estado Nacional e uma adequação em relação aos processos globais.

2. A revolução constitucional fragmentada

A potência da Quarta Revolução Industrial e a velocidade com que se expandem as suas inovações disruptivas são resultado também da globalização. Especialmente, diante da recepção destas inovações por um sistema econômico global, que, por sua vez, exige novas posturas de outros sistemas. Baseados nas tradicionais concepções territoriais, sistemas como o do Direito e do Estado são atingidos fortemente com o fenômeno da globalização, intensificado com a queda do Muro de Berlim no final do século XX.

A globalização despolitiza a sociedade mundial por meio de novas estratégias de politização. Substitui a política exclusivista dos Estados nacionais pela política alargada da ‘sociedade mundial’, ou seja, sem um Estado mundial. Não parece tão exageradamente dizer que a sociedade mundial ainda não possui ordem nem instituições [...] (CAMPILONGO, 2011, p. 134).

Neste sentido, o ponto de partida, que visa analisar essa nova sociedade mundial, é a Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann (2007), que, em suma, refere que a sociedade é composta pela comunicação. O autor refere que, a partir das infinitas ramificações que esse elemento pode assumir, a sociedade moderna diferencia-se em diversos sistemas sociais[11]. Inicialmente, os sistemas possuem a função de reduzir a complexidade inerente ao contexto social. Levando-se em conta a possibilidade infinita de comunicação, cada sistema possui a função de selecionar no ambiente social o que corresponde à sua comunicação própria.

A teoria sistêmica de Luhmann tem como base a comunicação organizada no desempenho de funções específicas. Isso significa que os limites de seus subsistemas não podem mais ser integrados por fronteiras territoriais comuns. Somente o subsistema político continua a usar tais fronteiras, porque a segmentação em estados parece ser a melhor maneira de otimizar sua própria função. Mas, outros subsistemas, tais como a ciência e economia, espalham-se pelo globo inteiro (LUHMANN, 1999). Alguns autores, como Beck (1999), questionam essa teoria, perguntando o que significam o direito, a cultura, a família e a sociedade civil na sociedade transnacional, haja vista que entendem que, com a perda do significado do Estado nacional, sua imagem (da teoria dos sistemas) idealizada de uma sociedade dominada pela diferenciação funcional acaba também por perder sua realidade e seu sentido. Outros, como Campilongo (2011), defendem a teoria dos sistemas, referindo que, apesar da extraordinária força que as relações de mercado e a economia internacional ganharam com a globalização, nada indica que o Estado, as leis, a ciência ou, em linguagem técnica, os subsistemas funcionalmente diferenciados da política, do direito, da ciência etc. estejam tornando-se indiferenciados e completamente submetidos a um único vértice, supostamente o sistema econômico.

Antes de seguir com a análise da Teoria dos Sistemas de Luhmann, cabe uma breve análise do sistema econômico. Uma ordem que exige uma constituição própria, ou seja, uma constituição econômica ordoliberal autônoma diante da política. Segundo Teubner (2016), a proposta econômica poderia ser promissora, mas há um problema, pois, ao invés de se enxergar como uma bandeira para a multiplicidade de constituições parciais autônomas, ela quer ser a referência da sociedade, ou seja, quer institucionalizar, em todos os âmbitos da sociedade, mecanismos de mercado e a lógica da concorrência. O autor entende que o potencial das constituições sociais próprias - como a econômica - são as decisões dos seus processos políticos, que ocorrem fora da política institucionalizada. Ou seja, sua autonomia funda-se não na ciência, nem no mercado ou em mecanismos de concorrência, mas sim em processos políticos de constitucionalização dentro da própria economia.

Outra teoria constitucional independente, que valora o sistema econômico, é a constitucional economics. Nada mais que uma tentativa de dominar, com base nos princípios da rational choice[12], dinâmicas divergentes - como a saúde, política, ciência e tecnologia, comunicações em massa, o direito etc. - por meio de uma economicização forçada (TEUBNER, 2016).

Apesar do pessimismo de Teubner em relação à constitucionalização econômica, Neves (2009) refere que há um primado social da economia - uma sociedade econômica. Refere o autor que não se trata de um primado onticamente essencial, nem forçosamente de perda da autonomia dos outros sistemas sociais. Mas afirma que, nos ambientes dos diversos sistemas parciais da sociedade mundial (moderna), a economia (associada à técnica e à dimensão da ciência a esta vinculada) constitui o mais relevante fator a ser observado primariamente.

É importante referir que a abordagem em relação à constituição própria do sistema da economia representa outra característica da teoria dos sistemas sociais de Luhmann (2007), que é a existência de um acoplamento estrutural entre sistemas, ou seja, pontes de interconexão sistêmica que permitem um acoplamento entre as estruturas de diferentes sistemas. Entre os sistemas, como, por exemplo, do Direito e da Política, a partir de uma aquisição evolutiva ocorrida ao longo da história, as constituições[13] representam esse acoplamento estrutural, ao passo que todas as decisões políticas, observadas por meio do código Governo/Oposição e do meio de comunicação simbolicamente generalizado Poder, devem necessariamente se referir a uma comunicação do Sistema do Direito, ou seja, ao mesmo tempo integrarem a codificação jurídica Direito/não Direito[14] (LUHMANN, 2007).

E, num contexto de enfraquecimento do Estado nacional, é exatamente este acoplamento estrutural, o Direito Constitucional, ou seja, a parte do direito público que trata das regras ou instituições cujo conjunto forma em cada meio estatal a Constituição do Estado, que sofre os impactos da globalização, uma vez que elementos que o vinculavam diretamente (Estado e território) foram radicalmente alterados na sociedade globalizada (COSTA, 2018).

Em função das dificuldades em se globalizar, Teubner (2003) afirma que o sistema da política atingiu uma mera “proto-globalidade”, com relações fracas entre os níveis nacional e transnacional. A mesma constatação também é visualizada por Schwab (2016), quando refere que, em níveis de liderança e compreensão para repensar sistemas econômicos, sociais e políticos - nacional e globalmente, o quadro institucional necessário para governar a difusão das inovações e atenuar as rupturas é, na melhor das hipóteses, inadequado e, na pior, totalmente ausente. Assim, o acoplamento estrutural existente entre os sistemas do Direito e da Política, que formam a Constituição em Luhmann (2007), resta enfraquecido em uma sociedade global.

