O DIREITO DE VIZINHANÇA SOB A PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO URBANÍSTICO: O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA EM MEGAEVENTOS E A GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

Mateus de Oliveira Fornasier

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), Rio Grande do Sul.

mateus.fornasier@gmail.com

Norberto Knebel

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), Rio Grande do Sul.

norberto.knebel@gmail.com

RESUMO: Este artigo objetiva estudar a transformação do Direito de Vizinhança, de uma leitura ligado ao Direito Privado e a noção de vizinhança como a relação de uso normal da propriedade entre proprietários, para uma visão urbanista ligada ao interesse público. Seus objetivos específicos são: i) apontar teoricamente a transformação jurídica do conceito de vizinhança sob o contexto dessa publicização do Direito Urbanístico e da constitucionalização do Direito Privado; ii) compreender o instrumento do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) como ampliação da participação social e da noção de vizinhança para o Direito Urbanístico; iii) identificar o fenômeno dos megaeventos recentes no Brasil como um desafio para esse novo paradigma de vizinhança. Resultados: i) há uma mudança de paradigma no Direito de Vizinhança, sendo superada a interpretação e a aplicação puramente privada de seus institutos; ii) o instrumento do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) surge como uma das formas de esclarecimento e participação social, pois submete os empreendimentos urbanos a uma visão técnica que revela à sociedade os impactos de uma obra, permitindo a discussão popular e o auxílio à Administração Pública na concessão de licenças e na definição de compensações; iii) nas grandes obras públicas de infraestrutura e as privadas, a participação social acaba reduzida a mera consulta, sem o efetivo poder político de dirigir a gestão das cidades.

PALAVRAS-CHAVE: Direito de Vizinhança. Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança. Megaeventos. Política urbana.

Neighborhood Law under the Publication of Urban Law the Prior Neighborhood Impact Study in mega events and the democratic management of cities

ABSTRACT: This paper aims to study the transformation of Neighborhood Law, from a reading related to Private Law and to the notion of neighborhood as the relation of normal use of property between owners, to an urbanist view linked to the public interest. Its specific objectives are: i) to theoretically point out the juridical transformation of the concept of neighborhood under the context of this publicization of Urban Law and the constitutionalization of Private Law; ii) to understand the instrument of the Prior Neighborhood Impact Study as a broadening of social participation and the notion of neighborhood for Urban Law; iii) to identify the phenomenon of recent mega events in Brazil as a challenge for this new neighborhood paradigm. Results: i) there is a paradigm shift in the Neighborhood Law, surpassing the interpretation and purely private application of its institutes; ii) the instrument of the Prior Neighborhood Impact Study emerges as one of the forms of enlightenment and social participation, as it submits urban enterprises to a technical vision that reveals to society the impacts of a work, allowing popular discussion and assistance to the public administration in granting licenses and setting compensation; iii) in large public and private infrastructure works, social participation is reduced to mere consultation, without the effective political power to direct the management of cities.

KEYWORDS: Neighborhood Law. Prior Neighborhood Impact Study. Mega events. Urban policy.

Introdução

O Código Civil Brasileiro de 2002 (BRASIL, 2002) disciplina um Direito de Vizinhança a partir das premissas privadas, enquanto a ascensão da política urbana constitucional (regida pelas diretrizes gerais do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001)) sugere essa mudança para o campo público o que pode ser chamado de publicização do Direito Urbanístico. Diante disso, o objetivo geral deste artigo é estudar a transformação do Direito de Vizinhança, de uma leitura ligado ao Direito Privado e a noção de vizinhança como a relação de uso normal da propriedade entre proprietários para uma visão urbanista ligada ao interesse público.

O problema que conduziu a presente pesquisa pode ser descrito da seguinte maneira: como deve ser entendida a noção jurídica de vizinhança, aplicada sob a forma privada da relação de proximidade entre proprietários? Mesmo com a complexidade do conceito urbanístico de vizinhança - mais amplo e ligado às consequências sócio-ambientais — é preciso identificar o que resta do Direito de Vizinhança do Código Civil, de modo a atualizá-lo e sustentá-lo no ordenamento jurídico urbanístico.

Os objetivos específicos, cada qual correspondente a um segmento deste trabalho, podem assim ser apresentados: em primeiro lugar, apontar teoricamente a transformação jurídica do conceito de vizinhança sob o contexto dessa publicização do Direito Urbanístico e da constitucionalização do Direito Privado; em segundo, compreender o instrumento do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) como ampliação da participação social e da noção de vizinhança para o Direito Urbanístico; por fim, ainda, identificar o fenômeno dos megaeventos recentes no Brasil como um desafio para esse novo paradigma de vizinhança.

Metodologicamente, primeiramente, deve-se apontar que a noção de megaevento abrange uma noção teórico-conceitual nos estudos urbanos, não somente uma descrição de fato, pois a literatura identifica nesses fenômenos uma natureza ideológica e um conjunto de práticas urbanísticas. Por isso eles podem ser trabalhados de forma teórica, mesmo sem estudo de caso, como neste artigo, em que tais acontecimentos podem ser vistos como expoentes de novos problemas para a gestão democrática da cidade e dos métodos de participação social. Portanto, o texto não trata de um evento em específico, mas sim, dos megaeventos em sua noção conceitual.

O método de procedimento aqui utilizada é dialético, propondo-se tratar os conceitos de forma a obter uma síntese que caracterize uma nova tese digna de novas contradições. Foi primeiro preciso delimitar o objeto do direito de vizinhança para depois submetê-lo a análise concreta dos seus aspectos essenciais, trazendo ao final uma síntese (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009, p. 70-76). Por sua vez, a técnica de pesquisa empregada é bibliográfico-documental, tendo em vista que se analisou a mais recente e significativa literatura acerca do tema, sob uma abordagem qualitativa dos conceitos tendo o objeto de pesquisa uma natureza conceitual (BITTAR, 2012, p. 208), buscando sintetizar esses conceitos trazidos pela bibliografia em um novo estado revelando um Direito de Vizinhança atualizado em relação à política urbana.

