O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOBRE A ÓTICA DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL, DA MEDIDA PROVISÓRIA N. 881/19 E DO PROJETO DE LEI DO NOVO CÓDIGO COMERCIAL

Fabiana Del Padre Tomé

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo.

fabianadelpadretome@gmail.com

Fabio Garcia Leal Ferraz

Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

fabio@bernardiniadvogados.com.br

RESUMO: Este artigo jurídico objetiva examinar as modalidades de responsabilização dos sócios, seja pela solidariedade, seja pela aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Será explorada a legislação tributária, no âmbito do Código Tributário Nacional, bem como a legislação civil, no âmbito do Código Civil, com as recentes mudanças introduzidas pela Medida Provisória nº 881/19, bem como pelo projeto de lei do Novo Código Comercial. Pretende-se, ao final, concluir sobre os efeitos positivos dessas modificações, por conferirem maior segurança jurídica aos sócios sem poder de gerência.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade dos sócios. Solidariedade. Desconsideração da personalidade jurídica.

The institute of disregard of legal personality on de viewpoint of the National Tax Code, Provisional Measure n. 881/19 and the New Commercial Code Bill

ABSTRACT: This legal paper aims to examine the modalities of accountability of members, either solidarity, or by the application of the institute of disregard of legal personality. The tax legislation will be explored, within the scope of National Tax Code, as well as civil legislation, within the scope of the Civil Code, with the recent changes introduced by Provisional Measure n. 881/19 as well as by the New Commercial Code bill. It is intended, in de end, to conclude on the positive effects of these modifications, since they give greater legal certainty to the members without managerial power.

KEYWORDS: Liability of members. Solidarity. Disregard of legal personality.

Introdução

O presente trabalho procura expor de maneira sucinta várias formas de responsabilização pessoal dos sócios de uma sociedade de responsabilidade limitada, seja pela simples responsabilidade solidária que decorre de lei, como ocorre pelo Código Tributário Nacional, seja pela aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica aplicado em outras áreas do direito.

Este estudo foi dividido em quatro partes, sendo a primeira uma explanação sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, a segunda uma análise sobre a sistemática de responsabilização no âmbito do Código Tributário Nacional, a terceira e quarta, respectivamente, análises sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da Medida Provisória nº 881/19 e do projeto de lei do novo código comercial.

A metodologia utilizada foi o método analítico dedutivo, elaborando-se uma análise dos institutos acima mencionados, especialmente daquele recém inserido na legislação brasileira e daquele que ainda está pendente de aprovação para ser inserido. O procedimento adotado foi a leitura, seleção de material, interpretação, fichamento do material coligido, análise, síntese, sistematização, elaboração da primeira redação do trabalho e revisão, que redundou na elaboração do presente artigo.

Busca-se, portanto, promover um estudo comparativo entre as modalidades de responsabilização dos sócios nas esferas tributária e civil, sendo uma já antiga e aplicada há tempos e outra com recente alteração nas regras e, ainda, com uma proposta de lei ainda em votação que pode pôr fim à responsabilidade dos sócios não gestores.

1. Breves considerações sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica

Inicialmente, neste artigo, pretende-se discorrer sobre parte do tema central, que é o instituto da desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade empresária. Nessa esteira, sabe-se que a personalidade jurídica se oficializa com o registro da pessoa jurídica no órgão competente (efeito declaratório) e naturalmente se extingue com a baixa deste mesmo registro.

Decorre desse registro os efeitos da personalidade jurídica, especialmente no que tange às responsabilidades assumidas pela sociedade. Por isso, resta indubitável que as responsabilidades dos sócios das sociedades empresariais pelos passivos empresariais são, em regra, limitadas, dependendo da modalidade empresarial, ou seja, a responsabilidade é, na realidade, da própria sociedade e não dos sócios, pois a sociedade possui personalidade jurídica própria.

Esse é o principal, mas não único, efeito da personalidade jurídica da empresa: a autonomia patrimonial.

Há, contudo, um outro efeito da personalidade jurídica, que é exatamente o seu oposto, pois, se constituída a personalidade jurídica da empresa, tal personificação lhe pode ser retirada, nos casos previstos em lei.

Assim, a regra é que o patrimônio pessoal de cada sócio é completamente distinto daquele pertencente à sociedade personificada, não se confundindo os patrimônios de um e outro, exceto nos casos legalmente previstos (FERRAZ, 2013, p. 32-34).

Estes casos excepcionais previstos em lei, capazes de desconstituir a personalidade jurídica de uma sociedade personificada, ocorrem principalmente quando é comprovado o emprego de qualquer tipo direto ou indireto de fraude ou abuso na gestão e/ou no objetivo social da sociedade empresarial.

Importante comentar que esta possibilidade de se desconsiderar ou desprezar a personalidade jurídica de uma sociedade empresária advém originalmente do famoso caso inglês de 1897, denominado Salomon v. Salomon & Co[1], um verdadeiro precedente na história jurídico-empresarial mundial, que abriu portas para a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias.