Este cenário, no qual a sociedade mundial moderna nasce como sociedade mundial, apresentando-se como uma formação social que se desvincula das organizações políticas territoriais, embora estas, na forma de Estados, constituam uma das dimensões fundamentais à sua reprodução, implica, em princípio, que o horizonte das comunicações ultrapassa as fronteiras territoriais do Estado. Formulando com maior abrangência, pode-se referir que se tornam cada vez mais regulares e intensas a confluência de comunicações e a estabilização de expectativas das identidades nacionais ou culturais e fronteiras político-jurídicas (NEVES, 2009, p. 26).

A soberania estatal passou a ser relativizada por meio da ação de sujeitos supranacionais ou transnacionais também dotados de poder político. O Estado nacional, marca da Paz de Westphalia, passou a não possuir mais o monopólio do poder político (ZOLO, 2010). A globalização, nesse sentido, representa a disseminação do processo de diferenciação funcional para todo o globo terrestre, sendo que o conceito anterior de território, não possui mais uma referência geográfica, mas como esfera simbólica de poder (TEUBNER, 2016).

Ao mesmo tempo, a força crescente dos sistemas baseados primariamente em expectativas cognitivas, seja no plano estrutural (economia, técnica e ciência) ou semântico (meios de comunicação de massa) da sociedade mundial, tornou praticamente imprescindível na emergência de uma “nova ordem mundial”, concernente a processos de tomada de decisão coletivamente vinculante e mecanismos de estabilização de expectativas normativas e regulação jurídica de comportamentos (NEVES, 2009, p. 31). Neste sentido, considerando o fenômeno da globalização e que, conforme refere Teubner (2016), o ponto principal da política e do direito reside ainda hoje no Estado Nacional, há a exigência que o direito se desvincule da política democrática no âmbito estatal, enfatizando-se as “constituições civis” da sociedade mundial (NEVES, 2009, p. 33).

Portanto, sem a referência do território do Estado Nacional e acompanhando o desenvolvimento histórico de Teubner (2016), no qual o autor desacredita a) o constitucionalismo liberal[15], por ignorar os âmbitos sociais parciais; b) o contramodelo totalitário[16], em função da pretensão reguladora do Estado; e c) o modelo do Estado Social[17], que apesar de reconhecer a necessidade de normatizar os âmbitos sociais parciais, não reconhece a autonomia de cada um desses âmbitos sociais parciais, chega-se a uma proposta de pluralismo constitucional.

Para Teubner (2016), em diversos locais da sociedade, formam-se ordens autoconstituidoras, que são estabilizadas, em diferentes graus, por meio de normas jurídicas constitucionais. A partir da globalização, é possível constatar como as normas jurídicas não são mais produzidas exclusivamente pelo Estado (Sistema da Política), mas também por outros atores dotados de autonomia. Nesse sentido, o pluralismo jurídico, então, não estará mais definido por um grupo de normas sociais conflitantes num determinado campo social, mas como coexistência de diferentes processos comunicativos que observam ações sociais na ótica do código binário direito/não-direito (TEUBNER, 2003). O fato é que, mais recentemente, com a maior integração da sociedade mundial, esses problemas tornaram-se insuscetíveis de serem tratados por uma única ordem jurídica estatal no âmbito do respectivo território (NEVES, 2009, p. XXI).

Neste sentido, o código Direito/não Direito não deve mais ser entendido (como é em Luhmann) como sinônimo de Direito estatal. Em um mundo de pluralismo jurídico, sem a existência de um Sistema do Direito global sustentado em um Sistema da Política também globalizado, a codificação binária Direito/não Direito restaria enfraquecida, com a abertura para um espaço de fragmentação constitucional (TEUBNER, 2016).

No mar da globalidade, formam-se apenas ilhas de constitucionalidade. Mostram-se pedaços esparsos de uma nova realidade constitucional global, que se caracteriza por meio da coexistência de ordens independentes, não apenas aquelas estatais, mas também aquelas de instituições sociais não estatais autônomas (TEUBNER, 2016, p. 107).

Sem uma correspondência do acoplamento estrutural entre política e direito no plano da sociedade mundial e diante de conflitos que apresentam dimensões constitucionais e que exigem decisões jurídicas constitucionais, há o desenvolvimento de normas jurídicas constitucionais nos respectivos fragmentos parciais[18]. Segundo Teubner (2016), este seria o novo e surpreendente fenômeno da autoconstitucionalização de ordens globais sem Estado, quando sistemas parciais da sociedade mundial começam a produzir suas próprias normas jurídicas constitucionais, que dão suporte à sua autoconstituição.

No entanto, também é interessante observar que, apesar do fechamento operacional destes sistemas parciais, não se busca a formação de uma constituição econômica, científica ou midiática sui generis. As diversas constitucionalizações globais aportam em outros locais, em processos sociais concretos “abaixo” dos sistemas funcionais, em organizações formais e em transações formalizadas, não vinculadas às fronteiras dos Estados Nacionais, mas sim com pretensões de alcance global (TEUBNER, 2016). Em relação à constatação da manifestação autônoma do constitucionalismo para além da estrutura estatal, Sciulli foi quem elaborou o conceito de constitucionalismo social. O autor, que influencia diretamente a obra de Teubner, constatou a produção de normas nas formações colegiadas vinculadas a organizações e profissões. Segundo ele, a constitucionalização nesses ambientes contribuiu para combater o autoritarismo no passado (COSTA, 2018).