1. Direito de Vizinhança no contexto da publicização do Direito Urbanístico

A expressão Direito de Vizinhança é utilizada para indicar o conjunto de normas ou situações jurídicas de ordem privada possíveis na relação entre proprietários ou possuidores de imóveis próximos, em que a atividade proprietária de um repercute no aproveitamento da propriedade de outro (PENTEADO, 2008, p. 231). Ocupa-se, assim, de direitos baseados em restrições defensivas da propriedade (MONTEIRO FILHO, 2002, p.1), ou seja, que decorrem justamente da autonomia privada, coibindo interferências indevidas em imóveis vizinhos, pois interfere no bom uso da propriedade alheia. Nesse sentido, é expressão que abarca direitos autônomos e concebidos como limitação ao direito absoluto de propriedade (LÔBO, 2017, p. 67).

A noção jurídica de “vizinho” não se limita aos prédios que compartilham paredes ou cercamento, mas sim, todos aqueles capazes de sofrer interferências externas. São direitos que i) independem de registro, pois a situação de vizinhança é de fato, comprovando-se na contiguidade e/ou proximidade relevante; ii) são recíprocos; iii) constituem obrigações propter rem; iv) são passíveis de violação independentemente da intenção do eventual agente causador de ofensa (BLUM, 2011, p. 227).

Nesse ramo do Direito se compreendem as normas que limitam a extensão de usar e gozar dos proprietários ou possuidores, impondo a necessidade de bom uso do objeto de propriedade/posse dos proprietários/possuidores vizinhos. É fundamentado socialmente pela convivência social e pela tolerância recíproca do viver em vizinhança, limitando a propriedade de uns sujeitos em relação ao alcance dos direitos dos demais não necessariamente do interesse público, mas sim na medida em que uma propriedade repercute na outra. Assim, os direitos de vizinhança representam nada mais do que os interesses privados dos vizinhos (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 539).

No ordenamento jurídico brasileiro, destacando sua natureza privada, compreende-se que sua principal regulação seja o Código Civil Brasileiro (art. 1277 ao art. 1313).[1] O uso anormal da propriedade, nos seus termos, se dá quando o uso da coisa repercute no uso normal de outra, em relação aos habitantes e a qualidade de vida, estando, por isso mesmo, associada ao direito ao sossego e o art. 1277 do CC/2002 fundamenta legalmente o direito privado de se fazer cessar qualquer atividade proprietária que atinja o bem-estar de outro proprietário vizinho.[2] Estabelecem esses direitos, juridicamente, dessa forma, os limites ordinários de tolerância entre vizinhos ao que concerne à saúde, ao sossego e à segurança, seus principais bens jurídicos tutelados (LÔBO, 2017, p. 70).[3]

Essa anormalidade do uso de propriedade pode ser aferida (GONÇALVES, 2017, p. 390-391) ao se: i) verificar a extensão do dano ou do incômodo causado ao configurar-se situação em que o limite do tolerável tenha sido ultrapassado, considerando o evento ser repetitivo ou fora do razoável; ii) examinar a zona onde ocorre o conflito, bem como os usos e costumes locais ou seja, se as práticas não são culturalmente características ou esperadas de um local, condizendo com algum evento regional ou de identidade específica do local; iii) considerar a anterioridade da posse o que condiz à chamada tese da pré-ocupação, segundo a qual os imóveis antes estabelecidos determinam a destinação do local embora não seja algo aceito sem reservas, pois o excesso pode fugir da razoabilidade.[4]

Constatando o uso anormal há um conflito privado entre proprietários, pois o dano é considerado acima do tolerável, incompatível com o local e alheio à destinação habitual que os vizinhos vêm dando aos imóveis localizados nesse ambiente. Se dá pela prática de atos: a) ilegais que consistem no ato de vontade lesivo aos interesses de vizinhos, violando o dever de cuidado para com a propriedade de outrem; b) abusivos relativos ao desvio de finalidade, mesmo que de acordo com a lei, mas injustificáveis do ponto de vista da razão e da tolerância; ou c) excessivos causadores de danos anormais e injustos, mesmo que praticados com finalidade legítima (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 546-547).

A codificação privada ainda tutela o direito de construir (art. 1.299 a a.313, seção VII), que é a regulação que permite construções e as limita de acordo com os direitos dos vizinhos. Trata-se de uma noção privatista do direito de construir justamente por considerar que a possibilidade de edificação é uma regra, um direito inerente à propriedade, sendo as eventuais limitações exceções à regra. É a noção seguida por Meirelles (2005, p. 35), por exemplo, que considera o direito de construir como normalidade do uso da propriedade, sendo anormal apenas aquilo que ocasiona lesão ao vizinho. Os direitos de vizinhança compõem o sistema de limitação da propriedade privada nesse contexto justamente porque a segurança, o sossego e a saúde são considerados direitos da personalidade inerentes a qualquer ser humano (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 545).

Todavia, a tendência[5] de constitucionalização do Direito Privado e de publicização do Direito Urbanístico aponta para um novo paradigma, que ultrapassa a mera limitação entre proprietários, obrigando os detentores dos imóveis a cumprirem sua função social, atendendo ao interesse público e social.[6] A necessidade de ser a propriedade privada adjetivada pela sua função social fundamenta as limitações ao direito de propriedade tanto no Direito Privado quanto no Público, surgindo limitações urbanísticas à propriedade (SILVA, 2010, p. 394-398). O direito de propriedade fica submetido positiva e negativamente à política urbana, desse modo, sendo necessária licença para usar e construir.

No que concerne aos problemas advindos da vida em vizinhança destacam-se dois fenômenos concorrentes e entrelaçados na produção e circulação do Direito nesse contexto de constitucionalização/publicização: a) a interpretação e aplicação das normas de Direito Privado sob o enfoque dos princípios constitucionais; e b) a ascensão de legislação ambiental e urbanística ligadas à política ambiental e urbana da União.