Neste sentido, o art. 50 do Código Civil brasileiro aborda que em caso de abuso da personalidade jurídica (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), pode o magistrado, a requerimento da parte interessada ou do Ministério Público, estender os efeitos de determinadas relações obrigacionais aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, cujo dispositivo legal sofreu alterações com a recente Medida Provisória nº 881/2019, o que será melhor abordado adiante.

Fica claro, destarte, que acaso haja qualquer tipo de simulação que se valha da personalidade jurídica de uma empresa, prejudicando alguém ou a sociedade de forma geral, especialmente com o emprego de abuso ou fraude, tal ato pode comprometer a personalidade jurídica empresarial e, consequentemente, a limitação da responsabilidade dos sócios ou daquele que cometeu a infração legal.

Nesse sentido, Silvio Rodrigues (2003, p. 96-97) bem explica a questão, in verbis:

Assim sendo, quando se recorre à ficção da pessoa jurídica para enganar credores, para fugir à incidência da lei ou para proteger um ato desonesto, deve o juiz esquecer a ideia de personalidade jurídica para considerar os seus componentes como pessoas físicas e impedir que por meio do subterfúgio prevaleça o ato fraudulento.

Talvez seja essa ideia a inspiradora do art. 50 do Código Civil de 2002, já transcrito acima (n. 44).

Esclarecedores são, também, os dizeres de Marlon Tomazette (2017, p. 313-318):

A desconsideração é, pois, a forma de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais ela foi criada, vale dizer, é a forma de limitar e coibir o uso indevido deste privilégio que é a pessoa jurídica, uma forma de reconhecer a relatividade da personalidade jurídica das sociedades. Este privilégio só se justifica quando a pessoa jurídica é usada adequadamente, o desvio da função faz com que deixe de existir razão para a separação patrimonial.

[...]

Para a chamada teoria maior da desconsideração, não basta o descumprimento de uma obrigação por parte da pessoa jurídica, é necessário que tal descumprimento decorra do desvirtuamento da sua função. A personificação é um instrumento legítimo de destaque patrimonial e, eventualmente, de limitação de responsabilidade, que só pode ser descartado caso o uso da pessoa afaste-se dos fins para os quais o direito a criou.

A aplicação generalizada da desconsideração acabaria por extinguir uma das maiores criações do direito: a pessoa jurídica.

As transcrições são longas, porém de extrema relevância para evidenciar que, com a decretação judicial da desconsideração da personalidade jurídica, tem-se por afastada a divisão existente entre os bens da sociedade e os bens pessoais dos sócios, de modo a considerá-los como uma universalidade de bens que responderão pelas obrigações contraídas pelos sócios em nome da sociedade.

O principal contraponto nesse tema é que, nos atuais dias, as decisões judiciais, principalmente nas questões que cercam direitos trabalhistas, estão aplicando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica desprezando os requisitos mínimos exigidos para tanto, notadamente a fraude, o que não se pode permitir, mas é rotineiramente aplicado à revelia da lei pelo Poder Judiciário, comprometendo a estabilidade do cenário jurídico empresarial brasileiro.

A verdade é que o Poder Judiciário, diante desse cenário, ao invés de trazer à sociedade a segurança jurídica, proporciona exatamente o oposto. Por isso, importante avançar-se no tema, o que será feito nos tópicos a seguir, para que se possa entender o que está se pretendendo modificar e como poderá ser aplicado o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no futuro.

2. A responsabilização dos sócios da sociedade empresária no âmbito do Código Tributário Nacional

Como visto no item anterior, a desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional que permite momentaneamente ao credor atingir os patrimônios particulares dos sócios da sociedade devedora, respondendo tais patrimônios pelas obrigações sociais. Isso ocorre para reprimir condutas consideradas judicialmente como fraudulentas e abusivas e que foram praticadas pelos sócios ou administradores da pessoa jurídica.

Na seara do direito tributário, os contribuintes muitas vezes se valem da separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus sócios para se esquivarem do ônus financeiro representado pela altíssima carga fiscal brasileira. Nesses casos, para promover o desincentivo a tais condutas, é eficaz e bem-vinda a aplicação do instituto da desconsideração da pessoa jurídica. Ocorre que sua aplicação tem sido objeto de controvérsias e abordagens distintas na doutrina e na jurisprudência.

A fundamentação para a aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do direito tributário, comumente dá-se com base nos artigos 134, inciso VII, e 135, inciso III, do Código Tributário Nacional (CTN), que assim estipulam:

Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

[...]

VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. [...]

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

[...]

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

Convém esclarecer, porém, que esses dispositivos legais não dizem respeito, propriamente, ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pois tão somente preveem a responsabilidade solidária dos diretores, gerentes e representantes legais da pessoa jurídica, nos casos de infração à lei, excesso de poderes e fraude (CARVALHO, 2018, p. 321). Não se trata especificamente de desconsiderar a responsabilidade limitada de uma sociedade limitada, o que, por exemplo, afetaria a todos os sócios, diretores ou não, gestores ou não, representantes legais ou não[2].