Candidatos primários para as constituições próprias de âmbitos parciais da sociedade mundial são as organizações transnacionais, ou seja, as organizações internacionais do mundo dos Estados, as empresas multinacionais e as organizações não governamentais. Vesting (2015) apresenta exemplos mais pontuais, referindo que, no campo extraestatal, aponta-se para a padronização (técnica) transnacional e, aqui, por exemplo, para a autoadministração dos nomes e endereços da Internet pelo ICANN, para o Direito contratual internacional em crescimento (OMC), para os novos direitos consuetudinários internacionais (proibição da tortura) para os padrões de organismos internacionais (segurança do tráfego aéreo, Codex Alimentarius) ou para as regulamentações oriundas dos comitês da EU (comitologia).

Dos exemplos acima citados, a OMC e a ICANN são referidos por diversos autores. Conforme refere Costa (2018), a emancipação constitucional está na Organização Mundial do Comércio (OMC), cujas recomendações, princípios e hierarquia normativa são seguidos indistintamente ao longo da sociedade global, com fortes consequências para os atores que não as seguem. Em posição semelhante, destaca-se a função (jurisdicional?) do Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), por meio de seus painelistas, na resolução de conflitos envolvendo manifestações na internet. Muitas vezes, principalmente nos debates acerca de liberdade de expressão e censura, há considerações acerca de possíveis direitos fundamentais da internet.

Importante perceber que nos dois exemplos citados acima há a seleção de uma comunicação específica do Sistema do Direito (direito/ não direito) realizada não mais pelo Sistema da Política ou do Direito em sua perspectiva tradicional, vinculado ao Estado. Nesse ambiente, outros sistemas autônomos da sociedade mundial passam a se emancipar, formando-se os fragmentos constitucionais, regulamentos próprios oriundos de normas não produzidas pelo Estado (TEUBNER, 2016).

Em relação à ICANN - Corporation for Assigned Names and Numbers, trata-se de uma associação privada de acordo com o direito associativo da Califórnia. É considerada a organização governamental da internet, que debate questões de governança da internet, trabalhando os nomes de domínio. Embora esteja vinculada em sua origem ao direito norte-americano e subordinada, em princípio, ao direito da Califórnia, a ICANN, no que concerne à sua competência e força regulatória, desvinculou-se do seu criador, podendo até mesmo negar a entidade ou órgão governamental americano o direito de usar um nome de domínio (NEVES, 2009). Teubner (2016) entende que a ICANN desenvolveu normas de direito fundamental transnacionais vinculantes e atentas às particularidades da internet. Na realidade, construiu uma rede de contratos, através dos quais a ICANN pode formar um amplo sistema regulatório para além das fronteiras de sua estruturação formal. Contratos individuais e organizações formais orientam-se para um único fim e, só no plano emergente, formam um complexo regulatório.

No mesmo sentido, Neves (2009) destaca a força regulatória da ICANN na cooperação e resolução de conflitos de difícil solução na transversalidade entre a lex digitalis transnacional e o direito estatal. O autor cita que o problema transconstitucional reside no fato de que os judiciários estatais, caso compreendam que o uso da internet por quem detém um nome de domínio está contrariando princípios ou regras constitucionais da ordem estatal, precisam fazer uma solicitação à ICANN, para que essa entidade privada, com plena autonomia, decida sobre essa solicitação. Os judiciários estatais não dispõem de poder nem meios técnicos para determinar, de forma vinculatória, que seja revogada a atribuição de um nome de domínio a um usuário. Nem, portanto, que haja uma nova atribuição de nome de domínio a um outro usuário. A ICANN dispõe, nesse caso, do poder de decidir se acata ou rejeita, conforme suas próprias normas jurídicas, a decisão estatal.

Em relação à OMC, sem dúvidas é o exemplo de emancipação constitucional mais conhecido. Segundo Teubner (2016), a sua constitucionalização ocorreu em quatro direções distintas: a) a juridificação da resolução de conflitos, considerada a mais importante, haja vista que simples painéis que serviam para arbitrar, por meio de negociações diplomáticas, conflitos entre os Estados-membros e a OMC sobre a interpretação do contrato de trabalho, se transformaram ao longo do tempo em genuínos “tribunais”, com ampla competência decisória, hierarquia decisória própria e melhores chances de imporem suas decisões; b) a adoção do princípio da nação mais favorecida; c) a prevalência das normas comerciais sobre o processo político; e d) a opção da eficácia direta. A lex mercatoria desenvolveu, ao longo de sua história, que remonta até o merchant law medieval, um rico acervo de experiências como configuração jurídica autônoma, não-nacional (TEUBNER, 2003).

Apesar do histórico da lex mercatoria, Neves (2009) alerta que a sua deficiente autonomia perante os processos econômicos globais, sublinhando-se que ela é extremamente fraca tanto perante os ataques de atores econômicos quanto diante das pressões políticas, e, nesse sentido, permanecerá sendo também no futuro “um direito corrupto”.

Na realidade, a possibilidade de formação de normas corruptas não é uma exclusividade da lex mercatoria. Teubner (2016) afirma que a relativa independência da política estatal, conquistada pelo direito constitucional de fragmentos globais, será conquistada ao preço de uma nova dependência da constelação de poder e interesses dentro dos fragmentos globais. Contudo, deve-se temer a formação de normas constitucionais “corruptas”, resultantes de um estreito acoplamento de constituições parciais com conjunturas parciais de interesses.

Assim, neste cenário perturbador, que ainda evolui para outros exemplos, como os fragmentos globais de regimes privados-empresariais, é possível questionar como sustentar novas normas constitucionais, eivadas de interesses, com foco na lucratividade de suas estruturas, em uma sociedade que passa por um processo ímpar de uma revolução tecnológica que a humanidade ainda não conseguiu entender nem chegou a cogitar os efeitos colaterais. No próximo subtítulo, o objetivo é justamente entender a presença de uma constituição própria nas corporações empresariais e ver seus reflexos e possíveis comportamentos em uma sociedade do risco tecnológico.

3. Corporate codes of conduct: entre riscos e interesses

A sociedade mundial procura novas referências para a sua consolidação. As empresas e o mercado, presentes no subsistema da economia, ganham relevância e assumem o primado da revolução tecnológica e da nova ordem constitucional. Apesar de ser um processo hipercomplexo, a sociedade mundial migra para um destaque do plano privado em relação ao tradicional plano público, que tinha como referência a figura do Estado Nacional. Essa migração gera um cenário de incertezas e de insegurança do novo frente ao tradicional e questiona se os interesses privados são idôneos para as escolhas necessárias da sociedade mundial.