A incorporação de princípios de Direito Público ao Direito Privado acaba se tornando uma imposição à instrumentalidade do Direito, tendo em vista que, se fosse mantido o conteúdo da civilística tradicional, sua aplicação seria insustentável frente às grandes contradições que carrega tanto da realidade social que não suporta mais os excessos de natureza proprietária quanto pelo próprio ordenamento jurídico pautado pelo comando axiológico da Constituição. Indica-se, assim, a possibilidade de afirmação de um Direito “Civil-Constitucional” (ARONNE, 2014, p. 51-63).

Nessa orientação constitucional do Direito, as relações privadas precisam respeitar os direitos fundamentais de forma objetiva. Essa é a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais para além da eficácia vertical, que ocorre na relação dos entes públicos e as pessoas (naturais ou jurídicas). Nesse contexto, não só o acordo de vontades (núcleo da autonomia privada), mas também os direitos fundamentais vinculam as partes, sendo necessária a intervenção em conflitos cujo ato de vontade viole direitos fundamentais; emerge, assim, o dever de proteção por parte do Estado (SARLET, 2011, p. 12-16).

Ocorre um processo de consolidação dos princípios constitucionais nas relações jurídicas, no qual a funcionalização da propriedade segue a noção socioambiental superando a dimensão individualista característica das codificações civis modernas, dando prioridade à valorização da pessoa humana e à sociabilidade, tendo como escopo a diminuição das desigualdades. Esse processo deve impôr aos juristas um esforço hermenêutico na aplicação de um Direito visto de forma sistemática e respeitando a transição do individual para o social (BÜHRING, 2016, p. 18-19).

No que tange ao ordenamento do Direito de Vizinhança, embora este já tenha sido monopolizado pelo Código Civil que remete somente o direito de construir à disciplina administrativa na contemporaneidade das relações jurídicas tal direito está cada vez mais ligado aos institutos de Direito Público, como a função social da propriedade e a proteção ao meio ambiente (COSTA, 2001, p. 239-240). A Constituição Federal de 1988, a Lei de Crimes Ambientais e o Estatuto da Cidade retiram da exclusividade da esfera intersubjetiva e privada a regulação da vizinhança, elevando-os da categoria de meros conflitos entre vizinhos até a complexidade da sua caracterização como verdadeiros conflitos sócio-ambientais.

A afirmação de uma política ambiental e de uma política urbana orientadas pela Constituição Federal aponta para um movimento de publicização da produção do espaço urbano (TAVARES, 2019, p. 77-80).[7] Essa observação aponta para a força dos instrumentos de execução dos planos urbanísticos no fazer urbano, tratando-se assim de uma função urbana e ambiental que contraria, formalmente, a predominância de atores privados, responsáveis pelos fenômenos como a especulação imobiliária e a gentrificação. Segundo o ordenamento jurídico urbanístico, as cidades deixam de ser a simples síntese de todos dos atos proprietários espalhados pelo território, tornando-se um projeto urbanístico e ambiental integrado, portanto.

Dessa forma, tanto o “uso anormal da propriedade” quanto o “direito de construir”, anteriormente reservados à legislação privatística, agora passam a incorporar a ordem pública. A propriedade privada precisa ser funcionalizada por sua função social portanto, não compete mais somente aos conflitos entre vizinhos a identificação de um uso anormal, mas sim, a uma propriedade que contrarie os princípios das políticas urbana e ambiental estabelecidas pela União.

O direito de construir foge da noção anterior, digna da codificação civil, que preconiza que o direito de edificar em um terreno é inerente à propriedade e, assim, absoluto até que se prove o contrário. O Direito Privado prevê limitações ao direito de construir baseando-se na relação entre vizinhos e nos possíveis danos que possam afetar o bom uso da propriedade de outro, como uma emanação do direito de propriedade. Todavia, a ascensão de uma política urbana nacional, que precisa ser efetivada pelos Municípios, indica a melhor forma de construir baseada no planejamento urbanístico. É o “condicionamento urbanístico ao direito de construir” ou seja, o direito de construir é uma concessão do Poder Público, atribuída pela legislação municipal (SILVA, 2010, p. 82-83).

O direito de construir sob os ditames do ordenamento urbanístico possui uma “dupla função” (CARVALHO, 2014, p. 149) de regulação: a de garantir solidez, salubridade, estética e segurança de um projeto de edificação, tanto em relação aos vizinhos quanto ao restante da sociedade, sendo assegurado que essa obra está localizada e terá utilização que atende os interesses da coletividade, e não somente do proprietário. Trata-se de um duplo controle, urbanístico e estrutural, fazendo-se necessária uma licença de construir frente ao Poder Público e à sociedade — ou seja, relacionando-se também a interesses coletivos e difusos. O direito de construir, nesse contexto, não se limita ao âmbito do Direito Civil, ocorrendo “incidência transversal” sob matéria urbanística, ambiental, do patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e cultural, do Direito Aeronáutico e, enfim, de ordem pública (LÔBO, 2017, p. 86).

A realidade do Direito Urbanístico torna necessária uma leitura integrada do Código Civil e das normas ambientais/urbanísticas, em que a vigência dos direitos subjetivos inerentes à propriedade possam reafirmar as premissas contidas nas políticas ambiental e urbana derivadas dos interesses jurídicos pela dignidade da pessoa humana e pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado. Do ponto de vista do Direito Privado há, assim, uma reestruturação da estrutura jurídica do direito de propriedade, e por essas razões, que unem os fenômenos jurídico-legislativos da interpretação e aplicação das normas de Direito Privado sob o enfoque dos princípios constitucionais, e da ascensão da legislação ambiental e urbanística ligadas à política ambiental e urbana da União (ambos detalhados supra), a partir dos quais a propriedade privada deve ser funcionalizada a partir das premissas ambientais/ urbanísticas (CATALAN, 2009, p. 65).