O contraponto é que, à época da criação do CTN (1966), o instituto da personalidade jurídica era um embrião de uma construção doutrinária e não estava estampado na lei, pois o Código Civil (lei que a contemplou) somente nasceu em 2002.

Não obstante, Rezende Condorcet (1979, p. 130) há muito tempo já dizia:

Aliás, se entendermos, como demonstra a maioria dos relatórios nacionais (do XLIII Congresso da Internacional Fiscal Association), que a responsabilidade fiscal dos administradores é um aspecto da aplicação do conceito de ‘desconsideração’, teremos no art. 135 do Código Tributário Nacional (CTN) regra expressa nesse sentido.

No mesmo sentido, manifesta-se Gilberto Gomes Bruschi (2004, p. 56), ao examinar o artigo 135 do Código Tributário:

Ao se analisar tal artigo do CTN, nota-se que há responsabilidade solidária entre a pessoa jurídica e as demais pessoas enumeradas nos seus incisos, a partir do momento em que ocorre abuso de poder ou ainda infração de lei, fazendo com que seja permitido avançar na esfera patrimonial particular dos sócios, caracterizando em uma derivação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito tributário, pois esses são os mesmos requisitos para sua aplicação de acordo com a legislação não tributaria, [...]

Em orientação diversa, o entendimento jurisprudencial consolidou-se no sentido de que a aplicação dos artigos 134 e/ou 135 do CTN consiste em uma extensão da responsabilidade tributária, possuindo caráter sancionatório, não se tratando de desconsideração da personalidade jurídica, instituto completamente diverso. Veja-se:

PROCESSO CIVIL E RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SÓCIO-GERENTE (ART. 135, CTN). DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO LEGAL: NÃO APRESENTAÇÃO DOS RECIBOS DE PAGAMENTO DE ABONO DE NATAL E ABONO SALARIAL DE AGOSTO/90. FALÊNCIA DA EMPRESA. RESPONSABILIDADE PESSOAL E SOLIDÁRIA DO SÓCIO-GERENTE. LEGITIMAÇÃO AD CAUSAM PASSIVA. CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTES DA CORTE (AC 96.01.49173-2/PI E AC 93.01.35326-1/MG) E DO STJ (RESp 7387/91, PR).

1. O descumprimento de obrigação legal relativa a fatos geradores contemporâneos à gerência do SÓCIO, torna-o legitimado passivamente para a execução, ante a configuração de sua RESPONSABILIDADE pessoal e solidária, decorrente da infração à lei (art. 135, CTN).

2. Título executivo, não impugnado, usufrui da presunção de certeza e liquidez, somente passível de afastamento mediante prova robusta, em sentido contrário, a cargo da parte executada.

3. Configuração da legitimidade passiva ad causam do sócio-gerente. Impossibilidade de cobrança da massa falida de multa com efeito de pena administrativa (Súmula 192 e 565 do STF).

4. Apelo improvido. Sentença mantida.[3]

À época da criação do CTN, o instituto da desconsideração era ainda uma singela construção doutrinária e não havia previsão legal para sua aplicação. O legislador, contudo, antevendo hipóteses em que o sócio, em razão de atos ilícitos, desse ensejo à obrigação tributária, inseriu dispositivos específicos para responsabilizá-lo em tais casos.

Assim é que, nos termos do art. 134, VII, do CTN, verificando-se (i) liquidação de sociedade de pessoas e (ii) havendo impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação pelo contribuinte, surge, a responsabilidade para os sócios, nos atos em que estes intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis (MELO, 2013, p. 37).

Neste ponto, vale esclarecer mais um aspecto que distingue as prescrições do art. 135 do CTN em relação à figura da desconsideração da personalidade jurídica: o dispositivo tributário responsabiliza, pela prática de atos ilícitos, não apenas os sócios, mas também os mandatários, prepostos, empregados, diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, desde que demonstrada a existência de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, dos quais tenha decorrido obrigação tributária. Evidente, assim, seu viés sancionatório.

A despeito disso, fato é que, ainda que não se trata propriamente de desconsideração da personalidade jurídica, o CTN, desde 1966, já possuía sua maneira própria de responsabilizar as pessoas dos sócios e administradores em caso de fraudes ou abusos cometidos para prejudicar o fisco.

O que chama atenção é que o CTN, desde seu surgimento, detinha dispositivo legal que previa a responsabilização exatamente daqueles que são considerados verdadeiramente responsáveis pela fraude ou abuso cometido para fraudar os recolhimentos tributários, ou seja, os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. Ninguém mais.