Ainda mais num cenário em que a tecnologia está alterando profundamente a maneira como as pessoas vivem, trabalham e se relacionam. Nas palavras de Schwab (2016, p. 12), “as mudanças são tão profundas que, na perspectiva da história humana, nunca houve um momento tão potencialmente promissor ou perigoso”. O alerta tem como base, por um lado, os reflexos negativos da inovação, identificados e nominados como riscos. A palavra “risco”, no sentido de perigo, vem do francês do século XVIII, quando passou a significar “perigo com algum elemento de azar ou acaso”. Neste sentido, Luhmann (2006) propõe inclusive uma distinção entre risco e perigo, afirmando que só é possível falar de riscos quando possíveis danos são consequências da própria decisão; sendo que é mais adequado falar de perigos quando os danos ou as perdas estão relacionados com causas fora do próprio controle. O risco relativo a inovações tecnológicas, mais precisamente o risco à saúde, à vida e ao meio ambiente, parece ter surgido com a Revolução Industrial, ou seja, com a invenção da máquina a vapor, que tinha um potencial de causar um número maior de acidentes do que outras invenções humanas criadas até o final do século XVIII.

Portanto, os riscos de efeitos colaterais baseados em escolhas, especialmente associadas ao processo de inovação tecnológica, não é algo novo. A “Sociedade de Risco”, título da obra clássica do filósofo Ulrich Beck, lançada em 1986, logo após o acidente nuclear de Chernobyl, alerta sobre os riscos e potenciais de autoameaça[19], numa medida até então desconhecidos, do processo de modernização (BECK, 2010, p. 23). De uma forma perspicaz, Beck (2010) alerta sobre o novo modelo de desenvolvimento, que incorpora o emprego de tecnologias e não utiliza mais exclusivamente a extração natural, gerando um processo de modernização reflexivo[20], que se converte em tema e problema.

Interessante observar que a sociedade de risco, desenhada por Beck, não é uma crise ou uma revolução, mas surge a partir das vitórias do capitalismo, que exige um dinamismo industrial extremamente veloz, que se sobrepõe a discussões e decisões políticas de parlamentares e governos. Portanto, para o autor, esta sociedade não é uma opção de escolha numa disputa política; ela surge na continuidade dos processos de modernização autônoma, que são cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças (BECK, GIDDENS, LASH, 1997).

A tese central da sociedade de risco, segundo Beck (2003, p. 119), “é a de que a progressiva radicalização dos processos de modernização, 'tecnicização' e 'economicização' gera consequências que erodem e põem em questão justamente esse programa institucionalizado de cálculo dos efeitos colaterais”. Outro fator que é mensurado neste cálculo, é a evidente “miopia econômica” da racionalidade técnica das ciências. “No esforço pelo aumento de produtividade, sempre foram e são deixados de lado os riscos implicados. A primeira prioridade da curiosidade científico-tecnológica remete à utilidade produtiva, e só então, num segundo passo, e às vezes nem isto, é que se consideram também as ameaças implicadas” (BECK, 2010, p. 73).

Atualmente, com a Quarta Revolução Industrial, que eclode na virada do século, os riscos persistem e tomam proporções que sequer conseguem ser mensuradas pelo ser humano. Beck (2018) refere que se vive a metamorfose do mundo, que implica numa transformação muito mais radical, em que velhas certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo emerge.

A teoria da metamorfose vai além da teoria da sociedade de risco mundial: ela não trata dos efeitos colaterais negativos dos bens, mas dos efeitos colaterais positivos dos males. Estes produzem horizontes normativos de bens comuns e nos impelem para além da moldura nacional, rumo a uma perspectiva cosmopolita (BECK, 2018, p. 16).

No início do século XXI, os espaços de ação são cosmopolizados, o que significa que o enquadramento da ação não é mais apenas nacional e integrado, mas global e desintegrado, contendo as diferenças entre regulações nacionais no direito, na política, na cidadania, nos serviços etc. A anterior sociedade industrial nacionalmente organizada está se metamorfoseando numa sociedade de risco mundial desconhecida (BECK, 2018).

Na Quarta Revolução Industrial não se fala mais somente em governo, mas em líderes mundiais. Conforme refere Schwab (2018), são os líderes em todos os setores e em todos os países que devem assumir a responsabilidade de estimular a conversa para saber quais mudanças sistêmicas - sociais e econômicas - devem ser realizadas e se a sociedade deseja realizá-las de forma revolucionária ou incremental.

Inclusive, conforme refere Beck (2018), observando-se a metamorfose do mundo de uma perspectiva cosmopolita, a relação entre Estados e cidades é invertida. Em face de riscos globais e cosmopolitas, os Estados permanecem presos na ficção de soberania egoísta e fracassam. As cidades, não presas ao recipiente nacional e com uma posição mais autônoma, diante dos riscos globais, estão abertas à política cosmopolita cooperativa.

O mundo dos Estados-nação representa fracasso porque, em seus egoísmos nacionais, eles se bloqueiam uns aos outros. As cidades mundiais, por outro lado, representam a interação do colapso e despertar. Aqui o choque de riscos globais torna-se uma questão de experiência cotidiana, mas também o choque de desigualdades globais, o choque de conflitos mundiais [...] e as batalhas entre capitalismos suicidas e de sobrevivência (BECK, 2018, p. 217).