Esse conceito contemporâneo de direito de vizinhança — necessário para a efetivação da política urbana e ambiental — é, portanto, desenvolvido a partir de uma análise complexa dos Direitos Urbanístico e Ambiental, consagrando uma noção de integralidade do espaço urbano para além do individualismo proprietário e da necessidade de efetivação da sustentabilidade ambiental. Supera o paradigma de vizinhança como o respeito entre proprietários — digno do atávico Código Civil de 1916 —, atrelando o Direito de Vizinhança fundamentalmente à operacionalização da função social da propriedade (PEREIRA, 2021, p. 12), e passando a configurá-lo como direito abrangente quanto aos aspectos sócio-ambientais que contemplam o bem-estar urbano, para muito além do que os anseios ou problemas ligados às esferas privadas de vizinhos proprietários.

O Direito de Vizinhança, nesse sentido, passa à esfera de influência das preocupações globais no âmbito sócio-ambiental — tais como poluição, desmatamentos, mudanças climáticas, degradação ambiental, pobreza e desigualdade social (CALGARO; PILAU SOBRINHO, 2020, p. 158) — e estabelecendo uma realidade jurídica para a propriedade privada que sopesa os interesses da livre iniciativa e dos direitos sociais, buscando equilíbrio e não uma razão de disputa proprietária (MARTINS; GUEDES, 2020. p. 125). O direito de vizinhança só pode ser visto, assim, a partir da operacionalização da função social da propriedade e, inclusive, de uma “função social da cidade”, que corresponde ao conjunto da política de desenvolvimento urbano — seja daquelas ligada às políticas públicas, seja dos papéis da sociedade, que nada mais são do que as limitações à propriedade privada, caracterizando um caráter público ao Direito Urbanístico que influencia diretamente nas relações proprietárias.

2. Gestão democrática das Cidades, o EIV e os megaeventos

A constitucionalização do Direito Urbanístico brasileiro indica que a política urbana ultrapassou o paradigma anterior, em que se encontrava espalhada em diversos diplomas federais, estaduais e municipais, tornando-se ordenada conforme as diretrizes gerais descritas na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e no Estatuto das Metrópoles atingindo-se, enfim, uma unidade substancial (SILVA, 2010, p. 50). Os estatutos têm a função de regular os artigos 182 e 183 da Constituição (BRASIL, 1988), determinando que essa regulação urbana deva ser executada pelos Municípios sob o regime da política urbana.

Identifica-se nesse processo uma hierarquia de competência federalista, na qual a disciplina urbanística parte do fundamento constitucional ou seja, abstrai seu conteúdo da política urbana nacional, enquanto o planejamento urbano municipal confere-lhe efetividade. Portanto, a competência legislativa é da União para fomentar as diretrizes gerais, restando ao Município atender características locais com competência suplementar; todavia, é de plena responsabilidade do Município executar a política urbana, tendo por principal instrumento seu o Plano Diretor. Trata-se de um regime normativo que consolida o controle jurídico estatal sobre o desenvolvimento urbano, sujeitando-o aos princípios constitucionais e aos direitos sociais (FERNANDES, 2002).

O federalismo brasileiro desde a Constituição de 1988 busca delinear uma forma cooperativa, de descentralização da política e instituição de uma relação recíproca entre União, Estados e Distrito Federal, para além dos Municípios — estando estes últimos incorporados como entes federados. Respeita-se a ideia de uma autonomia local de gerir processos políticos que de debate de interesses locais em conjunto com a implementação de políticas nacionais. Por isso, o espaço público local nos Municípios é o ambiente ideal para interação social e realização de processos democráticos participativos e deliberativos (JURUENA; FRIEDRICH, 2019, p. 123-126).

É no contexto dessa municipalização da efetivação da política urbana nacional o Estatuto da Cidade de 2001 estabelece como uma das suas diretrizes gerais (art. 2º, II) — qual seja, a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”. Há uma obrigação implícita no sentido de que que a participação da população e de associações representativas deve se dar tanto nos processos de elaboração quanto no de implementação dos planos diretores (ROLNIK, 2001, p. 7).

Essa é a chamada “gestão democrática das cidades” promovida como um princípio basilar da política urbana sob a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, sendo o suporte jurídico para os municípios enfrentarem as problemáticas urbanas de forma democrática, preservando os interesses e a atenção da população por meio da participação cidadã. É o liame para o acesso da população à Administração Pública Municipal, seja como participante da tomada de decisão sobre as coisas e políticas públicas, seja para exercer o controle social da execução dessas mesmas práticas — o que faz também com que se exija a transparência da gestão urbana (SANTIN, 2005, p. 126). O marco estipulado pela obrigatoriedade dessa participação significa o rompimento para com o paradigma meramente consultivo do planejamento urbano, tornando a participação da população e das associações representativas interessadas como fundamental na execução e acompanhamento de planos, programas e projetos dedicados ao desenvolvimento urbano (REIS JUNIOR; CANEZIN; BELIZÁRIO, 2002. p. 102).

Concretizando a preocupação concernente à participação social das diretrizes gerais da política urbana, o Estatuto da Cidade traz, entre outras,[8] uma seção para o “Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV)” (art. 36 ao 38), a qual, conforme a estrutura de competências urbanísticas, delega ao Poder Municipal definir quais empreendimentos públicos ou privados dependerão de EIV para obter licença para construir, ampliar ou funcionar. A política urbana formata esse estudo com vistas à verificação dos efeitos na vizinhança de empreendimento ou atividade futura, sob o princípio da qualidade de vida, dando apreço às seguintes questões: i) adensamento populacional; ii) equipamentos urbanos e comunitários; iii) uso e ocupação do solo; iv) valorização imobiliária; v) geração de tráfego e demanda por transporte público; vi) ventilação e iluminação; vii) paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.

Os fatores que o EIV deve investigar não são taxativos, embora a lei estabeleça um mínimo verificável: atentar se uma nova obra terá capacidade de receber bons serviços, ou se o adensamento populacional não permite expansão — em outras palavras, deve comprovar se o fluxo de pessoas está sob controle, tendo em vista o que essas pessoas requerem dos locais. Também, quando possível, de quais equipamentos urbanos será necessário instalação ou expansão para se adequar à nova realidade. Ainda, deve ser verificada a adequação ao zoneamento, evitando-se o funcionamento de empreendimento inadequado à realidade local. Em referência à função econômica da propriedade, o EIV deve verificar se haverá valorização imobiliária, sendo implícito o repúdio à desvalorização. Por fim, é preciso atentar para o impacto de vizinhança à paisagem urbana, considerada patrimônio natural ou cultural, sendo inadmissível a violação da visibilidade de áreas naturais ou culturalmente relevantes (NASCIMENTO, 2013, p. 28-32).