Fica claro que a responsabilidade somente abarcará a todos os sócios, representantes/gestores ou não, quando houver a liquidação prematura da sociedade endividada, o que é perfeitamente compreensível, pois tal instrumento de liquidação deve ser assinado e, portanto, avalizado, por todos os sócios, ainda que minoritários e/ou não representantes legais da pessoa jurídica (art. 134, VII, do CTN). Do contrário, na seara do direito tributário, a responsabilização dos sócios ocorre, apenas, em tese, com relação àqueles que figurem como gestores, diretores ou representantes legais da pessoa jurídica, pois seriam estes, e somente estes, os infratores da lei. Nesse sentido, perspicaz é a conclusão consignada por Renan Wanderley Santos Melo (2013, p. 38): “Para a aplicação da responsabilidade de terceiro por ato irregular é necessário um requisito elementar: prática de algum ato para o qual o terceiro não tinha poderes ou de ato que infringiu a lei, estatuto ou contrato social”.

Em suma, conclui-se que a responsabilidade do sócio, no âmbito do CTN, depende de sua posição dentro da sociedade, ou seja, se for sócio administrador/gestor ou representante legal da sociedade, em caso de abusos ou fraudes para evitar o pagamento de tributos, será, então responsabilizado, desde que comprovada sua atuação:

(i) com excesso de poderes, praticando atos além do que lhe tinha sido autorizado e, portanto, alheio aos fins da sociedade; (ii) com violação às disposições legais que regem as ações da pessoa jurídica, como é o caso da legislação comercial e civil; ou (iii) com ofensa às disposições constantes dos instrumentos societários – contrato social ou estatutos. (TOMÉ, 2016, p. 366-367)[4].

O mesmo raciocínio opera quando uma não haja o pagamento da sociedade, que pode estar em situação de insolvência, encerramento irregular das atividades, dentre outras possibilidades. Para esses casos, a responsabilidade dos sócios e administradores é, também, de acordo com sua posição dentro da sociedade e, ainda, é preciso a configuração do ato abusivo e/ou contra legem.

Nesse sentido:

APELAÇÃO - EXECUÇÃO FISCAL – ICMS – Pessoa Jurídica – Encerramento Regular das Atividades – CDA – Nulidade – Responsabilidade tributária – Redirecionamento ao sócios – Inadmissibilidade - A Certidão de Dívida Ativa que aponta como devedora pessoa jurídica regularmente dissolvida por distrato arquivado na Junta Comercial é nula de pleno direito - O redirecionamento da execução fiscal só pode ocorrer em relação a sócios-gerentes, diretores e administradores de sociedades por quotas de responsabilidade, ou anônimas, se demonstrado que agiram com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (art. 135, II, CTN) - Da insolvência em si não decorre a presunção de que tenha havido exorbitância, abuso ou ilegalidade, por parte dos administradores. A falta de pagamento do tributo não configura infração à lei capaz de ensejar a responsabilidade pessoal dos sócios-gerentes da pessoa jurídica - Dissolução regular da sociedade devidamente averbada na Junta Comercial anos antes da formação do título executivo e do ajuizamento da ação - Ausência de responsabilidade do administrador. Sentença mantida. Recurso improvido. [5]

Tendo em vista esses requisitos, caso não se trate seja sócio em posição gerencial (administrador), consoante o que determina o CTN, não haverá sua responsabilização, até mesmo pela limitação de seus poderes para prática de atos em nome da pessoa jurídica.

3. A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da recente alteração do Código Civil pela MP nº 881/19

Vige, no ordenamento brasileiro, o princípio da autonomia patrimonial, estabelecendo-se a segregação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem. Em razão disso, os sócios não são considerados titulares dos direitos ou devedores das prestações decorrentes da atividade exercida pela sociedade. Como registra Fábio Ulhôa Coelho (2000, p. 15):

não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios, encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela sociedade, nem com uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade.

Buscando evitar o uso abusivo e fraudulento dessa segregação patrimonial, porém, o Código Civil de 2002 estipulou, no art. 50, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica. Eis sua redação original:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Aos 30 de abril de 2019 foi assinada a Medida Provisória nº 881, que “institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências”.

Referida Medida Provisória (MP) trouxe alterações e inovações interessantes e importantes para a economia brasileira, especialmente para o empresariado nacional. Uma das principais modificações diz respeito ao art. 50 do Código Civil, que passou a assim dispor:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

A nova redação traz várias modificações importantes. O foco do presente estudo, porém, reside na alteração perpetrada no caput do art. 50, especificamente no que tange à possibilidade de desconsiderar a responsabilidade jurídica da sociedade empresarial “para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

A redação anterior trazia a palavra “sócio” indistintamente, atestando “que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Essa é uma das principais modificações acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade empresária, pois passa de uma responsabilização de todos os sócios indistintamente para somente aqueles que realmente agiram com emprego de fraude ou abuso da personalidade jurídica da sociedade, ou, de certa forma, se beneficiaram com isso.