É nas cidades que se desenvolvem os principais ecossistemas de inovação, como, por exemplo, os clusters localizados no Vale do Silício, Barcelona, Medellín, Recife ou Florianópolis. E é também nas cidades que as inovações são implementadas e refletem seus efeitos colaterais, demandando medidas de conscientização e contenção pelas comunidades locais. Castells (1999) identifica esse movimento já na década de 1990, quando refere que o Estado não desaparece, é apenas redimensionado na Era da Informação. Prolifera sob a forma de governos locais e regionais que se espalham pelo mundo com seus projetos, formam eleitorados e negociam com governos nacionais, empresas multinacionais e órgãos internacionais. A era da globalização da economia também é a era da localização da constituição política. O que os governos locais e regionais não têm em termos de poder e recursos é compensado pela flexibilidade e atuação em redes. Eles são o único páreo, se é que existe algum, para o dinamismo das redes globais de riqueza e informação.

Neste momento, é importante também retornar à teoria da socialização dos riscos e da privatização das recompensas de Mazzucato (2014). É o poder público que em determinado momento do processo necessita atuar na correção do risco, mesmo sem provocá-lo. A autora refere que o Estado não elimina os riscos como se tivesse uma varinha mágica. Ele assume os riscos, criando mercados. E, ao final, critica dizendo que, o fato de os economistas não terem palavras para descrever essas ações, limitou o entendimento do papel desempenhado pelo Estado.

Neste cenário, Schwab (2016) apela para o trabalho coletivo de todos os stakeholders da sociedade global – governos, empresas, universidades e sociedade civil – para entender melhor as tendências emergentes. Pois entende que a tecnologia não é uma força externa sobre a qual não se tem nenhum controle, ou seja, a sociedade não está limitada por uma escolha binária entre “aceitar e viver com ela” ou “rejeitar e viver sem ela”.

‘Todas as tecnologias são políticas’. Política aqui tem um sentido descritivo. Não queremos dizer que as tecnologias representam governos, que seguem a linha de algum partido ou que, de alguma forma, emanam ‘da esquerda’ ou ‘da direita’. Pelo contrário, queremos dizer que as tecnologias são soluções, produtos e implementações desenvolvidas através de processos sociais, existem para as pessoas e instituições e contêm em seu seio um conjunto de pressupostos, valores e princípios que, por sua vez, podem afetar (e realmente afetam) os poderes, estruturas e status sociais (SCHWAB, 2018).

Na sociedade atual da informação, as assimetrias de informações podem levar a grandes assimetrias de poder, pois aquele que detém o conhecimento necessário para operar a tecnologia também detém o poder para operá-la (SCHWAB, 2016). Neste sentido, conforme referido anteriormente, há uma vantagem da iniciativa privada, que, aproveitando-se da dificuldade dos Estados em lidar com problemas globais, desenvolve espaços de atuação “autônomos”, criando, às vezes, ambientes regulatórios próprios, desafiando e questionando a tradicional estrutura do Estado nacional.

A fragmentação constitucional, teoria de Teubner, abordada anteriormente, não é um processo alienado da globalização das tecnologias ou da socialização mundial dos riscos. Ao contrário, é fruto desses fenômenos, sendo que o mérito de Teubner é justamente identificá-lo na esfera privada. Dentre os fragmentos, requer a atenção, neste momento, o corporativo. Localizado no cerne do sistema econômico, o fragmento constitucional corporativo é capaz de conduzir discussões políticas e, sobretudo, jurídicas no seu interior, sem a necessidade de intervenção dos tradicionais acoplamentos estruturais sistêmicos vinculados ao Estado nacional. O constitucionalismo além do Estado-nação significa duas coisas: os problemas constitucionais surgem simultaneamente fora dos limites do Estado-nação nos processos políticos transnacionais; e, fora dos setores políticos institucionalizados, nos setores "privados" da sociedade global (TEUBNER, 2018).

No entanto, há de se questionar se as regras constitucionais para a empresa serão parte das constituições do mundo estadual ou formam parte de um constitucionalismo social. Na opinião de Teubner (2018), a segunda é a melhor alternativa, justificando-se a partir de três problemas complexos: 1) a impossibilidade de uma constituição mundial; 2) as dificuldades de uma perspectiva focada no Estado; (3) a redução de problemas constitucionais a problemas de poder social. O autor entende que a fonte social do direito mundial não pode ser encontrada em redes globalizadas de relações pessoais, mas no “proto-direito” de redes especializadas, formalmente organizadas e funcionais, que criam uma identidade global, porém estritamente setorial. O novo direito mundial não se nutre de estoques de tradições, e sim da auto-reprodução contínua de redes globais especializadas, muitas vezes formalmente organizadas e definidas de modo relativamente estreito, de natureza cultural, científica ou técnica (TEUBNER, 2003).

Para exemplificar, é possível utilizar os corporate codes of conduct privados e públicos. Teubner (2018) afirma que é possível observar os primeiros passos para o constitucionalismo societário transnacional nos conflitos sociais cujo resultado são códigos de conduta corporativos. Os códigos públicos são estabelecidos pelo mundo estatal, por meio de acordos sob direito internacional ou de normas de organizações internacionais, que prescrevem às corporações transnacionais diretrizes gerais concernentes às condições de trabalho, qualidade de produtos, políticas ambientais, proteção do consumidor e direitos humanos[21]. Os códigos corporativos privados, por sua vez, são desenvolvidos “voluntariamente” pelas corporações transnacionais, a partir da pesada crítica pública disseminada globalmente pela mídia e as ações agressivas de movimentos de protesto e de organizações não governamentais (ONGs) da sociedade civil (TEUBNER, 2012).

Atrás da metáfora de "códigos voluntários" se esconde algo totalmente diferente do voluntariado. Se as empresas transnacionais adotarem os códigos, não é fruto de terem considerado as reivindicações como pleito ao bem comum ou devido à ética corporativa. Eles se resignam "voluntariamente" a adotar, quando pressões de aprendizagem maciças vêm de fora. O processo de aprendizagem não ocorre dentro do sistema legal, do código ao código, através de uma transferência de validade, mas segue desvios através de outros sistemas funcionais (TEUBNER, 2018).

Os codes of conduct operam como equivalente funcional de constituições de empresariais nacionais. Teubner (2016) refere que aqui se encontram os primórdios das constituições das empresas multinacionais, que começam como unidades autônomas ao se autorregularem por meio da construção de sistemas de governança independentes do mundo dos Estado.