Devido à necessidade de regulamentação, por parte de cada Município, da elaboração do EIV, a sua regularização no Brasil ainda é um processo em andamento. Segundo os dados trazidos pela pesquisa de Silva e Guedes (2019, p. 547), a partir dos dados do “Censo 2009”, cerca de 13% dos Municípios brasileiros possuíam o EIV regulamentado em lei específica, e que esse processo contribui positivamente para o equilíbrio urbano e a infraestrutura das cidades. A previsão normativa na política urbana é uma realidade, mas a municipalização do planejamento urbano sugere o respeito ao desejo das cidades em implantar planos de estudos de vizinhança conforme sua realidade portanto, é um processo de incorporação sujeito às políticas locais.

Esse estudo é capaz de identificar impactos para a vizinhança e abrir debates com suas informações, entretanto, não substitui nem concorre com o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) — o qual é exigido nos termos da legislação ambiental. A política urbana que deve ser implementadas pelos planos diretores municipais também deve promover uma cidade sustentável promovendo a eficiência energética e adaptando-se às mudanças climáticas, entre tantas outras ações possíveis (BUENO, 2008, p. 109-117). Todavia, o EIV significa a expansão do controle social sob a cidade, para além das preocupações puramente de preservação ambiental. Assim, o EIV é um instrumento de participação social na gestão urbana ao contemplar por meio da técnica, do estudo, do interesse de uma vizinhança, inclusive, mas não somente os ambientais. O “vizinho” passa a ser o complexo da relações sócio-ambientais da cidade, em todos os aspectos que afetam as relações no espaço urbano — afetações que alcançam a preservação ambiental, o sossego, a sustentabilidade, a desigualdade fundiária e o acesso à cidade.

Ocorre, dessa forma, um processo de ampliação da cidadania na tomada de decisão sobre o destino urbanístico das cidades, prevendo o Estatuto da Cidade, por isso, o EIV para empreendimentos que os municípios considerarem promotores de mudanças significativas, em um exercício de controle social direto (ROLNIK, 2001, p. 7-8).[9] A natureza jurídica do EIV advém dos valores constitucionais do meio ambiente equilibrado e da função social da propriedade, passando por isso a noção de “uso anormal de propriedade” e o “direito de construir” por um delineamento normativo dentro do processo de publicização do Direito Urbanístico, sendo a viabilidade de uma obra de interesse público relevante e digna de intervenção estatal (NASCIMENTO, 2013, p. 44).

Grandes investimentos exigem grandes obras, e estas têm sido justificadas pela sua grandiosidade e benesses econômicas. Sob o paradigma normativo desse Direito de Vizinhança publicizado, que exige o EIV, contudo, é necessário ampliar essa justificativa, algo que só pode ser verificado pela intensidade da participação social — ou seja, que os interesses de todos aqueles considerados “vizinhos”, que são, portanto, a população e a cidade afetados pelas massivas construções, sejam ouvidos e considerados, sendo buscadas alternativas para conciliar esses interesses — e, em sendo essa conciliação impossível, deve emergir uma limitação estatal a esse direito de construir. Portanto, o direito de construir, mesmo sob o interesse de grandes investidores ou grandes eventos globais, só pode ser exercido sob a anuência e o controle social em relação à sua execução, tamanhos são sua influência e seus efeito sobre a cidade.

O Estatuto da Cidade afeta diretamente o direito de construir, primeiramente, porque não dá prioridade ao direito absoluto de edificação e afeta o seu conteúdo, algo que acaba “trazendo o reconhecimento definitivo, pelo ordenamento jurídico, da necessidade de conciliar os direitos do proprietário de construir e usar com o direito de propriedade dos vizinhos” (GUIMARÃES JÚNIOR, 2001, p. 112). Todavia, o instrumento do EIV regula mais que essa relação entre proprietários, mas intensifica, formalmente, os processos de participação social na produção do espaço urbano. O direito de construir e a identificação de uso anormal da propriedade não cabem mais aos olhos do vizinho incomodado em caso específico, mas sim, no âmbito de uma complexa relação de vizinhança. O “vizinho” das grandes construções não é determinado pelos limites do solo ou pela afetação direta e física, devendo ser compreendido dentro de um amplo cenário de consequências dessa obra, de como essa construção afeta a mobilidade urbana, a paisagem, as relações de trabalho local e/ou o mercado imobiliário.

A noção de vizinhança trazida pelo EIV busca compreender e suprimir as consequência que uma obra específica terá sobre uma localidade quando edificada, atentando para quando obras de grande porte causam prejuízos nas proximidades de sua instalação, sendo esses impactos elencados de forma técnica. Essa publicidade, prevista no parágrafo único do art. 37 do Estatuto da Cidade, torna o EIV digno de intervenção nas consultas e audiência públicas, intensificando a informação da população sobre as obras, diferentemente das relações típicas do Direito de Vizinhança reservado aos dissabores privados. Portanto, é possível não obter licença para construir pelo resultado do EIV mesmo que não tenham sido identificados problemas de natureza privada (OLIVEIRA; LOMBA, 2015, p. 675).

Os grandes empreendimentos e suas grandes obras, públicas ou privadas, são um grande alvo para o EIV devido à ampla gama de consequências possíveis. Um exemplo é o caso de Porto Alegre após a designação como sede da Copa do Mundo de futebol de 2014, em que políticas urbanas dirigiram um amplo processo de reestruturação urbana se submetendo a um novo ciclo de expansão da construção civil e aos modelos empresariais de desenvolvimento urbano. As operações urbanas que permitiram a reforma e a construção de dois estádios de futebol (Beira-Rio e Arena), trazendo consequências à infraestrutura urbana e ao direito à moradia; são racionalidades impostas pela atuação de agentes nacionais e internacionais, ocorrendo de forma alheias aos princípios da gestão democrática das cidades (SOARES; SIQUEIRA; LAHORGUE; BERZAGUI, 2015, p. 374).