Tal alteração na legislação civil tende a alterar futuramente decisões como essa:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. 1. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. SÓCIO MINORITÁRIO. INDIFERENÇA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 2. EX-SÓCIO. INAPLICÁVEIS AS REGRAS DOS ARTS. 1.003 E 1.032 DO CC. SÚMULA 83/STJ. 3. AGRAVO DESPROVIDO.

1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, não há distinção entre os sócios da sociedade empresária no que diz respeito à disregard doctrine, de forma que todos eles serão alcançados. Assim, tendo o acórdão a quo asseverado estarem preenchidos os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, torna-se inviável infirmar tais conclusões sem que se

esbarre no óbice da Súmula 7/STJ.

2. Não se aplicam os arts. 1.003 e 1.032 do CC para os casos de desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem como fundamento o abuso de direito efetivado quando a parte ainda integrava o quadro societário da pessoa jurídica alvo da execução. Acórdão recorrido em harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ.

3. Agravo interno desprovido.[6]

Assim, a alteração legislativa traz certa semelhança do CTN para o Código Civil, pois passa a apenar apenas o administrador ou sócio infrator ou que se beneficiou com tal irregularidade, resguardando os direitos daquele sócio que não interfere na gestão societária, muitas vezes por ser minoritário e/ou com a pretensão única de ser apenas e tão somente um mero investidor no negócio.

Ou seja, a semelhança entre o CTN e o Código Civil, com a atual redação do art. 50, é que em ambos os casos, não se apena o sócio sem poderes de gestão, com exceção de este ter se beneficiado de alguma forma.

Por isso, a legislação passa, agora, a trazer segurança para sócios investidores no Brasil, por estarem amparados pela nova redação do art. 50 do Código Civil, impedindo que sejam prejudicados por infração cometida por outrem, exceto se tiverem se beneficiado, cuja prova do benefício compete ao interessado na aplicação da disregard doctrine.

Trata-se de um grande avanço para o setor empresarial nacional, podendo aumentar e fomentar o nível de investimentos a partir da publicação da MP nº 881/2019, decorrente da interdisciplinaridade entre Direito e Economia, em que as normas jurídicas são utilizadas como mecanismos de influência e estímulos de comportamentos, voltando-se à maximização de suas utilidades (CAMINHA; ROCHA, 2015, p. 35).

A segurança quanto à impossibilidade de atingir-se sócio que não tenha dado causa ou não tenha se beneficiado de práticas abusivas e de confusão patrimonial atende ao preceito da pessoalidade da pena, nos termos do qual a punição não pode, em regra, ultrapassar a pessoa do infrator. Eis as precisas considerações de César García Novoa (2000, p. 37):

Esta exigencia de culpa lleva a la ya mencionada personalidad de la sanción, porque sólo cabrá responsabilidad en quien concurra la culpabilidade así definida... Si para que una infracción seja sancionable ha de ser cometida, como mínimo, com culpa leve, sólo debe responder quien la ha cometido y no otros sujetos que no han tenido culpa.

Ainda que a desconsideração da personalidade jurídica não se caracterize, intrinsecamente, como uma punição, uma vez que tem a prática abusiva ou fraudulenta como seu pressuposto, os correspondentes efeitos devem ser limitados à pessoa do infrator: há um nexo entre as ações praticadas pelo infrator e os efeitos jurídicos da desconsideração da personalidade, de modo que somente o sócio que tenha dado causa ao desvio de finalidade ou confusão patrimonial, ou tenham dele se beneficiado, direta ou indiretamente, podem ser chamados para responder com seus bens particulares pelos débitos da entidade.

4. A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do projeto de lei do novo Código Comercial

O Projeto de Lei nº 1.572/2011 (CÂNDIDO, 2011), em trâmite perante a Câmara dos Deputados, que pretende a instituição do novo Código Comercial e, após mais de 06 (seis) anos de debates e aperfeiçoamentos, se encontra em trâmite e aguardando votação no Congresso Nacional.

Referido projeto propõe melhorias na sistemática do direito empresarial, como, por exemplo, visa melhor institucionalizar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito privado, o que está previsto em seu art. 121, conforme se nota:

Art. 121. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, para imputar a obrigação ao sócio ou administrador.

§ 1º Será imputada responsabilidade exclusivamente ao sócio ou administrador que tiver praticado a irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

§ 2º Em caso de atuação conjunta na realização da irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, a responsabilidade dos envolvidos será solidária.

§ 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, cada um dos responsabilizados responderá, em regresso, proporcionalmente à respectiva participação na irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

§ 4º A simples insuficiência de bens no patrimônio da sociedade para a satisfação de direito de credor não autoriza a desconsideração de sua personalidade jurídica.

§ 5º A imputação de responsabilidade ao sócio ou administrador, ou a outra sociedade, em decorrência da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, só pode ser determinada pelo juiz, para qualquer fim, em ação ou incidente próprio, depois de assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório.