Na realidade, a política e o direito dos Estados nacionais que limitam a regulação empresarial ao âmbito nacional são os responsáveis por restringir a disseminação global das atividades empresariais. Assim, as novas constituições globais empresariais emergentes assumem dois objetivos: romper os acoplamentos estruturais fortes das empresas transnacionais com a política e o direito dos Estados nacionais e, na medida em que seja necessário para uma rede global de comunicações funcionais específicas, construir estruturas de Estado do Direito (TEUBNER, 2016).

Também é importante observar que uma constituição empresarial sustentável exigiria da política empresarial uma consideração de necessidades de seu ambiente, que seja acompanhada de implementações e controles externos (TEUBNER, 2016). Ou seja, considerando que muitos dos corporate codes of conduct surgem a partir de escândalos que chocaram o mundo, como, por exemplo, condições de trabalho desumanas, trabalho infantil, catástrofes ecológicas, desastres econômicos etc., há necessariamente uma demanda por abrangentes e transparentes mecanismos de monitoramento. Ainda mais na atual sociedade de risco global, criada num ambiente de uma nova Revolução Tecnológica, há a urgência de mecanismos que auxiliem na formatação jurídica e política destes fragmentos constitucionais, haja vista a ausência do Estado Nacional.

Conforme refere Schwab (2018), é preciso encontrar novas abordagens para governar as tecnologias de forma a servir ao interesse público, cumprir as necessidades humanas e, em última análise, fazer com que a sociedade se sinta parte de uma verdadeira civilização global. Para tal fim, é necessário primeiro compreender quais são as necessidades humanas em relação à tecnologia, e como é possível alinhar e incorporar valores humanos positivos às tecnologias que estão mudando o mundo.

É fundamental reconhecer que este fragmento constitucional corporativo, apesar de ser menos dependente dos resultados de processos de poder político-estatais e menos influenciado pelas policies estatais e pelas ideologias de partidos políticos, depende de uma nova constelação de poder e interesses dentro dos próprios fragmentos globais. Contudo, conforme refere Teubner (2016, p. 110), “deve-se temer a formação de normas constitucionais corruptas, resultantes de um estreito acoplamento de constituições parciais com conjunturas parciais de interesses”.

Atualmente, há uma forte presença dos interesses corporativos em outros sistemas. Korten (1996), na célebre obra “Quando as corporações regem o mundo”, denuncia uma forte presença corporativa na política, influenciando e controlando governos e o sistema financeiro, oprimindo trabalhadores e destruindo o meio ambiente. Muitos dos corporate codes of conduct, conforme mencionado, surgem para inibir tais posturas e “cobrar” a implementação de melhorias à coletividade[22].

Em algumas situações, por caminhos transversos, os codes mudam a postura das empresas, mas porque a empresa enxerga uma oportunidade diante do risco que ela mesma gerou. Ou seja, usando um exemplo citado por Beck (2018), o modo como a indústria internaliza e revisa seus custos climáticos. As companhias transnacionais - como a Coca-Cola - sempre se concentraram mais no resultado financeiro que no aquecimento global; mas quando a companhia perde uma lucrativa licença de exploração, por exemplo, na Índia, por causa de uma série de escassez de água, as percepções e prioridades começam a mudar. Hoje, depois de uma década de danos crescentes ao balanço da Coca-Cola, enquanto secas globais esgotavam a água necessária para a produção do refrigerante, a companhia admitiu que a mudança climática é uma força economicamente perturbadora. Eis que surgem os “negócios do risco”, quando os riscos entram no domínio do negócio e da economia.

Apesar de nem sempre serem efetivos, em alguns casos os corporate codes of conduct funcionam e trazem mudanças reais - melhoraram as condições de trabalho, aumentaram os níveis de proteção do ambiente e dos direitos humanos. Para Teubner (2018), o que importa são as pressões do aprendizado, ou seja, restrições externas que são exercidas sobre empresas transnacionais com vistas a mudanças graduais. Isso significa que a comunicação não se dá simplesmente por meio da legislação e das sanções legais, estas não são as únicas a transferir expectativas de fora para dentro. Em vez disso, através de meios de comunicação não legais - através do conhecimento de especialistas, poder político e social e incentivos econômicos e sanções monetárias - os processos de aprendizagem são desencadeados.

No entanto, analisando todo o cenário exposto, questiona-se se há a possibilidade de um “direito corrupto” na constitucionalização corporativa. A resposta ainda não é possível de ser certeira, haja vista o estágio incipiente das constituições corporativas. Mas é possível destacar algumas evidências que nos direcionam para um resposta afirmativa: a) os corporate codes of conduct atendem a um apelo social e são moldados em negociações, normalmente bilaterais (públicos) e por interesses de consumo (privados); b) a ótica da lucratividade prevalece nos processos econômicos globais das corporações, sendo que o fantasma da lex mercatoria, com sua autonomia deficiente diante dos ataques de atores econômicos e políticos, é comparável aos corporate codes of conduct; e c) a teoria da socialização dos riscos e da privatização das recompensas demonstra o perfil das corporações no processo de inovação tecnológica.

Considerações finais

A Quarta Revolução Industrial está criando uma metamorfose na sociedade mundial. Inovações disruptivas, riscos catastróficos, quebra de paradigmas sociais e jurídicos e redirecionamento do poder político são evidências que precisam ser assimiladas na criação de uma nova sociedade.

Junto às evidências, surgem inúmeros questionamentos: é possível atingir parâmetros superiores neste mundo tecnológico? Não há um risco demasiado na brincadeira de ser Deus? Quem serão os líderes da unidade global? Qual é o local do indivíduo neste cenário?

Com um cenário cheio de incertezas, há experimentos que se tornam questionáveis na sociedade mundial. Por exemplo, a projeção das corporações e do sistema econômico para a condução de uma reestruturação dos acoplamentos estruturais dos sistemas sociais. Neste sentido, o objetivo do presente artigo era justamente evidenciar a idoneidade das corporações na atuação e no desenvolvimento de seus corporate codes of conduct, questionando como o fragmento do constitucionalismo corporativo enfrentará os riscos criados pelas inovações tecnológicas.