Na preparação para os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro identificou-se que a atenção do Poder Público, para cumprir suas promessas feitas frente a investidores privados, ficou voltada aos processos de remoção das comunidades que atrapalhavam a edificação de grandes obras, sendo que essas populações eram completamente alheias aos dados e as informações dos estudos de impacto de vizinhança promovidos (CASTRO; GAFFNEY; NOVAES; RODRIGUES; SANTOS; SANTOS JUNIOR, 2015, p. 419). Tratou-se de uma urbanização que ocorreu alheia ao controle da sociedade, diferentemente do afirmado em lei e pelos princípios que regulam o EIV.

O projeto político identificado nos megaeventos recentes do Brasil, como os Jogos Panamericanos de 2007, a Copa do Mundo de Futebol da FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, aponta que o possível legado de infraestrutura desses eventos é distribuído desigualmente e não se dá em virtude de demandas da sociedade. Por isso, a gestão democrática da cidade é posta em xeque, pois a demanda por esses eventos nunca foi da população, ao menos nunca houve qualquer processo consultivo ou deliberativo, e ocorreu em atenção a interesses privados das elites dominantes do País e do exterior (AMARAL; SILVA; SANTOS; VARGAS, 2014, p. 656).

Esses megaeventos no Brasil constituem um marco para a gestão corporativa na produção das cidades, que ocorreram sob a promessa de que os amplos investimentos públicos e privados trariam um legado para as cidades anfitriãs e, por isso, elas deveriam competir internacionalmente pelo “privilégio” de ser sede e esse é o discurso ideológico que sustenta essa noção de cidade-mercadoria, que precisa se promover globalmente ao ponto que essa é a condição para o desenvolvimento urbano — em que investimentos públicos que enriquecem aglomerados privados são a regra instaurando-se uma dinâmica entre o público e o privado digna do urbanismo neoliberal (SOUZA, 2018, p. 256-258).

O ordenamento jurídico urbanístico que regula o EIV sustenta, formalmente, uma limitação clara a essa gestão corporativa — ou seja, por meio da intensificação da participação social torna-se necessária a atenção aos interesses e locais para o andamento ou não dessas obras. Os “vizinhos” dos megaeventos, tantos que são, precisam ser ouvidos e ter esclarecido o impacto sobre si dessas obras, sob o manto da proteção jurídica dos cidadãos e da cidade. Assim, deveriam as construções relacionadas a esses megaeventos estar diretamente vinculada à anuência e ao controle social do cidadão diretamente afetado por elas. Mas demonstra a realidade que a promessa de um “legado” econômico dessas construções acabam convencendo, embora não se realize a longo prazo (CURI, 2013).

Mesmo que do ponto de vista urbanístico, esses megaeventos justificam intervenções urbanas e vendem modelos urbanos voltados aos interesses privados das grandes empreiteiras de obras públicas[10] e do setor especulativo do mercado imobiliário. É uma estratégia que usa da retórica do desenvolvimento urbano para distribuir desigualmente os lucros impactos positivos para os mega investidores, mas negativos para a população de baixa renda. É uma práxis urbanística com profunda intervenção nas cidades que ignora processos de participação, justamente pela hegemonia do discurso ideológico de desenvolvimento econômico financeirizado, em que a participação social se resume à influência de empresários (VIANA, 2019).

Esse fenômeno, no qual a participação social é relegada ao discurso empresarial e a atuação somente desse tipo de atores, é o que Vainer (2016, p. 10) chama de democracia direta do capital na cidade de exceção. Nesse sentido, mesmo durante a vigência de estruturas participativas funcionais para gestão urbana ou seja, instituições formalmente operantes o poder de produzir o espaço urbano é transferidos à gestão corporativa. A ideia de transferir o debate urbanístico para a sociedade passa longe da participação popular, mas encontra processos amigáveis ao mercado de flexibilização dos controles políticos e burocráticos. É o “empresariamento” urbano, no qual o debate urbanístico fica restrito aos debates estratégicos de cunho corporativo, independentemente da opinião dos cidadãos, mas como postura que busca afirmar cidades como metrópoles “cosmopolitas” no cenário internacional (KOROSSY; LEAL; CORDEIRO, 2020).

Os modelos e instituições participativas fomentados pela gestão democrática das cidades, verificados no contexto dos megaeventos recentes do Brasil, não foram incorporados nas práticas do planejamento urbano, esvaziando o conteúdo do discurso participacionista do ordenamento jurídico urbanístico contemporâneo, pois, na prática das cidades, os interesses econômicos atinentes prevaleceram independentemente dos processos participatórios (ROLNIK, 2012, p. 95-96).

Por mais que sejam formalmente exercidos, os instrumentos da participação social acabam sujeitos à retórica do desenvolvimento urbano que seria baseado em decisões técnicas de caráter racional. O EIV pode apontar profundos impactos negativos nas cidades, mas a promessa de um legado de desenvolvimento econômico após as grandes obras vende à população e a mídia que todo esse processo vale o esforço. Essa ineficácia dos processos democráticos frente aos megaeventos sedimenta um planejamento urbano baseado em instrumentos que não consideram o bem-estar de seus cidadãos (SANT’ANNA; GONÇALVES, 2015, p. 394).

O exemplo da cidade do Rio de Janeiro, local da realização dos Jogos Panamericanos de 2007, de jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, demonstra a fraqueza das promessas, do chamado “legado” — pois o que de fato ocorreu foi um conjunto de intervenções urbanísticas para a promoção desses eventos, sob um estado de emergência que trouxe processos de renovação e transformação para certas áreas, em detrimento da promoção de territórios de precariedade (MIAGUSKO, 2012) amplos e do descaso com os processos participativos — tendo em vista que o dito “legado” alcançaria a todos, sem explicar como ou quando. Ainda, trouxe como legado urbanístico formas de militarização da vida (ROCHA; MOTTA, 2020) na cidade, acentuando desigualdades no acesso à cidade (FREIRE-MEDEIROS; FREITAS, 2020).