§ 6º Decretada a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser incluído no processo o nome do sócio, administrador ou da pessoa, natural ou jurídica, a quem se imputar responsabilidade.

A necessidade de instituir essa alteração na sistemática do instituto da desconsideração da personalidade jurídica se dá porque a afetação de determinada obrigação ou dívida da sociedade empresária, até antes da MP nº 881/2019, quando havia a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, atingia não somente o patrimônio dos sócios gestores/administradores responsáveis pela fraude ou desvio de finalidade da pessoa jurídica, mas também dos sócios investidores não gestores, inclusive dos sócios minoritários que nada interferiram no cometimento da irregularidade deflagrada.

Nesse sentido, têm-se alguns exemplos:

RECURSOS ESPECIAIS. MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS. AFRONTA AO ARTIGO 535 DO CPC. INOBSERVÂNCIA. DANOS MORAIS COLETIVOS. CABIMENTO. RAMIRES TOSATTI JÚNIOR. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC. DESCABIMENTO. LIMITAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA AOS SÓCIOS QUE EXERCEM CARGO DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE LIMITADA. IMPOSSIBILIDADE. MULTA. ARTIGO 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. AFASTAMENTO. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.

[...]

2. Recurso interposto por Ramires Tosatti Júnior. 2.1. Não se vislumbra a alegada violação ao artigo 535 do CPC, pois não caracteriza, por si só, omissão, contradição ou obscuridade, o fato de o tribunal ter adotado outro fundamento que não aquele defendido pela parte. 2.2. Para os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, não há fazer distinção entre os sócios da sociedade limitada. Sejam eles gerentes, administradores ou quotistas minoritários, todos serão alcançados pela referida desconsideração. 2.3. Nos termos da Súmula 98 desta Corte: “Embargos de declaração manifestados com notório propósito de prequestionamento não tem caráter protelatório.” Afasta-se, portanto, a multa fixada com base no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. 3. Recursos parcialmente providos.[7]

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – Desconsideração da personalidade jurídica – Efeitos da desconsideração da personalidade jurídica que alcança a todos os sócios, inclusive o sócio minoritário - Decisão mantida – Recurso não provido.[8]

Cumprimento de sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Art. 50 do Código Civil. Admissibilidade quando evidenciado abuso da personalidade jurídica, configurado no caso concreto. Circunstância de se tratar de sócio minoritário, sem participação na administração da sociedade empresária que é irrelevante para a desconsideração, uma vez que a lei não faz qualquer distinção a respeito. Desconsideração da personalidade jurídica que é de rigor. Decisão acertada. Recurso improvido.[9]

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE COBRANÇA - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - INSTAURAÇÃO - SÓCIO COTISTA - INCLUSÃO - POSSIBILIDADE - DISTINÇÃO ENTRE O COTISTA E OS ADMINISTRADORES - AFERIÇÃO EM MOMENTO OPORTUNO - VEDAÇÃO ao indeferimento PRÉVIO - PRECEDENTE - decisão JUDICIAL - reforma. AGRAVO PROVIDO.[10]

Desconsideração da personalidade jurídica Penhora - Incidência sobre bens de seus sócios. Existindo veementes indícios de encerramento irregular da sociedade executada e ausentes bens passíveis de constrição judicial, isto a indicar abuso da personalidade jurídica por confusão patrimonial, deve ser acolhido pedido de desconsideração da personalidade jurídica, sendo irrelevante o fato de atingir patrimônio de sócio minoritário. Recurso provido.[11]

É de se notar, com facilidade, que no atual entendimento jurisprudencial predominante, caso haja a desconsideração da personalidade jurídica, todos os sócios indistintamente serão atingidos e respondem pelas obrigações e dívidas com seus patrimônios pessoais.

Com a MP nº 881/2019, apesar de se tratar de uma alteração provisória da legislação e passível de convalidação por meio de lei futuramente, uma luz no fim do túnel parece acender.

Por isso, impossível não reparar no perfeccionismo trazido pelo legislador no projeto de lei em comento, ao imputar responsabilidades especificamente aos sócios gestores ou que derem causa ao desvio de finalidade ou confusão patrimonial da sociedade empresarial.

Com a redação pretendida, se aprovada, os sócios não gestores ou que não derem causa ao abuso da personalidade jurídica não terão seu patrimônio pessoal afetado, atendendo, assim, à almejada adequação valorativa (SILVA, 2007, p 267), de modo que se obtenha coerência sistêmica, com legisladores e aplicadores tomando decisões em conformidade com os princípios gerais do direito, de caráter fundante, constitutiva e estruturante do sistema jurídico (CANARIS, 1996, p. 76).