Com base no desenvolvimento realizado, entende-se que a primeira hipótese, que refere que, apesar do constitucionalismo corporativo ter como base instituições privadas, ele necessariamente será obrigado a manter um foco no ser humano e na sociedade, inibindo os riscos tecnológicos, foi parcialmente confirmada. Haja vista, especialmente, que os corporate codes of conduct são implementados a partir de pressões sociais e políticas, com vistas a mudar um status desfavorável ao ser humano ou ao seu meio ambiente. Em relação à segunda hipótese, que afirmava que, em função de possíveis interesses "corruptos" da iniciativa privada, há a possibilidade de uma maximização dos riscos na sociedade, sem medidas constitucionais no fragmento corporativo para inibi-los, pode ser confirmada. Pois foi possível destacar algumas evidências que nos direcionam para um resposta que gera uma incerteza em relação a formação do direito nestes fragmentos, especialmente considerando: a) os corporate codes of conduct atendem a um apelo social e são moldados em negociações, normalmente bilaterais (públicos) e por interesses de consumo (privados); b) a ótica da lucratividade prevalece nos processos econômicos globais das corporações, sendo que o fantasma da lex mercatoria, com sua autonomia deficiente diante dos ataques de atores econômicos e políticos, é comparável aos corporate codes of conduct; e c) a teoria da socialização dos riscos e da privatização das recompensas demonstra o perfil das corporações no processo de inovação tecnológica.

O fato é que novos experimentos estão ocorrendo em função de fenômenos estranhos ao sistema jurídico, modificando estruturas tradicionais no Direito. É importante questionar e investigar quais serão os impactos e riscos ocasionados por tais fenômenos em relação à sociedade e ao indivíduo.

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Submetido em: 7 dez. 2019.

Aceito em: 25 maio 2021.



[1]  A palavra “revolução” denota mudança abrupta e radical. Na história, as revoluções tem ocorrido quando novas tecnologias e novas formas de perceber o mundo desencadeiam uma alteração profunda nas estruturas sociais e nos sistemas econômicos (SCHWAB, 2016, p. 15).

[2]  Galimberti (2006) afirma que a humanidade não está à altura do evento técnico por ela mesma produzido e, quem sabe pela primeira vez na história, a sua sensação, a sua percepção, a sua imaginação, o seu sentimento se revelam inadequados ao que está ocorrendo. De fato, a capacidade de produção, que é ilimitada, superou a capacidade de imaginação, que é limitada, de modo a não nos permitir mais compreender e, no limite, de considerar como “nossos” os efeitos que o irreversível desenvolvimento técnico é capaz de produzir.

[3]  A revolução digital seria a Terceira Revolução Industrial, que conforme Castells (1999, p. 50), “originou-se e se difundiu, não por acaso, em um período histórico de reestruturação global do capitalismo, para o qual foi uma ferramenta básica. Portanto, a nova sociedade emergente desse processo de transformação é capitalista e também informacional, embora apresente variação histórica considerável nos diferentes países, conforme sua história, cultura, instituições e relação específica com o capitalismo global e a tecnologia informacional”.

[4]  Conforme refere Etzkowitz (2009), o regime da hélice tríplice começa quando a universidade, a indústria e o governo dão início a um relacionamento recíproco, no qual cada um tenta melhorar o desempenho do outro. A maior parte destas iniciativas ocorre em nível regional, onde contextos específicos de clusters industriais, desenvolvimento acadêmico e presença ou falta da autoridade governamental influenciam o desenvolvimento da hélice tríplice.

[5]  As instituições acadêmicas costumam ser consideradas como um dos locais mais importantes para ideias pioneiras. No entanto, novas evidências indicam que, atualmente nas universidades, os incentivos à carreira e as condições de financiamento favorecem mais as pesquisas incrementais e conservadoras que os programas ousados e inovadores (SCHWAB, 2016, p. 32).

[6]  Schwab (2016), cita o exemplo da Uber Technologies Inc. que, em 2015, contratou 40 pesquisadores e cientistas da área de robótica da Universidade Carnegie Mellon, uma percentagem significativa do capital humano de um laboratório, que gerou impactos à capacidade de suas pesquisas e colocou os contratos da Universidade com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos e outras organizações em risco.

[7]  A configuração ideal da hélice tríplice é aquela em que as três esferas interagem e cada uma assume o papel das outras, sendo que as iniciativas surgem lateralmente bem como de baixo para cima e de cima para baixo. A sociedade civil é a base da hélice tríplice e da relação entre política científica e democracia. Embora uma hélice tríplice limitada possa existir em condições autoritárias, uma hélice tríplice completa ocorre em uma sociedade democrática onde as iniciativas possam ser livremente formuladas (ETZKOWITZ, 2009, p. 104).

[8]  Evidente que, por trás do desenvolvimento da internet, havia redes científicas, institucionais e pessoais que transcendiam o Departamento de Defesa, como, por exemplo, a National Science Foundation, grandes universidades de pesquisa (em especial MIT, UCLA, Stanford, University of Southern California, Harvard, Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e Universidade da Califórnia de Berkeley), e outros grupos de pesquisa especializados em tecnologia, tais como o Lincoln Laboratory do MIT, o SRI (antigo Stanford Research Institute), Palo Alto Research Corporation (financiado pela Xerox), Bell Laboratories da ATT, Rand Corporation e BBN (Bolt, Beranek & Newman) (CASTELLS, 1999, p. 85).

[9]  “Mas quantas pessoas sabem que o algoritmo que levou ao sucesso do Google foi financiado por um subsídio de uma agência do setor público, a Fundação Nacional de Ciência (NSF)? Ou que os anticorpos moleculares, que forneceram as bases para a biotecnologia antes da entrada do capital de risco no setor, foram descobertos em laboratórios públicos, do Conselho de Pesquisa Médica (MRC), no Reino Unido? Quantas pessoas percebem que muitas das mais jovens e inovadoras empresas americanas foram financiadas não pelo capital de risco privado, mas pelo capital de risco público, como o que é oferecido pelo programa de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas (SBIR)?” (MAZZUCATO, 2014, p. 48)

[10] Portanto, as interações e colaborações são necessárias para criar narrativas positivas, comuns e cheias de esperança, que permitam que indivíduos e grupos de todas as partes do mundo participem e se beneficiem das transformações em curso (SCHWAB, 2016, p. 14).