O fracasso da gestão democrática das cidades, ou a prática corporativa de ignorar o seus princípios acaba revelando a natureza conflitiva das cidades brasileiras. Não tendo efetiva representação formal, a sociedade civil acaba se manifestando de forma que transcende a esfera de participação institucionalizada (AMARAL; SILVA; SANTOS; VARGAS, 2014, p. 653). O legado dos megaeventos recentes foram os conflitos nas demolições e construções das cidades-sede e dos muitos conflitos que ainda virão devido as arestas mal aparadas das falsas soluções praticadas para executar as grandes obras de infraestrutura que venderam as cidades (GAFFNEY, 2015, p. 201).

A participação social nos megaeventos acaba legada aos empresário e, no máximo, a uma elite econômica alheia aos problemas sociais e a inerente distribuição desigual do espaço urbano (SOARES; BEHMORAIS; SAMPAIO, 2013, p. 137). O campo conflitivo que se instaura para fora do falso consenso de que os megaeventos são um sucesso urbanístico acaba se tornando mais um dos desafios para a efetivação da participação social. Se a noção de vizinhança agora é socioambiental, ela acaba enfrentando todos os problemas que os institutos jurídicos desse âmbito enfrentam quanto à sua efetivação.

A atualidade dos direitos de vizinhança sob a publicização do Direito Urbanístico encontra os desafios da gestão democrática da cidade, na qual vêm à tona as questões atinentes à participação social, como a complexidade da relação entre especialistas e opinião pública quando a percepção dos riscos - em que uma separação distante entre conhecimento técnico e a percepção da sociedade (FORNASIER, 2016, p. 88) e o tensionamento das estruturas de governo que agora precisam lidar com a ascensão de novos atores, sem ignorá-los ou relegá-los à mera participação consultiva, sem influência na gestão urbana (BRASIL; SILVA; CARNEIRO; ALMEIDA, 2012, p. 126).

É preciso conceber instituições participativas mais permanentes, que acompanhem as decisões da gestão urbana frente às grandes obras, justamente porque é preciso enfrentar a natureza desses empreendimentos que tendem a favorecer fortes grupos econômicos que possuem destaque ao discutir os impactos de obras, sujeitando-se assim a população a compensações injustas. Não há um processo verdadeiramente participativo nas cidades sem o empoderamento e a mobilização de todos os atores sociais afetados (ABERS, 2016). Por isso, para enfrentar a crise do planejamento democrático, a participação popular deve partir de três pressupostos: i) o controle social e política da população que oriente as prioridades do Poder Público; ii) o empoderamento da população a participar e se qualificar na deliberação; e iii) a valorização das práticas cotidianas, ou seja, o fortalecimento do pertencimento e a inserção de formas de conhecimento baseados nas experiências e realidades locais (LEMOS; MAGALHÃES JUNIOR; WSTANE, 2019, p. 744).

Considerações finais

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que há uma mudança de paradigma no “Direito de Vizinhança”, sendo superada a interpretação e a aplicação puramente privadas de seus institutos. A noção de “uso anormal de propriedade” e de “direito de construir” enfrentam o processo de publicização do Direito Urbanístico, em que impera um processo de implementação da política urbana que vem afetando cada vez mais a noção civilista de vizinhança, conforme o processo de afirmação do urbanismo como interesse público e social sobrepõe os interesses puramente proprietários que regiam o urbano. Há um processo sem volta no conceito jurídico de vizinhança para o Direito Privado, que agora precisa se adequar a política urbana e os processos de participação social.

Não passa apenas a interpretação do Direito Civil a ser submetida à subsunção axiológica aos princípios constitucionais e da política urbana nacional, mas ocorre também ocorre a ascensão da importância das legislações ambiental e urbana, que devem ser implementadas pelo planejamento municipal. Dessa forma, o núcleo desses direitos de vizinhança se transforma, na medida em que o próprio conceito de vizinhança é ampliado, não mais adstrito às relações privadas entre vizinhos e reservado aos incômodos e os conflitos pontuais, portanto e passando a ser correspondente a relações jurídicas urbanísticas socioambientais. Viver em vizinhança não é mais, para o Direito, uma relação entre proprietários e seu bom uso da propriedade, mas sim, um conceito atento à noção de desenvolvimento urbano sustentável.

Esse processo é, ao mesmo tempo, a nova interpretação do “direito de vizinhança” sob o viés do ordenamento jurídico urbanístico, mas também o recuo de suas premissas privadas. Não é mais necessária a afetação de direitos privados para revelar-se um conflito jurídico entre vizinhos, pois o interesse público e social pode ser afetado ao se analisar o uso de uma propriedade sob esse conceito ampliado de vizinhança. O uso anormal da propriedade e o direito de construir possuem critérios alargados, para além da reclamação por um dos vizinhos, mas são levados em conta questões sociais e ambientais.

Para verificar essas novas questões, o instrumento do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) surge como uma das formas de esclarecimento e participação social, pois submete os empreendimentos urbanos a uma visão técnica que revela à sociedade os impactos negativos ou positivos de uma obra, permitindo que a população discuta as consequências e possa auxiliar a Administração Pública na concessão ou não de licenças para construção e funcionamento ou até mesmo na definição de compensações. Todavia, quanto aos megaeventos, surgem desafios para essa nova noção jurídica de vizinhança.