Se, de um lado, vige a regra da autonomia da pessoa jurídica, segregando seu patrimônio em relação ao dos sócios, por outro se faz necessária a proteção contra o emprego abusivo dessa segregação patrimonial. A ponderação entre esses dois vetores do ordenamento objetiva a realização dos princípios maiores da segurança e da certeza do direito. Eis o motivo pelo qual consideramos que a nova legislação comercial, se aprovada, propiciará ambiente mais seguro para os sócios meramente investidores (e não gestores) de sociedades que envolvam atividades de alto risco, como startups, dentre outras, assegurando que estes não sejam responsabilizados pessoalmente por práticas abusivas ou fraudulentas com as quais em momento algum tenham compactuado.

Considerações finais

O presente trabalho propôs uma estruturação em quatro partes, além da introdução e conclusão, sendo uma primeira parte para descrever sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, trazendo um breve histórico e explicando seu mecanismo. Posteriormente, em uma segunda parte, trata-se da responsabilização tributária dos sócios da sociedade empresária perante o fisco. A terceira parte aborda sobre a Medida Provisória nº 881/19, no que tange à inovação ao art. 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica empresarial, e, por último, uma quarta parte que aborda sobre a desconsideração da personalidade jurídica trazida pelo projeto de lei do novo código comercial brasileiro.

Como foi visto, a legislação tributária, que já é bastante antiga quando comparada com as demais leis abordadas neste estudo, traz em seus artigos uma forma de responsabilização dos diretores, gerentes e/ou representantes legais das pessoas jurídicas de direito privado. Notável, portanto, que quando houver o emprego de abusos, na forma do art. 135 do CTN, notadamente com emprego de atos de excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, responderão solidariamente os diretores, gerentes e representantes legais da sociedade empresarial, pois estes e somente estes seriam responsáveis pela prática do ilícito.

A legislação brasileira, até antes da Medida Provisória nº 881/19, no art. 50 do Código Civil, trazia que todos os sócios seriam responsabilizados em caso de desconsideração da personalidade jurídica, inclusive os minoritários não gestores, que estavam ali como meros investidores. Contudo, a Medida Provisória em comento veio como um fôlego ao setor empresarial, garantindo aos investidores, que não figurem como administradores, gestores ou representantes legais da pessoa jurídica, que não terão seus patrimônios pessoais comprometidos por não se responsabilizarem por eventuais ilegalidades praticadas pelos gestores, estes sim os verdadeiros responsáveis que deverão arcar com o problema por meio de seus patrimônios pessoais.

No mesmo sentido, o projeto de lei do Novo Código Comercial prevê regra semelhante: somente se responsabilizam os administradores ou os sócios que praticarem o ato ilícito, nunca os sócios inocentes, exceto se estes aproveitarem-se financeiramente da irregularidade.

É notável que há uma forte tendência de nosso ordenamento jurídico em deixar de responsabilizar todos os sócios indistintamente de uma sociedade em caso de abusos da personalidade jurídica ou infração ao contrato social ou à lei, pois nem todos os sócios são infratores.

Se na esfera penal, para se penalizar alguém, é preciso haver e provar o elemento culpa ou dolo daquela determinada pessoa, analogicamente, na esfera civil e societária, para se impor um ônus “responsabilizatório” ou “penalizatório” ao sócio de uma sociedade empresária pelo cometimento de abuso ou fraude na gestão da sociedade, doravante será necessário demonstrar quem foi o verdadeiro responsável (ou responsáveis) pela infração, que, via de regra, serão os administradores e responsáveis legais pela pessoa jurídica.

Assim, conclui-se que, com nomenclatura diferente, o CTN, em seus artigos 134 e 135, não abordava sobre a desconsideração da personalidade jurídica, mas desde muitos anos já trazia em seu bojo a mesma sistemática que a atual Medida Provisória e o projeto de lei do Novo Código Comercial pretendem: a responsabilização solidária dos sócios representantes legais e diretores/gerentes/administradores que efetivamente tiverem culpa (ou dolo) por ação ou omissão na prática de abusos/fraudes de modo geral na condução das atividades negociais sociais.

O Brasil possuía apenas na esfera tributária dispositivos legais que efetivamente responsabilizavam de forma correta os infratores de abusos da personalidade jurídica, mas de agora em diante, espelhando-se no CTN, a esfera civil também passa a ter essa coerente forma de raciocínio para a responsabilização pessoal.

Falta, ainda, de forma eficaz, mudanças na esfera da legislação trabalhista, consumerista e ambiental, que ainda estendem a todos os sócios indistintamente a responsabilização por abusos/fraudes, bem como pela simples inadimplência.

Por isso, no cotejo da desconstituição da personalidade jurídica empresarial, o legislador, muitos anos atrasado, vem, agora, seja pela Medida Provisória nº 881/19, seja pelo Novo Código Comercial, caso seja aprovado com a redação estimada, também trazer à esfera civil a mesma ideia compartilhada pela legislação tributária de responsabilizar apenas e tão somente aquele que comete abusos/infrações/fraudes ou se aproveita delas, o que garantirá maior segurança jurídica à investidores que apostam em determinado negócio, mas muitas vezes não investiam por insegurança de eventual problema financeiro da sociedade respingar em seu patrimônio pessoal.