[11] “Assim sendo, ao afastar-se a possibilidade de um ponto de observação único ou privilegiado do social, cumpre insistir, do ponto de vista da teoria dos sistemas, que nem mesmo a política é um centro ou um lugar privilegiado da sociedade, mas um sistema em concorrência com outros. A visão oposta, ao pôr a política no centro como supersistema da sociedade moderna, só tem levado a desilusões. E a própria teoria da sociedade constitui apenas uma observação/descrição parcial da sociedade, a sua observação mais abrangente apenas do ponto de vista do sistema científico. Também a religião, a política, a economia, a família, a arte, a educação etc. fazem suas observações da sociedade como um todo, que concorrem com a observação da teoria social. Esta será tanto mais adequada socialmente enquanto descrever essa multicentralidade do social na modernidade” (NEVES, 2009, p. 25).

[12] “A filosofia da rational choice processa os princípios da razão da ordem econômica, que reivindicam validade tanto para as ordens constitucionais políticas quanto sociais. Ela estiliza-se como resultado de uma mudança de paradigma, que suplanta completamente as antigas orientações político-morais. Em sua pretensão de exclusividade, não tolera junto a si quaisquer outros paradigmas. Para tanto, ela inova especialmente sua vitória histórica nas ordens sociais modernas, a institucionalização da racionalidade econômica por toda a sociedade e, hoje, por todo o mundo” (TEUBNER, 2016).

[13] “As constituições são os instrumentos de ‘acoplamento estrutural’ entre os sistemas jurídico e político. Com elas, a modernidade pode estabilizar o direito positivo, o princípio da legalidade e o governo das leis. As Constituições foram ‘aquisições evolutivas’ que viabilizaram um sistema jurídico à altura da complexidade e contingência típicas do mundo moderno” (CAMPILONGO, 2011, p. 125).

[14] “A economia está equiparada com o mais forte código binário entre ‘sim’ e um ‘não’, a saber, a diferença entre ‘ter’ e ‘não ter’. Em alguns casos, especialmente nas situações em que há enormes desigualdades e ampla exclusão relativamente ao sistema econômico, esse primado pode levar a experiências de desdiferenciação e economicamente condicionada no âmbito da sociedade mundial, um problema que é persistente na constelação social da modernidade periférica” (NEVES, 2009, p. 29).

[15] As constituições liberais limitaram-se às instituições políticas em sentido estrito e a consequente não enxergavam às constituições sociais de setores específicos. Essa cegueira é explicada, historicamente, pela revolução burguesa, que suprimiu com sucesso as ordens feudais, destruiu definitivamente ordens intermediárias - estratos sociais, igrejas e corporações - e estabeleceu uma relação imediata entre coletividade e cidadãos. Então, todos esses poderes intermediários são ignorados, relegados ao espaço privado ou oprimidos politicamente (TEUBNER, 2016).

[16] Nos totalitarismos políticos do século XX, com uma consistente regulação em todos os âmbitos sociais e uma intervenção política imediata, a questão de um constitucionalismo social permanece em latência, não pelo fato dos âmbitos sociais serem ignorados, mas por serem subjugados à pretensão totalitária político-estatal. Há um rigoroso acoplamento da pluralidade dos âmbitos sociais ao sistema político (TEUBNER, 2016).

[17] Com um constitucionalismo liberal que ignorou as ordens sociais e com os regimes totalitários que as absorveram completamente, chega-se a meados do século XX, com o Estado Social (bem-estar), que reprocessa esses modelos históricos, e entende que suas constituições devem respeitar a autonomia e a capacidade dos sistemas sociais parciais e recusar-se a fixar estruturas fundamentais por meio de um controle político direto (TEUBNER, 2016).

[18] Para Neves (2009, p. 287), “a fragmentação não significa nada do ponto de vista da integração sistêmica. Os fragmentos podem permanecer sem nenhuma conexão, atuando com efeitos paralisantes ou destrutivos para os outros fragmentos. O problema que se põe é o de como integrar esses fragmentos em uma ‘ordem diferenciada de comunicação’. Como se podem construir relações de interdependência entre os fragmentos? E é essa a questão da integração sistêmica”.

[19] “É importante não confundir sociedade de risco com sociedade de catástrofe. Essa sociedade é dominada pelo moto ‘tarde demais’, por uma ruína predeterminada, o pânico do desespero. A diferença pequena, mas importante, entre risco e catástrofe - a antecipação da catástrofe para a humanidade (que não é catástrofe na realidade!) - é uma enorme força de imaginação, motivação e mobilização. Dessa maneira, mais uma vez, a sociedade do risco torna-se um poderoso ator da metamorfose do mundo” (BECK, 2018, p. 93).

[20] “'Modernização reflexiva' significa a possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. O 'sujeito' dessa destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental” (BECK, GIDDENS, LASH, 1997, p. 12).

[21] São exemplos de códigos corporativos públicos: o projeto de código da ONU sobre corporações transnacionais, o projeto de normas da ONU sobre negócios e direitos humanos, as diretrizes da OCDE para empresas multinacionais e a declaração bipartite da OIT de princípios concernentes às empresas multinacionais e à política estatal (TEUBNER, 2012).

[22] “Nesses códigos, eles afirmam se comprometer a resolver certos tipos de problemas em relação ao interesse público e prometem implementá-los internamente. A questão de como os efeitos desses códigos comerciais nas áreas de trabalho, produtos, meio ambiente e direitos humanos devem ser avaliadas continua sendo ambivalente. Os compromissos nos códigos "privados" são muitas vezes meras estratégias de relações públicas que não conduzem a mudanças efetivas no comportamento” (TEUBNER, 2018, p. 18).