A realidade brasileira aponta que o marco teórico inovador e complexo que sustenta o EIV como parte da gestão democrática das cidades fracassa frente as imposições da produção do espaço urbano globalizado. Os megaeventos são formas de inserção de cidades dentro dos fluxos transnacionais da economia, devendo a gestão urbana, sob essas condições, se comportar como mercadoria a ser explorada — ofertada como produto a ser vendido, sendo a busca por esses investimentos a única forma de viabilizar obras de infraestrutura, que muitas vezes acabam não servindo à população. A forma participativa que o ordenamento jurídico urbanístico institui, é ignorada ou distorcida em nome do constante estado de emergência pela busca de investimentos para o desenvolvimento urbano, que torna cidadãos reféns de grandes mobilizações econômicas, rezando para que delas sobrem migalhas.

Desde as grandes obras públicas de infraestrutura que sugerem interesse público relevante, mas muita vezes trazem atreladas graves consequências sociais até as grandes obras privadas geridas sob o interesse e o poder de fortes agentes econômicos, a participação social acaba reduzida à mera consulta, sem o efetivo poder político de dirigir a gestão das cidades. Portanto, a transformação do conceito de vizinhança para a esfera pública, ainda não é suficiente para evitar as desigualdades do processo de produção do espaço urbano, mesmo que a evolução dos instrumentos urbanísticos ao menos traga à tona esses conflitos que ficariam legados aos vizinhos sob a ótica privatista colocados em papel hipossuficiente frente aos gestores de megaeventos.

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Submetido em: 12 dez. 2019.

Aceito em: 5 out. 2021.



[1]  Além do que o código civil determina como “uso anormal da propriedade” e “direito de construir”, seu rol sobre o direito de vizinhança também disciplina as (II) árvores limítrofes - que regula a pertença comum de árvores limítrofes, a possibilidade de corte/poda e o direito sobre os frutos; (III) a passagem forçada - em caso de um proprietário não ter acesso às vias urbanos, pode exigir de outro proprietário o direito de passagem sob sua propriedade; (IV) passagem de cabos e tubulações - tal qual o direito de passagem, é a obrigação que um proprietário tem de ceder acesso à estrutura de serviços públicos para outro, quando necessário; (V) das águas - é a obrigação de escoar água sem causar danos ao vizinho, também, de permitir o fluxo normal de aproveitamento fluvial; (VI) limites entre prédios e direito de tapagem - são as regras entre proprietários para demarcação e divisão entre propriedades limítrofes. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 555-568)

[2]  “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.”

[3]  Conforme Farias e Rosenvald (2015, p. 544-545) explicam esses valores: “a) segurança: atos que possam comprometer a solidez e a estabilidade material do prédio e a incolumidade pessoal de seus moradores. Deve ser afastado qualquer instalação de indústria de inflamáveis e explosivos; b) sossego: no estágio atual da sociedade pós-moderna, é bem jurídico inestimável, componente dos direitos da personalidade, intrinsecamente conectado ao direito à privacidade. Não pode ser conceituado como a completa ausência de ruídos, mas a possibilidade de afastar ruídos excessivos que comprometam a incolumidade da pessoa. É o direito dos moradores a um estado de relativa tranquilidade, na qual bailes, algazarras, animais e vibrações intensas provenientes acarretam enorme desgaste à paz do ser humano. c) saúde: concerne ao estado da pessoa cujas funções biológicas estão normais. A salubridade física ou psíquica pode ser afetada por moléstia à integridade de vizinhos, mediante agentes físicos, químicos e biológicos, como na emissão de gases tóxicos, poluição de águas e matadouros. Não é raro que as reiteradas ofensas ao sossego impliquem atentado à saúde física e psíquica da pessoa.”

[4]  Um exemplo é a detecção tardia de atividade poluente, mesmo que o causador do dano ambiental esteja estabelecido há longo período. Os bens jurídicos tutelados (saúde, sossego e segurança) tem sempre primazia (LOBO, 2014, p. 70-71).

[5]  Tendência identificada desde a promulgação da CRFB/88, conforme indicou Hironaka (2003, p. 17-18): “O Direito Civil que nos foi legado tinha na autonomia privada – propriedade e contrato – o seu pilar fundamental, mas, na atualidade, verifica-se uma profunda alteração axiológica na sua concepção, passando por uma crise que visa resgatar a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais, conforme estampados na Constituição Federal. Um olhar atento sobre os dias de hoje, enfim, demonstra claramente a ocorrência de uma funcionalização de todos os institutos privados, na busca por adequá-los ao prisma novo”

[6]  Conforme Aronne (2013, p. 187): “Interesses privados, sociais e públicos hão de se alinhar, relativizando-se em caso de conflito, sem se eliminarem, de modo que, em sua constituição mútua, seja verificável o conteúdo de funcionalização em apreço, plenamente exigível na condição de direito social, erguido nos ombros do art. 5º da CF/88 à condição de direito fundamental.”

[7]  Que também têm consequências do ponto de vista teórico e doutrinário na educação jurídica, pois consolida a matéria Direito Urbanístico, justamente pela unidade substancial dada à política urbana. Conforme Humbert (2010, p. 47): “O Direito Urbanístico possui vida própria. Tem linguagem, objeto, institutos, finalidades, regras e princípios prescritivos que lhe são característicos, elementos que demonstram, inequivocamente, sua autonomia científica”

[8]  Os instrumentos de gestão democrática da cidades são: conselhos de política urbana, conferências da cidade, orçamento participativo, audiências públicas, iniciativa popular de projetos de lei e o EIV (SAULE JUNIOR, 2001, p. 12).

[9]  Carvalho (2014, p. 156) registra a mudança de paradigma do controle social, que sai das obrigações de não fazer do direito privado do vizinho incomodado, para uma noção ampla, digna da licença para construir e exercer atividade: “Com o estabelecimento da nova ordem jurídico-urbanística a partir da Constituição Federal de 1988, o poder de polícia – originalmente caracterizado por obrigações de não fazer – sofreu ampliação e passou a impor, também, obrigações de deixar fazer e obrigações de fazer, ou melhor, obrigação de usar a propriedade para o cumprimento da função social da propriedade.”

[10] No contexto da governança urbana brasileira em que as irregularidades formais nos processos de licitação são constantes, justificadas pela lógica desenvolvimentista. Ver: (GURSKI; SOUZA-LIMA, 2018)