Por óbvio, a Medida Provisória será convalidada por lei definitiva, mas que pouco deverá alterar a redação do art. 50 do Código Civil, perpetuando, se assim ocorrer, a análise do presente artigo, que versa sobre medida obrigatoriamente temporária.

De todo modo, a tendência brasileira é cada vez mais afastar dos sócios meramente investidores, que não possuem a gestão da sociedade, a responsabilidade por eventuais débitos, dívidas, sejam fiscais, sejam débitos da esfera civil e, quiçá, em um futuro próximo, também para débitos das esferas trabalhistas, ambientais e consumeristas.

Referências

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Submetido em: 22 jun. 2019.

Aceito em: 16 dez. 2021.



[1]    Mariana Rocha Corrêa (2011) aborda com brilhantismo o famoso caso em seu artigo científico apresentado à Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ: “A decisão precursora foi a do caso Bank Of United States V.S Deveaux, todavia, se verifica que a maioria dos estudiosos acredita que sua origem foi na Inglaterra no caso Salomon V.S. Salomon CO. No primeiro caso, no ano de 1809, o juiz Marshall para firmar a competência da justiça federal, que de acordo com a constituição americana é preciso que envolva indivíduos de estados diferentes, desconsiderou a personalidade jurídica da instituição financeira afirmando que os acionistas deste residiam em diferentes estados, já que sem esta manobra, como demandante e demandado tinham como domicilio o mesmo estado, seria impossível o prosseguimento do caso nas cortes federais. Vale dizer que esse caso, no entanto, foi considerando apenas a primeira manifestação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Já no caso Salomon V.S Salomon CO., o comerciante Aaron Salomon constituiu uma Limited Company, similar a uma sociedade anônima, em conjunto com outros integrantes de sua família, mas recebendo aproximadamente vinte mil ações enquanto os demais acionistas receberam apenas uma cada um. Após aproximadamente um ano, a sociedade se mostrou inviável, sendo o seu ativo insuficiente para cumprir com as obrigações dos credores quirografários. Assim, um liquidante propôs a referida demanda objetivando uma indenização pessoal de Aaron Salomon, uma vez que, a companhia continuava sendo sociedade pessoal para limitar sua responsabilidade, isto é, a sociedade que fora constituída era fictícia. O juízo de primeiro grau acolheu a pretensão do liquidante, mas tal decisão foi reformada pela Casa de Lordes que entendeu que a sociedade foi validamente constituída e que não houve indício de fraude. Assim, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica nasceu e ganhou o mundo sendo conhecida na Alemanha como Missachtung Der Rechtsform Der Juristischen Personen, no direito anglo-americano Disregard Doctrine ou Disregard of Legal Entity, completada pelas expressões to pierce the veil ou to life the courtain ou, ainda, lifiting the corporate veil, no direito italiano Superamenta Della Personalitá Giuridica, no direito argentino Teoria de La Penetración e na França Mise à L’écart de La Personnalité Morale entre outros.”

[2]    Pelo menos, em tese, realmente afetaria todos os sócios, até a vinda da Medida Provisória 881/2019, o que será analisado mais adiante.

[3]    Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Classe: Apelação Cível nº. 01119299. Processo nº. 1996.01.11929-9/GO. Órgão Julgador: Terceira turma. Data da Decisão: 28/09/2000. Fonte DJ data: 19/12/2000, página 30. Relator: Desembargador Federal Candido Ribeiro.

[4]    Conforme consolidado pelo STJ, a simples falta de pagamento de tributo não configura circunstância que acarrete responsabilidade tributária do sócio-gerente (Súmula 430).

[5]    Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível nº 1505638-97.2020.8.26.0014. Relator: Des. Maurício Fiorito. Data do julgamento: 05/03/2021.

[6]    Superior Tribunal de Justiça. Agravo interno no agravo em recurso especial nº 1347243. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data do julgamento: 18/03/2019.

[7]    Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial – Resp nº 1250582/MG. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. Data do Julgamento: 12/04/2016. Data da Publicação/Fonte DJe: 31/05/2016.

[8]    Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo de Instrumento nº 2035575-11.2018.8.26.0000. Relator Desembargador Maia da Rocha. 21ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 11/09/2018, Data de publicação/Fonte DJe: 11/09/2018.

[9]    Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo de Instrumento nº 2104756-02.2018.8.26.0000. Relator Desembargador Maia da Rocha. 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 28/06/2018, Data de publicação/Fonte DJe: 10/07/2018.

[10]  Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo de Instrumento nº 2100364-19.2018.8.26.0000. Relator Desembargador Tavares de Almeida. 14ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 25/06/2018, Data de publicação/Fonte DJe: 25/06/2018.

[11]  Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Agravo de Instrumento nº 2229291-37.2017.8.26.0000. Relator Desembargador Itamar Gaino. 14ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 05/02/2018, Data de publicação/Fonte DJe: 05/02/2018.